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&DWiORJR
Sobre o autor
Peter de Rosa, licenciado pela Universidade Gregoriana de
Roma, foi Professor de Metafísica e Ética no Westinster
Seminary e Deão de Teologia no Corpus Christi College de
Londres. As suas obras incluem: Rebels: The Irish Rising of
1916 e o romance Pope Patrick. Deixou o sacerdócio em
1970 e vive actualmente na Irlanda com a mulher e dois
filhos.
Peter de Rosa
Os Vigários de Cristo
O Lado Negro do Papado
Luis A. P. Varela Pinto
 
Luis A. P. Varela Pinto
Traduzido do original 
Luis A. P. Varela Pinto
por
Luis A. P. Varela Pinto
Luís Varela Pinto
Luis A. P. Varela Pinto
 
Luis A. P. Varela Pinto
Espinho
Luis A. P. Varela Pinto
2000/2001
Luis A. P. Varela Pinto
 
Título do original: Vicars of Christ, The Dark Side of the Papacy
Edição que serviu de base à tradução:
Poolbeg Press Ltd, 123,
Baldoyle Industrial Estate,
Dublin 13, Ireland
2000
A
Todas as Vítimas do Holocausto,
com Humildade e Penitência
Índice
Um Novo Prefácio para um Novo Milénio 9
Prólogo: O Grande Encobrimento 13
Primeira Parte: O Poder 17
1 Do Calvário ao Vaticano 19
2 A Busca do Poder Absoluto 35
3 A Pornocracia Papal 51
4 O Apogeu do Papado 59
5 O Poder em declínio 75
6 A Descida do Papado aos Infernos 87
7 A Inevitável Reforma 107
8 O Crepúsculo do Poder Absoluto 117
Segunda Parte: A Verdade 131
9 O Esmagamento da Dissidência 133
10 A Imposição da Verdade 145
11 A Perseguição às Bruxas e aos Judeus 171
12 As Heresias Papais 191
13 O Primeiro Papa Infalível 219
14 A Grande Purga 235
Terceira Parte: O Amor 247
15 O Papa que Amava o Mundo 249
16 O Novo Caso Galileu 261
17 Uma Visão Pouco Amorosa do Sexo 289
18 Os Papas, Pioneiros do Divórcio 303
19 O Holocausto Silencioso 329
20 Celibatários Pouco Castos 351
Epílogo 391
Cronologia 395
Os Papas 403
Os Concílios 409
Nota sobre as Fontes 414
Bibliografia Selecta 415
9
Um Novo Prefácio para um Novo Milénio
O sucesso internacional de Os Vigários de Cristo: O Lado Negro do Papado foi para
mim uma surpresa. Muitos católicos escreveram-me a agradecer. Com uma educação
baseada apenas no lado eternamente luminoso do papado, ficaram com a ideia de que,
à parte uma ocasional maçã podre, como o Papa Bórgia, Alexandre VI, os papas eram
escolhidos pela sua santidade.
Este livro mostra que nos primeiros dois mil anos o papado foi campo de muito mais
escândalos clericais do que a Irlanda ou a América hoje.
Muitos papas, como Benedito IX, eleito em 1032 quando tinha onze anos, foram
desumanos; outros foram assassinos; Júlio II, que lutou pelos Estados Papais
envergando a sua armadura, estava convencido de que Jesus tinha dado ao Pescador e
seus herdeiros uma boa fatia da Itália Central a título perpétuo. Foi este o papa que
proibiu toda a gente de beijar-lhe os pés na Sexta-Feira Santa de 1508. A sífilis estava a
matá-lo.
O papa é católico? O leitor de Os Vigários de Cristo pode ficar surpreendido ao
descobrir que alguns não o eram. Segundo o Papa Adriano VI (1522-3), muitos
pontífices romanos eram hereges. Marcelino (296-304) foi apóstata. Vigílio (537-55) e
Honório (625-38) foram condenados como hereges por Concílios Gerais da Igreja.
Como disse Adriano VI, «Não há dúvida de que o Papa pode errar em matéria de fé
quando ensina a heresia».
Muitos papas criaram culturas de morte e cometeram crimes contra a humanidade.
As Cruzadas, que levaram ao massacre de centenas de milhar de vítimas, não foram
ideia de católicos renegados, mas de papas renegados. Impiedosamente, eles puseram
as suas jihads ou Guerras Santas sob a protecção de Jesus, que em Getsémani obrigou
Pedro a embainhar a espada.
Também foram os papas que inventaram a Inquisição, o gueto e as roupas que
identificavam os Judeus, a destruição pelo fogo de cidades heréticas e a fogueira para
velhas mulheres apelidadas de bruxas. Foram milhões os que morreram às ordens dos
papas. Alguns papas, que podiam ter dado lições de brutalidade a Cromwell, foram
canonizados.
Muitos papas do Renascimento, ao serviço de um Cristo da Wall Street, não
conseguiram passar sem meter a mão na gaveta. Foram simoníacos em grande escala.
Para conseguirem a eleição subornaram cardeais oferecendo-lhes abadias e montes de
ouro e prata. Uma vez em exercício, usavam os lucros das vendas de bispados e
indulgências para enriquecer as amantes, os filhos, os netos, os irmãos e as irmãs.
Apropriaram-se do equivalente a milhões de dólares. O Bispo Casey, de Galway, ao
entregar 125.000 dólares dos fundos da diocese à sua amante americana Annie Murphy
quase não deixa marcas numa escala de Richter das más acções do clero.
O que é que por fim pôs o papado num caminho mais próximo de Cristo? A
Reforma. Foram homens devotados, como o destroçado Lutero, que levou cebolas para
Roma e de lá voltou com alhos, foi o protesto de cristãos sérios, a maioria protestantes,
que finalmente obrigaram Roma a arrepiar caminho. Nessa altura o mal para a unidade
dos cristãos já estava feito. E continuou até hoje, como está à vista de toda a gente.
Isto não se encontra nos sermões, nem nas encíclicas papais, nem no Catecismo
Católico. Esta a razão por que muitos católicos, incluindo prelados do Vaticano, tendem
10
a presumir que o papa tem sempre razão e portanto tem de ser cegamente obedecido.
De facto, é muito perigoso para os católicos escutar os papas que não escutam a Igreja.
Este livro pergunta: não poderão os papas modernos, como Paulo VI e João Paulo II,
errar da mesma maneira que os seus antecessores que obrigaram católicos leais a
aceitar a Inquisição, a venda de indulgências, os guetos para os Judeus, a fogueira para
as bruxas? E se não podem, por que é que não podem?
Muitos apreciadores deste livro concluíram: «Nós temos sorte por o papado já se ter
reformado». Discordo. O poder absoluto investido nos papas desde 1870 levou Roma a
doutrinar com fundamento no papado. Esse mesmo poder absoluto fez com que, ao
invés de acabarem, os crimes papais se multiplicassem.
Consideremos a actual condenação da contracepção, contrária à crença quase
universal da Igreja. Isto constitui uma moderna heresia papal. A comunidade mundial
está a crescer um bilião em cada doze anos. A população cresce mais num ano do que
cresceu nos quinze séculos que se seguiram à morte de Cristo. O diálogo morreu. João
Paulo proibiu mesmo os bispos de discutirem a contracepção. Em África e na América
do Sul esta cruzada papal levou a mais campos de concentração de miséria, a mais
abortos provocados e, devido à pandemia da SIDA, a mais mortes do que em qualquer
outra época da história do Cristianismo.
As mulheres católicas em particular andam perturbadas. Os papas insultam-nas
com cortesia requintada assegurando-lhes que a sua contribuição é indispensável em
toda a parte, menos na Igreja. São filhas de um Deus menor.
O maior escândalo da Igreja Católica desde a Reforma é o abuso sexual de
crianças por parte do clero. Estranhamente, não houve da parte de João Paulo II, um
homem nobre e bom, uma palavra de condenação. Entretanto, os seus ataques à
contracepção saltavam como o sal do saleiro.
O verdadeiro mistério da história papal não é o facto de os homens maus
cometerem más acções. É sim o de os homens bons cometerem más acções e de os
melhores homens cometerem as piores de todas acções. Edward Gibbon disse: «Os
vícios do clero são muito menos perigosos do que as suas virtudes». A frase de Lord
Acton «O poder absoluto corrompe absolutamente» serviu de guia às minhas
investigações para este livro. Pouca gente sabe como essa frase termina: «Os grandes
homens são quase sempre perversos. Não há maior heresia do que aquela em que o
gabinete santifica o seu detentor». O amor do poder sempre há-de destruir o poder do
amor.
A Igreja Católica entra no terceiromilénio com uma moral do século XIX e uma
estrutura medieval baseada no absolutismo papal e um clero masculino celibatário. Não
admira que noventa por cento dos católicos modernos discordem do papa em questões-
chave como a contracepção, o divórcio, o celibato do clero, as mulheres no sacerdócio
e o aborto.
A minha esperança é que este livro encoraje os católicos, clero e leigos, a exigir
uma voz num terceiro Concílio Vaticano. Sem isso, não há a mínima possibilidade de a
Igreja se reformar e enfrentar um futuro desconhecido mas excitante.
Os Vigários de Cristo
13
Prólogo
O Grande Encobrimento
Facilmente se pode considerar o maior encobrimento da história. Dura há séculos,
tendo sacrificado, primeiro, milhares e depois milhões de vidas. Embora perfeitamente
visível, ninguém parece ter reparado nele. Inconscientemente, muitos artistas, grandes
e menos grandes, contribuíram para ele. E a camuflagem tem apenas o tamanho de um
pequeno pedaço de pano — aquele pano que cobre o ventre de Jesus Cristo
crucificado.
No princípio, a cruz nunca era representada na arte ou na escultura. Enquanto Jesus
foi adorado pelo seu despojamento e a cruz era o centro da fé, ninguém se atreveu a
representá-lo na sua extrema humilhação.
Diz-se que os exércitos de Constantino ostentavam a cruz nas suas insígnias. Isto
não era bem assim. O escudo e o estandarte tinham as duas primeiras letras do nome
grego de Cristo, , fundidas assim: .. Só quando a memória dos milhares que
morreram crucificados por todo o mundo romano se desvaneceu é que os cristãos se
sentiram livres para representar a cruz como símbolo da paixão de Cristo. Era uma cruz
vazia. Quem é que se atrevia a recrucificar Cristo?
Mais tarde, este simples símbolo da sua vitória sobre as forças do mal começou a
parecer demasiado austero. Os artista do século V começaram a pintar uma cruz com
um cordeiro junto a ela, porque Jesus era «o Cordeiro de Deus» sacrificado pelos
pecados do mundo. Depois, com crescente ousadia, começaram a pintar um Jesus
junto da cruz. Só nos fins do século VI, e apenas com duas excepções, é que ele foi
representado mesmo na cruz. E ainda assim, o artista não se atreveu a reproduzir a dor
e a humilhação. Jesus estava envolto numa comprida túnica e só as mãos e os pés
estavam nus para mostrar de maneira estilizada os pregos que o prendiam à madeira.
Era uma imagem de triunfo, ele não estava a sofrer e a morrer, mas a reinar, de olhos
abertos e por vezes coroado, no trono da cruz. A primeira representação grega de
Jesus em sofrimento na cruz, do século X, foi condenada por Roma como blasfema.
Mas a Igreja de Roma depressa se rendeu ao seu fascínio.
Com Jesus cada vez mais longínquo e com a teologia medieval cada vez mais seca e
mais escolástica, a devoção exigia um Cristo mais humano: um homem que se pudesse
ver e quase tocar, um homem com as provações e sofrimentos por que eles próprios
passavam em cada dia das suas vidas curtas e sofridas. Os artistas agora
representavam livremente Cristo em agonia na cruz; feridas profundas e sangue, agonia
em cada membro, abandono no olhar. Reduziram-lhe as vestes para inculcar no espírito
dos fiéis a dimensão da humilhação do Senhor.
E por aí se ficaram: uma tanga. Se o artista tivesse ido mais longe, quem teria tido a
coragem de olhar Cristo tal como ele estava: nu como um escravo?
O que deteve a mão do artista não foi o decoro mas a teologia. A culpa não foi dos
artistas. Afinal, como é que eles podiam perceber que o sofrimento do Cristo
recrucificado, sem a verdade última que só a nudez integral consegue revelar, levaria a
uma catástrofe? Ao conceder a Jesus os farrapos finais da decência, aquela tanga
retirou-lhe a condição de judeu. Cobriu-lhe literalmente a dignidade e tornou-o um não-
judeu honorário. Porque o que aquilo escondia não era apenas o sexo mas aquela
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cicatriz na sua carne, a circuncisão, que mostrava que ele era judeu. Era isso o que os
cristãos receavam ver.
Nas crucificações de Rafael e Rubens, e mesmo nas de Bosch e Grünwald, a tanga
torna-se ornamental; ela cai decorosamente em pregas. Na crucificação Colmar de
Grünwald, diz Husmans, Jesus está curvado em arco; o corpo torturado brilha
palidamente, polvilhado de sangue, eriçado de espinhos como a casca da castanha da
Índia. Foi isto, parece o artista dizer, o que o pecado fez a… quem?
A Deus, é a resposta da teologia. Isto é a morte de Deus. Quanto mais intensa for a
agonia, quanto menos a Sua glória transparecer, mais aterradora ela é. «Deus morreu
no Calvário». Isto parece boa teologia. Poderia ter sido, não fora aquele pedaço de
pano. Porque, parece o artista dizer, alguém é responsável por aquilo que fizeram a
Deus. Mas quem?
Uma leitura superficial do Evangelho Segundo S. Mateus dá a resposta: os Judeus.
Eles gritaram a Pilatos: «Crucifica-o. Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os
nossos filhos». A palavra de Deus parece culpar os judeus contemporâneos de Jesus e
seus descendentes pela Morte de Deus. Os Judeus são, portanto, deicidas. Uma gota
daquele Sangue salvaria um milhar de mundos; os judeus derramaram-no todo. Para
eles, o Sangue não é a salvação, mas antes uma eterna maldição. Com a sua
descrença, os judeus continuam a matar Deus. Tendo assassinado Cristo, sendo
culpados do maior crime que se pode imaginar, eles eram certamente capazes de tudo.
É esta a calúnia. É esta a grande heresia. Por via disto, as estórias de rituais de judeus
a assassinarem crianças cristãs e a beberem o seu sangue enquadravam-se no padrão
estabelecido pelo Crime da Morte de Deus. Essas falsidades ainda circulam por aí.
Sem o encobrimento, sem aquele pedaço de pano, teria sido evidente para toda a
gente que o que se passou no Calvário foi também o assassinato de um judeu. Deus
era judeu. Não era tanto o facto de os Judeus matarem Deus, mas o de um judeu
derramar o seu sangue pelo pecado do mundo. Teriam os cristãos ao longo dos séculos
instituído pogroms contra os Judeus em nome da Cruz se nela Jesus ostentasse a
marca da circuncisão? Teria um judeu autorizado o massacre de Judeus? Não seria
natural que Jesus estivesse presente em todos os pogroms a dizer: «Por que me
perseguis? Porque o que fazeis ao mais humilde dos meus irmãos, fazei-lo a mim»?
Esse encobrimento, agora com quase vinte séculos, não foi perpetrado por uma seita
dissidente, mas pela linha principal da Cristandade, pela Santa Igreja Católica
Apostólica Romana. Nenhuma outra doutrina foi ensinada mais universalmente, com
menos reservas — mais infalivelmente, em termos católicos — do que a que reza que
«Os Judeus são malditos por matarem Deus», uma acusação ainda não retirada
oficialmente. Numa reviravolta bizarra, os Judeus, donde proveio o Salvador, foram os
únicos culpados pela sua morte. Não foi Jesus que foi recrucificado, mas a raça donde
ele proveio.
No Terceiro e Quarto Concílios de Latrão (1179 e 1215), a Igreja codificou todas as
leis anteriores contra os Judeus. Eles tinham de usar um distintivo da vergonha. Na
Inglaterra era cor de açafrão, e com o alegado formato das tábuas de Moisés. Na
França e na Alemanha era amarelo e redondo. Na Itália o distintivo era um chapéu
vermelho, até que um prelado romano míope tomou um judeu por um cardeal e a cor foi
mudada para o amarelo. Aos Judeus era proibido todo o contacto com cristãos, a
administração estava-lhes vedada e as suas terras eram-lhes confiscadas, não podiam
ser proprietários de lojas e eram arrebanhados para guetos que à noite eram fechados.
Nenhum outro sistema de apartheid foi imposto com tanto rigor. Por se recusarem a
negar a sua fé ancestral e a converterem-se ao Cristianismo, os Judeus foram
enxotados de terra para terra. Um papa deu-lhes um mês para abandonarem as suas
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casas na Itália, deixando-lhes apenas dois locais de refúgio. Durante as Cruzadas, eles
foram chacinados aos milhares por devoção a Cristo. Um judeu que pusesseo nariz de
fora na Sexta-feira Santa estava virtualmente a cometer um suicídio, isto apesar de o
Homem na Cruz ter um nariz judeu. Assim, ao longo dos séculos foram milhões os que
sofreram e morreram. Uma arte deficiente e uma teologia desastrosa prepararam o
caminho para Hitler e a sua «solução final».
Para começar, na Alemanha Nazi pintavam estrelas nas casas e lojas de judeus; era
o sinal de que podiam ser destruídas e pilhadas. As cidades gabavam-se, tal como
tinham feito nos tempos medievais, de estarem Judenrein, livres da contaminação judia.
Muito tipicamente, nos arredores da aldeia de Oberstdorf havia umas alminhas à borda
da estrada com um crucifixo. Sobre a cabeça de Jesus estava a inscrição INLI («Jesus
da Nazaré, Rei dos Judeus»). Em primeiro plano lia-se um aviso: «Juden sind hier nicht
erschwüncht» — «Os judeus não são benvindos aqui.»
Em 1936, o Bispo Berning de Osnabrüch esteve a falar com o Führer durante mais de
uma hora. Hitler assegurou a Sua Reverência que não havia qualquer diferença
fundamental entre o Nacional Socialismo e a Igreja Católica. Não é verdade,
argumentava ele, que a Igreja tinha considerado os Judeus como parasitas e os tinha
fechado em guetos? «Eu só estou a fazer» gabava-se ele «o que a Igreja fez durante
mil e quinhentos anos, só que com mais eficácia». Sendo ele próprio católico, disse ele
a Berning, «admirava e queria promover a Cristandade».
Parece que nunca lhe ocorreu a ele, Hitler, que Jesus, a quem ele se referiu em Mein
Kampf como «o Grande Fundador deste novo credo» e o flagelo dos Judeus, era ele
próprio judeu; e se de facto nunca lhe ocorreu, por que não? A partir de Setembro de
1941, todos os judeus do Reich com mais de seis anos tinham que usar em público, em
sinal de vergonha, a Estrela de David. Por que é que Hitler não obrigou a que na tanga
de todos os Cristos crucificados em exposição no Reich fosse afixada essa mesma
Estrela de David? Teria ele sido tão veemente a promover a sua qualidade de cristão se
só uma vez que fosse tivesse visto Cristo crucificado exactamente como ele era?
Suponhamos que Jesus aparecia nu em todas as cruzes da Alemanha? Teriam os
bispos alemães e Pio XII mantido o silêncio durante tanto tempo se tivessem o seu
Senhor crucificado sem a tanga?
Apesar da crueldade cristã, que em certa medida preparou o Holocausto, alguns
católicos continuam a dizer que a sua Igreja nunca pecou.
Quinze anos depois de os portões de Auschwitz, Bergen-Belsen, Dachau,
Ravensbruch e Treblinka terem sido misericordiosamente abertos, um papa, João XXIII,
como que para confundir os críticos que dizem que o papado nunca muda, compôs esta
notável oração: «A marca de Caim está-nos estampada na testa. Ao longo dos séculos,
o nosso irmão Abel tem estado banhado em sangue que nós derramámos e tem
chorado as lágrimas que nós provocámos ao esquecer o Vosso amor. Perdoai-nos,
Senhor, pela maldição que nós erradamente atribuímos ao seu nome de Judeus.
Perdoai-nos por Vos crucificarmos pela segunda vez na sua carne. Porque nós não
sabíamos o que fazíamos.»
Foi uma expiação por mais de uma centena de documentos publicados pela Igreja
entre os séculos sexto e vinte. Não há um único decreto conciliar, encíclica papal, Bula
ou directiva pastoral que sugira que o mandamento de Jesus «Ama o próximo como a ti
mesmo» se aplicava aos Judeus. Contra toda esta tradição, João o Bom apontou a
marca de Cain na sua própria testa. Ele aceitou a culpa da Igreja de derramar sangue
judeu ao longo dos séculos, de acusá-los de serem amaldiçoados por Deus. E ainda
mais comovidamente, afirma que a perseguição dos católicos aos judeus resultou na
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segunda crucificação de Jesus na carne do seu próprio povo. O papa, representante de
uma igreja sagrada e infalível, pediu perdão por estes terríveis pecados e erros. A nossa
única desculpa, disse ele, foi a ignorância.
Antes de se tornar Sumo Pontífice, João já tinha sido delegado apostólico para a
Turquia e Grécia, quando Hitler subiu ao poder. Emitiu certificados de baptismo falsos
para quatro mil judeus para eles poderem afirmar-se como cristãos e assim escaparem
ao Holocausto. Quando a guerra acabou e ele foi nomeado núncio em Paris, foi a um
cinema ver as primeiras imagens dos sobreviventes do campo de morte de Belsen. Saiu
em lágrimas dizendo, «Isto é o Corpo Místico de Cristo». Foi talvez esta traumática
experiência que fez com que ele fosse o primeiro papa a ver Jesus na cruz sem o pano
à volta da cintura.
O Papa João não teve qualquer dificuldade em reconhecer que a Igreja errou. Errou
desastrosamente — e errou ao longo de muitos séculos. Foi um dos raros pontífices
que viram que o único caminho da Igreja era encarar sem medo o próprio passado, por
muito pouco cristão que ele pudesse ter sido. Quase um quarto de século depois da sua
morte, ainda há alguns crentes que insistem que a Igreja deve ter sido sempre aquilo
que é hoje — a despeito das provas irrefutáveis em contrário. Esses, que são milhões,
acham que não é fácil aceitar que a Igreja Cristã, a Igreja de Roma, inspirada por
papas, muitos deles canonizados, tenha sido tão cruel. Nem que pontífices após
pontífices tenham quase invertido o texto das Escrituras que diz «Vale mais um homem
morrer por amor do povo» que passou a ler-se, «Vale mais um povo sofrer por amor de
um homem». Há, tragicamente, um inegável elo entre o fogo, as cruzes, a legislação
papal, os pogroms — e as câmaras de gás e os fornos crematórios dos campos de
morte nazis.
Há outras matérias vitais nas áreas do poder, da verdade e do amor sobre as quais a
Igreja errou desastrosamente século após século. O Concílio Vaticano II convocado
pelo Papa João em 1962 começou a aceitar isto. De uma maneira revolucionária, João,
o Sumo Pontífice, tornou-se o Advogado do Diabo da própria Igreja.
No processo de canonização, o Advogado do Diabo tem um papel central, porque a
santidade de um candidato a santo tem de ser sujeita ao mais intenso escrutínio. É
como se a Igreja deixasse Satanás completamente livre para atirar sobre a memória do
santo toda a sujidade que possa encontrar — para ver se alguma cola. Só então é que
esse homem, essa mulher ou essa criança serão dignos de veneração pública. Claro
que o Advogado do Diabo é, na realidade, o defensor da Igreja.
Quando o Papa João disse que a Igreja precisa de constantes reformas, parecia
sugerir que precisa de um Advogado do Diabo permanente. Como historiador que era,
ele sabia que a Igreja tinha causado muitos danos. Como ser humano afectuoso e
indulgente, sabia que qualquer outra instituição que durasse tanto tempo e tivesse tanto
poder teria provavelmente feito muitíssimo mais mal e muitíssimo menos bem.
Finalmente, ele deixou atrás de si a clara impressão de que o mal feito pela sua Igreja
não deve ser escamoteado, nem a história falsificada.
Primeira Parte
O Poder
«Todo o poder tende a corromper; o poder absoluto corrompe absolutamente»
Lord Acton, em carta ao Bispo Mandell Creighton, 1887
19
1
Do Calvário ao Vaticano
Nesta grande festividade de Pedro e Paulo, o dia vinte e nove de Junho, vieram
todos, novos e velhos, pecadores e santos, de todos os cantos do mundo, para estarem
com o Bispo de Roma, Vigário de Cristo, Sucessor dos Apóstolos, Sumo Pontífice da
Igreja Universal, Patriarca do Ocidente, Primaz da Itália, Arcebispo e Metropolita da
Província de Roma, Chefe de Estado da Cidade do Vaticano e Servidor dos servidores
de Deus, o Papa João Paulo II. Alguns peregrinos vêm vestidos em tons escuros, outros
com vistosos trajos folclóricos das suas terras. Há também turistas entre eles, mas a
maioria são peregrinos. Uma visita a Roma e assistir a uma missa papal são a
realização de uma ambição de uma vida.
Antes do amanhecer, começaram a sair da colmeia que Roma é. Emergiram dos
caros hotéis de luxo da Via Veneto, de tranquilos conventos e pensões baratas.
Na sua curta viagem passaram porvivendas a cair, palácios renascentistas cujas
enormes portas tachonadas dão a impressão de que os seus donos se estão a preparar
para uma nova invasão de Godos e Vândalos. Atravessam piazzas com fontes a
borbulhar, mal identificando as quatrocentas igrejas de Roma, muitas das quais só se
encontram abertas um dia por ano, o dia da sua festividade. Atravessam o Tibre, que
durante séculos serviu à cidade simultaneamente de esgoto e de cemitério. O Tibre
contabilizou provavelmente mais mortes do que qualquer outro rio fora da China; num
só dia morreram lá milhares afogados. Esta manhã corre devagar e está acastanhado
como o hábito dos franciscanos.
Finalmente, os peregrinos chegaram à Via della Conciliazione, de cujo extremo se
desfruta uma das vistas mais impressivas do mundo. À luz trémula do calor de verão, a
cúpula da Basílica de S.Pedro parece flutuar no espaço. Miguel Ângelo, que a
desenhou, exprimiu, mais do que qualquer papa, a força maciça e pertinaz da maior
instituição que o mundo alguma vez conheceu. Ela preservou a velha herança. Deu às
hordas bárbaras uma nova religião e uma lei. Criou a Europa, dando a povos diversos
uma lealdade e um destino que ultrapassam todas as fronteiras. Como disse Lord
Macauley há mais de um século, ao reflectir sobre a Igreja de Roma:
Já era grande e respeitada antes de os saxões porem o pé na Grã-
Bretanha, e de os franceses passarem o Reno, quando a eloquência
grega ainda florescia em Antióquia, quando em Meca ainda se
adoravam os ídolos. E talvez ainda exista com o mesmo vigor
quando um qualquer viajante da Nova Zelândia, no meio de vasta
solidão, tomar posição num arco quebrado da Ponte de Londres
para fazer um esboço das ruínas da Catedral de S. Paulo.
Enquanto entram na Praça de S. Pedro, rodeada pela pavorosa arcada de Bernini, os
fiéis observam a janela do terceiro andar do palácio apostólico de onde o papa, aos
domingos ao meio-dia, abençoa a multidão. Poucos sabem como o palácio é vasto.
Quando um envelhecido Leão XIII queria dar um passeio pelos jardins do Vaticano,
sentava-se numa pequena cadeira no seu gabinete. Depois os criados levavam-no por
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uma escada de caracol, ao longo de um labirinto de corredores, através de salas e
galerias cheias de alguns dos maiores tesouros do mundo, num percurso de mais de
quilómetro e meio dentro do palácio para chegar até uma carruagem puxada a cavalos.
Quarenta anos depois da morte de Leão XIII o Vaticano foi profanado. As únicas
bombas lançadas sobre a cidade eram de fabrico britânico. Numa noite sem lua, durante
a Segunda Guerra Mundial, um avião alemão lançou quatro bombas capturadas em
Tobruk, para fazer crer que os Aliados tinham atacado o mais sagrado santuário
católico.
Embora o Vaticano tenha apenas o tamanho de um campo de golfe, os peregrinos
ficam esmagados diante da extensão daquilo que os circunda. No centro da praça está o
obelisco de Calígula de 322 toneladas e 40 metros de altura, que originalmente se
encontrava no circo de Nero junto do local onde S.Pedro foi crucificado. Este
monumento fá-los lembrar que estão em solo sagrado.
Subindo os degraus de pedra, chegam ao pórtico. É também enorme e cheio de
história. À direita fica a Porta Santa, agora selada, uma vez que este não é Ano de
Jubileu. Por cima do arco central, está uma representação do Navicella, o frágil barco de
S.Pedro que resistiu às intempéries dos tempos. Este fragmento de mosaico, que
sobreviveu à demolição da primeira Basílica de S.Pedro, foi obra de Giotto, o artista do
século XIII que impressionou o papa reinante por ser capaz de desenhar um círculo
perfeito à mão livre. Em frente da porta central, está colocado um disco porfitírico que
assinala o local onde Carlos Magno, no dia de Natal de 800, depois de subir os degraus
de joelhos, beijando cada um deles, ajoelhou e recebeu de Leão III a coroa do Sacro
Império Romano.
Afastando as pesadas cortinas de couro, os fiéis entram na basílica. Mesmo num dia
cinzento, uma luz dourada escorre das altas janelas. O chão de mármore de várias
cores cobre uma extensão de 24.000 metros quadrados. A nave tem 182 metros de
comprimento e 24 de largura, e no topo, mais altas do que qualquer palácio de Roma,
erguem-se as colunas espiraladas de Bernini.
As colunas coríntias, ornamentadas neste dia das festividades dos Apóstolos de
colgaduras no vermelho do martírio, sustentam uma abóbada amarela de 40 metros de
altura. As pias de água benta são do tamanho de banheiras e os anjos sobre elas têm
1,80 metros de altura. Para a esquerda e direita há estátuas gigantescas e capelas do
tamanho de igrejas. A mais apreciada obra de Miguel Ângelo, a Pietà, que ele esculpiu
quando tinha vinte e cinco anos e que é a única que tem o seu nome, ergue-se por
detrás de um vidro protector. Há túmulos de papas a que os escultores deram anos das
suas vidas. Chateaubriand, o escritor francês que viveu a Revolução, anotou nas suas
Memoires que em Roma há mais túmulos do que cadáveres; e imagina os esqueletos a
mudar de um túmulo de mármore para outro para se manterem frescos, tal como um
doente se mudaria de uma cama para outra mais confortável.
No topo da nave lateral esquerda há um altar sob o qual jaz o corpo do Papa Leão o
Grande. Um dos mais nobres papas, ele foi o primeiro a ser sepultado na Basílica de
S.Pedro no ano de 688. A partir de então instalou-se o costume de construir mais do que
um altar nos locais de oração. Agora, a Basílica de S.Pedro, mais do que qualquer outra
igreja do mundo cristão, está cheia de altares.
No topo da abside encontra-se a gigantesca Cadeira de S.Pedro, de bronze dourado,
sustentada por efígies de quatro Doutores da Igreja.
A decoração cobre uma vulgar cadeirinha, tipo liteira, que data pelo menos do século
II. Este é provavelmente o mais antigo dos tronos. A “Cadeira dentro da Cadeira” foi
vista pela última vez na Festividade dos Apóstolos em 1867. O que se viu foi uma peça
21
de carvalho gasta e lascada com retalhos de madeira de acácia e enfeitada com figuras
de marfim, algumas de cabeça para baixo.
Dando uma volta para a direita, da abside para a nave, os peregrinos chegam à
famosa estátua de bronze de S.Pedro. Nesta altura, na festa dos santos, ela está
paramentada com um manto de brocado dourado e coroada com uma tiara enfeitada de
jóias. A superfície do pé direito estendido está gasta e macia dos beijos de todos os
outros peregrinos que os antecederam. É uma lembrança de tempos bastante recentes
em que o papa nas audiências era obrigado a pôr o pé numa almofada própria para os
visitantes o beijarem.
Em 26 de Setembro de 1967, Paulo VI, já com a morte espelhada no rosto, veio aqui,
qual passarinho condenado, antes da abertura do primeiro Sínodo dos Bispos. Colocou
uma vela acesa no chão e depois, envolto numa nuvem de incenso, inclinou-se para
beijar o pé da estátua. Muitos pontífices devem certamente ter feito o mesmo, vindo orar
na Vigília de Pedro e Paulo no santuário do Príncipe dos Apóstolos.
* * *
Na capela do Abençoado Sacramento, prepara-se a procissão papal. A viagem de
João Paulo foi a mais curta de todas; veio apenas do seu gabinete no terceiro andar do
palácio. Contudo, em muitos aspectos, ele viajou mais nos últimos minutos do que
qualquer outra pessoa. Deixou os assuntos de Estado, os problemas da Cidade do
Vaticano, e assumiu o papel de que mais gosta: o de chefe da Igreja. Por momentos,
pode incluir as preocupações da igreja nas suas orações. Ninguém melhor do que ele
sabe que entre aquela multidão ali reunida e de que ouve murmúrios há muitos
membros do seu rebanho que andam desorientados. Os padres andam em conflito com
os seus bispos, as freiras com as madres superioras; os leigos andam mais do que
nunca activos contra os ensinamentos morais da Igreja. Nenhum papa foi tão adulado e
tão pouco obedecido. Nestes tempos tão sagrados, ele concentra-se no seu papel de
Pastor da Igreja Universal.
Os membrosdo seu séquito multicor — prelados, camareiros, príncipes da igreja,
Guardas Suíços — atarefam-se a compor a procissão pela ordem que o protocolo
estabelece, fazendo os ajustes finais nos seus uniformes. Paulo VI acabou com toda a
agitação de penas, aparato militar, armas desembainhadas. Mas as armas estão lá na
mesma. Diferentemente de qualquer outro papa, à volta do Papa João Paulo andam os
membros vestidos de azul do Ufficio centrale di vigilanza. Eles constituem o corpo de
segurança efectivo da pequena cidade-estado. Não só andam armados como também
têm ordens para atirar a matar no caso de a vida do papa estar em perigo. Os walky-
talkies, sob os casacos, estão ligados aos quartéis-generais da polícia da cidade de
Roma e às repartições da Digos, a brigada anti-terrorista italiana. Na linguagem da
segurança, o papa é irreverentemente referido como “Il Bersaglio“ (“O Alvo”).
Finalmente, ao som de trombetas, o pontífice avança a passos largos pela nave
abençoando a multidão de pescoço estendido. Os fiéis não reparam nos bispos vestidos
de branco, nos cardeais geminados ou nos monsenhores vestidos de púrpura. Só têm
olhos para o papa com o solidéu branco, o homem que chefia uma igreja de quase um
bilião de fiéis, 4000 bispos, 400000 padres e um milhão de freiras.
Embora estejam alegres na basílica, embora ajoelhem e batam palmas e desfaleçam
e mesmo as freiras de mais idade esqueçam pela primeira vez em anos as suas
inibições, todos eles sentem que ele está concentrado no Outro, no Deus que ele
representa na terra e a única entidade a quem tem de prestar contas. O papa não é
nenhum ídolo pop, mas o vigário de Cristo, e, logo abaixo de Cristo, essencial para a
22
salvação. No meio de ondas e mais ondas de adulação, flashes e o coro da Capela
Sistina que mal se ouve a cantar Tu es Petrus, «Tu és Pedro», o papa chega ao altar-
mor. O seu séquito dispersa-se tomando os seus lugares em cadeiras menores. Os
homens da segurança desaparecem nas capelas laterais. O papa está agora só, em
todos os sentidos. Sempre assim foi com os pontífices romanos, mas nenhum esteve
jamais tão só e vulnerável como João Paulo II.
 Nas listas do Vaticano ele é considerado como o 263º pontífice, mas o número não
está correcto. Houve alturas em que ninguém sabia quem era o papa de direito de entre
diversos reclamantes. Além disso, só no ano de 1073 é que o Papa Gregório VI proibiu
os católicos de chamarem papa a alguém para além do Bispo de Roma. Antes disso,
muitos bispos eram carinhosamente chamados de «papa» ou «papá». Mesmo o título
«Bispo de Roma» tem hoje um peso dignitário que nem sempre teve. Um chefe ou
administrador de uma inicialmente pequena comunidade cristã dificilmente se pode
comparar com um bispo moderno em poder e jurisdição. Muitas outras coisas estão
também longe de estar claras.
Por exemplo, quanto tempo é que Pedro viveu em Roma? Há um relato de fins do
século IV segundo o qual ele teria lá vivido durante vinte e cinco anos, mas não há
qualquer fundamento histórico para isto. O que se sabe é que cerca do ano 58, Paulo o
Apóstolo escreveu mais uma das suas cartas, desta vez aos romanos. Nela saudava
famílias inteiras e mencionava vinte e nove pessoas individualmente pelo nome. Mas
não saudava Pedro. Isto seria certamente uma omissão surpreendente se Pedro lá
estivesse a residir e fosse o Bispo de Roma. E mais, Eusébio de Cesareia, reconhecido
como o Pai da História da Igreja, ao escrever sobre o ano de 300, dizia: «Diz-se que
Pedro pregou aos Judeus por todas as terras de Pôncio, Galateia, Bithnya, Capadócia e
que, para o fim dos seus dias, detendo-se em Roma, foi crucificado».
 Hoje, os historiadores dizem que Pedro teria vivido em Roma durante três ou quatro
anos no máximo. Não há qualquer testemunho que indique que ele tivesse chefiado
aquela comunidade. Isso não pode ter sido automático. Ele nem sequer tinha sido bispo
em Jerusalém depois da morte de Jesus. Jaime, irmão do Senhor, é que o foi. Depois há
este facto surpreendente: nas primeiras listas de bispos de Roma o nome de Pedro
nunca apareceu. Por exemplo, Ireneu, Bispo de Lyons de 178 a 200, foi discípulo de
Policarpo, Bispo de Esmirna, que foi por sua vez discípulo de Paulo o Apóstolo. Ele
enumerou todos os bispos de Roma até ao décimo segundo, Eleutério. Segundo Ireneu,
o primeiro bispo de Roma não foi Pedro nem Paulo, mas Lino. A Constituição Apostólica
de 270 também mencionava Lino como o primeiro bispo de Roma, nomeado por
S.Paulo. Depois de Lino foi Clemente, escolhido por Pedro. O mistério adensa-se. Em
todos os seus escritos, Eusébio nem uma só vez fala de Pedro como Bispo de Roma.
Como é que isto se pode explicar? Parece que no espírito dos primeiros
comentadores cristãos os apóstolos constituíam uma classe à parte. Não pertenciam a
nenhuma igreja em particular, nem mesmo quando eles a «plantavam», isto é, quando a
fundavam, como Paulo fez por toda a Ásia Menor. Os apóstolos pertenciam a toda a
Igreja. Ser apóstolo impossibilitava um homem de ser bispo de um só lugar. Também
Pedro, fossem quais fossem as momentosas decisões que tomou em Jerusalém,
Antióquia ou fosse onde fosse, continuava a ser um apóstolo de toda a comunidade. A
Igreja Católica considerou uma questão de fé que os papas fossem os sucessores de
Pedro como Bispo de Roma. Mas Pedro nunca teve esse título; apenas lhe foi atribuído
alguns séculos depois da sua morte. Naturalmente que ele deve ter tido uma enorme
autoridade moral na comunidade judaico-cristã de Roma, mas ao contrário de Paulo,
que era um cidadão romano, deve ter sido considerado estrangeiro. Quase dois mil anos
23
mais tarde, outro estrangeiro, um homem de um país distante, senta-se naquilo a que se
chama a Cadeira de Pedro, enquanto a toada de um motete de Palestrina se eleva na
cúpula.
* * *
Já se passaram quase dez anos desde que Karol Wojtyla de Cracóvia se tornou
pontífice quando o primeiro João Paulo morreu, muito chorado, depois de trinta e três
dias de reinado. Depois da eleição, Albino Luciani apareceu na galeria da Basílica de
S.Pedro e em poucos segundos sorriu mais do que o seu antecessor Paulo VI em
quinze anos, e depois, profeticamente, sem dirigir uma só palavra à multidão,
desapareceu nas sombras do Vaticano.
Diz a anedota, em Roma, que a mais velha, a mais secreta e a mais poderosa das
instituições é a Sagrada Congregação para a Disseminação de Boatos. Acredita-se em
alguma coisa na Cidade Eterna que não seja dito num sussurro? Correu o boato de que
João Paulo I tinha sido envenenado. Coisas deste tipo sempre se disseram durante
séculos quando um pontífice adoecia e morria subitamente. Muitos destes boatos eram
falsos. Mas nem todos.
No dia 27 de Julho de 1304, ao fim de nove meses de reinado, Benedito XI estava em
Perugia quando um jovem disfarçado de irmã da Ordem de S.Petronilla se apresentou a
Sua Santidade com uma salva de prata cheia de figos. «É um presente da Madre
Abadessa,» murmurou a recatada “irmã“. Toda a gente sabia que Benedito tinha uma
paixão pelos figos. Poucos dias depois, era enterrado.
Fosse este ou aquele boato verdadeiro ou não, o facto é que os papas eram sempre
aconselhados a empregar um provador de vinhos e a inspeccionar os figos. Mas no caso
do antecessor de João Paulo II onde está a prova? Uma autópsia teria esclarecido o
assunto. E apesar das negações, provavelmente houve uma autópsia que o fez. Sobre
assuntos destes o Vaticano mantém sempre os lábios bem cerrados.
No conclave que se seguiu à inesperada morte de Luciani em 1978, foi eleito Karol
Wojtyla. Quando foi entronizado parecia mais jovem do que os cinquenta e oito anos que
tinha. Agora parece mais velho do que os sessenta e sete que tem. Os ombros estão
mais arredondados. Está mais magro, tem as veias do pescoço salientes. Os olhos
ficaram mais estreitos traindo a sua origem eslava. Como o cabelo ficou para trás sob o
solidéu, as orelhas tornaram-se proeminentescomo quando era um rapaz.
Muitas coisas contribuíram para o envelhecer. As penosas viagens. O atentado contra
a sua vida em 13 de Maio de 1981, que quase foi bem sucedido, tendo sido necessária
uma transfusão de seis quartilhos de sangue numa operação de cinco horas e meia. Os
papeis que se amontoam todos os dias sobre a sua secretária — «Para livrar o papa de
qualquer maldade» como dizia um seu ajudante. E a Cúria. Um papa e os seus
funcionários sobrevivem, no melhor dos casos, num compromisso nada fácil. A Cúria
tem em João Paulo um pontífice que a princípio nada sabia das suas artimanhas.
Os sussurros — outra vez essa poderosa Congregação — chegam até às suas
instalações. Os poucos prelados liberais que sobreviveram em Roma não gostam dele
por causa daquilo a que eles chamam a sua intransigência.
Alguns conservadores da sua entourage nesta grande festividade dos Apóstolos são
também muito críticos. Aos seus olhos, João Paulo fez uma coisa que é quase uma
heresia: desmitificou o papado. Fotografias nos meios de comunicação revelam um papa
mediático de sombrero, um papa de mãos dadas com jovens a balançar-se ao som de
música rock, um papa na Austrália abraçado por um coala meio confundido. Porquê,
perguntam estes conservadores, por que é que ele não se deixa estar no Vaticano
24
mantendo um perfil de mistério e temor, como o velho Leão XIII, que foi suficientemente
sensato para olhar o mundo através de uma janela — uma janela fechada, ao contrário,
acrescentam eles, daquele cripto-comunista João XXIII que abriu a janela e deixou
entrar um furacão?
O papa está acima desse tipo de conversas. Tem os olhos bem fechados enquanto
reza por todo o seu rebanho, não só por aqueles que estão reunidos em S.Pedro, mas
também por todos os que se encontram espalhados pelo mundo. Está convencido de
que só a sua voz, a voz de Pedro, a voz de Cristo, é suficientemente forte para deter a
precipitação do mundo moderno no lago da morte. Fica aterrado perante a insensível
indiferença em relação aos vindouros. Fica consternado por a virgindade ser quase um
palavrão e a homosexualidade se ter tornado não apenas legal, mas romântica. Teme
que mesmo os padres e as freiras estejam a perder a dedicação aos seus votos.
Enquanto o Evangelho é lido por um diácono, ele sabe que é a Pedra, ele, pelo menos,
tem de se manter firme. Os erros podem ser corrigidos, as tendências invertidas,
bastando para isso que a sua fé não lhe falte.
Agora os seus olhos estão húmidos, a dor orla-lhe a boca. Nestes dias, a sua
expressão é triste mesmo quando, cada vez mais raramente, sorri, como se a tristeza da
sua Polónia natal lhe tivesse inundado a alma. No memento de todas as missas ele
nunca deixa de mencionar os vivos e os mortos da sua pátria.
Como é polaco, nunca esperou ser papa. Nem mesmo quando foi feito cardeal em
1964, nem quando Paulo VI o escolheu em 1976 para o retiro quaresmal da casa papal
ele alimentou esse pensamento. Isso era contra a corrente da história. Há quatro
séculos e meio que o papado era italiano. Durante esse retiro quaresmal, Karol Wojtyla
ouviu o Papa Paulo em confissão e sem dúvida que fez os possíveis por fortalecer a sua
determinação, mas como é que ele podia imaginar que um dia viria a celebrar missa
solene em S. Pedro como Sumo pontífice? Os seus antecedentes: operário fabril,
alpinista, actor amador, resistente espiritual contra o nazismo e, mais tarde, contra o
comunismo, sonhador, poeta nas horas vagas. Um dos seus poemas, “O Operário da
Fábrica de Armamento”, começa assim: «Eu não posso influenciar o destino do mundo».
Os fiéis reunidos à sua frente, pelo contrário, pensam que a sua influência para o bem
do mundo é a maior. A sua integridade ilumina. Eis aqui um homem que não se pode
comprar ou vender, um prelado à maneira de Thomas à Becket que preferiu morrer a
ceder nas exigências da igreja. Da sua figura, quando se dirige para o altar para iniciar a
missa, irradia um sentido de majestade.
João Paulo é o último dos monarcas absolutos. Os católicos em S.Pedro, que agora
ficaram em silêncio, não aceitariam outra coisa. Ele é o oráculo supremo, Senhor da
Igreja, Vigário de Cristo. Para eles, ele possui o dom da infalibilidade, que é pouco
menos do que divino. Conforta-os a ideia de saberem que de todos os religiosos na
Terra — Judeus, Hindus, Protestantes, Budistas — Deus fala para eles uma linguagem
especial através de Sua Santidade. Dele flui a sua vida espiritual; como chefe da Igreja,
ele é o laço que os une a Deus e uns aos outros. Muitos pensam, porém erradamente,
que a sua fé deriva dele e que os bispos dele derivam o seu poder. Não são poucos os
não católicos em S.Pedro para esta missa festiva que também sentem que o Papa João
Paulo II é o melhor baluarte do mundo contra o comunismo ateu de Leste e o muito
espalhado e mais subtil ateísmo de um Ocidente secularizado.
O papa diz as palavras da missa em voz baixa mas clara. Cada gesto está de acordo
com as rubricas do missal, porque ele sabe que se se afastar delas, os padres em toda
a parte vão decidir fazer alterações da sua lavra. Enquanto ele prossegue, os fiéis na
basílica interrogam-se sobre como João Paulo se verá a si mesmo. Em certo sentido,
não é difícil saber. Apesar das suas viagens, das suas intermináveis alocuções, mesmo
25
depois do Vaticano II — talvez por causa do Vaticano II — ele compreende que este
cerimonial em S.Pedro não é a verdade toda sobre a igreja que ele chefia. Quando pára
para lembrar os vivos, o seu muito disperso rebanho, a sua oração é influenciada por
todas aquelas estatísticas desanimadoras empilhadas sobre a sua secretária.
 Os padres são a primeira preocupação do pontífice. Em 1971, uma fuga de
informação levou até à imprensa um estudo encomendado pela Sagrada Congregação
para a Fé. Revelava que entre 1963 e 1969 mais de 8000 padres tinham pedido
dispensa dos seus votos e quase mais outros 3000 não tinham esperado pela
permissão. O estudo estimava que nos cinco anos seguintes 20000 abandonariam. Este
cálculo veio a mostrar-se demasiado optimista.
O pior passava-se nos países em que os papas confiavam para fornecer missionários.
A Holanda, por exemplo, costumava produzir mais de 300 padres por ano. Agora as
ordenações são lá quase tão raras como as montanhas. Na Irlanda, nos fins de 1987,
havia 6000 padres e mais de 1000 ex-padres. Nos Estados Unidos da América, calcula-
se que existam mais de 17000 ex-padres. A média de idades dos que ficaram é
surpreendentemente alta: 54 anos. Também o futuro parece negro. Nos últimos vinte
anos, o número de seminaristas nos Estados Unidos caiu de 50000 para 12000.
O pontífice reza pelos leigos com as suas variadas preocupações. Reza pelos
presentes e por aqueles que, por todo o mundo, começaram a desfilar a sua
desobediência. Antes da sua viagem à América, em Setembro de 1987, deve ter lido a
sondagem da revista Time. Ela revelava que 93% dos católicos defendiam que «é
possível discordar do papa e continuar a ser um bom católico». Mesmo na Irlanda, uma
sondagem da mesma altura mostrava que só um em cada três jovens concordava com
ele sobre a contracepção. Todos os indicadores apontam para uma comunidade mundial
em retirada napoleónica. A igreja continua a ensinar, mas cada vez há menos pessoas a
ouvir.
A missa devia dar ao pontífice uma trégua nas preocupações e na sobrecarga do
governo. Em certo sentido, ela aprofunda essas preocupações. Ele tem que deixar que
Jesus, cujo sacrifício vai comemorar, o alivie desses fardos. À medida que a
consagração se aproxima, talvez o espírito de João Paulo regresse ao passado, à sua
infância em Wadowice quando ajudava no altar e aprendeu os responsos da missa em
latim. Nesses tempos, Catolicismo é que era a palavra do papa. É desanimador para ele
descobrir que, agora que é o pontífice, em muitas matérias que considera cruciais está
em minoria.
Esta a razão por que nesta missa papal ele não vê oscardeais magníficos, quais
flamingos à sua volta, os prelados, como Ratzinger de Munique, de cabelo branco,
Prefeito, desde 1982, da Congregação para a Fé, antigamente chamada de Santa
Inquisição. O papa também não dá pelas manchas vermelhas e purpúreas dos mantos
prelatícios de todos os graus. Não se dá ao trabalho de olhar para as tribunas apinhadas
de embaixadores, personagens reais obscuras e ainda mais obscuros príncipes e
princesas num esplendor de ouro e diamantes.
Ele não vê ninguém; e ninguém vê mais ninguém senão a ele.
«Este é o meu corpo». O papa pronuncia estas palavras com esmagadora devoção,
tão cheio de temor religioso hoje como quando as pronunciou na sua primeira missa há
quarenta anos. «Este é o meu sangue». Agora já não é o Vigário de Cristo mas o próprio
Cristo o centro de convergência da congregação silenciosa.
É assim em todas as missas, quer seja dita na mais humilde igreja de aldeia ou numa
basílica como a de S.Pedro. Jesus Cristo é o Senhor; e o papa representa-o a ele e à
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sua autoridade doutrinal no mundo de hoje. Não tem a congregação razão em ver o
papa como a pessoa mais livre e mais soberana do mundo?
A verdade é que o pontífice é um prisioneiro.
A primeira consequência do absolutismo é que os que estão mais próximos da fonte
do poder inalam o mesmo ar do monarca. No caso do papa, há homens sem rosto,
burocratas, em gabinetes escuros no Vaticano e imediações que providenciam para que
a visão do papa corresponda à deles próprios. Fornecem-lhe informações
seleccionadas; escamoteiam tudo o que possa contradizer uma causa que eles desejam
promover. Estes são os primeiros carcereiros do papa.
O Concílio Vaticano II, 1962-65, pretendia liberalizar a Igreja Romana. Mal acabou
logo os velhos burocratas tomaram o controle; e continuam no controle desde então,
interpretando os decretos liberais de uma maneira iliberal.
Mesmo o Concílio Vaticano I, convocado por Pio IX em 1869 para o declarar infalível,
recusou discutir os projectos de decretos redigidos pela Cúria. Eles não representavam,
diziam os bispos, a fé da igreja, mas apenas uma escola teológica tendenciosa. Mas, no
fim, os burocratas acabam sempre por vencer. Eles permanecem nos seus lugares
enquanto os homens de espírito mais liberal se dispersam. Os funcionários da Cúria,
muitos dos quais estão presentes nesta missa, sempre detestaram os concílios por
ousarem ameaçar a sua infalibilidade. Como disse recentemente um bispo diocesano
amargurado: «A Cúria é um Concílio da Igreja em sessão permanente».
Apesar de toda a sua força aparente, João Paulo continua a assinar os documentos
preparados pelos prelados do Santo Ofício ou da Secretaria de Estado. Alguém sugere-
lhe que um determinado bispo da América do Norte não é muito ortodoxo, na
interpretação que a Cúria faz desta palavra. Não seria prudente mantê-lo sob vigilância?
Depois há aqueles volumosos dossiers do Santo Ofício sobre teólogos como Küng de
Tübigen ou Currant de Washington. E também sobre clérigos prometedores. Onde é que
este padre ou aquele monsenhor se situam em relação a Cristo, a Maria, à prática
frequente da confissão? Já alguma vez se mostraram flexíveis sobre a contracepção? Já
alguma vez tomaram parte em manifestações anti-nucleares? Revelaram simpatias por
Karl Marx? Muitos clérigos empreendedores podem ser permanentemente retidos nas
suas carreiras por uma simples insinuação. Muito do veneno da Cúria é administrado por
via auricular.
Pode-se dizer que neste aspecto o pontífice não é servido de maneira muito diferente
de qualquer outro líder apanhado na teia da função pública. Só que o próprio papa tem
um exército de “observadores” a vigiá-lo a ele.
Um pontífice, mais do que qualquer outro monarca, está prisioneiro do passado. A
congregação pode ver sinais disto mesmo no vestuário do papa. Na mitra, no pálio, no
Anel do Pescador. Não apenas a basílica em si mesma, as famosas relíquias que
contém; mesmo as peças de vestuário mostram que o pontífice está, ele próprio,
prisioneiro da história. Mas a maioria das grilhetas está no espírito.
O pontífice nunca pode falar sem ter em atenção aquilo que os seus antecessores
disseram sobre o mesmo assunto ou assunto relacionado. Em qualquer encíclica papal,
por cada citação bíblica haverá provavelmente uma dúzia de referências a papas
anteriores. Todos os pontífices conduzem com os olhos fixos no espelho retrovisor. Um
passado há muito morto, muitas vezes chamado de tradição, dita o caminho para o
futuro. Um papa morto é mais poderoso do que mil bispos vivos.
«Pax vobiscum», diz o papa. «A paz esteja convosco». Os membros da congregação
abraçam-se e passam este sinal de paz. Mas quem quer que carregue o fardo da
infalibilidade nem sempre pode ser um homem de paz; carrega também uma espada.
Porque não pode, por suposta compaixão, nem uma única vez, cometer, ou correr o
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risco de cometer o mais ligeiro erro na doutrina ou na moral. Tem de ter o cuidado de
não contradizer um pontífice de há sete ou dez séculos. Não admira que a sua Cúria
nem sempre consiga fazer a distinção entre inovação e originalidade.
O Papa João Paulo, de olhos reverentemente fechados, recebe o corpo e o sangue
de Cristo. Por toda a basílica surgem os padres de sobrepliz e estola para distribuírem a
comunhão, o corpo de Cristo, aos fiéis. A própria Igreja é chamada de o corpo de Cristo.
Ao receberem a comunhão, os fiéis ficam em contacto com o seu Senhor crucificado e
ressuscitado e com todos os seus irmãos cristãos, vivos e mortos. Aquela pequena
hóstia liga-os sacramentalmente a toda a história da igreja.
Essa história foi boa e má, cheia de feitos heróicos e de crimes ignóbeis. O pontífice
está prisioneiro mesmo desses crimes. Ele sabe que a Igreja foi responsável por
perseguições aos Judeus, pela Inquisição, por chacinar hereges aos milhares, por
reintroduzir a tortura na Europa como parte do processo judicial. Mas tem de ter cuidado.
As doutrinas responsáveis por essas coisas terríveis ainda escoram a sua posição. Os
métodos podem diferir, os objectivos continuam os mesmos. Todo o mundo tem de ser
levado a reconhecer Cristo e a sua Igreja. Governada e guiada pelo papa, a Igreja
Católica tem a plenitude da verdade, da qual as outras religiões podem, quando muito,
aproximar-se.
João Paulo, a rezar enquanto a comunhão é distribuída, não quer que as pessoas
pensem que a compaixão é incompatível com a inflexibilidade em relação à verdade. A
liberdade de ensinar o que está mal, quanto a ele, é um erro. Como é que alguém pode
ter o direito de ensinar como verdadeiro aquilo que a Igreja diz que não é verdade ou é
imoral? Tal como todos os pontífices, ele tem como certo que onde a Igreja é forte o seu
poder deve ser usado para ilegalizar aquilo que ela condena. Pio IX, proclamado infalível
nesta mesma basílica em 1870, era bastante aberto a este respeito. Nos arquivos do
Foreign Office, em Londres, há uma carta classificada como “confidencial”. Era de Odo
Russel, representante do governo britânico no Vaticano. Relatava o que o papa lhe disse
numa audiência: «Aquela liberdade de consciência e tolerância que aqui [em Roma]
condeno, reivindico eu na Inglaterra e noutros países estrangeiros para a Igreja
Católica». Pio IX estava apenas preocupado com um juízo político: suportaria a Igreja
perder ou ganhar por recusar aos outros a liberdade que exige para si própria?
Pio IX, tal como o actual pontífice, estava convencido de que a Igreja conseguiu
permanecer doutrinariamente imutável através dos tempos. Os fiéis em S.Pedro
partilham essa convicção, acreditando que o papado é que é o principal responsável por
esta continuidade quase miraculosa.
A verdade é que a Igreja mudou radicalmente mesmo em áreas vitais como o sexo, o
dinheiro e a salvação.
Tomemos dois dos exemplos mais interessantes.
Todos os pontífices até ao século dezanove, inclusive, condenavam a cobrança de
juros sobre osempréstimos (a usura) em quaisquer circunstâncias. Não importava se os
juros estabelecidos eram altos ou baixos, se o empréstimo era feito a um pobre
camponês ou a um imperador. Séculos depois de as comunidades de camponeses
deixarem de ser a norma, a Igreja continuou a condenar a cobrança de juros e,
surpreendentemente, nunca retirou a sua interdição. Contudo, hoje o Vaticano tem o seu
próprio banco, fundado em 1942 por Pio XII, o qual foi recentemente o centro de terríveis
escândalos financeiros.
Uma segunda prova de mudança radical diz respeito aos ensinamentos da Igreja.
«Não há salvação fora da igreja». Esta doutrina foi inicialmente formulada para excluir
todos os não baptizados, como os Judeus e os não crentes. Mesmo os bebés de pais
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cristãos que morressem antes de serem baptizados eram tidos como excluídos do Céu.
Hoje João Paulo continua a ensinar que não há salvação fora da Igreja, mas “Igreja” e
“salvação” são interpretadas de uma maneira tão alargada que todas as pessoas de boa
vontade, mesmo os ateus, podem ser salvos. Este truque linguístico evita que os
católicos pensem que houve uma inversão nos ensinamentos tradicionais. Admitir uma
mudança exporia uma parte demasiado grande do passado como um pesadelo. Essa a
razão por que, tal como todos os corpos autoritários, a Igreja Católica se recusa a
admitir que tenha mudado no essencial, mesmo quando isso representa um
aperfeiçoamento.
À parte estes indicadores, basta lembrar que quase todos os documentos do Vaticano
II teriam sido condenados como heréticos pelo Vaticano I. A ortodoxia de uma época
não é a ortodoxia de outra.
A principal desvantagem de uma instituição infalível é que nenhuma afirmação pode
ser retirada, nenhuma doutrina negada, nenhuma decisão moral invertida, mesmo
quando novos argumentos sugerem um exame radical.
 Nada disto preocupa os fiéis em S.Pedro. Eles acreditam que João Paulo é infalível
e, embora não estejam agora a pensar nessa questão, isso influencia o seu amor e
lealdade. Enquanto ele faz as suas orações depois da comunhão, eles vêem-no no altar
com os olhos da fé.
Em frente daquele altar em que só ele diz missa há um espaço oval. É a Confissão ou
o Túmulo dos Mártires. Está iluminado, como todos os dias, por noventa e três
candeeiros de feixe triplo; as paredes e soalhos são cobertos de jaspe, ágata e pórfiro.
Santos como Domingos e Inácio de Loiola, imperadores como Carlos Magno e Frederico
Barbarrossa ajoelharam aqui para honrar Pedro. Porque por baixo dos pés de João
Paulo está sepultado S.Pedro, cujas ossadas consagraram não só esta poderosa
basílica mas também os seus sucessores na Sé de Roma.
Nem uma só pessoa duvida que S.Pedro esteja sepultado nesta igreja que tem o seu
nome. Mas estará de facto?
A Igreja Católica por vezes é dogmática quando estão em causa dúvidas ou pelo
menos reservas. De facto, não há uma resposta simples sobre a questão do lugar onde
Pedro estará sepultado.
Nos primeiros tempos após a morte de Pedro, as suas ossadas foram transferidas por
duas vezes para lugares mais seguros. Quando as coisas serenaram, o corpo foi levado
de volta para o lugar onde Pedro deu testemunho da sua vida. Por cima do túmulo, foi
erigido um pequeno oratório, e, mais tarde, no século IV, foi construída a basílica de
Constantino, que ali ficou durante mil e cem anos.
Poucos dos fiéis em S.Pedro nestas festividades dos Apóstolos sabem que foi há
mais de mil anos que se tomou a decisão de separar as cabeças de Pedro e Paulo dos
respectivos troncos. As cabeças têm estado desde então em S.João de Latrão, que é a
catedral do papa e a igreja-mãe da Cristandade. S.João de Latrão foi também construída
por Constantino junto do palácio de Latrão, que ele outorgou ao Bispo de Roma.
De acordo com as antigas leis de Roma e com os cânones da teologia católica,
conclui-se que Pedro não está realmente sepultado em S.Pedro, mas, juntamente com
Paulo, em S.João de Latrão. O local onde está a cabeça, assim reza a antiga máxima, é
o local da sepultura. Mesmo hoje, a prática pastoral considera a cabeça a parte mais
importante dos restos mortais. No caso de decapitação ou de uma morte com mutilação
é a cabeça que é ungida com a sagrada crisma.
Houve uma ocasião em que a cabeça de Pedro se juntou ao tronco. Em 1241, o
Imperador Frederico II marchou sobre Roma. Muitos cidadãos, desgostosos com o
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comportamento do papado, preparavam-se para escancarar os portões da cidade para
deixar entrar os invasores. O Papa Gregório IX, pouco antes de morrer, teve a ideia de
trazer em procissão as cabeças dos dois grandes apóstolos de Latrão para S.Pedro. A
ideia resultou. Os cidadãos de Roma, compreendendo que se arriscavam a perder não
só a sua herança mas também a sua principal fonte de rendimento, cerraram fileiras e o
perigo foi afastado.
Em 1370, o Papa Urbano V meteu as cabeças em bustos de prata encrostados com
pedras preciosas. Desta maneira, abriu caminho a outro drama.
Em 1438, um veneziano rico estava às portas da morte. Perdida a esperança com os
médicos, rezou a Pedro e Paulo, prometendo que adornaria os seus relicários com uma
pérola de grande valor se recuperasse a saúde. Recuperou e cumpriu a promessa.
Pouco depois, descobriu-se que faltava uma dúzia de pérolas nos relicários, bem como
dois rubis de quarenta e sete e quarenta e oito quilates, uma safira e dois grandes
diamantes. A pérola do veneziano também fora arrancada, provavelmente durante as
próprias festividades de S.Pedro e S.Paulo, quando os relicários estavam em exposição.
Os culpados foram logo descobertos. Dois primos confessaram terem escondido o
fruto da sua pilhagem em casa de um tio.
Tornaram-se motivo de divertimento em Roma. Como ponto alto de uma festança, na
praça de S.João de Latrão, deceparam a mão direita dos jovens antes de os queimarem.
O tio, simples receptador, foi tratado com mais clemência. Depois de agrilhoado com
tenazes em brasa, foi enforcado.
Em 1799, os soldados de Napoleão roubaram os relicários. Meteram ao bolso as
pedras preciosas, incluindo a pérola, mas deixaram as relíquias. Diz-se que estas foram
encontradas com o lacre original intacto. Nada restou a não ser vértebras, um maxilar
com alguns dentes soltos e um pedaço de crânio. Fizeram-se novos relicários e as
cabeças repousam agora no santuário por sobre o altar papal de Latrão. É ali, em
sentido restrito, que ambos os apóstolos estão enterrados juntos. Uma vez que S.João
de Latrão é também «a Mãe e chefe de toda a igreja da cidade e do mundo», era
certamente ali que o Santo Padre devia ter celebrado a missa das festividades de
S.Pedro e S.Paulo.
Há uma razão primordial para que ele não tenha procedido assim.
O papa diz a missa com o tronco de Pedro sob os seus pés. Setenta metros acima da
sua cabeça, há qualquer coisa muito mais importante do que os restos mortais de Pedro:
as palavras do Senhor. Em letras de um metro e meio de altura, à volta da cúpula, está o
mais famoso de todos os trocadilhos: «Tu es Petrus, et super hanc petram aedificabo
ecclesiam meam, et portae inferi non praevalebunt adversus eam» («Tu és Pedro e
sobre esta Pedra construirei a minha igreja, e os portões do inferno não prevalecerão
sobre ela»). Os eruditos assumem que no aramaico original o trocadilho era perfeito:
Pedro e Pedra são ambos Cepha. É este o texto que constitui o pano de fundo de todo o
pensamento do Papa João Paulo. Quem duvidaria de que ele pega neste texto, com
toda a humildade, para as suas meditações? Este texto é a razão por que os pontífices
agora celebram as festas de S.Pedro e S.Paulo em S.Pedro, de preferência ao local
mais óbvio de S.João de Latrão. Porque os pontífices romanos afirmaram-se sucessores
não de Pedro e Paulo, mas apenas e só de Pedro. O Novo Testamento fala de Pedro
como o apóstolo para os Judeus e de Paulo como o apóstolo para os cristãos. Mas no
espírito do papa, Pedro era o superior de Paulo; Pedro tinhajurisdição sobre Paulo e os
outros discípulos. Esta autoridade foi outorgada a Pedro pelo próprio Senhor naquelas
palavras que se encontram à volta da grande cúpula. Foi esta autoridade suprema que
ele, João Paulo II, herdou. Por que é que os Protestantes não hão-de ser lógicos? —
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deve Sua Santidade pensar. Jesus, o Filho de Deus, deu a Pedro supremacia sobre a
Igreja; esta supremacia deve continuar na Igreja como um ofício permanente; ele, João
Paulo, é o actual detentor de tal ofício.
Há, porém, uma outra interpretação deste texto com uma linhagem melhor do que
aquela de que a maioria dos católicos se dá conta. Pode chocá-los ouvir dizer que os
grandes Padres da Igreja não viam qualquer relação entre ele e o papa. Nenhum deles
aplica o «Tu és Pedro» a ninguém senão a Pedro. Um após outro todos o analisam:
Cipriano, Orígenes, Cirilo, Hilário, Jerónimo, Ambrósio, Agostinho. E eles não são
propriamente Protestantes. Nenhum deles chama ao Bispo de Roma uma Pedra ou lhe
aplica especificamente a ele o compromisso das Chaves. Isto para os católicos é tão
chocante como se não encontrassem nos Padres qualquer menção ao Espírito Santo ou
à ressurreição dos mortos. O grande trocadilho, o jogo de palavras, foi aplicado apenas
a Pedro.
E as surpresas não acabam aqui. Para os Padres é a fé de Pedro — ou o Senhor em
que Pedro tem fé — que se chama Pedra, e não Pedro. Todos os Concílios da Igreja,
desde Niceia, no século IV, a Constança, no século XV, concordam que o próprio Cristo
é o único fundamento da Igreja, isto é, a Pedra em que a Igreja assenta.
Talvez por isso, nem um só dos Padres fale da transferência de poder de Pedro para
aqueles que lhe sucederam; nenhum deles fala, como fazem os documentos da Igreja
hoje, de uma “herança”. Não há qualquer indício de um ofício Petrino perdurável. Ao
falar de um ofício, a referência é ao episcopado em geral. Todos os bispos são
sucessores de todos os apóstolos.
A análise de um outro texto do Evangelho produz o mesmo resultado. Jesus disse a
Pedro: «Rezei por ti para que a tua fé não te falte; e quando estiveres convertido, crisma
os teus irmãos». Esta afirmação aplica-se apenas e pessoalmente a Pedro. Nunca
ocorreu aos cerca de dezoito Padres da Igreja que comentaram este texto que houvesse
nele um compromisso para com os “sucessores de Pedro”. Pedro, individualmente
considerado, não teve sucessores.
Então, e os compromissos que se diz terem sido feitos via Pedro para com os seus
“sucessores”, os papas? Então os papas não herdam de Pedro a infalibilidade e a
jurisdição sobre todo o mundo?
O primeiro problema da infalibilidade é que o Novo Testamento deixa muito claro que
o próprio Pedro cometeu erros tremendos tanto antes como depois da morte de Cristo.
Quando, por exemplo, Jesus insistiu que tinha de ir até Jerusalém, onde seria
crucificado, Pedro protestou de tal maneira que Jesus lhe disse que ele era o “Satanás“
no seu caminho. Alguns teólogos católicos sugeriram que as palavras «Sai do meu
caminho Satanás» deviam ser acrescentadas ao texto Petrino já inscrito à volta da
cúpula de Miguel Ângelo. Depois da ressurreição de Jesus, Pedro fez outro enorme
disparate. “Heresia” não é uma palavra excessiva para o descrever. O maior jurista
canónico da Igreja de todos os tempos, Graciano, disse em 1150: «Petrus cogebat
Gentes Judaizare et a veritate evangelii recedere», «Pedro obrigou os não-Judeus a
viverem como Judeus e a afastarem-se da verdade do Evangelho».
Quanto à jurisdição em todo o mundo, quando Pedro pregava ao seu rebanho em
Antióquia ou em Roma, alguma vez lhe passou pela cabeça a ideia de que dirigia toda a
Igreja? Tal ideia teve de esperar até a Cristandade ser integrada no Império Romano.
Mesmo nessa altura, o papado ainda levou algum tempo a atingir a estatura que tornou
tal pretensão plausível.
E as dificuldades não se ficam por aqui. Os papas só são considerados infalíveis
quando se dirigem a toda a Igreja. E quando é que eles o fizeram pela primeira vez?
Certamente não durante o primeiro milénio. Neste período todos concordam que só os
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Concílios Gerais exprimiam o pensamento da Igreja. Então, o poder supremo do papa
esteve suspenso todo esse tempo? Se a Igreja conseguiu funcionar sem ele durante mil
anos, por que é que havia de precisar dele? Por pouca sorte, um dos primeiros, senão
mesmo o primeiro documento papal dirigido à Igreja universal foi a Unam Sanctam, uma
Bula de Bonifácio VIII, em 1302. Era um documento tão forçado que levantou questões
delicadas sobre a infalibilidade no Concílio Vaticano I, em 1870.
Assim, a Igreja dos primeiros tempos não considerava Pedro como Bispo de Roma,
nem pensava, portanto, que cada Bispo de Roma sucedia a Pedro. No entanto, Roma
era tida na mais alta consideração por razões bastante diferentes. Em primeiro lugar, foi
aqui que Pedro e Paulo viveram a sua vida. Depois, Roma era um lugar sagrado porque
aí os fiéis, clérigos e leigos, conservaram os seus corpos e reverenciaram-nos. Esses
corpos foram uma espécie de garantia da ortodoxia através dos tempos.
Passaram-se décadas. O Bispo de Roma tornou-se cada vez mais importante,
especialmente quando a corte imperial foi transferida para Constantinopla, no século IV.
Isto deixou um enorme vazio político, administrativo e emocional. Os Bispos de Roma
estavam, por assim dizer, ali à mão para o preencher. A partir de então, os Bispos de
Roma começaram a separar Pedro de Paulo e aplicaram a si próprios as promessas
feitas a Pedro no Evangelho. O prestígio do Bispo de Roma era agora tal que os eruditos
procuraram nas Escrituras textos que sustentassem o seu papel de líder e patriarca do
Ocidente. Nada mais limpo do que aplicar ao bispo que governa a cidade onde Pedro
morreu textos que nos Evangelhos se referem apenas a Pedro. Os Evangelhos não
criaram o papado; o papado é que, uma vez criado, procura suporte nos Evangelhos.
Este suporte não apareceu facilmente; foi necessária muita perícia para pegar em
afirmações feitas por um pobre Carpinteiro a um igualmente pobre Pescador e aplicá-las
a um pontífice régio que em breve viria a ser chamado de Senhor do Mundo.
Em S.Pedro, nestas festividades, João Paulo não está a pensar em si próprio como
Senhor do Mundo, mas sim como o Pastor Chefe do rebanho. Dá a sua bênção final e a
multidão rompe em aplausos. Pela primeira vez desde que entrou na basílica, o pontífice
permite-se um sorriso. A liturgia sagrada está terminada e ele volta a descer pela nave
em direcção à Capela do Santíssimo Sacramento, distribuindo bênçãos pelo caminho.
Para muitas das pessoas que vão a sair da basílica este foi o dia mais memorável das
suas vidas.
Enquanto a basílica volta ao normal, apetece perguntar: Se Pedro se levantasse do
túmulo sob a cúpula e lhe dissessem que tudo aquilo foi erigido em sua honra, como é
que ele reagiria?
Claro que alguém que regressasse do mundo dos mortos apenas quinze dias depois
da sua morte ficaria completamente aturdido, e Pedro morreu por Cristo há mais de
dezanove séculos. Quem é que pode saber como ele reagiria às maravilhas da moderna
tecnologia: aviões, automóveis, televisão, telefones? Só em S.Pedro há oitenta telefones
— se se marcar o 3712 o telefone tocará na obscuridade do altar-mor. O crescimento e
a organização da Igreja também o espantariam. Uma vaga ligação de uns poucos
pescadores e os seus convertidos, na sua maioria camponeses, tem de ser diferente de
uma igreja de malha bem apertada que se estende pelo mundo inteiro e abrange quase
um bilião.
A única pergunta certa é esta: se Pedro voltasse como peregrino, como é que ele
julgaria, à luz dos Evangelhos, o que se passa no Vaticano?
Jesus nasceu num estábulo. Durante o seu ministério, não tinha onde pousar a
cabeça.
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Hoje, o seu Vigário habita um palácio com onze mil salas. E depois há ainda
Castelgandolfo, sobranceiro ao Lago Albano, onde os pontífices se resguardam do calor
do verão.O belo Castelgandolfo, ligeiramente maior do que o Vaticano, foi onde João
Paulo, com algum dispêndio, mandou construir uma piscina para seu uso pessoal.
Jesus renunciou aos seus bens. Ele ensinava constantemente: «Vai vender tudo o
que possuis e dá aos pobres, e depois vem comigo». Ele condenava os ricos e os
poderosos. Armazenai para vós tesouros no Céu, dizia ele, onde nem a ferrugem nem a
traça conseguem estragá-los.
O Vigário de Cristo vive rodeado de tesouros, alguns de origem pagã. Qualquer
sugestão no sentido de que o papa devia vender tudo o que tem e dar aos pobres é
recebida com irrisão, como impraticável. O jovem rico dos Evangelhos reagiu da mesma
maneira.
Durante toda a sua vida, Jesus viveu de maneira simples; morreu nu, oferecendo o
seu sacrifício na cruz.
Quando o papa renova esse sacrifício na missa solene pontifical, maior contraste não
se poderia imaginar. Sem qualquer ironia, o Vigário de Cristo está vestido de ouro e das
sedas mais caras. Isto tem sido frequentemente fonte de escândalo. Por exemplo, no
século XIV o grande Petrarca descrevia assim uma missa papal em Avignon, que era
muito menos esplendorosa do que a recente cerimónia em S.Pedro: «Fico espantado
quando recordo os antecessores do papa e vejo estes homens carregados de ouro e
vestidos de púrpura. Parece que estamos entre os reis dos Persas ou dos Partianos,
diante dos quais nos temos de prostrar e venerar. Ó apóstolos e primeiros papas, rudes
velhos definhados, foi para isto que trabalhastes, vós?»
O único título de Jesus foi Pilatos que lho atribuiu por troça: “Rei dos Judeus”.
No anuário pontifício, Pedro vê que o papa tem uma dúzia de títulos ilustres: incluindo
o de chefe de estado. Ele acharia o de Pontifex Maximus o mais surpreendente, porque
no seu tempo era esse o título do Sumo Sacerdote de Roma. Além disso, Jesus era
apenas um leigo.
Os assistentes do papa também têm títulos algo inesperados à luz do Sermão da
Montanha: Excelência, Eminência, Vossa Graça, Meu Senhor, Ilustre, Reverendíssimo,
etc.. Contudo os chapéus cardinalícios, que outrora renderam milhões aos cofres do
papa, são agora distribuídos gratuitamente. Mas suas Eminências continuam a vestir-se
como realezas, mesmo que as suas caudas tenham sido reduzidas recentemente de
alguns metros. As impressões é que contam. Aqueles que vestem púrpura e seda, vivem
em palácios, sentam-se em tronos — não lhes é fácil agir como servos de Deus ou
representar o Pobre de Nazaré perante os pobres e os famintos do mundo. João Paulo
apenas reuniu os seus cardeais por duas vezes. E em ambos os casos foi para discutir o
estado perigoso das finanças do Vaticano.
Pedro, sempre sem tostão, ficaria intrigado ao saber que, de acordo com o cânone
1518 do código de 1917, o seu sucessor é o «administrador e gestor supremo de todos
os bens da Igreja». E também que o Vaticano tem o seu próprio banco, que só admite
como cliente quem, além de sólidas referências, possa fornecer uma coisa que o próprio
Pedro nunca teve: um certificado de baptismo.
O celibato do clero, papa incluído, devia também surpreender Pedro, ao pensar como
Jesus o escolheu a ele sabendo que era casado.
E finalmente Pedro ficaria desconcertado só com o simples número de imagens em
S.Pedro. Ele e o Mestre, como judeus que eram, opunham-se às imagens religiosas.
Deus, cujo simples nome não podia ser pronunciado, também não podia ser
representado. Alguém que reside numa luz inacessível exige as maiores reticências.
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Mesmo o mais Sagrado dos Sagrados no Templo de Jerusalém não era mais do que
uma sala despida e escura.
Em S.Pedro Jesus está crucificado em todos os altares. A basílica está decorada com
estátuas de papas ajoelhados e inclinados numa vénia. Algumas figuras são muito
pouco edificantes. O Papa Paulo III, por exemplo, jaz enterrado na ábside. O seu
monumento está decorado com belezas reclinadas, uma das quais é a Justiça.
Originalmente nua, ajustaram-lhe, por ordem de Pio IX, uma camisa metálica pintada
para parecer o mármore original. Sua Santidade tinha descoberto que o modelo para a
Justiça fora a irmã de Paulo III, Giulia, a amante do Papa Alexandre VI.
Pedro assistiu à simples cerimónia da Ceia na noite da véspera em que Jesus
morreu. Ele soube que na colina rochosa dos arredores de Jerusalém, Jesus, depois de
ultrajado, açoitado, cuspido, coroado com espinhos, foi despido e crucificado entre dois
ladrões.
Que ligação há, se alguma poderá haver, perguntar-se-ia Pedro, entre esses
acontecimentos e uma missa papal? Será que todo este cerimonial distorceu e banalizou
a mensagem de Jesus? Como e por que tortuosos caminhos é que uma pequena
comunidade perseguida transpôs a aparentemente infinita distância entre o Calvário e o
Vaticano?
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2
A Busca do Poder Absoluto
Os milhões que todos os anos visitam o Vaticano pressentem o poder da Igreja. As
paredes, as estátuas, as gigantescas colunas, aquela cúpula omnipresente, tudo isto
exala poder. Se têm a sorte de ter uma audiência com o Santo Padre, ou simplesmente
recebem a sua bênção da janela do seu gabinete, a maioria dos peregrinos sente uma
força passar dele para si próprios. Ele possui, crêem eles, o dom do Espírito de Deus
num grau elevado. Mesmo um rosário abençoado pelo pontífice tem uma significação
especial; é como um autógrafo invisível. Ele tem um grande poder vindo de Deus e tem
o compromisso de o usar para o bem da humanidade.
O prestígio do papa hoje é enorme. Neste século, os pontífices adquiriram renome
mundial. Os acontecimentos históricos e as comunicações instantâneas contribuíram
para os tornar os “Porta-vozes da religião”. As suas personalidades também tiveram
alguma coisa a ver com o facto. Os antecessores próximos de João Paulo também
foram homens eminentes: Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo I. Tiveram os
seus críticos dentro e fora da Igreja. Pouca gente negaria que o seu objectivo principal
foi seguir Jesus Cristo. O resultado é que João Paulo II é comummente considerado
como o único líder cuja reputação na religião iguala a influência política do presidente
americano e do secretário-geral soviético.
Como não entendem que o passado é imprevisível, muitos católicos estão
convencidos de que a maior parte dos papas seguiu este padrão. Desconhecedores da
história, permitem-se, como diz Acton, «ser governados pelo Passado Desconhecido».
Podem ter ouvido falar do Papa Alexandre VI, o infame Bórgia. Ele foi, sem dúvida, a
excepção que confirma a regra. Além disso, por muito mau papa que fosse, eles têm a
convicção, tal como Joseph de Maistre, o historiador do século XIX, de que «as Bulas
destes monstros foram irrepreensíveis». Fosse qual fosse o seu comportamento moral,
nunca comprometeram a fé da Igreja. Neste contexto, até Judas Iscariote é
reconfortante. Se um dos discípulos mais próximos de Jesus traiu o Senhor, não
devemos ficar surpreendidos se um ou alguns papas abusaram do poder que Deus lhes
conferiu. A traição de Judas levou à salvação do mundo. Será que Deus usa o mau
papa ocasional para provar que na providência divina mesmo Alexandre VI serve de
medianeiro da verdade e do amor de Deus?
Em 1895, o Cardeal Vaughan de Westminster afirmou num sermão: «A vida do
papado é, como a do próprio Cristo, marcada por sofrimento e por tempos tranquilos;
hossanas hoje, a paixão e crucificação amanhã; mas seguida, depois, da ressurreição.
O Vigário de Cristo e a sua Igreja estão necessariamente em conflito com as falsas
máximas do mundo; o sofrimento e as perseguições são consequência inevitável».
Quem é que não perdoará aos seus ouvintes por concluírem que a maioria dos papas
foram uma imagem de Cristo? Mas este lado eternamente luminoso do papado tem de
ser complementado com o lado mais negro. A maioria dos católicos nunca ouve durante
a sua vida, na escola ou na igreja, uma só palavra de censura a qualquer papa.
Contudo, um católico devoto como

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