Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 USO RACIONAL DE MEDICAMENTOS: O uso de medicamentos a partir do olhar antropológico. Prof. Dr. Orenzio Soler Pesquisa-Ação: Farmácia-Social Departamento de Medicamentos. Faculdade de Farmácia. Universidade Federal do Rio de Janeiro. orenziosoler@gmail.com https://sites.google.com/site/petpirai/o-projeto-1 Medicamentos: bem sanitário versus bem econômico O uso de substâncias com objetivos terapêuticos praticamente acompanham a história da humanidade. Já há mais de 3.500 anos, o Papiro de Ebers relacionava mais de 700 produtos medicinais e os textos mais antigos sobre os fármacos chineses parecem ter sido compilados aproximadamente em 200 a.C (COHN, 1991; PELLEGRINO, 1976). Ainda de acordo com os autores recém referidos, na Europa, as ervas mais antigas que se tem conhecimento foram compiladas por Diocles de Karistos e por Teofrasto de Éfeso, no século IV a.C. Dentro do modelo de assistência à saúde excessivamente medicalizado e mercantilizado que se desenvolveu no mundo ocidental contemporâneo, os medicamentos continuaram a ocupar um espaço importante no processo saúde/doença, sendo, hoje, praticamente impossível pensar a prática médica ou a relação médico/paciente/farmacêutico sem a presença desses produtos. Segundo Soler (2004), no discurso da biomedicina, a doença se apresenta como o resultado da ação de agentes específicos em locais específicos do organismo podendo, portanto, ser curada pelas “balas mágicas” desenvolvidas pela tecnociência moderna dentro de ditos rigorosos parâmetros científicos e racionais. Nesta perspectiva, o tratamento chama pela concepção tanto quanto à concepção chama pelo tratamento (ALLAND, 1970; PELLEGRINO, 1976). Assim, para um problema considerado físico, o ideal é um remédio físico, um objeto concreto. Esse modelo, que coloca a doença como central leva ao distanciamento e a objetivação dos pacientes para a deterioração da relação médico-paciente-farmacêutico e à perda do papel milenar terapêutico da medicina, enquanto arte de curar, em proveito da diagnose e das ciências das doenças. O efeito de qualquer medicamento em um indivíduo, ou seja, o efeito total da droga depende de uma série de elementos para além das suas propriedades farmacológicas. Dentre elas, pode-se destacar: a) os atributos das drogas em si (sabor, aroma, forma, cor, nome); b) os atributos do paciente recebendo o medicamento, tais como experiência, educação personalidade, aspectos sócio-cultural; c) os do prescritor ou dispensador do produto, que incluem a personalidade, status profissional ou autoridade; d) as condições e locais em que a 2 droga é administrada (LEFEVRE, 1991, p. 36). Esses fatores não farmacológicos, tanto podem intensificar como reduzir o efeito da droga e estão entre os responsáveis pela enorme variabilidade na resposta individual à terapêutica medicamentosa. A efetividade do medicamento precisa ser compreendida a partir de uma perspectiva fundamentada no modelo científico experimental (medicina e farmácia baseada em evidência), o qual, em si, só tem limitações. As pessoas leigas ou profissionais de saúde não utilizam medicamentos apenas por conta dessa eficácia clínica ou efetividade epidemiológica (FAUS, 2000; LEFEVRE, 1991; WHYTE, 1992). Contudo, mais que suas funções farmacológicas, o que os tornam tão populares, tanto entre leigos como entre profissionais de saúde, são seus significados simbólicos, culturais e sócio-econômicas. Estudos antropológicos, como os já clássicos, enfatizam a eficácia dos símbolos que curam pacientes, sendo e que cerca de 60% da ação dos medicamentos devem-se à confiança que os pacientes depositam nele e não à ação farmacológica dos princípios ativos que contém (LAPORT, TOGNONI, 1989; LÉVI-STRAUSS, 1989). Esta confiança no medicamento está, por sua vez, estreitamente ligada à confiança depositada no médico que o prescreve e no farmacêutico que o dispensa. A lógica do simbolismo dos medicamentos, nas assim chamadas sociedades “primitivas”, implica uma perspectiva de magia, fetichismo ou animismo. A importância dos pajés, mas também de herbalistas, benzedores é essencial em tal contexto (LEFEVRE, 1991; LÉVI- STRAUSS, 1989), especialmente no que diz respeito à relação usuário/especialista. Entretanto, há de se ressaltar que essa lógica persiste embora transformada, como por exemplo, a pajelança entre a população cabocla da Amazônia brasileira. Até recentemente, poucos estudiosos vinham trabalhando o medicamento numa abordagem cultural, onde o mesmo é uma substância terapêutica sintetizada, manufaturada, distribuída e comercializada, com uma função central na saúde. Ainda em 1980, por exemplo, poucos pesquisadores (ALLAND, 1970; LÉVI-STRAUSS, 1989) haviam dado início a estudos sistemáticos no campo farmacêutico como fenômeno social e cultural. Houve, a partir dessa percepção, severas críticas ao superconsumo e/ou uso irracional de serviços médicos e de produtos farmacêuticos. Mesmo assim, olhar o medicamento como fenômeno social e cultural ainda é visto como algo exótico. Isso se deve, dominantemente, ao fato de ser o medicamento nas sociedades modernas, a tecnologia mais utilizada pela medicina atual. Estudos de antropologia dos medicamentos reforçam o ponto de vista de que a eficácia dos medicamentos não pode ser limitada ao domínio médico, uma vez que seus efeitos são 3 também sociais, culturais, psicológicos e mesmo metafísicos. Assim, há uma complexidade de fatores que condicionam essa eficácia. Ainda, no campo antropológico e sociológico dos medicamentos modernos, pode-se afirmar, por exemplo, que seu forte poder e apelo está no fato deles simbolizarem não só a saúde como também o poder da moderna tecnologia científica. Segundo Tucker (1997) e Faus (2000), há pessoas que vêem os medicamentos tanto como um fator de dependência a eles próprios e aos profissionais de saúde, quanto como fator importante na normalização de suas vidas, na medida em que permitem a retomada de suas atividades normais, cotidianas. Ainda nesta direção, as pessoas percebem esses bens no sentido de legitimar a doença e o doente, apresentando-se com a prova concreta de que determinado indivíduo é incapaz de trabalhar ou de ser normal. No imaginário coletivo, os medicamentos simbolizam a saúde concretizada em comprimidos, ampolas, etc., mas também significam falta de saúde. Podem tanto representar a atenção e preocupação dos familiares e médicos, como também, serem considerados na ausência dos mesmos, uma alternativa para falta de atenção e cuidados. Há, ainda, os que os compreendem tanto como meios de comunicação quanto como indicadores de não- comunicação. Podem ser considerados os resultados de um dado conhecimento, isto é, a seleção de certo medicamento como prova concreta de uma certeza quanto ao diagnóstico (CHETLEY, 1994; DUCKES, 1993 LAPORT, TOGNONI, 1993). Porém, também, podem ser vistos como indicativo de não-conhecimento quando o medicamento vem sendo prescrito como uma tentativa de ensaio e erro, uma vez que a causa do problema é desconhecida. Igualmente, as propagandas de medicamentos são outras importantes fontes de análise. Os produtores de medicamentos manipulam os significados simbólicos dos medicamentos e da moderna terapêutica em suas estratégias mercadológicas, que reduzem a ambivalência dos medicamentos (FAUS, 2000; TUCKER, 1997). O fármaco tem pelo menos dois sentidos, o de veneno e o de medicamento. A industria farmacêutica, contudo, distorce-o para um sentido único, de valor positivo, a fim de atender aos interesses mercadológicos dos fabricantes. Na vigência de uma consciência em que a saúde é identificada como um bem, o medicamento assume a dimensão de instrumento principal na manutenção e recuperação deste bem. Por outro lado, o medicamento nas mãos do médico ganha outros atributos, que o transforma em instrumentocapaz de sintetizar as etapas e os significados do ato clínico. Conforme já referido, em muitos casos, a prescrição torna-se uma estratégia para encobrir as incertezas médicas. 4 Por ser um poderoso artifício técnico e um símbolo cultural, os medicamentos adquirem status e força na sociedade. Os medicamentos são, hoje, veículos de ideologia, facilitadores de auto-atenção e percebidos na sua origem, eles direcionam o pensamento e as ações das pessoas, influenciando sua vida social. Neste contexto, há que se promover o uso racional de medicamentos justificado pelos dados apresentados a seguir: 15% da população consomem mais de 90% da produção farmacêutica; 25-70% do gasto em saúde nos países em desenvolvimento correspondem a medicamentos, comparativamente a menos de 15% nos países desenvolvidos; 50-70% das consultas médicas geram uma prescrição medicamentosa; 50% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou usados inadequadamente; 75% das prescrições com antibióticos são errôneas; 53% de todas as prescrições de antibióticos nos USA são feitas para crianças de 0 a 4 anos; Somente 50 % dos pacientes, em média, tomam corretamente seus medicamentos; Cresce constantemente a resistência da maioria dos microrganismos causadores de enfermidades infecciosas prevalentes; Aos dois anos de idade, algumas crianças receberam 20 injeções; A metade dos consumidores compra medicamentos para tratamento de um só dia (BRUNDTLAND , 1999). Dentre os problemas que dificultam o uso racional de medicamentos, destacam-se: Multiplicidade de produtos farmacêuticos; Crenças e expectativas dos usuários; Características do prescritor; Interesses e pressões da indústria farmacêutica; Influência da mídia leiga; Automedicação; Falta de informação ao paciente; Multiplicidade de produtos farmacêuticos. Em 2000, o mercado mundial de medicamentos mobilizou cerca de 400 bilhões de dólares. O Brasil, Argentina e México representam 75% do mercado farmacêutico na América Latina. No Brasil, em 2002, comercializaram-se 15.831 apresentações de medicamentos. Entretanto, 1/3 da população mundial não tem acesso regular a medicamentos essenciais. Não há correlação entre gastos sanitários de um país e nível de saúde da população. Dentre os fatores que levam as pessoas a usarem estes produtos de modo irracional, têm-se a compulsão por uso de medicamentos; a „necessidade‟ de receber prescrição; as crenças e fantasias sobre medicamentos; a desconfiança das medidas reguladoras. Quanto aos prescritores, observa-se uma „necessidade‟ de prescrever algo; a “liberdade” de escolha; as crenças e idéias preconcebidas sobre medicamentos; a comodidade e sensação de „dever cumprido‟; „Informação errônea‟ da indústria farmacêutica e da mídia leiga; interesses 5 financeiros e conflitos de interesses; desconhecimento científico, pressão da indústria de medicamentos, interpretação errônea da informação especializada; falta de informação ao paciente; desconhecimento dos objetivos terapêuticos. Há problemas também quanto ao uso errôneo, principalmente quanto a horários e duração de tratamento; desconhecimento de interações com alimentos e outros medicamentos; falta de adesão pelo surgimento de efeitos adversos inesperados; conseqüências do uso não- racional; prescrição desnecessária, particularmente de antibióticos e medicamentos injetáveis; tratamentos ineficazes e inseguros; exacerbação ou prolongamento da doença; aumento de reações adversas; desconforto e dano ao paciente; aumento de resistência microbiana; desbaratamento de recursos (individual e coletivo); falta de acesso; aumento da demanda de medicamentos pelos pacientes; perda de confiança do usuário no sistema de saúde. Mais uma vez reiteramos de que a produção e difusão de conhecimento sobre padrões quantitativos de utilização de medicamentos, perfis de prescrição, qualidade do que se usa, automedicação, vendas e custos comparativos contribuem decisivamente para a formação de uma consciência crítica entre profissionais que prescrevem, que dispensam e os que consomem medicamentos; o que nos permitem obter informações sobre o papel desempenhado pelos medicamentos na sociedade. Vida social do medicamento Ainda, pelo enfoque antropológico o medicamento cumpre todo um ciclo de atividades que vai desde o desenvolvimento do fármaco até o seu uso racional. Pode-se, sim, inferir uma ordem biográfica em sua vida social a partir das transações e fluxos dos produtos farmacêuticos (WHYTE, 1992). Desse modo, há que se perceber que em cada estágio têm atores e um regime de valores próprios (TUCKER, 1997). Assim sendo, tal ordem compreende diferentes cenários, que por sua vez, são associados a processos de muita complexidade. Para melhor visualizar, resume-se a diversidade desses contextos: Cenário I – é representado pelos cientistas e os empresários farmacêuticos, que tem sobre suas responsabilidades desenvolver e produzir os medicamentos; nesse cenário a percepção predominante é a do medicamento como competição comercial. Cenário II – é representado pelos distribuidores no atacado e no varejo e os comerciantes leigos; sem formação formal; nesse cenário a percepção predominante é a do medicamento como uma mercadoria, e tem como função a distribuição e a acessibilidade. 6 Cenário III – é representado pelos prescritores e os consumidores em um contexto de prática médica; fase essa que provê o usuário de um pedaço de papel, muitas vezes representativo da salvaguarda das incertezas e inseguranças médicas. Cenário IV – é representado pelos proprietários de farmácias; leigos ou com formação formal – que as vêem meramente como estabelecimento comercial, e pelos consumidores onde a "automedicação" e "empurroterapia" são frutos de uma percepção equivocada do medicamento como uma "bala mágica". Cenário V – é representado por um pequeno segmento – profissional com formação formal e usuários – que já tem a percepção do medicamento como um bem sanitário e que imprescindivelmente seu uso deve estar atrelado à racionalidade e fundamentado na sua eficácia, efetividade e eficiência. O cumprimento dos objetivos da "vida do medicamento" repousa em seus efeitos sobre o bem-estar da pessoa que o utilizou. Neste cenário a farmácia é percebida como um serviço de saúde. O campo da assistência farmacêutica, componente da política de saúde no Brasil, ainda enfrenta problemas e limitações de grande porte nos diferentes cenários apresentados (SOLER, 2004). E, em uma cadeia de desdobramentos, estes evidenciam as distorções e os impasses gerados pelas desigualdades sociais e econômicas ainda existentes no país que impõem restrições ao pleno acesso a medicamentos. Os recursos e insumos de saúde têm seus próprios mercados. Em cada um desses mercados há ofertas por meio dos provedores, necessidade dos compradores e receptores e um sistema de relações entre oferta e demanda exemplificado pelas regras de mercado e regulação (COHEN, 2000; PELLEGINO, 1976). As quantidades e os preços dependem das características e práticas comerciais da oferta e da demanda, e da maneira como ambas se relacionam entre si. Em saúde, como tem passado freqüentemente na política e na economia, todos os prognósticos têm falhado. A velocidade com que se produzem as alterações nas sociedades, com a qual, aparecem e são erradicadas as enfermidades, tem deixado atônitos a alguns, imóveis a maioria e insatisfeitos a quase todos (ORGANIZACIÓN, 1996). Conseqüentemente, em que pese a compreensão de que o medicamento é uma formula farmacêutica mais informações, os mesmos, hoje, infelizmente constituem o procedimento mais massivamente empregado. Prescrever, dispensar, medicar ou, simplesmente jogar futebol, tem se tornado, tanto para os profissionais da área médica/farmacêutica como para a população, em práticas sociais freqüentese naturalizadas. Entretanto e não obstante haver contribuído para a melhoria da qualidade de vida, o uso inadequado de medicamentos constitui, no presente, um problema de significativa magnitude. É 7 fato, que a rápida recuperação de cefaléias, dores de garganta e artrites, entre outras doenças, seria inimaginável sem analgésicos, antiinflamatórios, antiácidos. Contudo, de alto custo e perigoso, o consumo irracional de medicamentos, é um fenômeno que se estende e se multiplica com rapidez em todo o mundo e tem conduzido a numerosos estudos com a finalidade de descrever os problemas relacionados com o mau uso dos mesmos. No início da década de 70, estimou-se que somente nos Estados Unidos da América – EUA, as reações adversas a medicamentos prescritos foram responsáveis por 140.000 mortes e de 1.000.000 de internações. Em 1987, a Food and Drugs Administration – FDA, nesse mesmo país, registrou 12.000 mortes e 15.000 internações associadas com reações adversas a medicamentos receitados (INSTITUTE, 1999). Entretanto, o número de reações adversas comunicadas ao FDA deve ter sido uma pequena quantidade, talvez somente 10% do total atual. Alguns estudos chegam a apontar que o custo por enfermidades associadas com o consumo de medicamentos prescritos ascende a mais de US$ 7.000.000 anuais. De acordo com o Institute of Medicine – IOM, as análises do Quality of Health Care in America Committee – QHCAC, apontam que, pelo menos 44.000 estadunidenses morrem anualmente em decorrência de erros de medicação sendo que estas estimativas podem alcançar o patamar de 98.000 óbitos/ano. Quanto aos custos envolvidos, as estimativas são de que a ocorrência de eventos adversos que seriam preveníveis, mas que não o foram, responde por gastos na faixa de U$ 17 a U$ 29 bilhões. Entre outros fatores, o limitado acesso à atenção farmacêutica também contribuiu para a elevação dos níveis de morbidade e mortalidade associados ao uso de medicamentos. De acordo com a fonte acima citada, nos EUA, o custo de doenças relacionadas ao medicamento triplicou nos últimos cinco anos e atualmente excede U$ 175 Bilhões (INSTITUTE, 1999). O uso desnecessário, assim como a utilização de fármacos em situações contra- indicadas, expõe os pacientes a riscos de reações adversas a medicamentos e intoxicações medicamentosas, constituindo-se, portanto, em causa de morbidade e, inclusive mortalidade, muito significante (ARRAIS, 2002). Alguns estudos chegam a apontar que o custo por enfermidades associadas com o consumo de medicamentos prescritos ascende a mais de US$ 7.000.000 anuais nos Estados Unidos da América (HEPER & STRAND, 1990). A Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa tem ressaltado a importância do uso inadequado de medicamentos como um problema de Saúde Pública prevalente em todo o 8 mundo. Nesse contexto, dados da Organização Mundial da Saúde – OMS (ORGANIZAÇÃO, 2005) revelam que 50 a 70% das consultas médicas geram prescrição medicamentosa. Entre outros dados, informa que: 50% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou usados inadequadamente; 50 % dos pacientes, em média, tomam corretamente seus medicamentos; de todos os pacientes que dão entrada em prontos-socorros com intoxicação, 40% são vítimas dos medicamentos; os hospitais gastam de 15% a 20% de seus orçamentos para lidar com as complicações causadas pelo mau uso de medicamentos. Ainda, neste país, segundo informações do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas – Sintox, os medicamentos ocupam o primeiro lugar entre os agentes causadores de intoxicações em seres humanos e o segundo lugar nos registros de mortes por intoxicação. A automedicação é um hábito bem brasileiro. Entrar na farmácia e comprar aquilo que bem entender, ou ainda pedir a informação, não menos leiga, do balconista são atitudes que podem piorar a saúde do consumidor. A reforma do setor saúde vem buscando garantir o acesso, a qualidade e a eficiência no setor da saúde. Isto requer concentração contínua em medidas preventivas e estratégias encaminhadas a assumir a responsabilidade pessoal, assim como esforços para prestar os melhores serviços curativos possíveis quando são requeridos (SOLER, 2004). De acordo com essa reforma, as razões para incorporar as atividades que promovem o uso racional de medicamentos incluem a ética e a economia (ORGANIZACION, 1996). É importante para cada indivíduo receber, no tratamento médico, o máximo benefício com um mínimo de risco. Ademais, a sociedade necessita maximizar as prestações de saúde da população com respeito a seus gastos em medicamentos. Conforme Fefer (1999) e World (1997), vincular o uso racional dos medicamentos a análise econômica é um exercício fundamental das reformas do setor saúde e mais, uma questão cultural a ser superada. Dada a soma de alternativas que devem ser eleitas corretamente para que os medicamentos sejam usados apropriadamente, não é difícil imaginar que o uso irracional de medicamentos seja um problema generalizado. Muitos argumentos econômicos vinculam o melhoramento na prescrição e o cumprimento do tratamento, com a redução dos gastos farmacêuticos. A prescrição irracional pode conduzir a gastos farmacêuticos maiores devido à inclusão de produtos desnecessários, inapropriados e custosos, quantidades acima do necessário e/ou períodos prolongados de tratamento (ORGANIZACION, 2002; ZERDA et al, 2001). Em muitos países em desenvolvimento, as prescrições de cinco ou mais medicamentos são bastante 9 comuns. Esses dados indicam que os gastos farmacêuticos nos centros de assistência sanitários poderiam ser reduzidos em cerca de 70%, isso se seguisse às recomendações para tratamento preconizadas pela Organização Mundial da Saúde – OMS. O não cumprimento da terapia por parte dos pacientes, também representa uma perda significativa. Nos países industrializados, os estudos têm revelado que as taxas de cumprimento do tratamento prescrito podem ser de somente 50% e é difícil imaginar uma situação melhor em países em desenvolvimento (FOSTER, 1993). Outrossim, em épocas de restrição econômica, a idéia de que mais de 60% dos custos dos tratamentos medicamentosos resultem ser inúteis ou perigosos, torna-se um problema de proporções alarmantes. Dentro de uma perspectiva econômica mais ampla, isso é só uma parte do problema. É necessário considerar outros gastos que possam ser evitados, se houvesse o uso da terapia correta. Estes gastos incluem, porém não se limita, a um maior uso dos estabelecimentos de assistência sanitária, ao aumento da farmacorresistência, a propagação de enfermidades a outros indivíduos, e aos dias de trabalho perdidos. A grandeza destes custos indiretos excede, com freqüência, a magnitude de gastos específicos para os mesmos medicamentos. A ter-se em vista, que na maioria dos países, os gastos públicos em medicamentos representam menos de 1% do Produto Interno Bruto – PIB (WORLD, 1996), não é absurdo calcular que os custos desnecessários devidos ao uso irracional dos mesmos cheguem ou excedam a esse mesmo nível. Os gastos empreendidos para melhorar o uso racional de medicamentos é uma inversão social necessária e de grande utilidade em termos de políticas públicas para a redução de custos, em médio e longo prazo. Contudo, essa não é uma característica somente do setor público (SOLER, 2004). É, também, um problema concernente aos setores privados de saúde que incluem a prática da automedicação generalizada na maioria dos países, a exemplo do que ocorre no Brasil. Assim, mudar o conhecimento e os padrões de conduta dos indivíduos, lugares, comunidades, profissionais de saúde, instituições educacionais e indústrias farmacêuticas é uma meta difícil, tendo em vista os interesses econômicos e os culturais. Em respeito às culturas distintas, alternativas para melhoraresse benefício social variarão de uma região para outra, contudo apresentam-se algumas possibilidades. Assim, pode- se destacar a premente necessidade de intervenções que tornem mais racional a seleção dos produtos existentes no mercado, bem como melhorar a informação e a educação sobre os medicamentos (ORGANIZACIÓN, 1995, 1996, 2003). Outros fatores que podem ser trabalhados são grupos de medicamentos incorretamente utilizados, os de maior freqüência e, 10 principalmente, aqueles de maior custo. Também, os grupos de pessoas que o utilizam de forma crônica e em maior quantidade merecem ênfase. Um outro importante grupo é o de pessoas que influenciam nas decisões sobre a farmacoterapia de outros, como por exemplo, os prescritores. Para isso, o conceito de políticas públicas de medicamentos demanda uma dupla visão do Estado, o qual se propõe cumprir não somente o papel de árbitro e de regulador do comportamento econômico dos atores, como também redistribuir os recursos necessários para a eqüidade ao acesso aos medicamentos e a satisfação social (WORLD, 2001). Nesta perspectiva, há de dar-se sustentabilidade para a coexistência da lógica da produção na busca de benefícios e da lógica da satisfação das necessidades humanas. REFERÊNCIAS ALLAND JUNIOR, A. Adaptation in Cultural Evolution: an approach to medical anthropology. New York. Hum. Org. v. 32, n. 4, p. 385-95, 1970. ARRAIS, P.S; COELHO, H.L.L; BATISTA, M.C.D.S.; CARVALHO, M.L.; RIGHI, R. E.; ARNAU, J.M. Pefil da automedicação no Brasil. Universidade Federal do Ceará. Rev. Saúde Pública 1997; 31 (1): 71-77. BRUNDTLAND, G. H. Global partnerships for health. WHO Drug Information 1999; 13 (2): 61-64. CHETLEY, A. Medicamento Problema. Acción Internacional para la Salud. Chimbote (Perú), 1994. 73 p. Disponível em http://www.aislac.org. Acesso em 27 de out. 2006. COHEN, F.D. 2004. O advento dos genéricos e seu impacto nas estratégias competitivas da indústria farmacêutica brasileira. Dissertação de mestrado. Orientador: Jorge Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: PUC. Departamento de Administração. 134 p. COHN, A. A saúde como direito e como serviço. São Paulo: Cortez, 1991. 92 p. DUCKES, M. N. G. (Ed.). Drug utilization studies: methods and uses. Genebra: WHO, 1993. 37 p. (Regional Publications European Series 45). FAUS, M. J. Atención Farmacéutica como respuesta a una necesidad social. Ars Pharmaceutica. 2000. n. 41, v. 1, p. 1376-1143. FEFER, E., El proceso de armonización de la regulamentación farmacéutica en las Américas. In: Bermúdez, J.; Alcántara Bonfim, J. R. Medicamentos e a Reforma do Setor Saúde. São Paulo: HUCITEC/Sobravime, 1999. 236 p. FOSTER, S. D.; MILLS, A.; LEE, K. Economic Aspects of the Production and Use of Pharmaceutical: Evidence and Gaps in Research. In: Foster, S. D.; MILLS, A.; LEE, K. (Eds.) Health Economics Research in Developing Countries. Oxford: Oxford University Press, 1993. p. 228-313. HEPLER, CD; STRAND LM. Oportunidades y responsabilidades en atención farmacêutica. Pharm Care Esp. v. 1; n. 1; p. 35-47; 1999. [título original: Opportunities and responsabilities in pharmaceutical care. Am J Hosp Pharm. 1990; 47:533-543]. INSTITUTE OF MEDICINE. To err is human: bulding a safer health system. Acessado em: 24 de maio de 2006. Disponível em: http://www.iom.edu/Object.File/Master/4/117/ToErr-8pager.pdf 11 LAPORTE, J. R.; BAKSAAS, I. & LUNDE, P. K. M. General background. In: DUKES, M. N. G. (Ed.) Drug Utilization Studies: methods and uses. Copenhagen: WHO, 1993. (European Series no 45) LAPORTE, J.R.; TOGNONI, G. Estudios de utilización de medicamentos y de farmacovigilancia. In: LAPORTE, J.R.; TOGNONI, G. Principios de epidemiología del medicamento. 2. ed. Barcelona, Masson – Salvat Medicina. 1993. p.1- 23. LEFEVRE, F. O Medicamento como mercadoria simbólica. São Paulo: Cortez, 1991. 75p. LÉVI-STRAUSS, C. O feiticeiro e sua magia. In: Antropologia Estrutural. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p. 193-213, 215-236. ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Avaliação da Assistência Farmacêutica no Brasil / Organização Pan-Americana da Saúde, Organização Mundial da Saúde; Ministério da Saúde – Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; BRASIL. Ministério da Saúde, 2005. 260p.; il.color. (Série técnica medicamentos e outros insumos essenciais para a saúde; 3) ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD. Perspectivas políticas sobre medicamentos de la OMS. Promoción del Uso racional de Medicamentos: componentes centrales. 2002. ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD. Uso racional de medicamentos. Genebra: OMS, 304p. 1996 ORGANIZACIÓN PAN-AMERICANA DE LA SALUD. 1995. Buenas prácticas de farmacia: normas de calidad de servicios farmacéuticos. La declaración de Tokio. Tokio: Federación Farmacéutica Internacional, OPS/HSS/95. ORGANIZACIÓN PAN-AMERICANA DE LA SALUD. Como desarrolar y aplicar uma política farmacêutica nacional. Genebra, 2003. PELLEGRINO, E. D. Prescrebing and drug ingestion symbols and substances. Drug International Clinical Pharmaceutical. 1976. n.10, p. 624-630. SOLER, O. Assistência Farmacêutica básica no Amapá: Descentralização e Acesso. Tese de Doutourado em Ciências: Desenvolvimento Sócioambiental. Belém: NAEA/UFPA, 2004. 186p. TUCKER, V. (Ed.) Cultural perspective on development. London: Franck Can and Company Ltda, 1997 p.110 – 128. WHYTE, S.R. Conference report: Social and cultural aspects of pharmaceuticals. Anthropology Newsletter, 1992. n. 33, v. 4, p. 13-14. WORLD HEALTH ORGANIZATION. (World Health Organization). The rational use of drugs. Report of a Conference of experts . Nairobi 25-29 November 1985. Geneve:WHO, 1987. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Contribuition to updating the WHO guidelines for developing national drug policies. Genebra: WHO, 1996, 78 p. WORLD HEALTH ORGANIZATION. How to develop and implement a national drug policy. 2nd ed. Geneva, World Health Organization, 2001. ZERDA, A. Sistemas de Seguros de Salud y acesso a medicamentos: estudos de caso de Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Estados Unidos de América y Guatemala. Washington, DC: WHO, 2001. 257 p. Disponível em http://www.opas.org.br. Acesso em 23 novembro. 2006.
Compartilhar