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Aula 08 (27-08) - Texto Complementar 01 DEMANT [Pt. 2]

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A IDADE MÉDIA ÁRABE (SÉCULOS XI-XV)
A história do mundo muçulmano no segundo milênio
cristão apresenta um aspecto muito menos coerente do que
na época de ouro, mas a tradicional visão dualista de
emergência seguida de decadência é simplificadora
demais para defini-la. É verdade que uma série de
invasões externas e calamidades internas produziram
imenso impacto negativo no Oriente Médio, levando a um
declínio aparentemente inexorável de seu centro – o
mundo árabe. Em outras partes, porém, o islã viveu uma
nova onda de expansão, a exemplo do subcontinente
indiano, do sudeste asiático e da África.
Desde essa época, a história do mundo muçulmano
ultrapassa os limites geográficos do Oriente Médio.
Praticamente contemporâneos do Renascimento na Europa,
três “impérios da pólvora” se consolidaram no Oriente: o
Império Otomano, nos antigos territórios bizantinos e no
mundo árabe; o Império Safávida, na Pérsia; e o Império
dos Grão-Mughals, na Índia. Sultanatos menores existiram
em outras regiões da Índia, em partes da África, em Java e
na Sumatra entre outras. Esses impérios muçulmanos
(como os impérios confuncionistas da China, Coreia e
Japão, na Ásia oriental) mantiveram uma paridade de
poder que as potências europeias não conseguiram superar
até que a virada do século XIX lhes fornecesse recursos
imbatíveis para tal. Somente as revoluções política,
industrial, demográfica e militar que sacudiram e
transformaram o mundo ocidental permitiram-lhe
ultrapassar o mundo muçulmano. Seguiram-se a penetração
econômica, política e cultural, as colonizações – e o
fracasso do desenvolvimento pós-colonial que, como
veremos mais adiante, constitui o pano de fundo do atual
agravamento das relações entre Ocidente e islã.
Por causas ainda não completamente compreendidas, o
século X e os seguintes produziram na Ásia central uma
série de mudanças, que impuseram a tribos nômades
repetidas invasões aos povos sedentários e suas ricas
terras cultivadas. O fenômeno teria gravíssimas
consequências, da China até a Europa central. Essas
infiltrações – último ato de uma interação entre pastores e
agricultores que começara na época de Abraão –
ocorreram em ondas e suas consequências foram
diferenciadas. A curto prazo, porém, prevaleceu a
devastação, com consideráveis prejuízos para o delicado
equilíbrio ecológico e político da época.
No século XI, por exemplo, ocorreram destruidoras
migrações de beduínos árabes hilali para a África do
Norte. Chegando até a Argélia, essas incursões foram
provavelmente um fator de desertificação e de declínio da
agricultura, tradicionalmente rica no Magreb. Já os turcos,
imbuídos de um espírito guerreiro alienígena à cultura
urbana das elites árabes e persas de Bagdá e Cairo,
entraram no mundo muçulmano tanto como tribos quanto
como indivíduos – neste último caso, foram aproveitados
como escravos e mercenários, e se tornaram os “guardas
pretorianos” dos líderes político-religiosos. Confiar o
controle das armas a escravos estrangeiros, gente de fora
sem ligações pessoais ou familiares e sem compromissos
locais, era aparentemente uma política sábia – entretanto,
como diz o provérbio latino, “quis custodiet ipsos
custodes?” (quem vigiaria os vigias?).
Os intrusos turcos concentraram o poder real em suas
mãos. Logo derrubariam seus mestres e estabeleceriam
suas próprias dinastias – do tipo específico de soldados-
escravos destribalizados. Na teoria absolutista em vigor,
todos os servidores do sultão –sultan significa poder –,
inclusive os militares, eram seus escravos. A escravidão,
entretanto, não era vista como algo humilhante; a ponto
desses escravos (mamluk ou mamelucos) se tornarem até
mesmo reis, sendo a sucessão em geral organizada pela
adoção clientelista. Em fins da Idade Média, houve várias
dessas dinastias mamelucas, em diversas partes do mundo
muçulmano.
Frente aos infiéis, os turcos eram de um dinamismo
feroz. A Batalha de Manzikert, em 1071, foi uma histórica
derrota bizantina que desestabilizou o equilíbrio
geopolítico local. Ela permitiu aos turcos seljúcidas o
estabelecimento de um sultanato que posteriormente
incorporou a Síria e a Palestina. Foram os obstáculos
colocados pelos novos sultões a peregrinos cristãos que
forneceram o pretexto para expedições militares
ocidentais no Oriente Médio. A conquista cristã de
Jerusalém pelos cruzados em 1099, com o massacre de
toda sua população, assim como outros sucessos iniciais
dessas invasões na região central do islã, alarmou o
mundo muçulmano. Eram as primeiras perdas territoriais
significativas desde o início do islã.
Com o tempo, a queda de Jerusalém se tornou símbolo
da agressão cristã contra o islã. No entanto, as Cruzadas
de 1099 a 1187 não foram mais do que um interlúdio,
seguido pela reconquista muçulmana da Palestina por
Saladino (Salah al-Din), expoente de uma nova dinastia
sunita egípcia, os aiúbidas. O episódio das Cruzadas
traduziu a agressão ocidental e o êxito da resistência
muçulmana a esta. O impacto dessas batalhas foi muito
mais profundo na cristandade do que no islã. Contudo, a
perda de Andalus, a península ibérica, foi bem mais grave
e definitiva para os muçulmanos.
A verdadeira devastação, no entanto, veio do extremo
Oriente, com as invasões mongólicas. Aspirando ao poder
universal, Genghis Khan e seus sucessores puseram fim, no
século XIII, aos reinados muçulmanos turcomanos, ao
Império Abássida (já reduzido à Mesopotâmia e Pérsia),
quase aniquilaram Kiev e os principados russos, e ainda
ameaçaram a China. Em 1258, seu neto Hulagu invadiu
Bagdá, executou o último califa e massacrou a maior
metrópole daqueles tempos.14 Comparando, foi o
equivalente à destruição, multiplicada por mil, das torres
gêmeas de Nova York – tanto pelas perdas materiais e
humanas quanto pela aniquilação do maior centro da
civilização na época.
Dois anos mais tarde, os mamelucos, nova dinastia que
sucedera aos aiúbidas,conseguiram derrotar os mongóis na
Batalha de Ayn Jalut, a Fonte de Golias, na Palestina.
Todavia, as destruições no Iraque, inclusive de seu
sistema milenar de irrigação, causaram o declínio
irreversível do que outrora havia sido o centro da
economia e da cultura muçulmanas – o que, por outro lado,
permitiu a emergência do Egito como centro alternativo.
Os mongóis se estabeleceram no mundo muçulmano
oriental, mas seu império foi efêmero, e a pequena elite
militar mongol foi culturalmente absorvida. A nova
geração se islamizou e tornou-se mecenas das artes. Mas
as destruições, com terrível custo de vidas humanas, não
cessaram. No final do século XIV, Timur Leng (Tamerlã)
empreendeu uma série de campanhas destrutivas na Pérsia.
Derrotou os turcos otomanos, que erigiam um novo
sultanato sobre as ruínas dos seljúcidas, e massacrou Déli,
pondo fim à glória do sultanato indiano.
O século XIV, resumidamente, foi catastrófico para o
mundo muçulmano, pelo menos tanto quanto para o
Ocidente cristão. A fragmentação política provocou
guerras civis, instalando a insegurança geral, com grande
prejuízo para o comércio. O Oriente Médio, zona de
trânsito por excelência, foi duramente atingido pela peste
negra e outras pandemias, resultando num declínio
demográfico mais severo do que na Europa. O mundo
muçulmano ressurgiria no século XV, sob o ímpeto turco
em particular, mas ao preço de uma marcada rigidez do
islã.
As consequências da intromissão turca na Idade Média
árabe foram, contudo, mais duradouras do que a
mongólica. O declínio do comércio solapou a economia. O
Oriente Médio entrou num processo de feudalização: em
troca da promessa de cobrar os impostos, militares leais
recebiam terras com os rendimentos que dela provinham.
A nova classe de latifundiários turcos, os timariotes,
sucedeu os comerciantes, ruralizando a economia. Mesmo
tendo adotado o islã e protegendo a cultura árabe-persa, os
turcos criaram uma profunda dicotomia entre asvelhas e
as novas elites. A distância entre a classe dos letrados-
administradores tradicionais e o novo poder político
legitimado pelo entusiasmo islâmico, mas etnicamente
alienígena e sem a sanção religiosa, levaram a repetidas
crises políticas.
Por fim, ambos aprenderam a coexistir e a cooperar.
Uma coalizão entre a camada militar turca e a
administrativo-judicial de cultura árabe-persa estabeleceu
um novo equilíbrio. O preço cultural-religioso, porém, foi
elevado: efetivou-se a restauração sunita, baseada numa
ortodoxia muçulmana que se tornou mais dogmática,
escolástica e distante da religiosidade popular. Esta,
desconsiderando o rigor da xaria, refugiou-se, nessa época
de incerteza e confusão, cada vez mais em seitas místicas
sufis: o equivalente sunita da exaltação xiita. A crescente
dicotomia religiosa entre o “islã alto” dos bazaris e dos
ulemás e o islã popular se tornou uma marca permanente
das sociedades muçulmanas. Nos dias de hoje, essa
divisão funciona como suporte para a atuação de
fundamentalistas, que tentam impor a versão “pura” do islã
às classes populares.
O período pós-clássico é marcadamente mais
intolerante frente aos dhimmis do que o precedente, mas a
retração religiosa interna foi ainda mais importante,
expressada pelo “fechamento das portas da ijtihad” (a
reflexão e o esforço interpretativo individual do fiel). Na
Idade Média árabe, teólogos sunitas chegaram à conclusão
de que, como a distância temporal da época da revelação
havia aumentado, era mais prudente que os fiéis se
ativessem aos preceitos das escolas ortodoxas existentes,
as quais, pensava-se, já tinham exaurido com sua
sabedoria a possibilidade da livre interpretação dos textos
sagrados. Com base nisso, inovações religiosas (bid’a)
teriam que ser evitadas. É exagerado dizer que o Oriente
Médio mergulhou num estupor espiritual. Mas não há
dúvida de que a virada teológica afetou negativamente a
capacidade muçulmana para reagir aos desafios lançados
posteriormente pelo Ocidente.
O IMPÉRIO OTOMANO (1281-1924)
O Oriente Médio se divide hoje em três grandes zonas
culturais: a árabe, a turca e a persa. Embora essas
compartilhassem (em graus diferenciados) a identidade
muçulmana e a interação e influência mútua entre elas
tivessem sido intensas, a evolução histórica criou também
rupturas e inimizades inegáveis. O século XVI pode ser
considerado como um “divisor de águas”. Foi quando um
novo império muçulmano turco, o Otomano, sucedeu o
antigo califado, e saindo de sua base na Anatólia
conquistou a maior parte do mundo árabe.
Os otomanos implantaram firmemente a supremacia
sunita. A Pérsia, contudo, não foi derrotada, e uma nova
dinastia (também de origem turca), a safávida, estabeleceu
um império persa que foi impregnado pela imposição do
xiismo. Durante séculos, os dois impérios hostis
continuaram uma guerra, ora fria ora aberta, que se
desdobrou de uma rivalidade ideológica. O resultado é
que o Irã (o novo nome da Pérsia desde os anos 1930) é
hoje solidamente xiita, enquanto no resto do Oriente
Médio – exceto em alguns redutos isolados – o sunismo é
a religião predominante.
Os otomanos construíram um império notavelmente
duradouro – até mesmo seu processo de decadência,
extraordinariamente longo, é prova disso. Foi também um
império tolerante e, em função de sua identidade religiosa,
bastante aberto a todos os sunitas, independente de sua
língua ou nacionalidade. O nacionalismo o infectou tarde –
mas, quando chegou, inviabilizou a convivência turco-
árabe. Desde pouco antes da Primeira Guerra Mundial,
ambas as nações seguiram seu próprio caminho.
O império otomano: expansão e auge
A primeira expansão otomana aconteceu no século
XIV. Na Anatólia, onde o Império Bizantino estava se
encolhendo, a queda dos seljúcidas abriu espaço para a
invasão da tribo turca de Osmã, filho de Orhan, que deu
seu nome à dinastia. A longa guerrilha dos ghazis
otomanos os transformou nos detentores do poder central
na região. Sua tenacidade e valor militar os tornaram
legendários. Ultrapassando Constantinopla, os otomanos
se expandiram nos Bálcãs. Em 1389, eles destruíram a
resistência sérvia no Campo dos Pássaros Negros, em
Kosovo. No entanto, a expansão otomana foi interrompida
quando Tamerlã, líder mongol islamizado, os derrotou em
1402.
A restauração demorou uma geração. Em seguida,
começou uma segunda expansão do tipo “império da
pólvora”. Os sultões do século XV subjugaram o que
restara do Império Bizantino. Penúltima fortaleza,
Constantinopla caiu em 1453, tornando-se Istambul, a nova
capital otomana. As possessões venezianas e genovesas no
Mar Negro e no Mediterrâneo oriental, cadeias de ilhas
que constituíam um verdadeiro império comercial, foram
gradualmente recuperadas. Seguiram-se a conquista do
Oriente Médio, do Iraque à Arábia – incluindo os lugares
santos do islã –, da África do Norte até as fronteiras do
Marrocos e dos Bálcãs até as portas de Viena.15
No século XVI, o Império Otomano alcançou seu auge
sob o sultão Solimão (Suleiman), o Magnífico. Numa série
de guerras em duas frentes, conseguiram simultaneamente
conter dois fortes inimigos: os safávidas na Pérsia e os
habsburgos na Europa. A cristandade considerou os turcos
como a maior ameaça desde a expansão original de
Maomé; contudo, o rei da França, pressionado por Carlos
V, aliou-se a eles – as razões de Estado superaram as
antipatias religiosas recíprocas.
A expansão otomana devia muito à excelência de seu
exército, cujo núcleo era constituído pelos janízaros,
jovens cristãos recebidos, a título de tributo, como
escravos das aldeias dhimmi e educados como soldados
muçulmanos, completamente devotos ao sultão. O sistema
funcionou durante séculos, até os próprios janízaros se
tornarem uma casta corrupta. A administração do imenso
império era razoavelmente efetiva – pelo menos nos
tempos de prosperidade – e se baseava em dois elementos:
uma nobreza militar assentada nos timariotes turcos,
inicialmente não hereditários; e uma “instituição religiosa”
de qadis (juízes ou magistrados que aplicavam a xaria) e
ulemás, formada nos moldes árabes.

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