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1 FACULDADES INTEGRADAS HÉLIO ALONSO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL PUBLICIDADE E PROPAGANDA IGUALDADE RACIAL �O BRASIL.UTOPIA? André Meireles Gomes de Oliveira RIO DE JANEIRO Maio de 2009 2 A�DRÉ MEIRELES GOMES DE OLIVEIRA IGUALDADE RACIAL �O BRASIL.UTOPIA? Monografia de graduação do Curso de Comunicação Social, habilitação em Publicidade e Propaganda, apresentada como exigência final do curso. Disciplina: Projeto Experimental (2º semestre/2008) Orientador: Estanislau Felix Rio de Janeiro, Maio de 2009 FACULDADES I�TEGRADAS HÉLIO ALO�SO 3 A todos que me apoiaram na minha vida acadêmica, profissional e espiritual e que de certa forma contribuíram para que esse trabalho fosse concluído. Oxalá e meus ancestrais abençoem a todos por estarem do meu lado retribuindo em dobro toda força que vocês me passam. Axé. 4 Sumário 1. Introdução..............................................................................................06 2. Desenvolvimento..............................................................................12 2.1 O Racismo e seus desdobramentos.......................................................12 2.2 O Mito da democracia racial.................................................................18 2.3 Mecanismos de invisibilidade...............................................................24 2.4 Imprensa x III Conferência Mundial Contra o Racismo.......................25 2.4.1 Cobertura sobre a CMCR: Números e Nomes...................................28 2.5 Democracia e respeito a diversidade religiosa......................................33 2.6 Casos de intolerância religiosa..............................................................35 3. Conclusão...............................................................................................42 4. Bibliografia.............................................................................................43 5 Resumo Nesse trabalho iremos conhecer quais mecanismos invisibilizam os negros e suas ações na mídia, no trabalho, no lazer, na cultura e na religiosidade. As leis que regulam essa prática e explicitar como as sutilezas do racismo e intolerância têm permeado as relações cotidianas de uma parcela expressiva da população. Leis que devem ser garantidas e cumpridas. Não basta criminalizar os agressores, o mais importante é educar e conscientizar a sociedade para que possamos conviver no espírito de paz e democracia. O diálogo e o conhecimento são os pontos norteadores que devemos seguir. O desconhecimento das conseqüências que o cerceamento desses direitos básicos traz ás vítimas ainda é um fator fundamental na luta contra o racismo, a prática do proselitismo e a discriminação propagada às "ditas" minorias étnicas. Através dessas informações devemos dar subsídios a todas as pessoas, autoridades ou não, que tomem conhecimento dessas práticas e busquem seus direitos de cidadão. É por isso que não basta o discurso da liberdade para todos, enquanto direito fundamental da pessoa humana. É necessário que se garanta a pluralidade de idéias e a diversidade cultural. Os pilares do Estado Democrático de Direito são o respeito, a liberdade e o acesso irrestrito aos direitos fundamentais. O Estado Laico, onde se garante a liberdade de pensamento, prevê a igualdade entre homens e mulheres independente de sua cor, etnia, orientação religiosa ou filosófica. O maior patrimônio de uma nação é a prática da solidariedade entre seus cidadãos. 6 1. Introdução Os navegadores portugueses encontraram, abaixo da linha do Equador, uma terra com um extenso litoral de praias e enseadas paradisíacas. Terra habitada por gentes pardas e saudáveis, contadas aos milhões, reunidas em famílias, tribos e “nações”: Tupi-Guarani, Tapuia, Tupinambá, Tamoio, Tupiniquim, Xavante, Charrua. Povos de línguas ágrafas, não se conhecendo ao certo de que paragens teriam vindo, e há quanto tempo estavam ali, conluiados com a exuberante natureza, em sociedades afluentes. Mas ali estavam, com seus costumes, adaptados às condições materiais do ambiente; com seu modo de viver e de conceber o mundo. Pelo calendário cristão, há pouco mais de quinhentos anos, esse lugar entrou na história de um outro lugar, mas continuou sem uma história própria, em que os seus antigos habitantes, os autóctones, participassem da narrativa na condição de sujeitos do discurso. Depois, aos milhões, entram em cena gentes da cor do ébano, trazidas da África, igualmente forçadas à amnésia delas próprias. Alguns séculos mais tarde, as elites intelectuais e políticas desse lugar resolvem contar a história da nova Nação. Concluem que não seria difícil a tarefa. Bastava “imaginar” e reconstituir, da frente para trás, os acontecimentos, reais ou não. O dia 22 de abril de 1500, data da carta de Pero Vaz Caminha ao rei de Portugal, é estabelecido como marco zero. Mas a narrativa teria que ser uniforme, sem dissonâncias que pudessem partir daqueles “homens pardos, todos nus”, como os viu Caminha, nem dos da cor do ébano. E assim foi. Uma Nação narrada como tendo um povo homogêneo, uma língua única, um único modo de ser, e uma única religião. Nação harmoniosa, sem conflitos, sem preconceitos, formada pacificamente. No relato, o senhor bondoso, o negro alegre, o indígena amistoso e a mulher 7 recatada e obediente. Como num conto de fadas. O tempo passa, e o paradigma social da “casa-grande” abastada, esbanjando felicidade e poder, e da “senzala” infecta, esbanjando sofrimento, doença e ignorância, vai desafiar os tempos republicanos e impor a dualidade social brasileira sob novos signos: mansão e barraco, condomínio e “conjunto”, colina e morro, “asfalto” e favela, campina e alagado, cidadão e “suspeito”. Na verdade, ainda sofremos os efeitos do imperialismo colonial europeu, que se estendeu pelo mundo acreditando-se portador da missão “divina” de levar civilização aos povos “primitivos”, com visão essencializada dos grupos humanos. Ora, é da essência dos pássaros voar, do peixe nadar e do escorpião aferroar, mas não é da sua essência falar, rir, chorar e pensar, essências humanas. Para o expansionismo europeu, entretanto, basear-se apenas nas essências humanas para lidar com pessoas e grupos não atendia aos seus propósitos. Era preciso inventar algumas “essências” e atribuí-las arbitrariamente a estes e aqueles grupos, de modo a hierarquizá-los como algo natural. Alguns signos se prestariam a isso com perfeição, notadamente os de “raça” e de “sexo”. A raça serviria para diferenciar os povos segundo uma hierarquia supostamente biológica, cromática, com as qualidades tidas por positivas situadas nos mais claros, e as tidas por negativas nos mais escuros. O sexo diferenciá-las-ia, segundo uma hierarquia referida à força, atribuindo-se ao “mais forte” (o homem) as qualidades da razão, do tino empreendedor e do destemor, e ao “mais fraco” (a mulher) as qualidades da emoção, da intuição e da resignação. Essências inventadas por uma mesma matriz, auto-colocada no pólo positivo de dicotomias fixas (homem/mulher, branco/negro, Norte/Sul), a saber: o “macho branco europeu”. 8 Entre nós, a dificuldade de dar coerência a essas invenções podeexplicar a extrema ambigüidade dos discursos narrativos da nacionalidade brasileira, em que convivem harmoniosamente exercícios de “mímica” dos valores estéticos e morais europeus, por um lado, com a exaltação de valores da “raça” brasileira – produto final de uma espécie de fusão físico- químico-biológico, em que teriam desaparecido as “essências” do negro, do branco e do indígena – e surgido um novo tipo, aprimorado, único: o “brasileiro”, com características não menos ambíguas. Em princípio ele será incolor e desracializado (assexuado), mas poderá ser mestiço, ao mesmo tempo em que poderá ser ou branco, ou negro, ou indígena, masculino ou feminino. Assim, não sendo uma coisa nem outra, poderá ser todas elas, como um coringa num jogo de cartas. Estranhamente, contudo, depois dessa “fusão” e do ufanismo em torno da “mistura de raças”, metade dos brasileiros continuam a se apresentar ao IBGE como brancos e brancas. E o próprio IBGE mostra os espaços que ocupam e o que fazem brancas, pretas, pardas e índias na estrutura social do País. A intolerância religiosa tem sido uma das principais causas de desagregação social e de guerras no mundo. No entanto, esse não é um problema em si mesmo, que se circunscreva às diferenças de crença religiosa. É parte de um mal maior, o da intolerância etnorracial, a qual tem a ver com diferenças identitárias individuais e coletivas, referidas às idéias de etnia, “raça”, “cor”, gênero, crenças, aparência, origem etc. Intolerância como atitude autoritária, negativa, da parte de um indivíduo ou grupo humano específico em relação a outros indivíduos ou grupos considerados culturalmente inferiores ou “maus”. Manifesta-se sob as formas de racismo, machismo, homofobia, elitismo, xenofobia, intolerância política, intolerância religiosa. E manifesta-se igualmente contra quem defenda 9 idéias diferentes das defendidas por aqueles que se consideram detentores da verdade, dos “bons costumes” e do bom gosto. Daí, de uma mera atitude de desconsideração e menosprezo, a intolerância pode desdobrar-se em violência física quando determinado indivíduo ou grupo não consegue impor as suas “razões” pela persuasão discursiva e outros meios não- violentos. A intolerância dos tempos presentes guarda íntima relação com o empreendimento colonialista, como afirmado na Declaração de Durban. A conquista e dominação dos povos da África, das Américas e da Ásia pressupunham, ademais da utilização da força das armas, a inculcação dos valores culturais dos dominadores europeus por diferentes vias, sobretudo a religião e o sistema de ensino, este fortemente influenciado por aquela. Uma combinação de força militar, religião e ensino (ou a negação do mesmo). Se a força militar responde pelo genocídio, ou seja, a eliminação dos corpos daqueles que se opunham à dominação, o etnocídio cuidou da eliminação dos valores étnicos dos povos dominados, e partiu do princípio de que estes poderiam ser melhorados para se ajustarem ao modelo cultural do dominador. Era preciso apagar da mente desses povos as suas lembranças, suas concepções de mundo, tradições e crenças, e os seus deuses. Não seria diferente no Brasil, colonizado pelos portugueses, e que teve o catolicismo como religião oficial desde os tempos de colônia de Portugal até a Proclamação da República, em 1889. É bem verdade que aqueles eram outros tempos. Tempos de escravidão legal e de partilha das terras do mundo. Tempos de hierarquias das “raças”, supostamente fundadas na natureza, vale dizer, nos desígnios de Deus, e em teorias tidas por científicas. Aos dominadores não faltariam justificativas para levar “civilização” aos povos não-europeus. Por tanto, 10 naqueles tempos, não era o caso de se falar em intolerância propriamente, como o termo é entendido hoje, e sim em opressão, pura e simplesmente. Hoje, no entanto, quando os princípios da igualdade entre todos os seres humanos e a liberdade de expressão e de culto se inscrevem na Declaração Universal dos Direitos Humanos, nas convenções internacionais e nas Constituições da maioria das sociedades livres do mundo, a opressão precisa sofisticar-se e mascarar se, sob o manto do princípio universalista. De um universalismo conveniente, tomado como panacéia, utilizado como instrumento de negação do direito à diferença, mas, contraditoriamente, alinhado às perspectivas e interesses dos tradicionais detentores do poder. A despeito de o Brasil ser signatário da Declaração de Durban, de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (2001), de a Assembléia Geral da ONU, em 1981, ter proclamado a Declaração sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e de Discriminação baseadas na Religião ou Credo; de a Constituição brasileira estabelecer no seu Art. 5º, incisos VI e VIII, que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”; e que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”, e no inciso XLII que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”, ultimamente a intolerância religiosa vem-se manifestando de forma cada vez mais intensa. São manifestações ostensivas de menosprezo, com ofensas e, não raro, atos de violência física, incluindo depredações de templos e agressões a adeptos de crenças diferentes daquelas dos agressores. Os casos se multiplicam Brasil afora, 11 tendo como alvos preferenciais as religiões de matriz africana, como se demonstra adiante, em (b), onde são relacionados seis casos emblemáticos. Este texto se destina a orientar os cidadãos em geral a respeito de um problema que vem adquirindo conotações perigosas em nossa sociedade: a intolerância religiosa. Ele se desdobra do Manual de Ação Policial contra a Discriminação: Racial, Étnica, Religiosa, de origem ou Procedência Nacional, publicado em 2008 sob os auspícios do Instituto de Segurança Pública – ISP, da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, no qual as diferentes formas de intolerância de conotação étnico- racial são abordadas. Naquele Manual, lê-se: “Daí a pré-condição de que a leitura do Manual seja precedida da aceitação, por parte do profissional, de que a discriminação étnico-racial entre nós é um fato, e que incumbe aos brasileiros de todas as cores e origens lutar contra ela, mais ainda quando esse brasileiro é alguém a quem o Estado atribui esse mandato. Em suma, o agente público da área da segurança precisa estar imbuído da sua dupla inserção social: como cidadão comum e como cidadão - operador do sistema. Na primeira condição, é compreensível que compartilhe preconceitos presentes na sociedade brasileira, fortemente marcada pelo autoritarismo e a hierarquia social. Porém, como agente público, deverá esforçar-se para discernir entre os seus preconceitos pessoais e a necessidade de se livrar deles. Seu compromisso há de ser com a racionalidade da Constituição e da Lei.” Ali a discriminação religiosa, sobretudo contra as religiões de matriz africana, foi realçada, da mesma forma que a discriminação contra os 12 judeus, tudo nos limites da Lei 7.716/89 (Lei Caó), com as modificações nela introduzidas posteriormente. Fazia-se necessário, todavia, em vista do acirramento dos ânimos provocadospor atitudes intolerantes de alguns setores religiosos, alargar a análise para além dos aspectos legais, a fim de mostrar o tamanho do problema e buscar caminhos pacíficos, do Estado e da Sociedade Civil, para enfrentá-lo. É o que se faz no presente texto. Impõe-se sublinhar que as manifestações de intolerância contra as religiões de matriz africana em particular, exibem altas doses de ódio e violência, física e simbólica, o que potencializa o sofrimento dos que insistem em exercitar o seu direito humano e constitucional à liberdade de culto e crença. Na terceira parte do texto, o leitor é convidado a buscar respostas para três perguntas fundamentais: “Em que consiste a prática da intolerância religiosa (e da intolerância etnorracial em geral)?; “O que fazer diante dos casos concretos?”; e “Como fazer?”. A compreensão das respostas a essas perguntas, no entanto, pressupõe o conhecimento de algumas informações preliminares sobre relações etnorraciais e sobre a nova ordem de direitos inaugurada pela Constituição de 1988, para o que foram concebidas a primeira e a segunda partes. 2. Desenvolvimento 2.1 O Racismo e seus desdobramentos Neste início de século, parece não haver dúvidas sobre a consolidação do movimento negro no cenário das lutas sociais do Brasil. Seu combate contra o racismo, chega ao século XXI de modo bastante forte e atuante. Numa demonstração de importância em relação ao conjunto dos movimentos sociais. Graças a isso, a discriminação racial, que é um dos principais problemas estruturais da nação brasileira, ganhou uma ampla 13 visibilidade social. O que, de certa forma, forçou mais uma vez o debate sobre a questão racial no Brasil e a situação subalterna dos negros. Entretanto, esse avanço não se deu de modo harmônico e consensual internamente. Em muitos momentos o próprio movimento negro demonstra fragilidades em relação á sua unidade. Principalmente sobre a questão que envolve a relação classe/raça. De um lado, existem setores defensores de uma luta anti-racismo desvinculada com a questão de classe, já que para eles, no Brasil o elemento determinante para a situação social de um indivíduo é muito mais racial do que classista. De outro, argumentam que no Brasil, assim como em qualquer outro país capitalista, a situação de classe interfere diretamente nas questões raciais. E neste sentido, a luta anti-racismo deve ser vinculada á luta de classes. Claro que essas duas posições, que permeiam muitos dos debates internos do movimento negro, não parecem ser simples de solução. Tanto uma quanto a outra, apresentam boas argumentações, com diversos exemplos coerentes e legítimos. Todavia, ao invés de caminharem para uma posição consensual, elas assumem, quase sempre, a forma da polarização-oposição. Demonstrando que classe e raça não são elementos fáceis de conciliação. A pergunta que se pode fazer é: quais são os motivos para a existência dessa polarização interna no movimento negro? Florestan Fernandes foi um dos principais autores brasileiros a se defrontar com essa questão. Sendo que para ele a união desses dois elementos era fundamental para uma luta eficaz do movimento negro. Encarregado de fazer um estudo sobre os negros no Brasil para a UNESCO, Florestan, em 1951, passou a pesquisar a relação raça e classe em São Paulo. Nesta ocasião, lançou-se ao confronto da idéia de que no Brasil existia uma "democracia racial", fundamentada por Gilberto Freire. 14 Para o escritor baiano, a harmonia racial seria a contribuição brasileira para as relações sociais de outros povos. Por um lado, esse conflito poderia até ser justificado caso os negros da sociedade brasileira estivessem inseridos nas diversas classes sociais de modo equilibrado, sem grandes assimetrias. Pois assim, não haveria como argumentar que o racismo é praticado independentemente da classe social. Isso poderia até acontecer, quer dizer, haver práticas racistas independente da condição de classe dos negros. Talvez, os Estados Unidos seja um bom exemplo disso. Mesmo que a eliminação do fator classe, ainda sim, seja arriscada. Todavia, essa não é a realidade do Brasil. A grande maioria dos negros brasileiros está inserida nas classes subalternas. E isso não é, de maneira alguma, uma novidade. Portanto, como não envolver a classe social na questão do racismo? Por outro lado, a situação do negro brasileiro foi, por um bom tempo, desmerecida pelo movimento comunista. O próprio Partido Comunista Brasileiro, defendia a tese de que a questão do racismo era uma questão puramente de classe. Tal postura, certamente, acabou distanciando o movimento negro das lutas de cunho classista. Mesmo que em muitos casos essa grande parte da população estivesse inserida na estrutura da classe operária, ela não se sentia representada pelos órgãos comunistas na luta anti-racismo. As privações que o negro sofria eram vistas apenas sob o angulo do interior da fábrica, desconsiderando todo o aspecto repressivo lançado pela cultural racista da sociedade. De certa maneira, o que acontece nos dias atuais referentes á recusa de parte do movimento negro em considerar a questão de classe, assemelha-se ao que o movimento comunista fez tempos antes com a luta do negro. Partindo das reflexões de Florestan, ambos, estiveram ou estão em direções equivocadas. Para ele, no Brasil classe e raça são dois 15 elementos explosivos e revolucionários e que por isso devem ser unidos. Simbolicamente o 1º de maio dia do trabalho e 20 de novembro dedicado a Zumbi, representam os laços econômicos, morais e políticos que prendem os oprimidos entre si e subordinam todas as suas causas a uma mesma bandeira revolucionária. Assim, os comunistas devem saber que o "preconceito e a discriminação raciais estão presos a uma rede da exploração do homem pelo homem e que o bombardeiro da identidade racial é prelúdio ou o requisito da formação de uma população excedente destinada, em massa, ao trabalho sujo e mal pago..."1 A questão exposta pelo autor está centrada na idéia de que o operário negro necessita superar dois tipos de ideologias que as classes dominantes do capitalismo criaram. A primeira corresponde á idéia de que o pobre não se torna rico devido tanto á sua vida mundana, quanto á falta de parcimônia com relação aos seus ganhos. A segunda relaciona-se á idéia de que os negros fazem parte de uma raça inferior, não dotada de razão e civilidade, em relação aos brancos. Então o negro operário dos dias atuais carrega nas costas o peso de duas fortes ideologias, produzidas pelo capital, a de que ele é "mundano" e "inferior". Assim, os negros possuem uma tarefa dupla, a de desvendar os motivos pelos quais são operários e também pelos quais são submetidos ao racismo pelas elites em geral, mas fundamentalmente a branca. Tais reivindicações fazem parte de um profundo e amplo projeto de nação realmente revolucionário, pois tem como objetivo desmistificar a realidade criada pelas elites do Brasil. Portanto, os negros têm como tarefa "limpar" da nação brasileira parte significativa das formas estranhadas de entender a sua sociabilidade. E neste sentido, um dos primeiros obstáculos a ser superado corresponde á teoria da existência de uma "democracia racial". 16 Para Florestan, a desmistificação dessa idéia de convivência pacífica entre as raças no Brasil, deveria ser um dos primeiros passos que o movimento negro deveria dar como forma de fortalecimento. Em seguida, ele deveria construir um movimento de oposição á ideologia dominante, criando assim suas bases político-culturais de combate não apenas aoracismo, mas também ao capitalismo. Na verdade, sua luta deve ser canalizada para a conquista de uma "Segunda Abolição" que parta de baixo para cima, ao contrário da Primeira. Combatendo além da elite branca, também a pequena camada privilegiada negra. Esse pequeno grupo de negros que passou a integrar as camadas médias, que segundo Florestan são os "novos negros", devem ser combatidos uma vez que, alcançado o conforto da vida burguesa, eles passaram a rejeitar e satanizar o movimento negro perante a sociedade. Tal processo de ida de alguns negros para as classes privilegiadas teve início na década de 1940, aprofundando-se posteriormente. O "novo negro", na verdade, buscava a igualdade social por meio de um processo pacífico e gradual. Voltando-se para os interesses pequeno-burgueses e prontos a excluir de suas relações os "negros inferiores". Assim, a luta contra a subordinação do movimento passou a ficar em mãos exclusivas da grande maioria oprimida. Aqui fica evidente que a chamada "democracia racial" não teve como alvo apenas as classe dominantes, em sua maioria branca, seus propósitos ideológicos também penetraram de modo devastador entre os negros. Em conseqüência, percebe-se o aprisionamento de parte desses indivíduos em certos paradoxos que conduzem á negação de si próprio. Não conseguindo se ver como de fato são vistos pelos brancos. De modo breve, essas são algumas questões postas por Florestan Fernandes que podem ajudar sobre a questão aqui posta, que é o de ressaltar algumas determinações da relação raça/classe no interior do 17 movimento negro. Mesmo que Florestan tenha feito essas análises no final da década de 1980, suas idéias permanecem instigando e contribuindo para se pensar novas táticas teórico-políticas. De certa forma, suas idéias ainda podem ajudar a entender o papel social e histórico que o movimento negro tem numa sociedade capitalista como a brasileira. Também fornecem elementos que desmistificam a polarização-oposição estrutural entre classe operária/movimentos sociais, deixando clara a existência de equívocos de ambos os lados. Em outras palavras, para o autor, a estrutura da classe operária brasileira é composta não somente pela questão social, mas também pela questão racial, o que concretiza a particularidade da luta de classes no Brasil. E neste sentido, tenta traduzir suas especificidades nacionais em luta radical, buscando a particularidade do processo de inovação social em âmbitos brasileiros. Mesmo que o crescimento do movimento negro esteja assentado, fundamentalmente, sobre lutas raciais específicas - ou seja, em equívocos anteriores e bastante caros a ele, graças ao isolamento social provocado - estruturalmente raça e classe no Brasil estão intimamente ligadas. E as sugestões dadas por Florestan contribuem para se entender os motivos nos quais repousam essa polarização-oposição entre classe/raça presente no interior desse movimento. Primeiro pela recusa dos comunistas em tratarem a questão racial em suas verdadeiras dimensões. Segundo pela "cooptação" de certa parte dos negros ao universo ideológico das elites. Ao que parece, a junção desses dois fatores criaram o que hoje é facilmente percebível nos debates do movimento negro sobre a relação classe/raça. Portanto, as tarefas desse movimento parecem ser muito mais complexas do que se possa imaginar, á medida que trava uma batalha tanto externa contra as desigualdades sociais e raciais, quanto interna para buscar uma unidade de grupo realmente definido e coeso perante a sociedade. Ao 18 que tudo indica, o solução de uma está intimamente ligada ao caráter da outra. Neste sentido, as formas assumidas pela luta política-ideológica estão ligadas aos rumos teóricos pelos quais a relação raça/classe se desenvolveram. 2.2 O Mito da democracia racial Os mitos existem para esconder a realidade. Por isso mesmo, eles revelam a realidade íntima de uma sociedade ou de uma civilização. Como se poderia no Brasil colonial ou imperial acreditar que a escravidão seria, aqui, por causa de nossa "índole cristã", mais humana, suave e doce que em outros lugares? Ou, então, propagar-se, no século 19, no próprio país no qual o partido republicano preparava-se para trair simultaneamente a ideologia e a utopia republicanas, optando pelos interesses dos fazendeiros contra os escravos, que a ordem social nascente seria democrática? Por fim, como ficar indiferente ao drama humano intrínseco à Abolição, que largou a massa dos ex-escravos, dos libertos e dos ingênuos à própria sorte, como se eles fossem um simples bagaço do antigo sistema de produção? Entretanto, a idéia da democracia racial não só arraizou. Ela se tornou um mores, como dizem alguns sociólogos, algo intocável, a pedra de toque da "contribuição brasileira" ao processo civilizatório da Humanidade. Ora, a revolução social que se vincula à desagregação da produção escravista e da ordem social correspondente não se fazia para toda a sociedade brasileira. Os seus limites históricos eram fechados, embora os seus dinamismos históricos fossem abertos e duráveis. Naqueles limites, não cabiam nem o escravo e o liberto, nem o "negro" ou o "branco pobre" como categorias sociais. Tratava-se de uma revolução das elites, pelas elites e para as elites; no plano racial, de uma revolução do Branco para o Branco, ainda que se tenha de entender essa noção em sentido etnológico e 19 sociológico. Colocando-se a idéia de democracia racial dentro desse vasto pano de fundo, ela quer dizer algo muito claro: um meio de evasão dos estratos dominantes de uma classe social diante de obrigações e responsabilidades intransferíveis e inarredáveis. Daí a necessidade do mito. A falsa consciência oculta a realidade e simplifica as coisas. Todo um complexo de privilégios, padrões de comportamento e "valores" de uma ordem social arcaica podia manter-se intacto, em proveito dos estratos dominantes da "raça branca", embora em prejuízo fatal da Nação. As elites e as classes privilegiadas não precisavam levar a revolução social à esfera das relações raciais, na qual a democracia germinaria espontaneamente... Cinismo? Não! A consciência social turva, obstinada e mesquinha dos egoísmos enraizados, que não se viam postos à prova (antes, se protegiam) contra as exigências cruéis de uma estratificação racial extremamente desigual. Portanto, nem o branco "rebelde" nem a República enfrentaram a descolonização, com a carga que ela se impunha, em termos das estruturas raciais da sociedade. Como os privilégios construídos no período escravista, estas ficam intocáveis e intocadas. Mesmo os abolicionistas, de Nabuco a Patrocínio, procuram separar o duro golpe do abolicionismo do agravamento dos "ódios" ou dos "conflitos" raciais. Somente Antonio Bento perfilha uma diretriz redentorista, condenando amargamente o engolfamento do passado no presente, através do tratamento discriminativo e preconceituoso do negro e do mulato. Em consequência, o mito floresceu sem contestação, até que os próprios negros ganharam condições materiais e intelectuais para erguer o seu protesto. Um protesto que ficou ignorado pelo meio social ambiente, mas que teve enorme significação histórica, humana e política. De fato, até hoje, constitui a única manifestação autêntica de populismo, de afirmação do povo humilde como gente de sua 20 autoliberação. O protesto negro se corporificou e floresceu na década de trinta, irradiando-se pouco além pela década subsequente. Foi sufocado pela indiferença dos brancos, em geral; pela precariedade da condição humana da gente negra; e pela intolerânciado Estado Novo diante do que fosse estruturalmente democrático. O principal feito do protesto negro configura-se na elaboração de uma contra-ideologia racial. Por um jogo dialético, o farisaísmo do branco rico e dominante era tomado ao pé da letra: e o liberalismo vazio, acima de tudo, via-se saturado em todos os níveis. O negro assume o papel do burguês conquistador (ou do "notável" iluminista) e comporta-se como o paladino da causa da democracia e da ordem republicana. Não era propriamente um teatro popular, que se montava com o Tribunal dos justos. Porém, tudo se desenrola através de dois planos, por meio dos quais o jogo cênico e a realidade se interpenetram. O que resulta é uma cabal e indignada desmistificação: na lei, a ordem é uma; nos fatos, é outra; na consciência, as variações não são registradas. O negro desmascara e, ao mesmo tempo em que ergue a sua denúncia e mostra a sua ira, exige uma Segunda Abolição. Em suma, clama por participar da revolução social que não o atingiu, levantando o véu de uma descolonização que ficara interrompida desde a Proclamação da Independência e indicando sem subterfúgios os requisitos sinequanon da democracia racial. O protesto se confinara à ordem estabelecida. Mas era autêntico e revolucionário, pois exigia a plena democratização da ordem republicana - através das raças contra os preconceitos e privilégios raciais. A eclosão liberal de após Segunda Guerra Mundial não liberou as forças sociais que alimentaram o protesto negro. Ao contrário, este refluiu e apagou-se, enquanto as energias da gente negra forçavam a democratização e a igualitarização progressiva pelos subterrâneos da porosidade de uma 21 sociedade capitalista em crescimento desigual. O talento negro condena-se à seleção ao acaso, à venda no mercado e às duas regras da acefalização das raças dominadas, perdidas nas classes subalternas. O novo negro, que se afirma como categoria social, e assusta o branco conformista, tradicionalista ou autoritário, não constitui um rebento do protesto negro, mas da luta pela vida e do êxito na competição inter-racial numa sociedade de classes multi-racial. Por aí, a modernização generaliza-se às elites em formação do meio negro e cria um "novo começo" que procurei descrever sob alguns de seus aspectos mais importantes ou fascinantes. Essa evolução faz com que, em pleno fim do século, a descolonização não tenha penetrado profundamente na esfera das relações e das estruturas raciais da sociedade brasileira. No último censo em que o levantamento racial foi contemplado, o de 1950, os números demarcavam que o desenvolvimento desigual era ainda mais desigual no que diz respeito à estratificação racial. De Norte a Sul, dos Estados tidos como "tradicionalmente mais democráticos" aos que foram contemplados como representativos de um "racismo importado", prevalece a mesma tendência estrutural à extrema desigualdade racial - à centralização e à concentração raciais da riqueza, do prestígio social e do poder. Tanto a estrutura ocupacional quanto a pirâmide educacional deixam uma participação ínfima para o negro e o mulato, assinalando uma quase-exclusão e uma marginalização sistemática e desvendando, inclusive, que, na luta pelas oportunidades tão desiguais e sonegadas, há uma desigualdade adicional entre o negro e o mulato (pois este vara relativamente melhor várias das barreiras raciais camufladas). Os fatos e não as hipóteses, confirmam que o mito da democracia racial continua a preencher as funções de um retardador das mudanças estruturais. As elites que se apegaram a ele numa fase confusa, incerta e 22 complexa de transição do escravismo para o trabalho livre continuam a usá- lo como expediente para "tapar o sol com a peneira" e de autocomplacência valorativa. Pois consideremos: o mito - não os fatos - permite ignorar a enormidade da preservação de desigualdades tão extremas e desumanas como são as desigualdades raciais no Brasil; dissimula que as vantagens relativas "sobem" - nunca "descem" - na pirâmide racial; e confunde as percepções e as explicações - mesmo as que se têm como "críticas", mas não vão ao fundo das coisas - das realidades cotidianas. Onde não existe sequer democracia para o dissidente branco de elite haveria democracia racial, democracia para baixo, para os que descendem dos escravos e libertos negros ou mulatos? Poderia existir democracia racial sem certas equivalências (não digamos igualdades) entre todas as raças? A tenacidade do mito e a importância de suas funções para a "estabilidade da ordem" exigem uma reflexão política séria. De um lado, fica patente que o negro ainda é o fulcro pelo qual se poderá medir a revolução social que se desencadeou com a Abolição e com a proclamação da República (e que ainda não se concluiu). De outro, é igualmente claro que, no Brasil, as elites não concedem espaço para as camadas populares e para as classes subalternas. Estas têm de conquistá-lo de tal forma que o avanço apareça como "fato inevitável e consumado". O que quer dizer que, em sua tentativa de desmascaramento e de auto-afirmação, o protesto negro antecipou a substância da realidade histórica do presente que estamos enfrentando com tantas angústias e sobressaltos. Cabe às classes subalternas e às camadas populares revitalizar a República democrática, primeiro, para ajudarem a completar, em seguida, o ciclo da revolução social interrompida, e, por fim, colocarem o Brasil no fluxo das revoluções socialistas do século 20. O que sugere a complexidade do formoso destino 23 que cabe ao negro na cena histórica e no vir a ser político. A revolução da qual ele foi o motivo não se concluiu porque ele não se converteu em seu agente e, por isso, não podia levá-la até o fim e até ao fundo. Hoje, a oportunidade ressurge e o enigma que nos fascina consiste em verificar se o negro poderá abraçar esse destino histórico, redimindo a sociedade que o escravizou e contribuindo para libertar a Nação que voltou as costas à sua desgraça coletiva e ao seu opróbrio. Essa interpretação global contém uma mensagem clara aos companheiros que tentam refundir e reativar o protesto negro. É preciso evitar o equívoco do "branco de elite", no qual caiu a primeira manifestação histórica do protesto negro. Nada de isolar raça e classe. Na sociedade brasileira, as categorias raciais não contêm, em si e por si mesmas, uma potencialidade revolucionária. De onde vinha o temor dos brancos, nos vários períodos escravistas? Do entroncamento entre escravidão e os estoques raciais dos quais eram retirados os contingentes que alimentavam o trabalho escravo. Essa superposição ou paralelismo (como a descreveu Caio Prado Junior) ou essa estrutura simultaneamente racial e social conferia ao escravo a condição do "vulcão que ameaçava a sociedade". A realidade histórica de hoje não é a mesma. Não obstante, desvinculada da estrutura de classes da sociedade brasileira atual, da marginalização secular que tem vitimado o negro nas várias etapas da revolução burguesa e da exploração capitalista direta ou da espoliação inerente à exclusão, os estoques raciais perdem o seu terrível potencial revolucionário e dilui-se o significado político que o negro representa como limite histórico da descolonização (negativamente) e da revolução democrática (positivamente). Portanto, para ser ativada pelo negro e pelo mulato, a negação do mito da democracia racial no plano prático exige uma 24 estratégia de luta política corajosa, pela qual a fusão de "raça" e "classe" regule a eclosão do Povo na história. 2.3 Mecanismos de invisibilidade Discutiras dinâmicas da mídia frente às questões de raça e etnicidade é, em grande medida, discutir as matrizes do racismo no Br asil. Os meios de comunicação são, por assim dizer, um caso-modelo de reprodução da nossas relações raciais. Tanto quanto na sociedade, ou até mais intensamente, prevalecem nos meios de comunicação ainda que combinados a outros mecanismos os dispositivos da denegação, do recalque, do silêncio e da invisibilidade, O racismo não se reproduz na mídia (nem, via de regra, em outros âmbitos da sociedade brasileira) através da afirmação aberta da inferioridade e da superioridade, através da marca da racialização, ou de mecanismos explícitos de segregação. O racismo tampouco se exerce por normas e regulamentos diferentes no tratamento de brancos e negros e no tratamento de problemas que afetam a população afrodescendente. As dinâmicas de exclusão, invisibilização e silenciamento são complexas, híbridas e sutis ainda que sejam decididamente racistas. Além de ser um caso exemplar dos mecanismos de reprodução das relações raciais, a mídia desempenha um papel central e único na produção e manutenção do racismo. Através dos meios de comunicação, especialmente dos meios de massa, como a televisão e o rádio, as desigualdades raciais são naturalizadas, banalizadas e muitas vezes racionalizadas. Em grande medida, através da mídia de massa as representações raciais são atualizadas e reificadas. E dessa forma, como “coisas”, circulam como noções mais ou menos comuns a toda a sociedade e como idéias mais ou menos sensatas. 25 A mídia tem ainda, por sua presença na vida brasileira e também por sua proximidade com a cultura e as artes, uma terceira característica importante no debate sobre o racismo e sobre os caminhos brasileiros para a sua superação. Os meios de comunicação são, ao mesmo tempo, instrumentos poderosos de criação e veiculação de paradigmas alternativos. Nenhum processo cultural de superação do racismo, de combate aos estereótipos e de luta contra a discriminação será realizado sem os jornais, a televisão, as artes e a música. Por essa centralidade e a despeito de ter sido até recentemente pouco explorada pela militância anti-racista, a mídia tende a ter cada vez mais, na sociedade brasileira, um papel vital na construção de saídas capazes de reduzir a exclusão racial. 2.4 Imprensa x III Conferência Mundial Contra o Racismo A mídia costuma ser um lugar privilegiado na criação do que se chamou “estados de opinião”, onde os discursos circulam e definem sujeitos. O horizonte cognitivo da maioria da população é determinado, quase completamente, pelo conteúdo veiculado nos meios de comunicação. Como principal espaço de construção simbólica, a mídia chega a ter uma relevância social e um poder de influência sem precedentes, chegando inclusive a determinar uma nova forma de exclusão social que afeta diferentes segmentos sociais como negros, mulheres, indígenas, através ou da veiculação de imagens estereotipadas, folclorizadas, como também deturpadas em seus conteúdos, ou da sua invisibilização. As representações hegemônicas se constituem em hierarquias sociais legitimadas pelas diferenças, transformadas em desigualdades e a estigmatização do diferente que, invariavelmente nos leva a ver o outro como um estranho,“colocando-o no seu devido lugar”. 26 E qual seria o lugar do negro brasileiro na sociedade da informação? Conforme Bernardo Ajzenberg, ombudsman da Folha de São Paulo, em seu artigo “Os invisíveis”2 a discriminação racial “... continua como tema tabu, sob disfarce, de há muito desmascarado, da suposta democracia racial. E não configuraria exagero afirmar que o seja justamente pelo grau de exclusividade que carrega. Com raríssimas exceções, o racismo e suas mazelas não freqüentam as pautas diárias, estão alijados de qualquer iniciativa regular e permanente”. É importante notar que estamos falando de 45% da população brasileira, a segunda maior população negra fora da África, super-representada nos índices de exclusão e sub-representadas nos espaços de poder, onde os meios de comunicação são altamente representativos. Nesse contexto, a Conferência Mundial contra o Racismo apresentava-se como um momento privilegiado para análise do comportamento da mídia diante desses temas considerados tabus pela sociedade. Criada pelas Nações Unidas, a Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e formas correlatas de Intolerância tinha por objetivo rever os progressos alcançados na luta contra o racismo, a discriminação racial a xenofobia e intolerâncias correlatas, particularmente desde a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tratava-se de uma importante oportunidade de chamar a atenção da comunidade internacional sobre essas questões e ampliar o compromisso político com vistas à definição de um novo enfoque na luta contra o racismo para o próximo milênio. Ao trazer para a pauta política muitas das contradições que atravessaram o mundo globalizado, a III CMCR se constituía na grande oportunidade de analisarmos o tratamento dado pela mídia impressa a essas 27 questões, procurando compreender os vários papéis culturais construídos pelo imaginário social que alimenta e se alimenta desses discursos. Para mensurar e analisar o comportamento da mídia imprensa em relação à III Conferência Mundial contra o Racismo, a Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras decidiu desenvolver um projeto de monitoramento da mídia que tinha por principal acompanhar e divulgar a cobertura que a imprensa escrita brasileira realizou sobre a CMCR. O Projeto de Monitoramento da cobertura da imprensa escrita sobre a Conferência Mundial contra o Racismo foi financiado pela Fundação Ford, teve a coordenação geral de Nilza Iraci, a coordenação executiva de Marisa Sanematsu e contou, ainda, com a colaboração de Maria José Faria Torres na execução dos clippings. O principal objetivo do projeto de monitoramento foi acompanhar e divulgar a cobertura que a imprensa escrita brasileira realizou sobre a CMCR. Foi desenvolvido de 25 de agosto a 21 de setembro de 2001, perfazendo um total de 36 dias de trabalho, que envolveram as seguintes atividades: discussão e definição das variáveis/categorias que nortearam o trabalho de leitura, seleção e cadastramento de matérias no banco de dados, elaboração do banco de dados, utilizando-se o software estatístico SPSS for Windows, cadastramento de matérias, emissão de gráficos/relatórios, elaboração de projeto gráfico e proposta de conteúdo para o informativo eletrônico, cadastramento de e-mails em catálogo de endereços eletrônicos (+ de 1.500), clipping, leitura e seleção das matérias veiculadas nos jornais e revistas e Redação e envio de boletins eletrônicos. O monitoramento dos jornais e revistas estendeu-se de 25 de agosto a 14 de setembro (total de 21 dias), compreendendo os seguintes períodos: 25 a 31 de agosto: semana que antecedeu a Conferência; 1 a 7 de setembro: semana de realização da Conferência e 8 a 14 de setembro: semana posterior à Conferência. 28 Os resultados desse monitoramento eram publicados através de Boletins eletrônicos (8 edições), que foram distribuídos via correio eletrônico para todo o país e América Latina: edição de 25 a 31 de agosto, contendo uma avaliação sobre a cobertura na semana que antecedeu a Conferência (clima/expectativas); e 7 edições diárias, entre os dias 1 e 8 de setembro, contendo resumos e comentários sobre a cobertura realizada durante a Conferência e uma edição final contendo uma análise desse monitoramento. Enviados diariamentea mais de 1.500 e-mails, os boletins eletrônicos, continham resumos e comentários sobre a cobertura e divulgavam informações atualizadas acerca das principais discussões que estavam ocorrendo durante a conferência mundial e informavam e informavam a/os interessada/os que não estavam presentes em Durban, mas também serviram de fonte de informação para as centenas de brasileiros que participavam da Conferência. Suas edições diárias eram copiadas e circulavam entre ativistas, jornalistas além da delegação oficial do governo brasileiro, que podiam dessa forma acompanhar os debates sobre a Conferência e sua repercussão na mídia brasileira. 2.4.1 Cobertura sobre a CMCR: �úmeros e �omes Pontos positivos: Uma cobertura ampla, regular e com destaque Pontos negativos: Omissões e maniqueísmo De 25 de agosto a 14 de setembro de 2001, o Projeto de Monitoramento acompanhou a cobertura sobre a Conferência Mundial Contra o Racismo realizada pelos jornais diários Correio Braziliense, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil e pelas revistas semanais Época, IstoÉ e Veja. 29 A partir do acompanhamento contínuo e sistematizado desses veículos de imprensa de circulação nacional, foi possível compreender alguns aspectos cruciais sobre o processo de construção do noticiário pela mídia impressa, como a recorrência de fontes especializadas, alguns enfoques preferenciais, a lógica editorial que determinou ênfases e supressões, as manifestações do público-leitor, entre outros. Durante o período monitorado, a Conferência Mundial contra o Racismo freqüentou com regularidade as páginas dos principais jornais e revistas do país. A cobertura realizada pela imprensa caracterizou-se também pela significativa quantidade de espaço e pelo destaque editorial dedicado à Conferência e a alguns dos temas em debate, com especial ênfase na semana de realização da cúpula em Durban. Segundo o banco de dados desta pesquisa, de 24 de agosto a 14 de setembro os oito veículos monitorados publicaram 458 matérias apresentando como assunto principal a CMCR ou temas nela debatidos, tais como políticas afirmativas ou de reparação para negros, ou os impasses gerados pela falta de consenso sobre a menção aos conflitos travados no Oriente Médio (sionismo, palestinos, posicionamento dos EUA etc.). Das 458 matérias publicadas, 178 (ou 39%) trataram especificamente da questão das políticas afirmativas, com destaque para a proposta de implantação de cotas para negros em universidades ou cargos públicos. Dessas 178 matérias, 56 eram informativas e 122 eram opinativas, o que evidencia como a questão gerou debate e estimulou a manifestação do posicionamento da sociedade. Por outro lado, isso demonstra também que boa parte da cobertura sobre Durban concentrou-se no tema das ações afirmativas, embora outros temas importantes também tenham sido debatidos e não receberam igual destaque. 30 Considerando-se o total de 458 matérias publicadas ao longo de 22 dias, nas 119 edições dos oito veículos de imprensa monitorados, chega-se a uma média de 3,85 matérias por edição, ou quase 21 por dia. Somando-se o espaço total que elas ocuparam (26.712 cm coluna), constata-se que foram veiculadas mais de 86 páginas de jornal no formato standard, que abordaram exclusivamente as questões debatidas durante a CMCR. Assim, é possível afirmar que o tema freqüentou com regularidade as páginas desses jornais durante as três semanas, sendo objeto de uma ampla cobertura. A análise apresentada a seguir buscará mostrar como, embora caracterizada por um grande volume de matérias, a cobertura da imprensa sobre a conferência de Durban deu pouco destaque a alguns eventos, omitiu algumas discussões e concentrou-se em algumas questões mais polêmicas. Dentre os principais atores sociais que participaram da cobertura, destacaram-se além dos próprios jornais e jornalistas ministras, diplomatas, pesquisadores/as e ativistas dos movimentos sociais. Na semana que antecedeu a CMCR (25 a 31 de agosto), foram publicadas 170 matérias; na semana da CMCR (1 a 7 de setembro), 214; e na semana posterior (8 a 14 de setembro), 74 matérias. Cabe observar que, com os atentados ocorridos nos Estados Unidos em 11 de setembro, a cobertura sobre a repercussão da conferência foi bastante prejudicada, com os ataques tomando por completo os espaços no noticiário internacional. Participaram da Conferência Mundial 2.500 representantes de 170 países, incluindo 16 chefes de Estado, 58 ministras de relações exteriores e outras 44 ministras. Foram credenciadas cerca de 4.000 representantes de ONGs e mais de 1.300 jornalistas. Representantes de 146 países fizeram discursos nas sessões plenárias que aconteceram durante a conferência. Cerca de 80% das oradores/as eram 31 homens. Das representes de 125 ONGs que discursaram nas plenárias, 60% eram mulheres. A Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlata, promovida pela ONU em Durban (África do Sul), começou em 31 de agosto e terminou no dia 8 de setembro, com um dia de atraso. Ao final dos trabalhos, foram produzidos dois documentos: uma declaração de princípios e um plano de ação contra o racismo. Embora seja recomendada a todos os países-membros da ONU, a aplicação dos dois textos não é obrigatória. Segundo avaliação da imprensa monitorada, o consenso exigido para a aprovação dos documentos saiu enfraquecido: apenas 99 dos 173 países que participaram do encontro acompanharam a sessão plenária final. Além disso, cerca de dez países apresentaram restrições aos documentos, que serão incluídas no relatório final. A alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Mary Robinson, disse ser normal que os documentos finais contenham reservas. "Cada um quer que se fale de si mesmo, mas a conferência tem de falar pelo todo", afirmou. Na semana que se seguiu à conferência, os atentados ocorridos nos EUA tomaram conta do noticiário internacional, deixando pouco espaço para as repercussões sobre os resultados de Durban. Após o dia 11 de setembro, o volume de matérias sobre a Conferência ou os temas debatidos em Durban diminuiu sensivelmente e o tom das várias das matérias publicadas pela imprensa monitorada decretaram o fracasso da conferência de Durban. Nas reportagens que apresentaram comentários e repercussões sobre a conferência, algumas das expressões mais recorrentes foram “conferência 32 marcada pela intolerância”, “oportunidade perdida”, “decepcionante” e “desapontador”. Nesse período, os principais assuntos noticiados e debatidos nos jornais e revistas em relação à conferência foram: “Faltou preparo de todas as pessoas envolvidas. Não houve avanço em quase nada, muito do que foi dito aqui já está na Declaração dos Direitos Humanos. Faltaram medidas concretas”, afirmou à Folha Ravi Nair, professor da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. Para Nair, a questão do Oriente Médio deveria ter sido tratada do ponto de vista dos direitos humanos, com uma menção à situação dos palestinos. “Mas o que houve foi um embate político, com países lutando como cães e gatos”, disse ele. Segundo a imprensa monitorada, no último dia da conferência, as palavras mais ouvidas eram “decepcionante” e “desapontador”, conforme verificado a seguir: Povos indígenas - Foi decepcionante, por exemplo, para os indígenas. Eles queriam ser citados sob a denominação "povos indígenas". A expressão foi aprovada, porém atrelada a um parágrafo indicando que a expressão não tem nenhum significado no direito internacional. Homossexuais- O resultado foi desapontador também para os homossexuais, que enfrentaram a intolerância de países islâmicos e não foram incluídos entre vítimas da discriminação. Essa era uma das propostas do Brasil, mas foi rejeitada. Migrantes - O texto pede a todos os Estados para revisarem políticas de imigração que não estejam de acordo com as declarações internacionais dos direitos humanos, a fim de eliminar todas as práticas discriminatórias contra os migrantes. 33 A prática da Comunicação para nós agentes de transformação social deve ser uma ação cotidiana que requer, para que tenhamos um conteúdo real, atitudes precedidas por ações racionais, apoiadas por instrumentos metodológicos adequados, sem nos limitarmos simplesmente à intuição e ao uso de alguns princípios elementares. Dessa forma, o desenvolvimento de políticas e estratégias de comunicação nos movimentos sociais são instrumentos essenciais para se atuar com eficiência nesse contexto. Isso implica em atuar estrategicamente num contexto adverso, mas sem maniqueísmo, reconhecendo, conforme nos mostra o resultado desse projeto, que a imprensa não é um bloco monolítico, e os discursos jornalísticos são construídos por pessoas (mal) formadas por valores de uma sociedade branca, masculina e heterossexual. Produzir o contra-discurso, promover o intercâmbio de valores sociais, reafirmar a identidade de toda uma população excluída “do meio e do ambiente” representa um dos grandes desafios sociais frente a essa nova era da informação. 2.5 Democracia e respeito a diversidade religiosa A busca da verdade é a essência e a substância una e única de todas as religiões. É uma sabedoria que liberta, pois compreendê-la permite entender que todas são ramos diferentes de uma só árvore, que se alimenta de uma mesma seiva. O Estado, por ser laico, deve permanecer imparcial em matéria de crenças e dogmas. Por este motivo, é responsável pela garantia de igualdade de direitos entre todos os cidadãos. O que inclui as liberdades de expressão e de culto religioso. Laicidade não significa omissão. Todos os indivíduos têm o direito de adotar uma crença, de mudar de crença, ou de não ter nenhuma. A laicidade do Estado não é, portanto, 34 uma convicção de crença entre outras, mas a condição primária da coexistência, entre todas as convicções no espaço público. Neste sentido, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial-SEPPIR vem apoiando os movimentos contra a intolerância religiosa e os acompanha atentamente, através de sua Subsecretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais. Os lamentáveis episódios recorrentes de intolerância, com os quais recentemente nos deparamos, representam um precedente perigoso para um país onde a diversidade é marcante, como o Brasil, onde, felizmente, as pessoas pensam e crêem de formas diferentes. Difundir informações de combate à intolerância religiosa, que possibilitem o incremento do diálogo e do respeito inter-religioso, portanto, estão entre as prioridades da Secretaria. As religiões de matrizes africanas são as mais vulneráveis ao preconceito, que é aplicado por uma pequena parcela da população que não respeita outras religiões. E, além de conviverem com a intolerância, os terreiros são alvos da perda de território e da ação de grupos criminosos, que limitam o espaço das práticas religiosas e a circulação de seus adeptos e frequentadores. Para muitos, a tradição de matriz africana é encarada apenas do ponto de vista do folclore e da fantasia. Compreendemos, no entanto, que a mesma deve ser reconhecida como um espaço de resistência cultural, política, social e religiosa. A luta dos negros pela igualdade e pelo florescimento de sua religiosidade é feita de memória, de conhecimento e, principalmente, de tradição. Para ajudar a preservar estas riquezas, a SEPPIR criou o Projeto Terreiros do Brasil, que prevê ações de reconhecimento de casas tombadas como patrimônio cultural, e também salvaguarda de terreiros com 35 importância histórica. Sua ação-piloto teve início no final do mês de agosto de 2008, quando, na presença de 14 líderes de religiões de matrizes africanas, a Secretaria firmou com vários parceiros um acordo de cooperação técnica para mapear os terreiros do Rio de Janeiro. O mapeamento geo-referenciado, que será levado aos demais estados brasileiros, após a conclusão do projeto-piloto no Rio, vai permitir a integração de todas as ações técnicas e comunitárias relativas às questões dos terreiros, assim como ações específicas em cada uma destas comunidades tradicionais. A experiência poderá ser estendida a outros grupos tradicionais, sempre com o objetivo de preservar esta cultura religiosa ancestral e garantir a liberdade religiosa de todos os brasileiros. Ao colocarmos em prática políticas como estas, criamos os instrumentos para a extinção de todas as práticas discriminatórias, e ajudamos a construir um país no qual todas as pessoas possam exercer sua religiosidade com liberdade e respeito, independentemente da forma e do nome pelo qual invoquem Deus em seus corações. 2.6 Casos de intolerância religiosa (a) Bispo chuta a santa na TV Em 1995, no dia 12 de outubro (dia dedicado a Nossa Senhora Aparecida, declarada Padroeira do Brasil pela Igreja Católica), o bispo Von Helde, da Igreja Universal do Reino de Deus, no seu programa de TV, exibe e chuta diante das câmeras uma imagem da santa, referindo-se a ela como “um bicho tão feio, tão horrível, tão desgraçado”, com o argumento de que ela não tinha qualquer poder, sendo apenas um objeto de barro, e que era um erro do povo acreditar em santos e imagens. O bispo foi condenado em ação criminal movida contra ele no Estado de São Paulo com base no Art. 20 da Lei 7.716 / 89 (Praticar, induzir ou incitar a 36 discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. c/c o Art. 208 do Código Penal (Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso. Pena: detenção, de um mês a um ano, ou multa. Parágrafo único: Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência). (b) Mãe Gilda sofre pressão e morre de infarto Na edição de 26 de setembro a 2 de outubro de 1999 do jornal Folha Universal, uma foto de Mãe Gilda (Ialorixá Gildásia dos Santos) foi reproduzida numa matéria cujo texto afirmava que, no Brasil, estava em crescimento um mercado de enganação, de “macumbeiros charlatães”. Dois meses antes, o seu templo tinha sido invadido e depredado por adeptos de uma outra denominação evangélica. Mãe Gilda não resistiu à tamanha pressão e veio a falecer no dia 21 de janeiro de 2000, um dia depois de ter assinado procuração para processar a Igreja Universal do Reino de Deus. A Igreja foi condenada em primeira instância a indenizar os herdeiros por dano moral. Recorreu e perdeu de novo no Superior Tribunal de Justiça. O caso ainda está na Justiça. O dia 21 de janeiro passou a ser o “Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa”. (c) Depredação das estátuas da Praça dos Orixás Em meados de 2006, a Praça dos Orixás, a beira do Lago Paranoá, em Brasília, local sagrado para os praticantes de religiões de matriz africana, foi palco de seguidos atos de intolerância religiosa, com a destruição total ou parcial de várias das 16 estátuas de Orixás, esculpidas 37 pelo artista plástico Tati Moreno. Em diferentes ocasiões, os adeptos foram hostilizadospela presença de seguidores de religiões evangélicas. Em 30 de setembro de 2006 o jornal Correio Brasiliense dava conta de que no dia 24 daquele mês um quarto ataque ocorrera, assinalando uma coincidência: “todas as agressões foram realizadas às vésperas de datas importantes do calendário candomblé. A situação do local é crítica. Das 16 imagens, cinco já foram retiradas por vândalos. Uma delas é a de lemanjá, a deusa das águas, queimada, arrancada e decepada em 13 de dezembro de 2005, véspera dos festejos e cultos em homenagem à Rainha do Mar, que acontecem em duas datas: 31 de dezembro e 2 de fevereiro.” (d) Ataque a Templo no Centro do Rio de Janeiro No dia 3 de junho de 2008, três jovens e uma jovem que, conduzidos à delegacia, se apresentaram como pertencentes à Igreja Evangélica Geração Jesus Cristo, invadiram e depredaram o templo religioso Cruz de Oxalá, no Centro do Rio, destruindo imagens e utensílios que ali se encontravam, além de insultar os fiéis presentes. Uma freqüentadora relatou à imprensa que eles: “aos gritos, diziam que, por ordem de Jesus, devíamos abandonar o demônio, que estaria ali presente”. Na delegacia, segundo noticiado nos jornais, os vândalos prestaram depoimento e foram liberados, respondendo pelos crimes de ameaça (Art. 147 do Código Penal), dano (Art. 163 do Código Penal) e contra o sentimento religioso (Art. 208). Não foi o caso, mas em atos como esse, parece estar caracterizada a infringência do Art. 20 da Lei 7.716/89 e a prática do crime de formação de formação de quadrilha ou bando (Art. 288 do Código Penal - Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes). Os dirigentes do centro têm medo de novos ataques, que teriam começado há alguns meses, depois que uma nova igreja evangélica se instalou nas proximidades. 38 (e) Filho-de-santo xingado de macumbeiro ganha ação Em maio de 2008, durante uma festa típica em Paty do Alferes / RJ, o filho-de-santo Marcelo da Silva Gomes foi chamado de macumbeiro safado e ameaçado por seu vizinho, o mecânico Mauro Monteiro Pinto, ao colocar uma oferenda para Oxossi. Como nos dá conta a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (Rua Sampaio Ferraz, 29 – Estácio, Rio), o Juizado Especial daquela cidade determinou que Marcelo seja indenizado em R$ 3 mil pelo vizinho. O fato ocorreu na véspera de Corpus-Christi. Segundo Marcelo, não foi fácil ganhar a processo. Ele conta que primeiro procurou a delegacia da região, conseguiu fazer um Registro de Ocorrência por “Injúria”, que não foi adiante. Mas não desistiu! Entrou no Juizado Cível pedindo ressarcimento pelo constrangimento que sofreu e, para sua surpresa, na primeira audiência no Fórum, foi destratado pela conciliadora do Juizado. “Ela me perguntou que religião é essa que a gente quer indenização? Ora, eu fui agredido, humilhado, chamado de macumbeiro safado... registrei com muita luta uma queixa na delegacia e não podia sequer processar a pessoa que cometeu tais crimes? Aí já era demais. A polícia já não registra direito a nossa queixa e a tal da conciliadora ainda queria arquivar meu processo.” Por isso ele procurou a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, que encaminhou o caso para os advogados do Projeto Legal, instituição de Direitos Humanos que atende gratuitamente as vítimas de intolerância religiosa. Os advogados agora cuidam do aspecto criminal, pois, além da ameaça de balear o filho-de-santo, configuram-se também as hipóteses previstas no Art.20 da Lei 7.716/89 e do Art.140,§3º (injúria qualificada por ofensa de natureza religiosa). 39 O Brasil ainda não é como gostaríamos que fosse, ou seja, uma sociedade harmoniosa, democrática, igualitária, pacífica, fraterna, cordial e sem preconceitos, como tem sido descrito ao longo do tempo. E nunca foi, pois a aparente harmonia correspondia muito mais a uma arrumação da ordem, baseada nas hierarquias tradicionais, numa relação de complementaridade, em que sempre se esperou que cada um ocupasse o “seu lugar”. Mais: o Brasil não foi formado na base da confraternização entre índios, negros e brancos, como se apregoa, como se as posições desses grupos fossem intercambiáveis. E nem poderiam ser, num regime escravocrata e de dominação colonial. Aliás, a forma romântica como a sociedade brasileira costuma ser descrita, soa muito mais como um programa de construção nacional a ser realizado no futuro, próximo ou distante, o que é alvissareiro. A construção desse País ideal, no entanto, depende de algo aparentemente óbvio: do reconhecimento de que ele não é assim. Caso contrário, estaremos sujeito a cada vez mais intolerância, o que o demonstram os casos exemplares apresentados acima, em especial os relacionados com a intolerância para com as religiões de matriz africana. Vimos que a nova ordem de direitos instaurada em 1988 oferece caminhos para a superação do problema. Mas há muito que avançar. Com relação à legislação vigente, pode-se afirmar que as alterações sofridas pela Lei n.º 7.716/89 (Lei Caó) em muito contribuíram para aperfeiçoá-la, máxime em função do acréscimo do §3º ao Art. 20, que incluiu como crime, como vimos, atos de preconceito de “religião, etnia ou procedência nacional”, “praticados pelos meios de comunicação ou por publicação de qualquer natureza”. Na vertente penal, portanto, a conjugação da Lei Caó com o novo “tipo penal” (injúria qualificada racialmente), introduzido no CP pela Lei n.º 9.459/97 (Lei Paim), já oferece instrumentos razoáveis para um combate um pouco mais eficaz ao 40 racismo. Munido desses instrumentos, tanto os discriminados quanto o movimento social e os agentes públicos, em particular os profissionais da polícia, poderão dar uma grande contribuição para uma maior harmonia da sociedade brasileira. No mundo inteiro tem-se assistido ao recrudescimento da intolerância racial e étnica e a manifestações xenófobas. Talvez, no caso brasileiro, tivéssemos que refletir profundamente sobre o que somos, como fomos formados, e como têm sido historicamente as nossas relações etnorraciais. Mais que tudo, refletir sobre o preço que tem sido pago pelo ideal de nos apresentarmos como uma democracia racial sem o sermos de fato. É indeclinável a necessidade de que todos os brasileiros compreendam, independentemente de raça, cor, etnia, origem ou procedência nacional, que a finalidade de qualquer lei penal não é a punição pela punição, e, sim, inibir os comportamentos indesejáveis que tipifica. No caso da intolerância religiosa e do racismo em geral, a finalidade não é simplesmente punir os que eventualmente se dedicarem a essas práticas, e, sim, promover a integração dos diferentes grupos que compõem a nacionalidade brasileira. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2007 – PNAD 2007, do IBGE –, declararam-se brancos 48,7% da população; e declararam-se “pretos” e “pardos” (afro- brasileiros) 49,5%. Nada parecido com os Estados Unidos, por exemplo, em que a auto declarada população de afro-americanos não passa de 12%. Este fato coloca-nos em vantagem, fazendo com que as relações interpessoais entre os brasileiros de todos os matizes, sobretudo no espaço público, sejam mais amenas. Se, entretanto, temos a vantagem no que diz respeito às relações no dia-a-dia, não podemos afirmar o mesmo quando estamos falando das 41 relações de poder, do poder político e do poder econômico. Aqui, constata- se um abismo maior do que o verificado naquele país do Norte. É possível mesmo arriscar dizer que o bom nível das relações interpessoais entre nós tenha sido garantido até aqui pela “arrumação”da ordem social brasileira, como notou o antropólogo Roberto Kant de Lima: “Cada macaco no seu galho”3 e pela fórmula “Cada coisa para cada lugar, um lugar para cada coisa”, nas palavras de Roberto da Matta.4 Se não aceitarmos que essa “arrumação” social é insustentável numa democracia, por mais frágil que seja; se não quebrarmos os paradigmas com os quais nossos avós operaram, no marco da hierarquia social e etnorracial, teremos que nos preparar para amargar a deterioração de nossas relações, com fortes repercussões na violência, como há muito acontece. A vantagem que temos no nível das relações interpessoais talvez seja o capital de que dispomos para investir na maior participação dos historicamente discriminados no poder, na educação e no emprego. Só assim avançaremos como Nação. Só assim poderemos contribuir para a construção de um Brasil melhor para os nossos filhos. Com respeito às diferenças, com tolerância. 42 3. Conclusão Segundo a definição dos dicionários, o utopista é aquele que concebe e/ou defende utopias. Já a palavra utopia é definida como projeto irrealizável; quimera. O poema de Murilo Mendes, que serve de epígrafe para este trabalho, põe em suspenso, justamente, este caráter de “irrealizável” que se atribui à utopia. Invertendo de maneira bastante irônica os lugares pré-estabelecidos, o utopista de Murilo Mendes, ou seja, aquele que concebe ou defende um projeto irrealizável é aquele que não acredita na mudança, nem na transformação, que impõe limites até para a poesia e para quem não há um “outro mundo”. Na concepção do poeta, aquele que não tem esperança é que pode ser chamado de utopista. Recorremos, novamente, à poesia e aos poetas, para, mais uma vez, colocar em questão as utopias. Como escreveu Mário Quintana, no seu poeminha “Das utopias”: Se as coisas são inatingíveis.., ora! não é motivo para não querê-las... Que tristes os caminhos, se não fora a mágica presença das estrelas! Ainda que, neste poema, admita-se que há, na utopia, o desejo de alcançar o inatingível, é, também, isso o que move os utopistas, portanto, por que não querê-lo nem por que não desejá-lo? É assim que muitos se mobilizam, que se movem, que caminham, que trilham seu percurso, sua trajetória. É, desta maneira, que nos inserimos no contexto social brasileiro, ou seja, acreditando que a mudança seja possível e plenamente alcançável, ainda que para muitos, utópicas. 43 4. Bibliografia Livros: FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo, cortez, 1989. RAMOS, Silva. Mídia e racismo. Rio de Janeiro:Pallas, 2002. DA SILVA, Jorge.120 Anos de Abolição.Rio de Janeiro:Hama, 2008. Jornais: NASCIMENTO, Abdias do. Elisa Larkin.(org.) Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro. Edição fac-similar do jornal dirigido por Abdias Nascimento. 1 edição.São Paulo: ed.34, 2003. Ano 1 nº 3 p 45. GUIMARÃES. Antônio Sérgio. Introdução. In. Nascimento, Abdias Do Nascimento. Elisa Larkin. (org.) Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro. Edição fac-similar do jornal dirigido por Abdias Nascimento. 1 edição.São Paulo. Ed.34, 2003. Cartilhas: SILVA JUNIOR, Hédio; SILVA BENTO, Maria Aparecida. Campanha em Defesa da Liberdade de Crença e Contra a Intolerância Religiosa. São Paulo:Ceert, 2004. DA SILVA, Jorge. Guia de Luta Contra a Intolerância Religiosa e o Racismo.Rio de Janeiro:Ceap, 2009. Entrevistas: MENEZES, Newton. Depoimentos sobre Solano Trindade [ julho de 2003]. Entrevistadora Maria do Carmo Gregório. Rio de janeiro. Entrevista concedida para a pesquisa. Homepage Institucional: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre.Disponivel em: http://pt.wikipedia.org/wiki/escravid%c3%a3o#.c3.81frica RELATÓRIO DA CMCR, Conferência Mundial Contra Racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata.Durban, 2001. Disponível em : http://www.comitepaz.org.br/durban_1.htm DECLARAÇÃO DO PARLAMENTO DAS RELIGIÕES DO MUNDO. Disponível em: http://www.comitepaz.org.br/religioes_1.htm 44 Referências Bibliográficas: 1(DA SILVA: 2008) 1 (Florestan, 1989, p.28) 1 (Folha de S.Paulo, 28/8/01) 1 (KANT DE LIMA, 1994) 1 (DA MATTA, 1993, p. 76)
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