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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 3 E D I TO R I A L “A segunda pessoa era um parente de Virgília, o Viegas, um cangalho de setenta invernos, chupado e amarelado, que padecia de um reumatismo teimoso, de uma asma não menos teimosa e de uma lesão de coração: era um hospital concentrado. Os olhos porém luziam de muita vida e saúde.” Esta frase do livro de Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cuba”, me foiapresentada pelo grande amigo Marco Akerman, da Faculdade de Medicina do ABC/ SP, em um encontro onde tinha o desafio de discutir sobre a construção de indicadores para a Promoção da Saúde. Inicio esse editorial com essa frase porque a cada dia fico mais certo que existe mais coisa entre a saúde e a doença do que os nossos conhecimentos biomédicos possam explicar. Inegavelmente, o mundo atual vem passando por profundas transformações nos diversos setores. No da saúde, deparamo-nos com novos desafios que infelizmente muito pouco o modelo atual de intervenção tem conseguido promover mudanças: a questão da violência e a prevenção das doenças crônico-degenerativas seriam bons exemplos. Este exemplar da revista Sanare é fruto de um trabalho que envolveu diversas pessoas, todas com importantes contribuições e com uma capacidade imensa de construir coletivamente os principais conceitos ligados à Promoção da Saúde. O principal fator motivador para esse trabalho foi a clareza, por parte desse grupo, de que a Promoção da Saúde é o principal objetivo da Estratégia de Saúde da Família. Em outras palavras, o modelo que estamos construindo seria um modelo promotor de saúde, contrapondo-se a outros modelos: curativo, preventivo. É importante ainda destacar que os textos apresentados nesse exemplar serviram como base para a produção de um material a ser entregue ao Ministério da Saúde, e que acreditamos que poderá contribuir bastante para a difusão desses conceitos entre as equipes do Programa Saúde da Família e gestores da saúde. Agora, penso que apenas devo desejar que as páginas dessa revista possam se transformar em objeto de profundas reflexões e possam assim apresentar algumas pistas sobre a vitalidade e saúde dos olhos de Viegas. Tomaz Martins Júnior Diretor Presidente da Escola de Formação em Saúde da Família Visconde de Sabóia/Sobral-CE S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 20034 MARCO CONCEITUAL DA PROMOÇÃO DA SAÚDE NO PSF ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○11 Ana Cecília Sucupira O PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA: UM COMPROMISSO COM A QUALIDADE DE VIDA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 19 Márcia Faria Westphal CIDADANIA, CAMINHO PARA UMA VIDA SAUDÁVEL ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○31 Maria Cecília Cordeiro Dellatorre PROMOÇÃO DA SAÚDE: CONCEITOS E DEFINIÇÕES ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 07 Ana Cecília Sucupira e Rosilda Mendes A BIOÉTICA E A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○15 Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto e Geison Vasconcelos Lira APODERAMENTO ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○27 Tomaz Martins Júnior SUMÁRIO ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 5 RELAÇÃO EDUCATIVA DA EQUIPE DE SAÚDE DA FAMÍLIA COM A POPULAÇÃO ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○35 Ausônia Favorito Donato e Rosilda Mendes TERRITÓRIO: ESPAÇO SOCIAL DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES E DE POLÍTICAS ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○39 Rosilda Mendes e Ausônia Favorito Donato MÚLTIPLOS ATORES DA PROMOÇÃO DA SAÚDE ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○43 Márcia Faria Westphal PROMOÇÃO DA SAÚDE, PODER LOCAL E SAÚDE DA FAMÍLIA: ESTRATÉGIAS PARA A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS LOCAIS SAUDÁVEIS, DEMOCRÁTICOS E CIDADÃOS - HUMANAMENTE SOLIDÁRIOS E FELIZES ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○51 Neusa Goya A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA NO BRASIL E A SUPERAÇÃO DA MEDICINA FAMILIAR ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○57 Tomaz Martins Júnior, Luiz Odorico Monteiro de Andrade e Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 20036 ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 7 P PROMOÇÃO DA SAÚDE: CONCEITOS E DEFINIÇÕES Health Promotion: Concepts and Definitions A promoção da saúde é mais ampla que a prevenção da saúde. É preciso ampliar a discussão da prevenção para a ótica dapromoção da saúde. Ou seja, mudar a lógica simplista da visão economicista de que é melhor prevenir do que curar para a concepção do direito de não ter um agravo para o qual já existem conhecimentos e práticas disponíveis, que podem proteger o indivíduo de ter tal agravo. A concepção anterior reduz o objetivo das ações simplesmente, para ausência da doença. Na verdade, a promoção da saúde está vinculada à noção de direitos, ou seja, o direito a ter uma vida saudável. Promoção da saúde; programa saúde da família; Carta de Ottawa. Ana Cecília Sucupira Pediatra Sanitarista Consultora do Programa Saúde da Família de Sobral Rosilda Mendes Educadora, doutora em saúde pública, assessora técnica da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo Health promotion is more extensive than sickness prevention. It is necessary to widen discussion of prevention for theviewpoint of health promotion. In other words, to alter the simplistic logic of economist vision that it is better to prevent than to cure in support of the concept of the right to not contract an illness for which already exists knowledge and available practice, which can protect the individual from contracting such illness. The previous concept reduces the objective of actions simply, for the absence of sickness. In reality, health promotion is linked to the notion of rights, in other words, the right of having a healthy life. Health promotion; family health program; constitution; The Ottawa Charter. s i n o p s e ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ a b s t r a c t ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ p a l a v r a s - c h a v e ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ k e y w o r d s ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 20038 PROMOÇÃO DA SAÚDE, PREVENÇÃO DE DOENÇAS Na Constituição de 1988, privilegiam-se as ações de promoção,proteção e recuperação da saúde, colocando-se essas três ações em um mesmo plano. Ao se discutir a promoção da saúde no Programa Saúde da Família (PSF), considerou-se esta como o objetivo principal dos profissionais do PSF e nomeou-se a promoção como gênero e a prevenção como espécie. Nesse texto, será fundamental diferenciar o que se entende por promoção da saúde, educação em saúde e prevenção. Há algumas décadas discutia-se nas Faculdades de Medicina a importância de introduzir a questão da prevenção das doenças. A partir do modelo de Leawell & Clark, no esquema da História Natural das Doenças, definiu-se a promoção da saúde como os cuidados à saúde, em atividades dirigidas à mudança de comportamentos dos indivíduos, tendo como base as atitudes e hábitos que caracterizam os diferentes modos de vida. A promoção ficava restrita ao nível primário. Já a prevenção deveria acontecer em todos os níveis da História Natural das Doenças, seja prevenindo a doença ou as suas complicações nos diferentes momentos de evolução da doença. A concepção principal que orientava a discussão nas faculdades estava fundamentada na visão economicista de que "é melhor prevenir do que curar" "é melhor prevenir do que remediar" Na verdade, o "melhor" referia-se ao fato de que era mais barato investir na prevenção do que na cura das doenças. Essa noção foi incorporada nos currículos médicos, como uma atribuição dos Departamentos de Medicina Preventiva ou de Saúde Coletiva. A Clínica remetia para a Medicina Preventiva a discussão das medidas de prevenção. A prevençãoconcebida sob a ótica economicista foi rapidamente incorporada pelo modelo capitalista, adaptando-se à lógica do paradigma da biomedicina, gerando a necessidade de incorporar tecnologia adequada para essas ações. Assim, desenvolveu-se a prática dos exames de "chekup" e a indústria da prevenção. Na realidade, o "custo menor" ficava no discurso de tom moralista, pois cada vez mais foi necessária a incorporação de exames e procedimentos preventivos. Testes de "screening" para diferentes doenças foram introduzidos, muitos deles com procedimentos de baixa especificidade e sensibilidade, sem evidências suficientes que comprovassem o seu valor preditivo. Entretanto, deve-se recuperar a importância da prevenção dos agravos na lógica do direito à saúde, o direito de não ter um agravo, para o qual já existem conhecimentos e procedimentos que podem evitar tal agravo. As campanhas de prevenção das doenças infecciosas são extremamente válidas porque utilizam conhecimentos e práticas que comprovadamente podem evitar muitas doenças, sendo efetivas na redução da incidência dessas doenças. Um exemplo típico são as campanhas de prevenção da AIDS e as de vacinação. A redução dos agravos em ambos os casos foi muito importante. A queda da mortalidade infantil, no Brasil, teve como um dos principais fatores a redução das doenças imunopreveníveis. OS LIMITES DA EDUCAÇÃO EM SAÚDE A educação em saúde é um outro conceito referido na introdução deste texto, sendo uma das práticas mais antigas, voltadas principalmente para a prevenção das doenças. No início do século passado, as campanhas higienistas tinham como um dos pilares as propostas de educação sanitária. Partia-se do princípio que as doenças eram decorrentes da ignorância da população, sendo fundamental educar e ensinar comportamentos saudáveis para se ter populações sadias. A concepção higienista foi dominante nas ações da Higiene Escolar desde o final do século XIX, com medidas que visavam ensinar as crianças comportamentos saudáveis, que tinham como traço marcante a visão moralista e preconceituosa das elites sobre as classes populares. Entretanto, ainda hoje, permanece a idéia de que é importante e suficiente educar as pessoas para que elas possam adquirir comportamentos mais saudáveis. Muda-se o discurso. A Carta de Ottawa fala da importância da capacitação dos atores, para que identifiquem opções e tomem decisões por hábitos de vida mais saudáveis, mantendo a idéia de que os atores desconhecem os hábitos de vida que seriam saudáveis e por isso necessitam de capacitação. Nessa visão, a adoção de hábitos de vida mais saudáveis depende apenas de decisões individuais, a partir de um leque de opções. Persiste a negação das condições materiais de vida que impedem a grande maioria da população de poder optar por hábitos de vida mais saudáveis. Culpabiliza-se assim a vítima por não ter observado melhor os preceitos e ensinamentos da saúde. Nos últimos 20 anos, como reflexo da mudança do perfil epidemiológico com maior predomínio das doenças crônicas e das causas externas, houve um redirecionamento da atenção à saúde nos países mais desenvolvidos. Nesse sentido, o modelo proposto pela promoção da saúde parece mais adequado às novas realidades de saúde. A prevenção concebida sob a ótica economicista foi rapidamente incorporada pelo modelo capitalista, adaptando-se à lógica do paradigma da biomedicina, gerando a necessidade de incorporar tecnologia adequada para essas ações. Assim, desenvolveu-se a prática dos exames de "chekup" e a indústria da prevenção. ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 9 A promoção da saúde enquanto campo conceitual e de prática vem se desenvolvendo como uma reação à medicalização da saúde, na sociedade e no interior do sistema de saúde e tem, no atual contexto, um marco de referência mais amplo do que o enfoque usado no esquema da História Natural das Doenças, centrado no indivíduo, família ou grupos. As estratégias da promoção da saúde têm seu desenvolvimento, como movimento ideológico e social, de forma mais intensa no Canadá, Estados Unidos e países da Europa Ocidental, com avanços mais lentos na América Latina e Caribe. As Conferências Internacionais, a partir da Primeira Conferência de Promoção da Saúde realizada em Ottawa, em 1986, têm difundido conceitos básicos que exigem a revigoração da saúde pública em torno do compromisso de saúde para todos. As discussões de Ottawa tiveram como parâmetros a Declaração de Alma-Ata para os Cuidados Primários em Saúde (1978) e debates posteriores realizados ao redor do mundo. DISCUTINDO SAÚDE COMO UM PRODUTO SOCIAL Os encontros e as conferências subsequentes relacionados ao tema, especialmente as Conferências Internacionais realizadas em Adelaide, na Austrália, em 1988, em Sundsvall, na Suécia, em 1991, em Jakarta, em 1997 e no México em 2000, procuraram reafirmar a Conferência de Alma-Ata, ressaltando a necessidade de se adotar propostas de intervenção inovadoras e mais abrangentes na implementação de políticas públicas saudáveis. Definiram, ainda, as políticas públicas saudáveis como o interesse de todas as áreas das políticas públicas em relação à saúde e eqüidade. Na América Latina a introdução da reconceituação da Promoção da Saúde e o estabelecimento de estratégias de desenvolvimento de ações de promoção da saúde nos países em desenvolvimento, tiveram início com a Conferência de Promoção da Saúde realizada em Santa Fé de Bogotá em 1992. A iniqüidade sem precedentes da América Latina, agravada pela crise econômica e pelos programas das políticas de ajuste macroeconômico, a situação política que limita o exercício da democracia e a participação pela cidadania, foram considerados fatores determinantes na deterioração das condições de saúde e vida das populações latino-americanas. O que vem caracterizar a promoção da saúde, nos dias de hoje, é a constatação de que a saúde tem uma determinação social, portanto está relacionada com a totalidade da vida. Pode-se afirmar que o enfoque da Promoção da Saúde é mais amplo e abrangente e é conseqüente a uma mudança de visão do que é saúde. A promoção da saúde é considerada um instrumental conceitual, político e metodológico em torno do processo saúde-doença, que visa analisar e atuar sobre as condições sociais que são críticas para melhorar as condições de saúde e de qualidade de vida (CERQUEIRA 1997; BUSS 1998). É importante destacar, aqui, alguns pontos: o primeiro é que começa a se delinear um "novo paradigma de saúde": a saúde é produzida socialmente. Assim, a Promoção da Saúde está relacionada a um conjunto de valores: vida, saúde, solidariedade, eqüidade, de- mocracia, cidadania, participação, parceria, desenvol- vimento, justiça social, revalorização ética da vida. Portanto, relaciona as determinações da saúde às di- mensões sociais, culturais, econômicas e políticas nas coletividades para alcançar um desenvolvimento soci- al mais eqüitativo. Ressalta-se, ainda, a combinação de estratégias, ou seja, a promoção da saúde demanda uma ação coordenada entre os diferentes setores soci- ais, ações do Estado, da sociedade civil, do sistema de saúde e de outros parceiros intersetoriais. Em suma, a saúde não é assegurada apenas pelo setor da saúde. Para a prevenção, evitar a ocorrência de enfermidade e a perda do bem estar é o objetivo final. Para a promoção da saúde o objetivo contínuo é buscar expandir o potencial positivo de saúde, portanto, a ausência de doenças não é suficiente. As ações de promoção da saúde concretizam-se em diversos espaços, em órgãos definidores de políticas, nas universidades e, sobretudo, ... a Promoção da Saúde está relacionada a um conjunto de valores: vida, saúde, solidariedade, eqüidade, democracia, cidadania, participação, parceria, desenvolvimento, justiça social, revalorização ética da vida. Para a promoção da saúde o objetivo contínuo é buscar expandir o potencial positivode saúde, portanto, a ausência de doenças não é suficiente. S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200310 localmente, nos espaços sociais onde vivem as pessoas. As cidades, os ambientes de trabalho e as escolas são os locais onde essas ações têm sido propostas. Como a saúde é entendida a partir de seus determinantes sociais, há de se promover uma responsabilidade social para com ela. Na formulação de políticas públicas saudáveis, todos os setores de governo devem direcionar sua atuação tendo como perspectiva que a saúde é um aspecto essencial da vida, daí a necessidade de criar parcerias e alianças com todos os setores da sociedade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Buss PM. organizador. Promoção da saúde e a saúde pública : contribuição para o debate entre as escolas de saúde pública da América Latina. ENSP. Rio de Janeiro; 1998. Cerqueira MT. Promoción de la salud y educacón para la salud: retos y perspectivas. In: Arroyo HV, Cerqueira MT. La promoción de la salud y educación para la salud en América Latina: un análisis sectorial. Puerto Rico: Editorial de la Universidade de Puerto Rico/OPS; 1997. p. 7-47. Mendes Gonçalves, RB.- Tecnologia e Organização Social das Práticas de Saúde - Hucitec/Abrasco, São Paulo, 1994. ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 11 M MARCO CONCEITUAL DA PROMOÇÃO DA SAÚDE NO PSF Conceptual Landmark of Health Promotion in PSF (Family Health Program) A promoção da saúde deve ser o objetivo principal no trabalho dos profissionais do PSF. Isso implica ir além da resolubilidadeimediata da queixa trazida pelo indivíduo e a necessidade de construir um novo processo de trabalho que permita à população identificar os problemas e potencialidades, reconhecendo as condições e os fatores envolvidos na produção da queixa, do sofrimento e da saúde. Promoção da saúde; programa saúde da família; sistema único de saúde. Ana Cecília Sucupira Pediatra Sanitarista Consultora do Programa Saúde da Família de Sobral Health promotion should be the main objective in the practice of PSF professionals. This implies going beyond theimmediate resolubility of the complaint presented by the individual and the necessity to construct a new practice process that permits the population to identify the problem and potentialities, recognizing the conditions and factors involved in creating the complaint, of the suffering and health. Health promotion; family health program; unified health system. s i n o p s e ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ a b s t r a c t ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ p a l a v r a s - c h a v e ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ k e y w o r d s ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200312 O NOVO MODELO DE ATENÇÃO À SAÚDE A aprovação do Sistema Único de Saúde pela Constituição Federal de 1988 forneceuos princípios para a reorganização da atenção à saúde no Brasil, mas tem sido o Programa de Saúde da Família a estratégia estruturante que viabiliza a construção de um novo modelo de atenção à saúde. O modelo que se pretende com a implantação do PSF, pode ser visto como novo, porque implica uma mudança no modelo existente, que se torna passado, antigo. Isto não significa dizer que as idéias que fundamentam o modelo do PSF sejam todas novas. Algumas dessas idéias já estavam presentes, há algumas décadas, mas obtiveram pouco sucesso, uma vez que eram introduzidas sem que houvesse uma mudança substancial na orientação do modelo de atenção à saúde. Não há, portanto, uma negação mecânica do modelo anterior, mas uma negação dialética, uma superação, na qual se considera o que havia de bom no modelo antigo e elementos novos são incorporados para a construção do modelo novo. Vale ressaltar que o PSF pode ser considerado como um novo modelo, porém sua prática ainda não é nova e reproduz em muitos casos o paradigma biomédico. A afirmação de que a promoção da saúde deve ser o objetivo principal da Equipe de Saúde da Família é conseqüente ao ideário de princípios que norteiam a implantação do PSF e que estão contidos na formulação do SUS. Assim, revendo esses princípios vamos encontrar os elementos necessários para justificar essa assertiva. A marca principal do PSF, fundamentada na promoção da saúde, é a mudança de foco que passa a ser a saúde e não mais a doença. Pensar a saúde, não como a simples ausência da doença, mas como produto da qualidade de vida, socialmente determinada, implica necessariamente, a superação do paradigma da biomedicina, organicista e a incorporação de um novo referencial que considere os aspectos históricos, culturais e sociais que interferem no modo como deve ser prestada a atenção à saúde. Nesse novo olhar, o indivíduo só pode ser compreendido na sua totalidade se estendermos esse olhar para a família com a qual ele convive, a moradia como núcleo de elementos favoráveis ou desfavoráveis a sua saúde e o cenário da comunidade e da sociedade que, influenciam do ponto de vista social e cultural a adoção de determinados modos de vida. PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA E PROMOÇÃO DA SAÚDE Nessa perspectiva, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) tem como cliente a família, inserida numa comunidade e a saúde dessa família não pode ser objeto de trabalho apenas da equipe, mas é também, objeto de um conjunto de intervenções da comunidade e do Estado, enquanto instância de governo. Insere-se, assim, obrigatoriamente a noção da intersetorialidade no PSF. Ao ter como objeto principal de trabalho a saúde do indivíduo, da família e da coletividade, a proposta do PSF é necessariamente centrada na promoção da saúde. Mas o que se entende por promoção da saúde? Resumidamente, pode-se dizer que é a atuação nos determinantes da saúde, ou seja, um conjunto de ações assumidas pelos indivíduos, a comunidade e o Estado com o objetivo de criar condições favoráveis ao A marca principal do PSF, fundamentada na promoção da saúde, é a mudança de foco que passa a ser a saúde e não mais a doença. pleno desenvolvimento das potencialidades humanas. Isso implica intervir coletivamente visando a qualidade de vida. As condições favoráveis são criadas individualmente por meio de atitudes e modos de vida saudáveis, coletivamente por ações conjuntas da comunidade ou ainda por intervenções dos vários setores do governo. Ao se falar em atitudes e modos de vida mais saudáveis na promoção da saúde, é preciso ter cuidado para não se responsabilizar apenas o indivíduo pela sua própria saúde, portanto, tem que se colocar a participação da comunidade no desenvolvimento de uma política saudável, ou seja, discutir os aspectos individuais dos modos de vida, a participação coletiva na gestão das políticas e as desigualdades estruturais da sociedade que impõem diferenças no modo de vivenciar a saúde e a doença. Deduz-se que os atores da promoção da saúde são vários, ou seja, a promoção da saúde é uma responsabilidade de toda a sociedade. Obviamente, a prevenção das doenças está inserida na promoção da saúde. A prevenção atua sobre os determinantes da doença. Assim, as medidas de redução do número de veículos circulantes nas grandes cidades, nos períodos em que a qualidade do ar se torna crítica, tem como objetivo reduzir a incidência de doenças respiratórias. Já a proibição da circulação de veículos nos fins de semana, em algumas ruas, tornando-as áreas de lazer, tem como objetivo maior possibilitar às pessoas um espaço para atividades ao ar livre melhorando a qualidade de vida da população. Além disso, é uma medida também preventiva que serve para reduzir doenças ligadas à qualidade do ar e à vida sedentária. No dizer de Andrade (2002): "...no PSF a promoção é gênero e a prevenção é espécie". A assistência está contida na promoção da saúde que é uma ação mais ampla que a ... a promoção da saúde é uma responsabilidade de toda a sociedade. ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 13 assistência. Mas é fundamental entender queao se assumir a promoção da saúde como objetivo principal, ela vai direcionar a assistência que é prestada na atenção básica e influenciar diretamente os outros níveis de atenção, uma vez que se concebe o PSF como estratégia estruturante de todo o sistema. Em última instância o PSF tem como objetivo a melhora da qualidade de vida para se ter como produto a saúde. Ora, a pergunta que se segue é o que se deve entender por qualidade de vida? Que qualidade de vida se pretende e para quem? São questões cuja resposta deve ser encontrada a partir de discussões que considerem os aspectos históricos, culturais e sociais de uma determinada comunidade. Uma conseqüência lógica do que foi exposto acima e que constitui uma idéia-força contida na assertiva inicial é a necessidade de mudança do processo de trabalho dos profissionais na unidade de saúde. A doença, ou melhor, a queixa, tem sido a principal linguagem de comunicação entre a unidade de saúde e a população. A demanda trazida é sempre a queixa de um sofrimento, visto sempre na sua manifestação somática, orgânica. O idoso, em busca de uma escuta, é atendido pela sua queixa de dores recorrentes. As manifestações alérgicas são inibidas pela prescrição contínua da medicação, sem que os alergenos sejam identificados, a doença sexualmente transmitida é medicada, sem que os profissionais avaliem as suas repercussões no relacionamento do casal, o sofrimento psíquico não é percebido e a depressão, a angústia, o alcoolismo são vistos como doenças orgânicas, portanto, passíveis de tratamento medicamentoso. UNIVERSALIDADE, EQUIDADE E INTEGRALIDADE Essa visão medicalizante do sofrimento foi impondo um modo específico de funcionamento dos serviços de saúde que se traduziu no modelo de atenção, definido por Ricardo Bruno (1994), de queixa/conduta. Os serviços de saúde organizam o atendimento à demanda na forma do pronto-atendimento, caracterizando o que Mendes (2001) chama de modelo agudocêntrico. A atenção à saúde encerra-se com a prescrição da receita, a solicitação de exames e o encaminhamento para serviços mais especializados. Reforça-se assim a imagem de ineficiência da atenção básica. A pressão política pelo acesso ao atendimento nos serviços de saúde expressa a idéia de que a assistência médica traz saúde aos indivíduos. O médico, visto como alguém que cura, é o centro que direciona o modelo de atenção. Os demais profissionais são acessórios, para os quais são encaminhados os casos que o modelo biomédico não consegue resolver, transformados quase sempre em mazelas sociais. Os princípios do SUS são reinterpretados: a universalidade, a eqüidade e a integralidade da atenção são entendidas como o direito de todos à tomografia, à ressonância. O hospital representa o acesso diferenciado à atenção à saúde. O modelo concentra no hospital os investimentos sob a pressão da indústria de equipamentos e farmacêutica. A atenção básica ou primária é vista como um apêndice do nível terciário. O esgotamento desse modelo é inevitável. Os países mais desenvolvidos já redirecionaram a atenção à saúde, fortalecendo a promoção da saúde. A mudança no perfil epidemiológico, no qual as doenças infecto-contagiosas vão sendo substituídas pelas doenças crônicas, degenerativas ou não, e pelos agravos externos exige mudanças no modelo. Agravos que demandam um outro enfoque, pois não é a cura o objetivo, mas a prevenção das complicações e a manutenção da qualidade de vida. A superação do modelo antigo não invalida os diferentes níveis de atenção, o hospital, os serviços especializados e as unidades básicas, mas integra-os no sistema hierarquizado e regionalizado, tendo como porta de entrada a unidade básica de saúde, tal como previsto no SUS. O PSF na construção do novo modelo radicaliza ao priorizar a promoção da saúde e reconhecer a unidade básica de saúde como a instância de excelência para dar conta de mais de 80% da demanda. O hospital passa a ser visto como uma instância de atenção não primária, assumindo sua vocação de atendimento de alta complexidade, destinado a uma pequena minoria de casos que irá necessitar dessa modalidade de atenção. A questão que se coloca é como construir um novo processo de trabalho, centrado na perspectiva prioritária da promoção da saúde. Teoricamente, a construção do PSF tem na sua essência a filosofia da promoção da saúde ao ter como objeto de atenção a saúde e não a doença. Entretanto, ao se tratar de um processo de trabalho em construção é preciso definir o marco teórico e metodológico para a promoção da saúde nos contornos do PSF. É importante ainda, discutir o papel dos gestores nesse novo processo de trabalho. Não se limitar a simples resolução imediata da queixa significa antes de tudo entender a dimensão dessa queixa, para além do que ela explicita. E mais, significa a compreensão de que a saúde só poderá ser alcançada se a queixa, o sofrimento, a doença forem compreendidos nos seus determinantes. É preciso identificar os condicionantes do sofrimento que se expressam naquele sintoma manifestado pelo paciente e pensar o problema no espaço do território, para que possam ser identificadas soluções coletivas. Os casos de diarréia não podem ser vistos de forma isolada. É necessário Os princípios do SUS são reinterpretados: a universalidade, a eqüidade e a integralidade da atenção são entendidas como o direito de todos à tomografia, à ressonância. S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200314 avaliar a ocorrência de outros casos e analisar com a população o porquê desses casos, discutindo as características dos modos de vida da comunidade e as condições ambientais que estejam favorecendo o aparecimento de tantos casos de diarréia. As soluções encontradas nas discussões dos conselhos locais de saúde têm muito mais efetividade que as orientações que possam ser dadas pela equipe de saúde. Um outro aspecto importante desse modo de trabalhar é evitar que visões preconceituosas da equipe de saúde tendam a culpar a própria família ou a comunidade pelos casos de diarréia. Essa postura é freqüente e pode ser exemplificada em frases do tipo: "a mãe é irresponsável" "o povo é relaxado mesmo". Algumas ferramentas são fundamentais na construção desse novo processo de trabalho da equipe de saúde. Inicialmente, o trabalho tem de ser visto na perspectiva da co-gestão com a comunidade. Para isso, é preciso pensar a saúde tanto do ponto de vista individual quanto coletivo e o desenvolvimento de um conhecimento específico para trabalhar essas questões. Porém o fundamental é a mudança de atitude por parte dos trabalhadores em saúde. O instrumental epidemiológico dá visibilidade à população do processo saúde/doença. Entretanto, os conhecimentos epidemiológicos têm de ser socializados coletivamente. A comunidade deve participar ativamente da investigação epidemiológica. Experiências nas quais os conselhos locais de saúde têm também a função de investigar as mortes por causas externas, mostram que as informações sobre as causas dessas mortes são muito mais próximas da realidade, pois são obtidas por quem está no bairro e conhece a vida do bairro. Além disso, é possível trabalhar a epidemiologia do potencial de saúde das comunidades, reconhecendo nas condições e modos de vida da comunidade o que pode ser feito para a promoção da saúde. Rompe-se com o modelo da epidemiologia tradicional ligada à doença e de propriedade dos médicos e enfermeiros, abrindo-se para a participação das pessoas da comunidade. Essa é uma forma concreta da população se apropriar das informações sobre o processo saúde/ doença na sua comunidade e construir um diagnóstico das condições de saúde que permita trabalhar na direção da promoção da saúde. Obviamente, duas outras ferramentas estão necessariamente, incorporadas nesse processo, a territorialização e a ação intersetorial. A atenção básica territorializada é fundamental e está instrumentalizada pela adscrição daclientela, prevista no modelo do PSF. A construção do diagnóstico de saúde da comunidade implica o conhecimento do território enquanto um espaço vivo de relações, que produz a saúde e a doença. O processo de elaboração do diagnóstico epidemiológico, com base territorial possibilita articular os serviços de saúde com a comunidade e outros setores da sociedade, principalmente aqueles relacionados ao ambiente e ao desenvolvimento urbano. A identificação das condições e fatores envolvidos no processo saúde/doença requerem a ação intersetorial tanto no reconhecimento do modo de atuação desses fatores como na sua superação. Os diferentes olhares da equipe contribuem para trazer uma diversidade maior de elementos que vão compor o cenário e o processo que levou a um determinado problema de saúde vivenciado por uma família, por um grupo de famílias ou por uma comunidade. Essa produção coletiva do diagnóstico do problema e da discussão em busca de suas soluções requer uma organização interna da estrutura de trabalho da unidade que democratiza as competências e ajuda a construir o trabalho em equipe. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na construção do novo processo de trabalho é necessária a formação de novos atores, novos no sentido de terem condições de fazerem a crítica ao paradigma da biomedicina. Resumindo, a assertiva enunciada no início do texto tem três idéias-força: 1a : a promoção da saúde deve ser o objetivo principal dos profissionais do PSF; 2a : é necessário construir um novo processo de trabalho; 3a : o atendimento deve ir além da queixa, ou seja, discutir os fatores envolvidos na queixa e no sofrimento. A idéia é que o novo modelo garanta a universalidade, a equidade, a integralidade, mas com um salto de qualidade, porque deve estar centrado na comunidade, considerando os aspectos antropológicos, sociais e culturais da população e tendo sempre presente o direito à saúde. A participação da população nos conselhos municipais de saúde e nas instâncias de decisão das políticas públicas relacionadas à saúde deve ser estimulada enquanto um exercício da cidadania. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Andrade, LOM, Relatório sobre a "Oficina de Promoção da Saúde no PSF", Documento mimeo, Sobral, 2002. Mendes Gonçalves, RB, - Tecnologia e Organização Social das Práticas de Saúde. Hucitec/Abrasco. São Paulo, 1994. Mendes, EV, Grandes Dilemas do SUS. Ed. Casa da Qualidade Salvador Bahia. 2001 Rompe-se com o modelo da epidemiologia tradicional ligada à doença e de propriedade dos médicos e enfermeiros, abrindo- se para a participação das pessoas da comunidade. ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 15 A A BIOÉTICA E A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA Bioethics and the Family Health Strategy O Sistema Único de Saúde, conquista do povo brasileiro garantida pela Constituinte de 1988, após anos de luta de inúmeroscidadãos, tem como princípios norteadores a Universalidade, a Eqüidade, a Acessibilidade e a Participação Social. Podemos afirmar que todos estes princípios estão de acordo com os da Bioética, ou melhor, se cumpridos, estarão possibilitando a efetivação dos mais importantes preceitos da Bioética. Também discutiremos no trabalho como a Estratégia de Saúde da Família pode vir e/ ou vem efetuando, na prática, princípios da bioética. Bioética; sistema único de saúde; estratégia de saúde da família; constituição. Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto Profa. Assistente da Fac. de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) Mestre em Saúde Pública Geison Vasconcelos Lira Médico, auditor da Coordenação de Controle e Avaliação do município de Sobral Especialista em Saúde do Trabalhador The Unified Health System, a conquest of the Brazilian people guaranteed by the 1988 Constituent Assembly, after yearsof struggle by innumerous citizens, has as guiding principles Universality, Equity, Accessibility and Social Participation. We can affirm that all these principles are in accord with those of Bioethics, or better, if fulfilled, will be enabling the bringing about of the most important precepts of Bioethics. We will also discuss in the task how the Family Health Strategy can turn out to and/or is turning out to carry out, in practice, principles of bioethics. Bioethics; unified health system; family health strategy; constitution. s i n o p s e ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ a b s t r a c t ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ p a l a v r a s - c h a v e ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ k e y w o r d s ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200316 OS PRINCÍPIOS A Universalidade é o princípio segundo o qual a "Saúde édireito de todos e dever do Estado". Aqui se pode inferir que se a Universalidade for efetivada, estar-se-á efetivando a "beneficência". A Eqüidade, princípio segundo o qual deve-se tratar "desigualmente os desiguais", privilegiando com mais investimentos em saúde as populações menos favorecidas, chega a ser referida por alguns autores como um dos princípios da bioética (Berlinguer, 1996). Segundo Berlinguer, pondo em prática a eqüidade, através de políticas públicas socialmente justas, o estado estaria contribuindo para que no futuro se alcance senão a igualdade entre pobres e ricos, a redução das desigualdades. A acessibilidade, segundo a qual o Estado deve prover fácil acesso aos serviços de saúde a todos os cidadãos brasileiros, cumpre também os preceitos bioéticos da beneficência e da eqüidade. A participação social, preceito constitucional que garante aos cidadãos brasileiros, através dos Conselhos de Saúde de âmbito nacional, estadual e municipal, o poder de controlar socialmente os serviços de saúde, garante o cumprimento do princípio bioético da "Autonomia", se analisado do ponto de vista da coletividade. Enfim, poderíamos afirmar: "a Constituição Brasileira, no que se refere ao capítulo da Saúde, é Bioética". Como a Estratégia de Saúde da Família pode vir e/ou vem efetuando na prática alguns princípios da bioética? Tentaremos, nos parágrafos seguintes, discutir como a Estratégia Saúde da Família vem promovendo os princípios da bioética no Brasil: Promovendo eqüidade: Informações divulgadas por agências internacionais como a OMS e o UNICEF, dão conta da crescente desigualdade social entre países industrializados e países em desenvolvimento e subdesenvolvidos. Hoje chama atenção o abismo entre os países europeus e da América do Norte, com relação aos países populosos e pobres da África, Ásia e América Latina. As diferenças na esperança de vida ao nascer entre um homem pobre da Europa e um igualmente pobre em um desses países, chega a vinte anos. O Brasil é conhecido internacionalmente pela grande desigualdade social, sendo que estas diferenças podem ser observadas entre distintas regiões do país, como o Sudeste e o Sul com relação ao Nordeste e o Norte, bem como, entre cidades de um mesmo estado e bairros de uma mesma cidade. As desigualdades existentes na nossa sociedade já foram bem evidenciadas por diversos estudos epidemiológicos de base populacional, do IBGE (2000) e de outros grupos de pesquisa brasileiros (Victora & Barros) que evidenciaram diferenças na esperança de vida ao nascer, nas curvas de mortalidade proporcional, na mortalidade infantil, na mortalidade específica por causas, na proporção de baixo peso ao nascer e diversos outros indicadores que demonstram como os menos favorecidos socialmente têm também menos "saúde". Mais recentemente, os especialistas em saúde pública tem denunciado uma nova epidemia no Brasil, "a Epidemia de Violência", relacionada ao tráfico de armas e drogas. O homicídio passa ser a principal causa de morte entre os adultos jovens, principalmente do sexo masculino (IDB, Brasil, 2001). Também com relação a este indicador os menos favorecidos socialmente são mais atingidos. A falta de perspectiva no futuro, faz com que centenas de jovens das favelas e bairros periféricos das grandescidades brasileiras ingressem na atividade do tráfico, reduzindo substancialmente seu tempo de vida. No interior de todo este quadro social e epidemiológico é que vem sendo implantada a Estratégia de Saúde da Família (ESF), as primeiras equipes em cidades de pequeno e médio porte, e, mais recentemente, em cidades de grande porte, como Curitiba, Belo Horizonte e São Paulo. A ESF iniciou sua implantação no Brasil em 1994, precedida pelo PACS, sendo que um de seus objetivos seria reduzir as iniqüidades em saúde, descentralizando e tornando mais acessível a atenção à saúde aos grupos sociais menos favorecidos. Neste sentido, as equipes de saúde da família foram inicialmente implantadas justamente na região Nordeste, e dentro desta, nos municípios do interior, onde o acesso a serviços de saúde foi historicamente mais difícil que nas capitais. Dentro dos próprios municípios do interior, organizaram-se equipes nos distritos rurais mais distantes e carentes, bem como nas favelas urbanas. Como justificativa recorreu-se ao princípio da eqüidade, que, segundo Berlinguer, é um mecanismo através do qual os gestores públicos podem promover igualdade social. Nos primeiros anos de implantação do PSF e, como forma de viabilizá-lo, foi utilizado o pagamento de maiores valores para as consultas médicas e de enfermagem realizadas pelas equipes de saúde da família, em relação àquelas efetuadas por outros serviços da própria rede pública e da rede credenciada, ou seja, os O Brasil é conhecido internacionalmente pela grande desigualdade social, sendo que estas diferenças podem ser observadas entre distintas regiões do país, como o Sudeste e o Sul com relação ao Nordeste e o Norte, bem como, entre cidades de um mesmo estado e bairros de uma mesma cidade. ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 17 profissionais de saúde da família passaram a receber remunerações relativamente maiores pelos mesmos procedimentos realizados em outros serviços. O que os gestores afirmavam naquele momento é que os procedimentos realizados pelas equipes de saúde da família tinham maior transcendência, visto que a permanência dos profissionais por mais tempo no serviço, a territorialização, o planejamento local estratégico e a adscrição de clientela, criavam condições para um vínculo efetivo entre os profissionais de saúde e a população, inexistente nos serviços ambulatoriais tradicionais do país. Muitos profissionais do setor, bem como segmentos da academia, não entenderam estas iniciativas, que estavam baseadas no princípio bioético da eqüidade. Estes incentivos financeiros vêm sendo mantidos pelo Ministério da Saúde, que hoje assume a ESF como estruturante do SUS. Aumentando a acessibilidade: Um outro aspecto fundamental da ESF foi o aumento da acessibilidade. Este fato pode ser facilmente verificado pelas informações (Machado, 2000) que demostram o aumento acelerado no número de profissionais dedicados a atenção básica à saúde, sejam os agentes comunitários de saúde, sejam médicos e enfermeiros, em todas as regiões do país, e, em especial, nas regiões menos desenvolvidas. Além deste fato, o estudo realizado com profissionais de saúde da família em 1999, com a participação de aproximadamente 50% dos médicos e enfermeiros membros de equipes de saúde da família naquele momento, evidenciou uma maior satisfação destes profissionais com o seu trabalho. A maioria dos participantes do estudo identificaram uma melhoria na relação com os usuários após seu ingresso em equipes de saúde da família. É de esperar-se que esta melhora na relação usuário-profissional, sentida pelos últimos, influencie para uma melhor qualidade da atenção à saúde e a construção de vínculos afetivos e culturais entre as equipes de saúde da família e a população por elas atendida (Machado,2000). Aumentando a participação social: A autonomia na perspectiva do coletivo vem sendo promovida pela ESF. Isto ocorre na medida em que as equipes facilitam e provocam a organização da comunidade nos Conselhos Locais de Saúde. Em inúmeras experiências da estratégia saúde da família no Brasil, vem-se observando a organização de redes sociais, como os grupos de interesse (grupos de caminhada, grupos de gestantes, grupos de mães, grupos de idosos, grupos de jovens etc.), promovidas pelas equipes. Estas redes sociais aumentam a autonomia de cada um de seus membros, assim como, a autodeterminação coletiva, favorecendo sentimentos e ações solidárias, bem como o resgate da auto-estima das pessoas beneficiadas com estas atividades. Promoção dos princípios da bioética do ponto de vista do indivíduo pela ESF: Promovendo o autocuidado / autonomia dos usuários No âmbito das relações individuais, entre médico/usuário, enfermeiro/usuário, auxiliar de enfermagem/usuário e agente comunitário de saúde/ usuário, segundo as diretrizes da estratégia saúde da família, deve-se estabelecer uma relação de respeito mútuo, com uma postura democrática do profissional em relação ao cidadão. O primeiro deve atuar também como educador, estabelecendo um diálogo com os usuários que possibilite ao mesmo tomar suas próprias decisões e ter papel ativo e autônomo em relação a realização de qualquer procedimento e ou tratamento, bem como, compreender melhor a determinação do seu processo de saúde - doença. O diálogo com a população atendida também se estabelece na medida em que são conhecidas e respeitadas práticas vigentes na Cultura Popular, como a utilização de medicamentos fitoterápicos e a fé nas lideranças religiosas populares, como as rezadeiras e curandeiros. Evidentemente, cabe aos profissionais das equipes de saúde da família alertar a população quando estas práticas trouxerem riscos para a saúde da população. É de esperar-se que esta melhora na relação usuário-profissional, sentida pelos últimos, influencie para uma melhor qualidade da atenção à saúde e a construção de vínculos afetivos e culturais entre as equipes de saúde da família e a população por elas atendida (Machado,2000). S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200318 Utilizando protocolos A adoção de protocolos clínicos de atenção básica à saúde, uma das medidas que deve ser implementada na ESF, utilizando-se como medicamentos e procedimentos pelas equipes, unicamente aqueles comprovados por evidências científicas, é uma medida através da qual dois princípios da bioética estão sendo efetivados, "a beneficência e a não maleficência (primo non nocere)". Neste sentido, esta prática deve ser estimulada. Que outros aspectos devem ser observados para que a ESF efetue os princípios da bioética? Intensificação das ações de promoção da Saúde e o estímulo ao autocuidado e autoconhecimento (princípio bioético da autonomia). Apesar dos progressos e ações já empreendidas pelas equipes de saúde da família no sentido de promover saúde, ao invés de apenas tratar as doenças, e estimular o autocuidado, é preciso reconhecer que o paradigma hegemônico de nosso sistema de saúde ainda é o da "Biomedicina", que compreende a saúde como sendo "a ausência de doença". As ações das equipes de saúde da família ainda vêm sendo medidas e acompanhadas com base neste paradigma e nos indicadores gerados por esta racionalidade, como os Indicadores de Mortalidade e Morbidade. É preciso criar e fortalecer dia a dia, a racionalidade da promoção da saúde, que entende saúde como resultante da qualidade de vida. As equipes de saúde da família precisam cada vez mais fortalecer as ações que intervenham na determinação do processo saúde-doença, seja no sentido mais amplo, o que incluiria ações multisetoriais de políticas públicas, seja no sentido mais restrito, que pressupõe mudanças nos hábitos de vida. Estas ações direcionam a população para um cuidado mais autônomo, desestimulando dependências desnecessárias com relação aos profissionais de saúde, medicamentos e exames complementares. As ações de promoção da saúde, que embutem a capacidadede alterar fatores intervenientes no processo saúde-doença, têm um potencial maior para estimular o autocuidado e a autonomia dos cidadãos, tendo em vista que oportunizam o aprendizado e a capacidade de cada usuário atuar sobre o referido processo. A FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE DA FAMÍLIA EM LARGA ESCALA: EFETUANDO A ACESSIBILIDADE No atual momento de implantação da ESF, o limitante mais importante tem sido a insuficiência dos profissionais de saúde para efetivação do número de equipes necessárias, tanto do ponto de vista quantitativo quanto do qualitativo. Isto se aplica principalmente no que se refere à categoria médica, que é escassa, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, e tem formação preponderantemente para atuar nos serviços hospitalares. A formação e capacitação de profissionais em quantidade suficiente e de boa qualidade para estratégia saúde da família, tornam-se então fatores essenciais para propiciar o acesso deste serviço a todos os brasileiros que dele necessitam. Alguns autores tem alertado para a necessidade de formação de profissionais de saúde da família em larga escala, dado o grande número de equipes já implantadas e a implantar nos próximos meses, pois só profissionais adequadamente capacitados poderiam realmente pôr em prática todos os objetivos da ESF. Do ponto de vista da formação profissional na graduação, o Ministério da Saúde deu um grande passo ao propor mecanismos de financiamento para as Faculdades de Medicina que se propusessem a realizar transformações curriculares que tornassem os cursos de graduação em Medicina capazes de formar um profissional que responda as necessidades do Sistema Único de Saúde. Desta forma o Ministério atende ao artigo 200 da Constituição que afirma que cabe ao Sistema regular a formação de recursos humanos para a saúde. CONSIDERAÇÕES FINAIS O SUS e a ESF, estratégia estruturante do primeiro, estão calcados por princípios jurídicos e normativos bioéticos. Resta aos gestores de saúde das três esferas do governo, federal, estadual e municipal, aos profissionais de saúde e aos cidadãos usuários destes serviços, empreenderem uma luta constante com o objetivo de efetuá-los na prática. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERLINGUER, GIOVANNI. Ética da saúde. Editora Hucitec. São Paulo,1996. 136p. VICTORA, CESAR & BARROS, FERNANDO. Epidemiologia da Desigualdade. São Paulo, HUCITEC, 1988. 187p. BRASIL. Ministério da Saúde. Rede Interagencial de Informações para a Saúde. Indicadores e Dados Básicos para a Saúde, 2001. MACHADO, MARIA HELENA. Perfil dos médicos e enfermeiros do Programa de Saúde da Família no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, 2000. 146p. FRANKLIN, A & SOUSA, M.F. Construção Cotidiana, Saúde da Família na prática: os princípios na visão de quem faz. Revista Brasileira de Saúde da Família. Ano II, no. 4, janeiro de 2002. Brasília: Ministério da Saúde. BARRÊTO, I.C.H.C.; OLIVEIRA, E.; ANDRADE, L.O.M.A . Residência em Saúde da Família de Sobral: um ano formando profissionais em larga escala. SANARE: Revista Sobralense de Políticas Públicas, v. 2, no. 3, out/dez, 2000. É preciso criar e fortalecer dia a dia, a racionalidade da promoção da saúde, que entende saúde como resultante da qualidade de vida. ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 19 O O PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA: UM COMPROMISSO COM A QUALIDADE DE VIDA The Family Health Program: a Commitment with the Quality of Life O Ministério da Saúde, as secretarias estaduais de saúde e os municípios que optaram por reestruturar o modelo de assistênciaà saúde e o aparelho formador de pessoal que colabora para viabilizá-lo, via Programa Saúde da Família (PSF), têm acompanhado, alimentado e enriquecido as discussões relacionadas ao tema qualidade de vida, que é ou deve ser o objetivo final deste programa. Vários grupos dentro do setor saúde e muitos fora dele tem se dedicado a conceituar qualidade de vida, partindo ou de revisões da literatura ou de premissas desenvolvidas por teóricos nacionais e/ou internacionais. Vamos apresentar vários componentes e características do conceito enunciados na literatura e discuti-los a partir de dados de experiências vivenciadas na prática, no contato com diferentes grupos da população. Carta de Ottawa; programa saúde da família; qualidade de vida. Márcia Faria Westphal Profa. Titular do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo The Ministry of Health, state health secretaries and the municipals which opted to restructure the health care model andthe personnel training apparatus that collaborates to make this feasible, via the Family Health Program (PSF), have accompanied, maintained and enriched discussions related to the quality of life theme, which is or should be the final objective of this program. Various groups within the health sector and many outside of it have dedicated themselves to evaluate the quality of life, coming from either published reviews or from premisses developed by national and/or international theoreticians. We are going to present several components and characteristics of the concepts expressed in publications and discuss them based on data from experience witnessed in practice, in contact with different groups of the population. The Ottawa Charter; family health program; quality of life. s i n o p s e ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ a b s t r a c t ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ p a l a v r a s - c h a v e ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ k e y w o r d s ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200320 O QUE É QUALIDADE DE VIDA? Qualidade de vida é "uma construção social, com marca darelatividade". Recentemente MINAYO, HARTZ E BUSS (2000), reviram a literatura e discutiram o conceito não conseguindo conceituá-lo a não ser "como uma noção polissêmica", "uma construção social, com a marca da relatividade". Segundo os autores "qualidade de vida abrange muitos significados, que refletem conhecimentos, experiências e valores de indivíduos e coletividades que a ele se reportam em variadas épocas, espaços e histórias diferentes...". De acordo com esta afirmação, a relatividade tem três fóruns de referência: o histórico – parâmetros de referência em relação a qualidade de vida de uma sociedade diferem em diferentes etapas da história; cultural – valores e necessidades são construídos e hierarquizados diferentemente pelos povos, revelando suas tradições; estratificações e classes sociais – o bem estar das camadas superiores é o padrão aspirado por todos e a passagem de um limiar a outro se faz na perspectiva de atingir este padrão superior. QUALIDADE DE VIDA E CONSUMO No momento atual em que iniciamos um novo século, o cenário mundial se apresenta como um movimento dinâmico de globalização no qual surgem, além de novas fronteiras econômicas, sociais e geográficas, crescentes conflitos culturais, religiosos e humanos. O Estado tem o seu papel modificado, sendo a ação governamental agora dirigida quase exclusivamente para tornar possível às economias nacionais desenvolverem e sustentarem condições estruturais de competitividade em escala global. O capitalismo então na sua terceira fase de desenvolvimento, se rege pelo mercado, baseia-se na flexibilidade em relação aos processos de trabalho, ao mercado de trabalho, aos produtos e aos padrões de consumo. Ao mesmo tempo com apoio dos novos sistemas de comunicação e informação, dos bancos eletrônicos e do "dinheiro de plástico" estas mudanças expandiram a sociedade de consumo. O ritmo do consumo acelerou-se em diferentes áreas: vestuário, ornamentos, decoração, hábitos de lazer, esportes e consumo de eletrônicos. O consumo de serviços aumentou não apenas o comércio, as necessidades de educação, saúde, mas grande parte do capital está sendo aplicado na provisão de serviços efêmeros que contribuem para alienar a população:diversões, espetáculos, hapennings, reality shows. Todas estas mudanças acentuaram a instabilidade dos princípios temporais que organizam a vida. Assim, neste novo século, as condições que favorecem positivamente o mercado, como o consumo, são vistas como boas, como positivas. O mundo de hoje nega o sistema, o coletivo, para afirmar o indivíduo, o diferente, o atípico. O homem não participa mais com as massas na política, mas dedica-se ao seu cotidiano, ao seu mundo. Envolve- se com as minorias, com as pequenas causas, com as metas pessoais e a curto prazo. Dentro deste contexto, o conceito de qualidade de vida – "padrão de consumo" – está se tornando hegemônico e a um passo de adquirir "significado planetário" (MINAYO, HARTZ E BUSS, 2000). "Conforto, prazer, boa mesa, moda , utilidades domésticas, viagens, carro, televisão, telefone, computador... entre outras comodidades e riquezas"... são valores do mundo ocidental, urbanizado, rico e muitas pessoas se mobilizam para adquirí-los, muitas vezes a qualquer custo (CARDOSO IN: HERCULANO 1998; MINAYO, HARTZ E BUSS, 2000). Justamente por existirem formas de conceituar qualidade de vida, como a já mencionada, isto é, consumo como sinônimo de qualidade de vida, do nosso ponto de vista, uma abordagem eticamente enganosa e alienante da população é necessário um trabalho de recuperação de valoress. Se considerarmos ainda o argumento do relativismo cultural, e de todo aporte da discussão que a literatura nos trás, é necessário estimular valores de solidariedade e justiça social, entre os profissionais do programa de saúde da família, para que possam combater a indiferença em relação à marginalização, a exclusão, à fome e à doença, problemas que estão na raiz dos conflitos, da violência e da má qualidade de vida da população. Mesmo considerando e valorizando o relativismo histórico e cultural, outros autores deste século, especialmente ligados à ciências sociais e filosofia vem discutindo formas de conceituar qualidade de vida, a partir de universais da cultura e atendimento de necessidades de sobrevivência. Qualidade de vida contempla aspectos relacionados as condições materiais de vida e à subjetividade nas relações dos homens entre si e com a natureza. O homem não participa mais com as massas na política, mas dedica-se ao seu cotidiano, ao seu mundo. Envolve-se com as minorias, com as pequenas causas, com as metas pessoais e a curto prazo. Qualidade de vida contempla aspectos relacionados as condições materiais de vida e à subjetividade nas relações dos homens entre si e com a natureza. ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 21 A leitura dos textos destes autores sobre a determinação da qualidade de vida permitiu observar uma tensão constante entre o fato da mesma estar relacionada a fatores objetivos, tais como as condições materiais necessárias à sobrevivência (status sócio- econômico, renda, habitação, acesso à agua pura, saneamento básico, educação, emprego ou trabalho e outros) ou a fatores subjetivos tais como a necessidade de se relacionar com outras pessoas, formar identidades sociais, sentir-se integrado socialmente e em harmonia com a natureza, atitudes, percepções, sentimentos, religião, crenças, tendência política, avaliação que o indivíduo faz da sua qualidade de vida). Há autores que expressaram posições radicalizadas relacionadas a valorização de um dos dois fatores (DUBOS, 1970, ANDREWS & WITNEY, 1976, BERLIGUER, 1983, COIMBRA, 1985, ROCHE, 1990, CROCKER, 1993, HERCULANO, 1998). Para SÉTIEN a qualidade de vida deveria atender a dimensões objetivas e subjetivas, mas sob a ótica coletiva e não individualizada, relacionada a satisfação global dos grupos, comunidades ou sociedades priorizando o bem estar social. A partir do crescimento do movimento ambientalista na década de 70, a maior parte da literatura consultada, entretanto, segue uma tendência preponderante da consideração de dois tipos de fatores na constituição de um conceito orientador de ações: os aspectos humanos e os ambientais. A perspectiva ambientalista acrescenta o questionamento dos modelos de bem estar predatórios, agregando fortemente às preocupações anteriores, a visão da ecologia humana (CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1992; CONFERÊNCIA PAN – AMERICANA SOBRE SAÚDE E AMBIENTE NO DESENVOLVIMENTO HUMANO SUSTENTÁVEL, 1995). PRÉ-REQUISITOS PARA A SAÚDE E A QUALIDADE DE VIDA No campo da saúde, o discurso da qualidade de vida, embora bastante inespecífico e generalizante, existe desde o nascimento da medicina social, nos séculos XVIII e XIX. Nos últimos anos esta discussão tem no conceito de Promoção de Saúde e nos textos básicos das Conferências Internacionais desta área sua fonte inspiradora. Segundo o nosso entendimento a Carta de Ottawa que sintetiza as conclusões da I Conferência Internacional de Promoção de Saúde enfatiza também aspectos humanos e ambientais, a objetividade e a subjetividade em conjunto, como pré- requisitos para qualidade de vida e saúde de indivíduos e coletividades. Os pré-requisitos para os quais chamou a atenção foram: a paz; posse de uma habitação, que atenda à necessidade básica de abrigo, adequada em termos de dimensões por habitante, condições de conforto térmico e outras; acesso a um sistema educacional eficiente, em condições que favoreçam a democratização da informação e formação dos cidadãos; disponibilidade de alimentos em quantidade suficiente para o atendimento das necessidades biológicas, promoção do crescimento e desenvolvimento das crianças e adolescentes e reposição da força de trabalho; renda suficiente para o atendimento às necessidades básicas e pré-requisitos anteriores; recursos renováveis garantidos por uma política agrária e industrial voltada para as necessidades da população e o mercado interno e não somente exportação e importação, ecossistema preservado e manejado de forma sustentável – (OPAS, 1996, STROZZI & GIACOMINI, 1996). As recomendações desta Carta na prática das equipes de Saúde da família é que farão a diferença destes em relação aos programas tradicionais e que garantirão a mudança de paradigma, de práticas e de resultados. A discriminação deste pré-requisitos, nesta perspectiva ampliada da saúde não permite mais a restrição das ações relacionadas a resolução das questões da qualidade de vida, ao setor saúde. Clama as diferentes instituições e os diferentes atores sociais a verificar como a sociedade está satisfazendo as necessidades básicas da população, a distribuição de bens e serviços, as carências decorrentes de iniqüidades. A qualidade de vida também é desenvolvimento de capacidades humanas básicas e com a participação dos grupos populacionais Uma discussão atual e com potencial para questionar este fluxo hegemônico é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de autoria de Nussbaum e Sen e o conceito subjacente a ele. Esses autores influenciados pelos conceitos e a ética de Aristóteles e os conceitos de Marx, elaboraram uma concepção da "existência e do florescimento humano" e a partir disto propuseram a forma atual de desenvolvimento do Índice (CROCKER, 93). Dentro desta perspectiva ética do desenvolvimento, definem ... I Conferência Internacional de Promoção de Saúde enfatiza também aspectos humanos e ambientais, a objetividade e a subjetividade em conjunto, como pré-requisitos para qualidade de vida e saúde de indivíduos e coletividades. S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200322 qualidade de vida a partir de dois conceitos: "capacidade", que representa as possíveis combinações de potencialidades e situações que uma pessoas está apta a "ser" ou "fazer" e "funcionalidade" – que representa partes do estado de uma pessoa – as várias coisas que ela faz ou é. Para os autores então, qualidade de vida pode ser avaliada em termos de "capacitação para alcançar funcionalidades elementares – alimentar-se,ter abrigo, saúde – e as que envolvem auto respeito e integração social – tomar parte na vida da comunidade". A capacitação dependerá de muitos fatores e condições, inclusive da personalidade do indivíduo, mas principalmente de acordos sociais e de participação da população. Com este enfoque os autores privilegiam a análise política e social das privações – valorizando as oportunidades reais que as pessoas tem a seu favor. Nesta perspectiva "qualidade de vida não deve ser entendida com um conjunto de bens, confortos e serviços, mas através destes, das oportunidades efetivas das quais as pessoas dispõe para ser e se realizar no passado e no presente"... e no futuro (HERCULANO, 1998). Nesta perspectiva o bem estar ou a melhoria da qualidade de vida, a possibilidade de ser ou de se realizar depende de uma opção política de desenvolvimento a partir da democratização da socieda- de. Uma opção política para obtenção de acordos sociais seria a ética da solidariedade, que consiste em um esforço de mudança do Estado em sua relação com a sociedade que se expressa pela formação de novas modalidades de parceria entre a sociedade e o governo para resolução dos grandes e complexos problemas que vivemos. O processo de democratização complementarmente se propõe a, através da educação, ampliar as possibilidades da cole- tividade influenciar nas decisões que dizem respeito à ela e parti- cipar na vida comunitária se disponibilizando como coletividade, a ser influenciado por ações passadas e presentes. QUALIDADE DE VIDA, HÁBITOS E ESTILOS Ainda, para podermos encontrar o caminho mais adequado para tratar a questão da qualidade de vida no mundo atual, em função de um novo modelo de desenvolvimento, é necessário colocar em questão uma assertiva, um componente muito presente em programas do setor saúde e em programa de "qualidade na empresa". A concepção a ser discutida é a que encara a depreciada relação ser humano/natureza, como decorrente basicamente dos comportamentos inadequados dos indivíduos, buscando adentrar o campo das forças que determinam estes comportamentos, para modificá-los. A mudança de comportamento ou de estilo de vida surge como uma importante estratégia para a consecução da qualidade de vida. Na medida em que não se consegue modificar o comportamento "deletério à saúde" ou qualidade de vida de um indivíduo ou de uma coletividade, transforma-se a vítima, que geralmente vive condições adversas de vida, em culpada por não querer assumir um estilo de vida considerado "de qualidade", "saudável", e por conseqüência não ter um padrão de saúde adequado. CONCLUSÕES A RESPEITO DO CONCEITO DE QUALIDADE DE VIDA Em síntese, um conceito de qualidade de vida orientador de ações deve considerar a relatividade histórica, cultural e social. Neste início de século, a complexidade que ele representa em um mundo também difícil e complexo, reflete a organização política e social do momento e do passado recente com todas sua dinâmica. Não representa somente a possibilidade de consumir bens duráveis e não duráveis, fundamentais para a sobrevivência e os supérfluos, nem depende exclusivamente dos indivíduos assumirem estilos de vida saudáveis. Integra muitas dimensões, tantas decisões políticas quantas estiverem interferindo no nosso desenvolvimento econômico, social e humano e tantas condições políticas, de vida e trabalho quantas forem necessárias para que possa vir a ser empregado como substrato de uma crítica em profundidade a um estilo de desenvolvimento vigente, que valoriza o indivíduo e o consumo que ele pode gerar. O movimento pela qualidade de vida neste momento não é considerado apenas um modismo, mas um movimento de indagação sobre o futuro, onde a desigualdade está presente de forma contundente. Enfim conceituar qualidade vida, tentando resgatar o princípio ético da vida, como o fizeram os participantes da Conferência de Ottawa é fundamental (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001). Uma conceituação deste tipo, estimula as diferentes instituições e os diferentes atores sociais a verificar como a sociedade está satisfazendo as necessidades básicas da população, a distribuição de bens e serviços, as carências decorrentes de iniqüidades e da falta de oportunidade de adquirir conhecimentos orientadores de práticas mais saudáveis. ... a ética da solidariedade, que consiste em um esforço de mudança do Estado em sua relação com a sociedade que se expressa pela formação de novas modalidades de parceria entre a sociedade e o governo para resolução dos grandes e complexos problemas que vivemos. ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 23 Este trabalho entretanto não é fácil. Geralmente os profissionais de saúde têm seus valores pessoais e profissionais e como pertencem a uma classe diferente da população em geral, em função do relativismo do mesmo já mencionado, têm dificuldade de entender, a partir dos discursos da população os seus conceitos de qualidade de vida e agem preconceituosamente em relação à priorização que a população dá às suas necessidades e seus sonhos. Para exemplificar isto temos uma história verídica a contar. Certa vez em uma cidade pequena do interior de São Paulo, a universidade trabalhando junto ao Departamento de Saúde local na implementação do SUS e seus princípios, levou a efeito um levantamento de necessidades junto a grupos organizados da população do município e o lazer apareceu como uma ação prioritária a ser atendida pelo governo local, juntamente com a oferta de capacitação profissional para os adolescentes fora do horário escolar. O Serviço de Saúde local neste momento em expansão, estava com dificuldades de conseguir verba da prefeitura para a extensão dos serviços de atenção à saúde da comunidade e o prefeito, desonesto e interessado em superfaturar obras, aproveitou a oportunidade para começar a construção de um ginásio local de esportes. O chefe do Departamento de Saúde não quis negociar e inclusive considerou problemática a ação da universidade que havia interferido negativamente na negociação de verbas para a saúde. O chefe do Departamento do Serviço de Saúde levou a efeito investigações que comprovaram a desonestidade do prefeito e este foi colocado em disponibilidade, tendo o ginásio de esportes ficado com suas obras paradas por muitos anos. Naquele tempo, 1990 ainda não se discutia Promoção de Saúde e tudo ficou como distorção da pesquisa e ação enganosa do Prefeito. Somente em 2000 este ginásio ficou pronto e em uso. Não sabemos se agora a comunidade tem lazer neste local. Hoje, revendo esta questão ficaram comprovadas duas coisas, que nós profissionais de saúde perguntamos à comunidades seus interesses, mas na maior parte das vezes não ouvimos e não entendemos ou não conseguimos dialogar com pessoas que tem pontos de vista diferentes dos nossos. Fazemos aquilo que tecnicamente consideramos correto do ponto de vista epidemiológico e de técnicas de gestão, ignorando o que ouvimos, considerando que a população não sabe o que melhor para ela, ou melhor não sabe o que precisa para melhorar suas condições e qualidade de vida. As soluções exclusivamente técnicas as vezes, podem não ser acertadas, porém isto não quer dizer que o técnico tenha que se omitir, bem como a população também precisa participar das decisões porque é ela que vive o dia a dia, no território geográfico e de relações. É ela que conhece a história e que a partir de seu mundo aspira ter tudo aquilo que a mídia lhe apresenta como valor. É ela que não tem condições para mudar seus estilos de vida e torná-los mais saudáveis, é ela não tem água, que não tem esgoto e local para colocar o lixo para ser recolhido. É ela que vive o stress do trabalho, do desemprego, da fome, da habitação acanhada e da falta de espaço para fugir de todas estes problemas. Hoje a partir do conceito de Saúde e das estratégias de Promoção da saúde, nosso horizonte se amplia, mas o risco do preconceito continua.Vários grupos começam a colocar na mesa seus pontos de vista, discutir e argumentar, técnicos e população e negociar soluções, compreendendo que os valores e as necessidades são relativos, que os comportamentos necessitam de condições para serem modificados e que a síntese cultural deve ser buscada para que a solução seja a mais acertada possível. A identificação dos problemas e a consciência da causalidade fortalece os grupos e segmentos da população e colabora para a organização dos mesmos no sentido de que planejem e implementem iniciativas saudáveis que colaborem para a melhoria das condições de vida e trabalho e para que se reunam para advogar junto ao Estado, as condições necessárias à garantia dos direitos humanos básicos e para trabalhar de forma articulada e parceira com ele para a resolução dos problemas do país. A QUALIDADE DE VIDA E O PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA Uma estratégia adotada para implementar o Sistema Único de Saúde (SUS) é o Programa de Saúde da Família, que deve se responsabilizar por atender às demandas relacionadas ao diagnóstico e tratamento de doenças das famílias que vivem no território onde a mesma atua, identificar e promover o controle dos fatores de risco destas doenças e desenvolver atividades, para que os pré-requisitos sintetizados na Carta de Ottawa para saúde e qualidade de vida da população sejam atendidos. Ações individuais, coletivas, com base na ética da solidariedade e que busquem a sustentabilidade e respeito nas relação do homem com a natureza precisam ser programadas e desenvolvidas. O programa de saúde da família tendo uma atuação mais ampla poderá dar uma contribuição importante para a mudança de modelo e atendimento das necessidades da população. Há, entretanto, uma demanda de trabalho para os profissionais de saúde envolvidos nos programas de Saúde da Família que é, por assim dizer, adicionada à demanda tradicional. No campo da prática, ao mesmo tempo em que o profissional deve dar conta de tarefas tradicionais, sobretudo as de caráter técnico, Ações individuais, coletivas, com base na ética da solidariedade e que busquem a sustentabilidade e respeito nas relação do homem com a natureza precisam ser programadas e desenvolvidas. S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200324 necessita compreender o que é trabalhar pela qualidade de vida hoje. Mais do que isso, deve ser preparado, com o conhecimentos e a habilidades para a interlocução, para se dirigir a um público mais amplo do que fazia tradicionalmente, e principalmente, para incorporar em suas tarefas e aptidões o universo político que o rodeia. Há uma demanda extensa por parte de um público, até certo ponto incomum, para o profissional que se insere neste campo de trabalho. A interdisciplinaridade e a interse- torialidade, condição básica para a resolução dos complexos problemas de qualidade de vida, trazem dificuldades que lhe são inerentes e desafios que não são novos (BUSS, 1996). Aqui talvez resida o maior desafio e grande parte da missão da equipe de saúde da família e dos profissionais que a integram, especialmente no atual estágio de construção em que o modelo se encontra e no enfrentamento dos complexos problemas do mundo contemporâneo. Os profissionais, para desempenhar o papel de promotores da qualidade de vida, devem ser capazes de fazer uma avaliação crítica da realidade, serem autônomos e aptos ao diálogo técnico e leigo com os mais variados setores. Devem ainda estar habilitados a desempenhar atividades antes não requeridas, como a atuação política junto a grupos populacionais, institucionais e órgãos de administração pública. As Unidades de PSF e seus profissionais responsáveis têm que se preocupar com a apresentação e as interações que ocorrem no seu ambiente interno. O ambiente dos serviços de saúde nem sempre representam aquilo que se ensina para a população nos atendimentos domiciliares ou nas unidades. Nem sempre o ambiente dos mesmos favorece o bem estar físico, mental, social e espiritual dos seus profissionais, dos seus funcionários e muito menos usuários durante a permanência nas suas dependências. O clima de competição entre os profissionais e ou funcionários, a mudança da relação espaço/tempo tanto para profissionais como para funcionários vem favorecendo a criação e permanência do estresse, violência e outros problemas de origem emocional em ... cada Unidade de Saúde da Família e sua equipe, precisa se conscientizar de sua responsabilidade em relação à qualidade de vida das pessoas que convivem nas suas dependências, no dia a dia, e assumir concretamente um projeto interdisciplinar, intersetorial e ético para ser desenvolvido com este objetivo, dentro e fora da Unidade. suas dependências. A carga psicológica do trabalho, muitas vezes juntamente com o baixo salário e riscos de acidentes do trabalho introduzem a necessidade de análise da organização do trabalho e prescrição tecnológica inerente à saúde do trabalhador. Os ambientes administrativos, de atendimento e laboratórios criados sem preocupação com o bem estar dos indivíduos que os freqüentam, fazem-nos pensar em abordagem ambiental interna para as áreas, com controle atmosférico de poluentes químicos e biológicos, controle de som e iluminação. Muitas práticas realizadas nas Unidades de saúde se caracterizam por manter o statu quo, por desenvolver pouca consciência social, por tentar instigar comportamentos inaceitáveis, mais do que encorajar as pessoas a mudar a sociedade e por culpar a vítima por seus comportamentos inadequados. O que existe de positivo ou de mudanças correspondem a esforços isolados e algumas unidades e baseada em uma visão parcial do que seja qualidade de vida ou de qual seja a contribuição da mesma para sua transformação. Para uma contribuição efetiva para o tema, cada Unidade de Saúde da Família e sua equipe, precisa se conscientizar de sua responsabilidade em relação à qualidade de vida das pessoas que convivem nas suas dependências, no dia a dia, e assumir concretamente um projeto interdisciplinar, intersetorial e ético para ser desenvolvido com este objetivo, dentro e fora da Unidade (BUSS, 2000). A QUALIDADE DE VIDA MENSURADA EM TODOS OS SEUS ASPECTOS A qualidade de vida como um objetivo a ser atingido por Programas de Promoção de Saúde como o Programa de Saúde da Família, precisa mensurar seus resultados e compreendê-los para melhorar constan- temente suas possibilidade de melhorar as condições de vida e trabalho da população, em conjunto com outras iniciativas existentes nas comunidades onde atuam. O índice de desenvolvimento humano proposto por Sen & Naussbaum, o IDH ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 25 (CROCKER, 93), mensura a qualidade de vida obtida a partir de vários modelos de desenvolvimento utilizados do primeiro, ao terceiro mundo. Apura não só o desenvolvimento da produção a partir de dados do PIB per capita, mas verifica a expectativa de vida ao nascer que afere as possibilidades de adoecimento na população e a alfabetização que contabiliza o acesso a escolarização. Contudo, falham do ponto de vista de muitos autores, por não incorporarem a dimensão ambiental, o que possibilitaria a percepção sobre o estado do ecossistema, muito importante, especialmente nos dias de hoje, com a urbanização e a industrialização, degradando a qualidade de vida nas cidades. Falham também por não incluir indicadores e metodologias qualitativas de pesquisas que dêem conta dos aspectos subjetivos e da complexidade do conceito. Outros indicadores precisam ser criados pelos programas de Saúde da Família pensando principalmente na relatividade cultural e estrutural do conceito, como também será importante participar do jogo de construção de indicadores e mensuração a partir de um conceito que considere o contexto sócio- econômico-cultural, a história, as condições objetivas de vida e as potencialidades de
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