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A IDADE MÉDIA ÁRABE (SÉCULOS XI-XV) A história do mundo muçulmano no segundo milênio cristão apresenta um aspecto muito menos coerente do que na época de ouro, mas a tradicional visão dualista de emergência seguida de decadência é simplificadora demais para defini-la. É verdade que uma série de invasões externas e calamidades internas produziram imenso impacto negativo no Oriente Médio, levando a um declínio aparentemente inexorável de seu centro – o mundo árabe. Em outras partes, porém, o islã viveu uma nova onda de expansão, a exemplo do subcontinente indiano, do sudeste asiático e da África. Desde essa época, a história do mundo muçulmano ultrapassa os limites geográficos do Oriente Médio. Praticamente contemporâneos do Renascimento na Europa, três “impérios da pólvora” se consolidaram no Oriente: o Império Otomano, nos antigos territórios bizantinos e no mundo árabe; o Império Safávida, na Pérsia; e o Império dos Grão-Mughals, na Índia. Sultanatos menores existiram em outras regiões da Índia, em partes da África, em Java e na Sumatra entre outras. Esses impérios muçulmanos (como os impérios confuncionistas da China, Coreia e Japão, na Ásia oriental) mantiveram uma paridade de poder que as potências europeias não conseguiram superar até que a virada do século XIX lhes fornecesse recursos imbatíveis para tal. Somente as revoluções política, industrial, demográfica e militar que sacudiram e transformaram o mundo ocidental permitiram-lhe ultrapassar o mundo muçulmano. Seguiram-se a penetração econômica, política e cultural, as colonizações – e o fracasso do desenvolvimento pós-colonial que, como veremos mais adiante, constitui o pano de fundo do atual agravamento das relações entre Ocidente e islã. Por causas ainda não completamente compreendidas, o século X e os seguintes produziram na Ásia central uma série de mudanças, que impuseram a tribos nômades repetidas invasões aos povos sedentários e suas ricas terras cultivadas. O fenômeno teria gravíssimas consequências, da China até a Europa central. Essas infiltrações – último ato de uma interação entre pastores e agricultores que começara na época de Abraão – ocorreram em ondas e suas consequências foram diferenciadas. A curto prazo, porém, prevaleceu a devastação, com consideráveis prejuízos para o delicado equilíbrio ecológico e político da época. No século XI, por exemplo, ocorreram destruidoras migrações de beduínos árabes hilali para a África do Norte. Chegando até a Argélia, essas incursões foram provavelmente um fator de desertificação e de declínio da agricultura, tradicionalmente rica no Magreb. Já os turcos, imbuídos de um espírito guerreiro alienígena à cultura urbana das elites árabes e persas de Bagdá e Cairo, entraram no mundo muçulmano tanto como tribos quanto como indivíduos – neste último caso, foram aproveitados como escravos e mercenários, e se tornaram os “guardas pretorianos” dos líderes político-religiosos. Confiar o controle das armas a escravos estrangeiros, gente de fora sem ligações pessoais ou familiares e sem compromissos locais, era aparentemente uma política sábia – entretanto, como diz o provérbio latino, “quis custodiet ipsos custodes?” (quem vigiaria os vigias?). Os intrusos turcos concentraram o poder real em suas mãos. Logo derrubariam seus mestres e estabeleceriam suas próprias dinastias – do tipo específico de soldados- escravos destribalizados. Na teoria absolutista em vigor, todos os servidores do sultão –sultan significa poder –, inclusive os militares, eram seus escravos. A escravidão, entretanto, não era vista como algo humilhante; a ponto desses escravos (mamluk ou mamelucos) se tornarem até mesmo reis, sendo a sucessão em geral organizada pela adoção clientelista. Em fins da Idade Média, houve várias dessas dinastias mamelucas, em diversas partes do mundo muçulmano. Frente aos infiéis, os turcos eram de um dinamismo feroz. A Batalha de Manzikert, em 1071, foi uma histórica derrota bizantina que desestabilizou o equilíbrio geopolítico local. Ela permitiu aos turcos seljúcidas o estabelecimento de um sultanato que posteriormente incorporou a Síria e a Palestina. Foram os obstáculos colocados pelos novos sultões a peregrinos cristãos que forneceram o pretexto para expedições militares ocidentais no Oriente Médio. A conquista cristã de Jerusalém pelos cruzados em 1099, com o massacre de toda sua população, assim como outros sucessos iniciais dessas invasões na região central do islã, alarmou o mundo muçulmano. Eram as primeiras perdas territoriais significativas desde o início do islã. Com o tempo, a queda de Jerusalém se tornou símbolo da agressão cristã contra o islã. No entanto, as Cruzadas de 1099 a 1187 não foram mais do que um interlúdio, seguido pela reconquista muçulmana da Palestina por Saladino (Salah al-Din), expoente de uma nova dinastia sunita egípcia, os aiúbidas. O episódio das Cruzadas traduziu a agressão ocidental e o êxito da resistência muçulmana a esta. O impacto dessas batalhas foi muito mais profundo na cristandade do que no islã. Contudo, a perda de Andalus, a península ibérica, foi bem mais grave e definitiva para os muçulmanos. A verdadeira devastação, no entanto, veio do extremo Oriente, com as invasões mongólicas. Aspirando ao poder universal, Genghis Khan e seus sucessores puseram fim, no século XIII, aos reinados muçulmanos turcomanos, ao Império Abássida (já reduzido à Mesopotâmia e Pérsia), quase aniquilaram Kiev e os principados russos, e ainda ameaçaram a China. Em 1258, seu neto Hulagu invadiu Bagdá, executou o último califa e massacrou a maior metrópole daqueles tempos.14 Comparando, foi o equivalente à destruição, multiplicada por mil, das torres gêmeas de Nova York – tanto pelas perdas materiais e humanas quanto pela aniquilação do maior centro da civilização na época. Dois anos mais tarde, os mamelucos, nova dinastia que sucedera aos aiúbidas,conseguiram derrotar os mongóis na Batalha de Ayn Jalut, a Fonte de Golias, na Palestina. Todavia, as destruições no Iraque, inclusive de seu sistema milenar de irrigação, causaram o declínio irreversível do que outrora havia sido o centro da economia e da cultura muçulmanas – o que, por outro lado, permitiu a emergência do Egito como centro alternativo. Os mongóis se estabeleceram no mundo muçulmano oriental, mas seu império foi efêmero, e a pequena elite militar mongol foi culturalmente absorvida. A nova geração se islamizou e tornou-se mecenas das artes. Mas as destruições, com terrível custo de vidas humanas, não cessaram. No final do século XIV, Timur Leng (Tamerlã) empreendeu uma série de campanhas destrutivas na Pérsia. Derrotou os turcos otomanos, que erigiam um novo sultanato sobre as ruínas dos seljúcidas, e massacrou Déli, pondo fim à glória do sultanato indiano. O século XIV, resumidamente, foi catastrófico para o mundo muçulmano, pelo menos tanto quanto para o Ocidente cristão. A fragmentação política provocou guerras civis, instalando a insegurança geral, com grande prejuízo para o comércio. O Oriente Médio, zona de trânsito por excelência, foi duramente atingido pela peste negra e outras pandemias, resultando num declínio demográfico mais severo do que na Europa. O mundo muçulmano ressurgiria no século XV, sob o ímpeto turco em particular, mas ao preço de uma marcada rigidez do islã. As consequências da intromissão turca na Idade Média árabe foram, contudo, mais duradouras do que a mongólica. O declínio do comércio solapou a economia. O Oriente Médio entrou num processo de feudalização: em troca da promessa de cobrar os impostos, militares leais recebiam terras com os rendimentos que dela provinham. A nova classe de latifundiários turcos, os timariotes, sucedeu os comerciantes, ruralizando a economia. Mesmo tendo adotado o islã e protegendo a cultura árabe-persa, os turcos criaram uma profunda dicotomia entre asvelhas e as novas elites. A distância entre a classe dos letrados- administradores tradicionais e o novo poder político legitimado pelo entusiasmo islâmico, mas etnicamente alienígena e sem a sanção religiosa, levaram a repetidas crises políticas. Por fim, ambos aprenderam a coexistir e a cooperar. Uma coalizão entre a camada militar turca e a administrativo-judicial de cultura árabe-persa estabeleceu um novo equilíbrio. O preço cultural-religioso, porém, foi elevado: efetivou-se a restauração sunita, baseada numa ortodoxia muçulmana que se tornou mais dogmática, escolástica e distante da religiosidade popular. Esta, desconsiderando o rigor da xaria, refugiou-se, nessa época de incerteza e confusão, cada vez mais em seitas místicas sufis: o equivalente sunita da exaltação xiita. A crescente dicotomia religiosa entre o “islã alto” dos bazaris e dos ulemás e o islã popular se tornou uma marca permanente das sociedades muçulmanas. Nos dias de hoje, essa divisão funciona como suporte para a atuação de fundamentalistas, que tentam impor a versão “pura” do islã às classes populares. O período pós-clássico é marcadamente mais intolerante frente aos dhimmis do que o precedente, mas a retração religiosa interna foi ainda mais importante, expressada pelo “fechamento das portas da ijtihad” (a reflexão e o esforço interpretativo individual do fiel). Na Idade Média árabe, teólogos sunitas chegaram à conclusão de que, como a distância temporal da época da revelação havia aumentado, era mais prudente que os fiéis se ativessem aos preceitos das escolas ortodoxas existentes, as quais, pensava-se, já tinham exaurido com sua sabedoria a possibilidade da livre interpretação dos textos sagrados. Com base nisso, inovações religiosas (bid’a) teriam que ser evitadas. É exagerado dizer que o Oriente Médio mergulhou num estupor espiritual. Mas não há dúvida de que a virada teológica afetou negativamente a capacidade muçulmana para reagir aos desafios lançados posteriormente pelo Ocidente. O IMPÉRIO OTOMANO (1281-1924) O Oriente Médio se divide hoje em três grandes zonas culturais: a árabe, a turca e a persa. Embora essas compartilhassem (em graus diferenciados) a identidade muçulmana e a interação e influência mútua entre elas tivessem sido intensas, a evolução histórica criou também rupturas e inimizades inegáveis. O século XVI pode ser considerado como um “divisor de águas”. Foi quando um novo império muçulmano turco, o Otomano, sucedeu o antigo califado, e saindo de sua base na Anatólia conquistou a maior parte do mundo árabe. Os otomanos implantaram firmemente a supremacia sunita. A Pérsia, contudo, não foi derrotada, e uma nova dinastia (também de origem turca), a safávida, estabeleceu um império persa que foi impregnado pela imposição do xiismo. Durante séculos, os dois impérios hostis continuaram uma guerra, ora fria ora aberta, que se desdobrou de uma rivalidade ideológica. O resultado é que o Irã (o novo nome da Pérsia desde os anos 1930) é hoje solidamente xiita, enquanto no resto do Oriente Médio – exceto em alguns redutos isolados – o sunismo é a religião predominante. Os otomanos construíram um império notavelmente duradouro – até mesmo seu processo de decadência, extraordinariamente longo, é prova disso. Foi também um império tolerante e, em função de sua identidade religiosa, bastante aberto a todos os sunitas, independente de sua língua ou nacionalidade. O nacionalismo o infectou tarde – mas, quando chegou, inviabilizou a convivência turco- árabe. Desde pouco antes da Primeira Guerra Mundial, ambas as nações seguiram seu próprio caminho. O império otomano: expansão e auge A primeira expansão otomana aconteceu no século XIV. Na Anatólia, onde o Império Bizantino estava se encolhendo, a queda dos seljúcidas abriu espaço para a invasão da tribo turca de Osmã, filho de Orhan, que deu seu nome à dinastia. A longa guerrilha dos ghazis otomanos os transformou nos detentores do poder central na região. Sua tenacidade e valor militar os tornaram legendários. Ultrapassando Constantinopla, os otomanos se expandiram nos Bálcãs. Em 1389, eles destruíram a resistência sérvia no Campo dos Pássaros Negros, em Kosovo. No entanto, a expansão otomana foi interrompida quando Tamerlã, líder mongol islamizado, os derrotou em 1402. A restauração demorou uma geração. Em seguida, começou uma segunda expansão do tipo “império da pólvora”. Os sultões do século XV subjugaram o que restara do Império Bizantino. Penúltima fortaleza, Constantinopla caiu em 1453, tornando-se Istambul, a nova capital otomana. As possessões venezianas e genovesas no Mar Negro e no Mediterrâneo oriental, cadeias de ilhas que constituíam um verdadeiro império comercial, foram gradualmente recuperadas. Seguiram-se a conquista do Oriente Médio, do Iraque à Arábia – incluindo os lugares santos do islã –, da África do Norte até as fronteiras do Marrocos e dos Bálcãs até as portas de Viena.15 No século XVI, o Império Otomano alcançou seu auge sob o sultão Solimão (Suleiman), o Magnífico. Numa série de guerras em duas frentes, conseguiram simultaneamente conter dois fortes inimigos: os safávidas na Pérsia e os habsburgos na Europa. A cristandade considerou os turcos como a maior ameaça desde a expansão original de Maomé; contudo, o rei da França, pressionado por Carlos V, aliou-se a eles – as razões de Estado superaram as antipatias religiosas recíprocas. A expansão otomana devia muito à excelência de seu exército, cujo núcleo era constituído pelos janízaros, jovens cristãos recebidos, a título de tributo, como escravos das aldeias dhimmi e educados como soldados muçulmanos, completamente devotos ao sultão. O sistema funcionou durante séculos, até os próprios janízaros se tornarem uma casta corrupta. A administração do imenso império era razoavelmente efetiva – pelo menos nos tempos de prosperidade – e se baseava em dois elementos: uma nobreza militar assentada nos timariotes turcos, inicialmente não hereditários; e uma “instituição religiosa” de qadis (juízes ou magistrados que aplicavam a xaria) e ulemás, formada nos moldes árabes.
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