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Couto, Mia - Despedida [Livro].doc Mia Couto Despedida � Poema da despedida Não saberei nunca dizer adeus Afinal, só os mortos sabem morrer Resta ainda tudo, só nós não podemos ser Talvez o amor, neste tempo, seja ainda cedo Não é este sossego que eu queria, este exílio de tudo, esta solidão de todos Agora não resta de mim o que seja meu e quando tento o magro invento de um sonho todo o inferno me vem à boca Nenhuma palavra alcança o mundo, eu sei Ainda assim, escrevo � Pergunta-me Pergunta-me se ainda és o meu fogo se acendes ainda o minuto de cinza se despertas a ave magoada que se queda na árvore do meu sangue Pergunta-me se o vento não traz nada se o vento tudo arrasta se na quietude do lago repousaram a fúria e o tropel de mil cavalos Pergunta-me se te voltei a encontrar de todas as vezes que me detive junto das pontes enevoadas e se eras tu quem eu via na infinita dispersão do meu ser se eras tu que reunias pedaços do meu poema reconstruindo a folha rasgada na minha mão descrente Qualquer coisa pergunta-me qualquer coisa uma tolice um mistério indecifrável simplesmente para que eu saiba que queres ainda saber para que mesmo sem te responder saibas o que te quero dizer � Raiz de Orvalho Sou agora menos eu e os sonhos que sonhara ter em outros leitos despertaram Quem me dera acontecer essa morte de que não se morre e para um outro fruto me tentar seiva ascendendo porque perdi a audácia do meu próprio destino soltei ânsia do meu próprio delírio e agora sinto tudo o que os outros sentem sofro do que eles não sofrem anoiteço na sua lonjura e vivendo na vida que deles desertou ofereço o mar que em mim se abre à viagem mil vezes adiada De quando em quando me perco na procura a raiz do orvalho e se de mim me desencontro foi porque de todos os homens se tornaram todas as coisas como se todas elas fossem o eco as mãos a casa dos gestos como se todas as coisas me olhassem com os olhos de todos os homens Assim me debruço na janela do poema escolho a minha própria neblina e permito-me ouvir o leve respirar dos objectos sepultados em silêncio e eu invento o que escrevo escrevendo para me inventar e tudo me adormece porque tudo desperta a secreta voz da infância Amam-me demasiado as cosias de que me lembro e eu entrego-me como se me furtasse à sonolenta carícia desse corpo que faço nascer dos versos a que livremente me condeno � Nocturnamente Nocturnamente te construo para que sejas palavra do meu corpo Peito que em mim respira olhar em que me despojo na rouquidão da tua carne me inicio me anuncio e me denuncio Sabes agora para o que venho e por isso me desconheces � Trajecto Na vertigem do oceano vagueio sou ave que com o seu voo se embriaga Atravesso o reverso do céu e num instante eleva-se o meu coração sem peso Como a desamparada pluma subo ao reino da inconstância para alojar a palavra inquieta Na distância que percorro eu mudo de ser permuto de existência surpreendo os homens na sua secreta obscuridade transito por quartos de cortinados desbotados e nas calcinadas mãos que esculpiram o mundo estremeço como quem desabotoa a primeira nudez de uma mulher � Manhã Estou e num breve instante sinto tudo sinto-me tudo Deito-me no meu corpo e despeço-me de mim para me encontrar no próximo olhar Ausento-me da morte não quero nada eu sou tudo respiro-me até à exaustão Nada me alimenta porque sou feito de todas as coisas e adormeço onde tombam a luz e a poeira A vida (ensinaram-me assim) deve ser bebida quando os lábios estiverem já mortos Educadamente mortos � Palavra que desnudo Entre a asa e o voo nos trocámos como a doçura e o fruto nos unimos num mesmo corpo de cinza nos consumimos e por isso quando te recordo percorro a imperceptível fronteira do meu corpo e sangro nos teus flancos doloridos Tu és o encoberto lado da palavra que desnudo � Despedida Aves marinhas soltaram-se dos teus dedos quando anunciaste a despedida e eu que habitara lugares secretos e me embriagara com os teus gestos recolhi as palavras vagabundas como a tempestade que engole os barcos porque ama os pescadores Impossível separarmo-nos agora que gravaste o teu sabor sobre o súbito e infinito parto do tempo Por isso te toco no grão e na erva e na poeira da luz clara a minha mão reconhece a tua face de sal E quando o mundo suspira exausto e desfila entre mercados e ruas eu escuto sempre a voz que é tua e que dos lábios se desprende e se recolhe Ali onde se embriagam os corpos dos amantes o te ventre aceitou a gota inicial e um novo habitante enroscou-se no segredo da tua carne Nesse lugar encostámos os nossos lábios à funda circulação do sangue porque me amavas eu acreditava ser todos os homens comandar o sentido das coisas afogar poentes despertar séculos à frente e desenterrar o céu para com ele cobrir os teus seios de neve � Saudades Magoa-me a saudade do sobressalto dos corpos ferindo-se de ternura sói-me a distante lembrança do teu vestido caindo aos nossos pés Magoa-me a saudade do tempo em que te habitava como o sal ocupa o mar como a luz recolhendo-se nas pupilas desatentas Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo, tua noite sem remédio tua virtude, tua carência eu que longe de ti sou fraco eu que já fui água, seiva vegetal sou agora gota trémula, raiz exposta Traz de novo, meu amor, a transparência da água dá ocupação à minha ternura vadia mergulha os teus dedos no feitiço do meu peito e espanta na gruta funda de mim os animais que atormentam o meu sono � Ser, parecer Entre o desejo de ser e o receio de parecer o tormento da hora cindida Na desordem do sangue a aventura de sermos nós restitui-nos ao ser que fazemos de conta que somos � Para ti Foi para ti que desfolhei a chuva para ti soltei o perfume da terra toquei no nada e para ti foi tudo Para ti criei todas as palavras e todas me faltaram no minuto em que falhei o sabor do sempre Para ti dei voz às minhas mãos abri os gomos do tempo assaltei o mundo e pensei que tudo estava em nós nesse doce engano de tudo sermos donos sem nada termos simplesmente porque era de noite e não dormíamos eu descia em teu peito para me procurar e antes que a escuridão nos cingisse a cintura ficávamos nos olhos vivendo de um só olhar amando de uma só vida � Fundo do mar Quero ver o fundo do mar esse lugar de onde se desprendem as ondas e se arrancam os olhos aos corais e onde a morte beija o lívido rosto dos afogados Quero ver esse lugar onde se não vê para que sem disfarce a minha luz se revele e nesse mundo descubra a que mundo pertenço � Morte silenciosa A noite cedeu-nos o instinto para o fundo de nós imigrou a ave a inquietação Serve-nos a vida mas não nos chega: somos resina de um tronco golpeado para a luz nos abrimos nos lábios dessa incurável ferida Na suprema felicidade existe uma morte silenciada � Árvore cego de ser raiz imóvel de me ascender caule múltiplo de ser folha aprendo a ser árvore enquanto iludo a morte na folha tombada do tempo � Sotaque da terra Estas pedras sonham ser casa sei porque falo a língua do chão nascida na véspera de mim minha voz ficou cativa do mundo, pegada nas areias do Índico agora, ouço em mim o sotaque da terra e choro com as pedras a demora de subirem ao sol � Quissico 1. Deixei o sol na praia de Quissico De bruços sobre o Verão eu deixei o Sol na extensão do tempo Molhando, quase líquido, o dia afundava nas fundas águas do Índico A terra se via estar nua lembrando, distante, seu parto de carne e lua 2. Não o pássaro: era o céu que voava O ombro da terra amparava o dia A luz tombava ferida pingando como um pulso suicida um minhas ocultas asas � Pequeninura do morto e do vivo O morto abre a terra: encontra um ventre O vivo abre a terra: descobre um seio
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