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Brasília-DF. Poder Judiciário e Políticas Públicas Elaboração Leandro Molhano Ribeiro Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário APRESENTAÇÃO .................................................................................................................................. 4 ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA ..................................................................... 5 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 7 UNIDADE I POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO ....................................................................................... 11 CAPÍTULO 1 JUDICIÁRIO, PROCESSO DECISÓRIO E POLÍTICAS PÚBLICAS .................................................... 11 CAPÍTULO 2 JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO JUDICIAL COMO CATEGORIAS DE ANÁLISE SOBRE O PODER JUDICIÁRIO: SISTEMATIZANDO A DISCUSSÃO .......................................................................... 27 CAPÍTULO 3 DESENHO INSTITUCIONAL, PODER JUDICIÁRIO E POLÍTICAS PÚBLICAS: EXPLICANDO A JUDICIALIZAÇÃO E O ATIVISMO JUDICIAL ............................................................................... 34 REFERÊNCIA ...................................................................................................................................... 47 4 Apresentação Caro aluno A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD. Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo. Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira. Conselho Editorial 5 Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam a tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta, para aprofundar os estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa. Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Praticando Sugestão de atividades, no decorrer das leituras, com o objetivo didático de fortalecer o processo de aprendizagem do aluno. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. 6 Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Exercício de fixação Atividades que buscam reforçar a assimilação e fixação dos períodos que o autor/ conteudista achar mais relevante em relação a aprendizagem de seu módulo (não há registro de menção). Avaliação Final Questionário com 10 questões objetivas, baseadas nos objetivos do curso, que visam verificar a aprendizagem do curso (há registro de menção). É a única atividade do curso que vale nota, ou seja, é a atividade que o aluno fará para saber se pode ou não receber a certificação. Para (não) finalizar Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado. 7 Introdução O termo “políticas públicas” possui um conceito complexo e não há uma definição única na literatura especializada. No entanto, uma definição amplamente reconhecida foi elaborada pelo cientista político Thomas Dye, para quem políticas públicas podem ser definidas como tudo o que os governos escolhem fazer ou não fazer. Ora, se políticas públicas são uma escolha de governos, como relacionar Poder Judiciário e políticas públicas, uma vez que, normalmente, este poder não está associado, na teoria democrática tradicional, à elaboração legislativa? De fato, faz sentido afirmar que o Poder Judiciário participa, como ator relevante, do processo político decisório na produção de políticas públicas, se a visão tradicional de separação de Poderes, na qual o Poder Legislativo cria leis e o Executivo as implementa, não tiver mais sentido. É isso que estudos empíricos e novas proposições sobre a interação de Poderes afirmam. De fato, diversos estudos sobre o Poder Judiciário têm afirmado que a configuração institucional da soberania parlamentar, por meio da qual as noções de que a produção de políticas públicas cabe exclusivamente ao Legislativo eleito por meio da regra da maioria, não se aplica mais às democracias contemporâneas. Tal formulação, vale lembrar, está no cerne da teoria democrática que inspirou as revoluções burguesas ao longo dos séculos XVIII e XIX. Como afirma o cientista político Tom Ginsburg (2003, p. 2), “era natural que os proponentes da democracia defendessem a soberania parlamentar (pois) eles viam ameaças à liberdade por parte de fontes tradicionais: o antigo regime, a monarquia e a igreja. Uma vez que esses obstáculos ao poder popular fossem superados, os teóricos dificilmente poderiam justificar limites a vontade do povo, única fonte de poder”. A solução institucional percebida pelos teóricos foi conferir ao corpo Legislativo, representante do povo, o poder de legislar. Ao Executivo, caberia a implementação, das decisões soberanamente decidida por maioria no parlamento. As experiências ditatoriais e totalitárias vivenciadas sobretudo por países europeus na época da Segunda Guerra Mundial levaram a uma reformulação teórica e prática deste modelo de democracia. Por um lado, houve um esforço de constitucionalização de direitos básicos dos indivíduos; direitos esses a serem respeitados, mesmo que uma maioria parlamentar tente infringi-los. Por outro, para também garantir o respeito aos direitos constitucionalizados, houve a institucionalização em diversos países de cortes constitucionais. Neste novo modelo, não há soberania parlamentar, uma vez que tal maioria não pode infringir normas e regras definidas na Constituição. Os tribunais constitucionais assumem, assim, um papel contramajoritário e a defesa das minorias em relação às vontadesdas maiorias passa a ser concebida como essencial à democracia. O fato é que os direitos individuais básicos foram constitucionalizados muitas vezes de forma vaga, como princípios a serem interpretados em situações concretas de produção legislativa ou de resolução de conflitos entre agentes políticos, econômicos ou sociais. O poder de controlar a constitucionalidade de atos normativos passa a ser papel importante a ser exercido pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, este pode se constituir como um ator de veto a proposições dos Poderes Legislativo e Executivo consideradas inconstitucionais. Mais ainda, a interpretação legal das situações conflitivas concretas não previstas no ordenamento jurídico – muitas vezes fruto de um 8 desenvolvimento tecnológico que é mais rápido do que a codificação legal – é responsabilidade dos juízes. Sendo assim, estes podem, ao resolver situações novas, criar um novo discurso normativo, não previsto no ordenamento jurídico existente. É fácil perceber que, nesses casos, o Poder Judiciário passa a se constituir como um ator relevante no processo decisório e, consequentemente, na produção de políticas públicas. Contudo é preciso ainda considerar que o poder e a forma por meio da qual o Poder Judiciário deve e pode atuar variam segundo o desenho institucional de separação e interação entre os Poderes e, também, conforme a configuração institucional das próprias instituições judiciais. Há países em que o controle de constitucionalidade é centralizado em cortes constitucionais. Em outros ele é difuso, podendo ser exercido por qualquer juiz em qualquer instância. Os atores que podem contestar a constitucionalidade de leis no Judiciário também podem variar de situações mais restritivas a situações menos restritivas. Em determinados casos, mesmo um veto do Poder Judiciário pode ser derrubado pelo Parlamento. Em vez de separação de funções entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o que passa a ser observado no mundo empírico é uma interação, um diálogo entre tais Poderes. Tais características institucionais serão discutidas no capítulo 3, mas o que chama a atenção é o fato de que as próprias instituições judiciais podem ser vistas por outros atores relevantes do processo decisório como um recurso a ser usado para barrar políticas indesejadas ou como aliado a ser incorporado no processo, com o intuito de produzir determinada política. Essas são algumas das questões que serão discutidas ao longo dessa disciplina, intitulada Judiciário e Políticas Públicas. O capítulo 1 inicia a discussão, apresentando os modos pelos quais o Poder Judiciário pode participar do processo decisório e, dessa forma, impactar na produção de políticas públicas. Tal participação insere o Poder Judiciário em uma espécie de diálogo institucional com os Poderes Executivo e Legislativo e tem proporcionado um debate importante sobre o efeito que o Judiciário exerce sobre o comportamento estratégico de atores políticos, econômicos e sociais. Além disso, o capítulo apresenta dois estudos importantes sobre a participação do STF no processo decisório: um, elaborado por Mathew Taylor, que mostra como este órgão atua como ator de veto a decisões dos demais Poderes e outro, realizado por Oscar Vilhena Vieira, que argumenta que o STF tem exercido um papel de criação legal. Com isso procura-se ilustrar duas formas por meio das quais o Poder Judiciário pode atuar, através de seus órgãos de cúpula: como veto a políticas públicas ou como criador de políticas públicas. Em seguida, apresenta-se um caso decidido por juízes de primeira instância que pode ser concebido como de criação de políticas públicas. Isso porque o caso em questão diz respeito a situações conflitivas novas, não previstas nos códigos legais, cujas resoluções pelo Judiciário implicam um discurso normativo novo. Como o Judiciário só atua se acionado por outros atores, a literatura especializada tem denominado a inserção deste Poder no processo decisório como um modelo de “contestação legal”, diferente da visão tradicional de separação de Poderes. Sendo assim, o capítulo finaliza a discussão fazendo referência às principais implicações que este modelo tem para a teoria democrática. O segundo capítulo sistematiza a discussão sobre os principais conceitos usados na literatura especializada para analisar a atuação do Poder Judiciário, tais como apresentadas no capítulo 1: “judicialização” e “ativismo judicial”. De fato, a judicialização pode levar a atuação do Judiciário predominantemente 9 como veto, enquanto o ativismo está associado a um exercício de criação legislativa do Judiciário – criação esta que originalmente não é sua função e, sendo assim, é concebida por diversos autores como uma extrapolação de suas atribuições. Judicialização e ativismo, apesar de serem bastante difundidos na literatura em geral, são conceitos complexos e que não apresentam uma definição única. Nesse sentido, o capítulo apresenta as principais formulações sobre judicialização e ativismo e sua relação com a produção de políticas públicas, complementando a discussão realizada no primeiro capítulo. O terceiro capítulo apresenta os principais fatores institucionais que explicam a existência, a intensidade e a direção da judicialização e do ativismo judicial, se o Poder Judiciário tende a ser contramajoritário ou não às políticas públicas propostas pelos atores do Executivo e do Legislativo. Por intermédio de todas essas discussões, a seguir, pretende-se apresentar ao aluno os principais aspectos envolvidos na discussão “judiciário e políticas públicas. » A importância crescente do Poder Judiciário na definição de questões de políticas públicas: › questões políticas; › questões econômicas; › questões sociais. » Os fatores que explicam a importância crescente do Poder Judiciário. » As formas por meio das quais o Judiciário impacta na produção de políticas: › mediante órgãos de cúpula; › por instâncias inferiores; › como ator de veto; › como ator “criativo”. » Democracia, separação de Poderes e contestação judicial: › interação estratégica entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; › O Judiciário como recurso a ser acionado por atores políticos, econômicos e sociais. » Sistematização dos conceitos usados para descrever a atuação do Poder Judiciário no processo polítido decisório: judicialização e ativismo; » Fatores institucionais que explica a judicialização e o ativismo: › escopo de atuação do Judiciário (questões em que pode atuar); › instrumentos de atuação (principalmente instrumento de controle de constitucionalidade); 10 › efeitos das decisões judiciais; › atores com acesso a contestação de constitucionalidade; › seleção e mandato dos juízes e sua relação com independência e isolamento do Poder Judiciário a pressões de atores não judiciais. » Instituições e direção do impacto do Poder Judiciário nas políticas públicas: › contra políticas públicas definidas por coalizões governistas majoritárias (atuação contramajoritária do Judiciário); › favorável à coalizão majoritária. Espera-se que toda a discussão teórica realizada na disciplina pode e deve ser utilizada para a análise da relação entre o Poder Judiciário e a produção de políticas públicas no Brasil. Objetivos » Apresentar e discutir as principais vertentes teóricas sobre o papel do Poder Judiciário nos processos de elaboração e implementação de políticas públicas. » Analisar o papel do Poder Judiciário no processo decisório, ou seja, sua relação/ interação com os Poderes Executivos e Legislativo no processo mais amplo de tomada de decisão de políticas públicas. » Analisar os fenômenos do ativismo judicial, da judicialização da política e da politização da justiça.» Analisar o impacto do desenho institucional do Poder Judiciário na configuração das políticas públicas. 11 UNIDADE IPOLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO CAPÍTULO 1 Judiciário, processo decisório e políticas públicas Poder Judiciário e questões de políticas públicas Entre os dias 1o a 25 de junho de 2011, o termo “STF” teve 101 inserções no jornal Valor e o termo “Judiciário” no mesmo jornal teve 93 inserções. Quantitativamente esses números revelam uma média de um pouco mais de quatro aparições diárias. Qualitativamente, vale ressaltar que a ocorrência desses termos não se deu apenas em espaços reservados a discussões jurídicas. Na verdade, “STF” e “Poder Judiciário” estavam presentes em diversos espaços desse jornal, abrangendo, entre outros, os seguintes assuntos: » definição de prazos para o aviso prévio no Brasil; » parcelamento do pagamento de precatórios; » definição da constitucionalidade de leis estaduais de concessão de incentivos fiscais; » controvérsia sobre uma emenda visando à flexibilização de licitações; » fornecimento de material genético deixado por um marido falecido a sua mulher por parte de uma clínica de reprodução; » reabertura de um caso de investigação de paternidade; » liberação da marcha da maconha; » definição se sentenças de Cortes internacionais de arbitragem proferidas no Brasil são decisões nacionais. Essa rápida pesquisa em somente um jornal de alcance nacional em apenas um mês de um único ano ilustra o quanto o Poder Judiciário está presente na vida política (nacional e internacional), econômica e social do Brasil. Presença, vale dizer, não como ator coadjuvante, mas como um player relevante na configuração das políticas públicas do País. 12 UNIDADE I │ POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO Para se ter uma ideia da importância que o Poder Judiciário vem assumindo em questões relevantes no País, basta enumerar um conjunto de temas sociais, políticos e econômicos listados pelo professor Oscar Vilhena Vieira (2008) acerca dos quais o Supremo Tribunal Federal tomou decisões nos últimos anos: » Direito fundamentais: o STF decidiu ou tem em sua agenda de decisão questões referentes a células-tronco, cotas nas universidades, desarmamento, aborto (anencéfalos), demarcação de terras indígenas, reforma agrária, distribuição de medicamentos, lei de imprensa, lei de crimes hediondos, poder da polícia de algemar, direito de greve. » Representação política: o STF decidiu ou tem em sua agenda de decisão temas relacionados à representação política, como sub-representação na Câmara dos Deputados, cláusula de barreira, fidelidade partidária, número de vereadores nas Câmaras Municipais. » Eleições: vale acrescentar a essa lista elaborada por Vieira o conjunto de resoluções do TSE regulamentando as eleições, desde que o País vivenciou sua democratização, no final dos anos 1980. » Julgamentos políticos: caso do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello; julgamento dos acusados do caso de mensalão. » Federalismo: ainda no tema político, mas com relação à questões federativas, o STF tomou decisões ou tem em sua agenda questões relacionadas com a delimitação de atribuições das esferas do Estado. » Atribuições dos Poderes Executivo e Legislativo: nesse caso, passou ou está em pauta do STF temas como restrição à atuação das CPIs; limitação do poder de edição de medidas provisórias pelo Presidente da República; restrição aos Poderes de investigação do Ministério Público; garantia dos direitos das minorias parlamentares na composição das mesas da Câmara e do Senado; delimitação do campo de autonomia das agências reguladoras; a restrição às sessões secretas do Senado. » Economia: o STF tem que lidar com temas como guerra fiscal, questões trabalhistas relacionadas ao Cofins e ao FGTS, questões relativas aos ajustes econômicos. » Políticas de reformas: Vieira lembra em seu estudo que o “Supremo, por outro lado, também não viu nenhuma dificuldade em discutir a validade de emendas à Constituição, como nas reformas administrativa, previdenciária e do próprio Judiciário, chegando, sem qualquer hesitação, a declarar algumas emendas contrárias às cláusulas pétreas, como no caso da extinta CPMF” (VIEIRA, 2008, p. 450). Essa importância do Poder Judiciário não é uma exclusividade do Brasil, ao contrário, o tema “expansão do Poder Judiciário” tem sido abordado de forma sistemática pelo menos desde a década de 1990. Um estudo que referencia esse debate foi organizado pelos professores Neal Tate e Torbjorn Vallinder, em 1995, intitulado “The global expansion Judicial Power: the judicialization of politics” e lançado pela editora New York University Press (TATE; VALLINDER, 1995). Este 13 POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO │ UNIDADE I trabalho apresenta uma discussão sobre o tema da “judicialização da política” em diversos Países, a partir de um referencial teórico que passou a ser muito utilizado no debate acadêmico. Os autores Tate e Valinder dividem analiticamente o conceito de judicialização da política em dois aspectos: um fenômeno “mais dramático” de transferência de decisões normativas do Legislativo e/ou do Executivo para o Judiciário – e que se dá, principalmente, por meio de instrumentos de controle de constitucionalidade. Nesse sentido “mais dramático”, a judicialização significa um processo por meio do qual tribunais e juízes se tornam atores relevantes ou aumentam sua participação na produção de políticas públicas, previamente elaboradas por órgãos dos Poderes Legislativo e Executivo (TATE; VALINDER, 1995, p. 28); um fenômeno “menos dramático” de incorporação de métodos próprios de decisão e resolução de conflitos dos tribunais para setores administrativos diversos. É importante enfatizar neste momento que o conceito de judicialização é controverso na literatura especializada e que essa controvérsia será objeto de análise no capítulo seguinte. Neste momento, basta mencionar que o primeiro sentido atribuído à judicialização por Tate e Vallinder é que passou a ser explorado cada vez mais nos trabalhos acerca do tema. Justamente nesse caso é que podemos perceber a atuação do Poder Judiciário brasileiro no processo decisório de produção de políticas públicas, principalmente através de seu principal órgão, o STF. Como o Poder Judiciário participa no processo decisório: iniciando o debate Participação do Judiciário por meio dos seus órgãos superiores Uma observação um pouco mais detida nessas notícias mostra essa relevância do Poder Judiciário e nos dá uma ideia de como este ator vem sendo acionado por diversos outros atores e como suas decisões estão contribuindo, seja para a manutenção de determinadas políticas públicas, seja para sua alteração. A questão do prazo para o aviso prévio foi debatida no Supremo Tribunal Federal por causa de quatro ações propostas por empregados da Companhia Vale do Rio Doce que foram demitidos da empresa. Todos eles tiveram 30 dias de aviso prévio, embora tenham trabalhado por diferentes períodos na Vale e foram buscar no Poder Judiciário uma indenização de acordo com o tempo de serviço. Como a questão do prazo do aviso prévio não foi regulamentada em lei, a Corte Superior brasileira está sendo chamada a cumprir o inciso 21 do artigo 7o da Constituição Federal, que determina ser o “aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo, no mínimo, de 30 dias, nos termos da lei”. Segundo o noticiário do jornal Valor, Na falta de lei sobre os prazos para aviso prévio, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai definir o assunto, segundo decisão de quarta-feira. Nessa tarefa, os ministros do tribunal vão seguir as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e as experiências internacionaisque podem levar o aviso prévio a passar dos 30 dias atuais para até seis meses. 14 UNIDADE I │ POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO Segundo o noticiário, o STF poderá basear sua decisão nos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional que tratam da questão, no direito aplicado em outros Países em recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esse caso mostra uma participação direta do Poder Judiciário, através de sua instituição máxima, o STF, na definição de uma questão cuja competência é claramente do Poder Legislativo (o Congresso Nacional, como reconhece o próprio ministro do STF Gilmar Mendes, responsável a elaborar uma proposta a ser levada a julgamento). Vale observar que essa questão foi judicializada por ex-empregados de uma grande empresa e a decisão a ser tomada pelo Poder Judiciário terá consequências econômicas relevantes. No caso do parcelamento dos precatórios, o STF invalidou uma Emenda Constitucional (Emenda Constitucional 30/2000) que autorizava em dez anos o parcelamento dos precatórios judiciais. O STF considerou que o parcelamento contraria o artigo 5o da Constituição Federal de 1988. A ação contra o parcelamento dos precatórios foi proposta por um ator coletivo de abrangência nacional, a Confederação Nacional das Indústrias, e veta uma emenda a Constituição editada pelo Poder Executivo. Assim como no caso anterior, a decisão do Poder Judiciário tem consequências importantes, como indica o seguinte trecho do noticiário: A estimativa do Conselho da Justiça Federal (CJF) é que o estoque de precatórios, que vinha sendo pago parceladamente e que terá que ser quitado no próximo ano, de uma única vez, por causa da decisão do Supremo, é de cerca de R$ 9,5 bilhões. Se o parcelamento tivesse sido mantido, a despesa ficaria entre R$ 2 bilhões e R$ 2,5 bilhões. Na questão de concessões de benefícios fiscais por meio de leis estaduais, o STF julgou 14 ações diretas de inconstitucionalidades (ADIs) movidas por estados, que questionaram a concessão de benefícios tais como redução da alíquota do ICMS em operações internas, redução do saldo devedor do imposto e da base de cálculo em operações internas e interestaduais concedidos por seis estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Espírito Santo, Pará e Mato Grosso do Sul), além do Distrito Federal. As leis estaduais foram consideradas inconstitucionais pelo Supremo, pelo fato de este órgão considerar que os estados não podem conceder qualquer tipo de benefício sem convênio prévio do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Segundo o noticiário, a discussão tem como base uma alínea do artigo 155 da Constituição Federal, que atribui à lei complementar a função de regulamentar a forma em que os incentivos fiscais serão concedidos. A Lei Complementar no 24, de 1975, diz que esses benefícios dependerão de convênio prévio do Confaz. Para atrair investimentos, os estados vêm concedendo todo tipo de vantagem de forma unilateral, gerando questionamentos no Judiciário. Essa decisão provocou uma reação por parte de governadores estaduais, que se mobilizaram para ingressar no Supremo com pedido de modulação dos seus efeitos: uma definição de prazos para que os estados se adaptem à decisão e para que possam resolver este problema: 15 POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO │ UNIDADE I Os governadores querem agora um encontro com o presidente do STF, Cezar Peluso, para expor as suas preocupações. Na reunião que tiveram ontem com a presidente Dilma Rousseff, os governadores do Norte e do Nordeste comentaram a questão e expuseram os seus temores. É significativo que o primeiro item da “Carta de Brasília”, divulgada por eles após o encontro com a presidente Dilma, defenda justamente a “convalidação dos benefícios fiscais existentes, na forma da legislação de cada estado”. Essa “convalidação” dos incentivos fiscais concedidos já estava sendo negociada pelo governo, antes mesmo da decisão do Supremo, e constará da proposta de reforma tributária, como lembrou ontem o secretário-Executivo do Ministério da Fazenda, Nelson Barbosa. Segundo ele, a “convalidação” poderá ser feita pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). A decisão também provocou uma reação, também, por parte do Ministério Público (MP), que, segundo o noticiário, passou a considerar a possibilidade de iniciar ações de cobrança de tributos retroativos de empresas que tiveram benefícios considerados inconstitucionais. Diante de todas essas reações, que inseriu o tema das concessões de benefícios na agenda de debates entre governadores e a Presidência da República e inspirou a iniciativa de ações do MP, a decisão do Supremo pode ter consequências importantes para o debate mais amplo sobre reforma tributária no País. Vale observar que a decisão do STF alterou estratégias de atores políticos, que também podem se utilizar do próprio Poder Judiciário para tentar se “defender” de consequências negativas. Essa consequência da decisão de um órgão superior do Poder Judiciário sobre o comportamento de atores políticos pode ser ilustrada pela análise feita por um político expressivo do País, o governador de Sergipe, Marcelo Déda, que esteve na reunião dos governadores do Norte e Nordeste com a Presidenta da República, Dilma Rousseff. Perguntado pelo jornal Valor como a decisão do STF sobre concessão de benefícios afeta a vida dos governadores, Déda respondeu: Em duas palavras: insegurança jurídica. As decisões do Supremo colocaram um grau de insegurança na relação dos estados com empresas beneficiárias de incentivos que praticamente paralisaram as negociações em curso e criaram um processo de extrema angústia naquelas que já se encontram instaladas há décadas nos estados. Não temos o que discutir com relação à postura do Supremo. Mas temos o que discutir com relação à forma. E à maneira como aquela decisão vai ser aplicada. Tratar a guerra fiscal como um tema Judiciário clássico pode produzir efeito danoso não apenas aos estados que são mais eficientes na captação de empresas com esses recursos. Não tenho estatística, mas diria que um terço do PIB industrial brasileiro tem algum tipo de incentivo praticado por leis estaduais que o Supremo decretou inconstitucional. Empresas como Ambev, Volks, Ford, como a Fiat que vai agora para Pernambuco, como ficam? A imensa maioria delas, com ações na Bolsa, têm que fazer provisão para possível pagamento do imposto que foi isentado? Como serão tratadas situações consolidadas? A decisão terá repercussão só para o futuro ou é aplicável imediatamente? 16 UNIDADE I │ POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO Depois, questionado se os estados iriam questionar a decisão no próprio STF, Déda comentou a estratégia do Distrito Federal de entrar com uma ação questionando o critério de decisão do Confaz. Segundo Déda: O DF está entrando (com uma ação). O que o Supremo disse? Nenhuma lei que cria incentivo fiscal é válida se os benefícios criados não forem objeto de convênio no Confaz. O Confaz é por unanimidade. Então o DF entrou também com uma ação específica para questionar a constitucionalidade do critério de unanimidade, que ofende o principio de construção da maioria numa democracia. A Constituição não fala em unanimidade, fala em Confaz. A lei que regulou o dispositivo constitucional é que tocou na unanimidade. Com isso a gente tenta, do ponto de vista de estratégia, equilibrar. Isso ajuda a criar um contraponto que, possibilite aos estados uma negociação mais equilibrada. No caso que trata da flexibilização das licitações, a própria manchete na notícia, “PPS promete ir ao STF contra emenda que flexibiliza licitações” informa como o Poder Judiciário pode ser convocadoa atuar no processo político decisório. O partido político PPS viria a propor uma ADI contra uma emenda editada em medida provisória editada pelo governo federal visando flexibilizar as licitações para as obras da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. Esse caso ilustra um tipo de comportamento comum entre os atores políticos, principalmente entre os partidos de oposição, de reivindicar no Judiciário o veto a medidas tomadas pelo Poder Executivo. Esses casos envolvem diretamente a instância máxima do Poder Judiciário brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, em questões que têm consequências diretas para a produção de políticas públicas no País. De fato, os casos são reveladores de como o STF tem participado do processo político decisório, participação esta que tem ocorrido não apenas no Brasil, mas parece ser um fenômeno geral, conhecido, na literatura especializada, como judicialização da política. Tais casos ilustrativos, revelam as seguintes características desse processo de participação do Judiciário no processo decisório e produção de políticas públicas: a. Diferentes atores, individuais ou coletivos, da sociedade civil ou da arena política judicializando questões, ou seja, buscando no Poder Judiciário a resolução de conflitos ou questões ou a defesa de seus interesses (vale observar, não necessariamente interesses legais ou jurídicos mas sim políticos e econômicos): › cidadãos – atores individuais, que consideraram que seus direitos foram violados em alguma medida, como no caso dos ex-empregados da Companhia Vale do Rio Doce; › grupos de interesse da sociedade civil – atores coletivos não governamentais, que buscam, no Poder Judiciário, não apenas resolver conflitos, mas, também, defender seus interesses, como no caso em que a CNI questiona o parcelamento no pagamento de precatórios; › atores políticos – ingressam no Poder Judiciário para vetar determinadas medidas e defender seus interesses, como no caso em que governadores de 17 POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO │ UNIDADE I alguns estados ingressam com ação de inconstitucionalidade de leis estaduais de concessão de benefícios fiscais. b. Que as decisões do STF têm consequências diretas sobre as esferas social, política e econômica: › têm impactos sobre o arcabouço normativo que define as regras que organizam as esferas social, econômica e política; › têm impactos, consequentemente, sobre o comportamento dos agentes sociais, econômicos e políticos que atuam nas esferas mencionadas; › têm impactos, consequentemente, econômicos e sociais diretos e indiretos; › têm impactos, consequentemente, sobre orçamentos públicos; c. Que a opção em “judicializar” questões está presente no cálculo estratégico dos atores, principalmente dos grupos de interesse e dos atores políticos, como um recurso a ser usado na consecução de seus objetivos. Nesse caso, o uso da instância judicial pode ser concebido como uma alternativa por parte destes atores para resolver conflitos, anular regras concebidas como desvantajosas ou aumentar as chances de implementar regras que atendam seus interesses. d. Que este processo de judicialização tem consequências sobre o comportamento posterior de outros atores, imprimindo uma dinâmica na interação estratégica entre os atores afetados pelas decisões judiciais, no qual o próprio Judiciário é inserido no processo decisório. e. Que a atuação do Poder Judiciário assume diferentes formas nesse processo: › pode preencher um vazio Legislativo, assumindo um caráter de criação legal; › pode ser uma instância de veto, ao anular atos normativos. Os itens a e b mostram que diferentes atores das esferas social, política e econômica podem acionar o Poder Judiciário (nos casos apresentados, através do órgão máximo, o STF) para, de alguma forma, salvaguardar seus interesses. Uma vez acionado, o Poder Judiciário acaba interferindo no ordenamento normativo, seja para manter o status quo – e desta forma “cristatilizar” ou “consolidar” o estado de coisas existente – seja para alterá-lo. Seja como for, uma vez que o Poder Judiciário atua, o arcabouço normativo consolidado ou criado passa a orientar o comportamento dos agentes que atuam nas esferas social, política e econômica, ou seja o discurso legal criado pelo Poder Judiciário cria um arcabouço normativo que orienta o comportamento dos agentes. Nesse sentido, pode-se dizer que o referido Poder Judiciário ocasiona impactos diretos (ao atuar no ordenamento legal) e indiretos (ao orientar comportamentos) nas próprias esferas da vida social, política e econômica. Ao ser “convocado” a atuar diretamente em questões de políticas públicas, o Poder Judiciário passa a ser um ator relevante do processo, como mostram os itens c, d e e. Como sua atuação provoca impactos diretos e indiretos, os próprios agentes podem conceber o Judiciário como um recurso 18 UNIDADE I │ POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO a ser explorado nas suas estratégias de produção de políticas públicas. Como o jogo “político” é dinâmico, envolve idas e vindas de ações estratégicas de atores políticos, sociais e econômicos, o Poder Judiciário pode ser envolvido em diferentes etapas das interações entre esses atores. Ao atuar, ele pode de alguma forma preencher vazios normativos deixados pelos Poderes Legislativo e Executivo; ter um papel de maior deferência a estes Poderes e se recusar a atuar, devolvendo a responsabilidade de produção legislativa aos outros Poderes; ou pode ainda ter um papel de veto, ao anular atos normativos considerados inconstitucionais. Instância de veto e criação legislativa: dois estudos sobre o STF no processo político decisório brasileiro Alguns dos aspectos sobre como o Poder Judiciário, através do STF, tem participado do processo decisório brasileiro foram explorados em dois estudos importantes e que serão apresentados brevemente a seguir, como complementação e ilustração da discussão apresentada até o momento. O STF como instância de veto: o estudo de Mathew Taylor Mathew Taylor, em trabalho intitulado Judging Policy: courts and policy reform in democratic Brazil, publicado pela editora Stanford University Press, em 2008, explora, entre outros temas, o uso do STF (ou Judiciário em geral) como recurso de veto por parte de atores políticos, econômicos e sociais. Ao longo de seu trabalho, Taylor (2008, p. 10) formula a seguinte proposição: ao perseguirem seus objetivos de políticas públicas, os atores podem se dirigir os tribunais como pontos de veto que os possibilitam prorrogar ou anular políticas públicas ou, de forma alternativa, desacreditar as políticas públicas ou declarar sua oposição a elas (“In pursuing their policy objectives, policy actors may turn to courts as veto points that enable them to delay or disable policy or, alternatively to discredit policy, or declare their opposition”). Com base nessa proposição, o autor formula as seguintes questões de investigação: » “Como o ambiente político (incluindo os efeitos tanto das condições políticas contigenciais a as regras institucionais mais estáveis) pode contribuir para a importância dos tribunais como arenas alternativas importantes para os atores marginalizados no processo Legislativo?” (“how the political environment (including the effects of both contingent political conditions and more stable institutional rules) may contribute to the court’s importance alternative venues for policyplayers marginalized in the legislative process?” – TAYLOR, 2008, p. 73) » “E com qual extensão, então, os tribunais realmente influenciam o ambiente político mais amplo, oferecendo uma arena alternative para a contestação de políticas públicas?” (“To what extent, though, do courts really influence the broader political environment byoffering an alternative venue for policy contestation?” – TAYLOR, 2008, p. 75) As respostas do autor giram em torno da possibilidade de contestação das políticas públicas por parte de atores minoritários (perdedores) no processo Legislativo, através do Poder Judiciário. 19 POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO │ UNIDADE I Nesse caso, portanto, o Judiciário é utilizado como um recurso para anular uma política pública, se possível, ou, como afirma Taylor, pelo menos retardar sua implementação ou ainda como forma de esses grupos minoritários manifestarem seu descontentamento. É importante ter em vista que, no esquema analítico de Mathew Taylor, o tipo de política pública influencia a forma como o Judiciário será acionado pelos atores e, nesses sentido, o tipo de política pública influencia o modo de participação desse poder no processo decisório. Em sua análise, Taylor observa a probabilidade de uma política pública ser levada a contestação no Judiciário por parte de atores políticos ou sociais. A hipótese do autor é que a intensidade com que o Poder Judiciário é acionado por atores políticos e sociais com o objetivo de contestar uma política pública decretada depende fortemente da saliência dessa política. A saliência da política pública, por sua vez, é, para o autor, fortemente influenciada pelo grau com que seus custos e benefícios são distribuídos. Assim, Taylor, em vez de utilizar a tipologia definida por Lowi, usou uma matriz elaborada pelo cientista político James Wilson para classificar as políticas em análise. Primeiramente, Taylor classificou quatro tipos de políticas específicas, segundo a matriz de Wilson: a reforma a agrária, a política voltada para a indústria automobilística, a reforma da seguridade social e as medidas de racionamento de energia. Em seguida observou se tais políticas foram contestadas no Poder Judiciário. A análise do autor mostrou que a política teve seus custos concentrados em um determinado grupo, mas os benefícios distribuídos para toda a sociedade foi que sofreu maior grau de contestação no Poder Judiciário. De fato, para o autor, tal concentração de custos fez com que os atores que iriam sustentá-la se mobilizassem e recorressem ao Poder Judiciário para barrá-la (vetá- la). Por sua vez, a política que teve os seus benefícios concentrados, mas seus custos distribuídos, não chegou a mobilizar fortemente os atores sociais e políticos em sua contestação. Sendo assim, esse tipo de política foi o menos contestado no Poder Judiciário, ou seja, foi a que sofreu menor oposição organizada contra ela. Por fim, os demais tipos de políticas tiverem mobilizações e contestações moderadas por parte dos atores políticos e sociais. O resultado dessa pesquisa pode ser observado no quadro abaixo: Quadro 1 Quadro resumo do estudo de Taylor sobre a relação entre tipo de política pública e intensidade de sua contestação no Poder Judiciário Custos concentrados Custos distribuídos Benefícios concentrados Reforma agrária Taxação de terra improdutivas Transferências de crimes de morte para tribunais civis Nova Lei Agrária Não expropriação de terras invadidas Retirada dos invasores do programa de reassentamento = contestação moderada no Judiciário Política para indústria automobilística Cotas de importação Incentivos para produção doméstica = ganhos concentrados para a indústria automobilística com custos repassados a consumidores e cidadãos = contestação baixa no Judiciário Benefícios distribuídos Reforma da seguridade social Idade mínima para aposentadoria Teto para os benefícios Taxa sobre benefícios para o setor público Mudança na fórmula do cálculo dos benefícios = ganhos distribuídos todos com custos repassados aos servidores = contestação forte no Judiciário Racionalização de eletricidade: Plano emergencial para redução de consumo (tarifas) Limitação de recursos legais = contestação moderada no Judiciário Fonte: TAYLOR, Mathew. Judging Policy: courts and policy reform in Democratic Brazil. Stanford: Stanford University Press, 2008. 20 UNIDADE I │ POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO Supremocracia: o estudo de Oscar Vilhena Vieira Outro estudo importante sobre a participação do STF no processo decisório foi realizado pelo professor Oscar Vilhena Vieira, intitulado “Supremocracia” e publicado na Revista DIREITO GV, volume 4, número 2, em 2008. Neste texto, o autor defende que o STF é um ator relevante, central, no sistema político brasileiro e que vem não apenas exercendo o papel tradicional de controle de constitucionalidade no País, como também está participando, em alguma medida, da criação de regras, ou seja, vem exercendo, também, uma função e Poder Legislativo. Esse “poder” do STF deriva de condições institucionais específicas do Brasil, assim como de fatores relacionados com a extensão do Poder Judiciário verificada em outros Países – ambos os elementos (fatores explicativos da extensão do Poder Judiciário em geral, como o impacto do desenho político- institucional para alcance e profundidade do exercício do poder do Judiciário) serão explorados em capítulos posteriores. Para Vieira, vivemos no Brasil uma supremocracia, sendo este termo usado para designar, por um lado, a autoridade do STF em relação às demais instâncias judiciais, e, por outro lado, a expansão do STF em relação aos demais Poderes, o Executivo e o Legislativo. No primeiro sentido, Vieira observa que o STF vivenciou um processo crescente de concentração de poder que o possibilitou governar jurisdicionalmente o Poder Judiciário. Tal processo teria se concretizado em 2005 com a adoção do instrumento da súmula vinculante, através do qual o STF pode “sanar sua incapacidade de enquadrar juízes e tribunais resistentes às suas decisões” (VIEIRA, 2008, p. 445). Em sua segunda acepção, Vieira apresenta os seguintes indícios da função legislativa que estaria sendo exercida pelo STF: » O julgamento do caso das células-tronco, ADI 3.510-0, que para o autor foi “emblemático da atual etapa de expansão da autoridade do Supremo Tribunal Federal, como arena de discussão pública de temas de natureza político moral” (VIEIRA, 2008, p. 450). Nesse caso, é digno de nota o fato de que, como bem analisa Vieira, o STF não ter sequer discutido a possibilidade de deferência, entendida pelo autor como “a postura respeitosa que muitos tribunais demonstram em relação ao legislador, democraticamente eleito”. Tal deferência poderia ser uma atitude normal do STF neste caso, na medida em que não apenas a lei a ser discutida pelo STF passou por maioria no Legislativo, como não estava em discussão a sua constitucionalidade, mas tão somente uma ponderação legislativa. Uma das conclusões de Vieira sobre este caso é que O que ficou claro é que o Supremo não se vê apenas como uma instituição que pode vetar decisões parlamentares claramente inconstitucionais, mas que pode comparar a qualidade constitucional das decisões parlamentares com as soluções que a própria Corte venha a imaginar, substituindo as decisões do parlamento caso entenda que as suas são melhores. (VIEIRA, 2008, p. 451). Além de não atuar com deferência, Vieira ressalta que a posição minoria no próprio STF, vocalizada na ocasião pelos ministros Carlos Alberto Direito e Antonio Carlos Peluso, procuraram inserir na decisão do órgão medidas de caráter Legislativo, visando a criação de mecanismos mais rigorosos pra fiscalizar pesquisas com células-tronco. Nesse sentido, o autor conclui que 21 POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO │ UNIDADE I uma das maiores idiossincrasias deste julgamento foi o fato de que a minoria no plenário, já derrotada por aqueles que entendiam que a lei era constitucional em sua totalidade, obstinadamente buscou que fossem incluídas na sentençamedidas de caráter Legislativo, que restringiriam enormemente a eficácia da legislação (VIEIRA, 2008, p. 452). Por fim, é importante mencionar o fato de que a deliberação do STF neste caso de alguma forma deu lugar a discussões da sociedade civil, seja através de amici, seja por parte de audiência pública, fazendo com que o próprio órgão se constituísse como um locus de discussão pública de um tema complexo. » O caso da fidelidade partidária, tratado no Mandado de Segurança 26.603/DF, e o caso dos crimes hediondos, tratado na Reclamação 4.335-5/Acre. Nesses dois casos, Vieira procura mostrar a forma pela qual o STF expandiu o exercício de atividades legislativas. Segundo o autor, em ambos os casos, “o Supremo parece ter dado um passo na direção do exercício do poder constituinte reformador” (VIEIRA, 2008, p. 454). No caso da fidelidade partidária, o TSE respondeu à consulta 1398 formulada pelo então Partido da Frente Liberal (PFL), na qual reconheceu que os partidos e as coligações partidárias têm o direito de manter as cadeiras parlamentares obtidas nas eleições quando o deputado decide mudar de partido político. Como a decisão do TSE não foi acatada pela Presidência da Câmara dos Deputados, o PSDB entrou com o Mandado de Segurança no 26.603. Segundo Vieira, o STF atuou neste caso como um constituinte reformador, na medida em que ao decidir pela perda de mandado do deputado que, injustificadamente, mudar de partido, após o pleito eleitoral, devendo sua vaga ser preenchida pelo suplemente que se encontra na lista do partido ou coligação de origem, o órgão criou uma nova categoria de perda de mandado parlamentar, distinta daquelas hipóteses previstas no artigo 55, da Constituição Federal (VIEIRA, 2008, p. 455). No caso dos crimes hediondos, a questão explorada por Vieira foi uma decisão no HC 82.956 no qual o STF afastou a incidência do artigo da Lei de Crimes Hediondos que vedava a progressão do regime àqueles que cometeram crimes hediondo, com base nos princípios da dignidade da pessoal humana e da individualização da pena. Diante dessa decisão, vários condenados com base na referida lei solicitaram progressão da pena. O fato gerador, do que Vieira chama de expansão da atividade legislativa do Judiciário, foi um juiz da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco não ter autorizado a progressão da pena por entender que o HC havia produzido somente efeito inter partes e aplicou o artigo 52 da Constituição Federal, o qual afirma que o juiz de primeira instância não está obrigado a cumprir decisão do STF enquanto o Senado Federal não suspender a execução da lei (De fato, segundo o artigo 52 da CF, “compete privativamente ao Senado Federal: suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”). Diante disso, o STF apreciou a Reclamação 4335 e foi então que, de acordo com Vieira, o STF expandiu seu poder para esfera legislativa: Após uma detalhada e sofisticada argumentação, o Ministro relator buscou demonstrar que o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade vem passando por um longo processo de mutação, marcado pela ampliação da 22 UNIDADE I │ POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO importância do sistema de controle concentrado em detrimento do controle difuso. Neste sentido, especialmente após a introdução do efeito vinculante em nosso sistema jurídico, a regra do artigo 52, X, ficou destituída de maior significado prático, tendo, portanto, ocorrido “uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto”. Esta mutação, evidentemente, consubstancia-se em novo direito constitucional, na medida em que é avalizada pelo Supremo Tribunal Federal (VIEIRA, 2008, p. 456). Os estudos de Mathew Taylor e Oscar Vilhena Vieira chamam a atenção para alguns aspectos do que está sendo denominado nesta seção como judicialização da política, particularmente a utilização do Poder Judiciário, e especificamente da sua Corte Suprema, como recurso para em alguma medida vetar políticas públicas (como no exemplo de Taylor) ou ainda como uma instância mesmo do processo de criação legislativa (como no exemplo de Vieira). Taylor ainda chama a atenção para a forma como atores perdedores na arena política utilizam o Judiciário de forma estratégica para afirmar posturas oposicionistas à opinião pública em geral. O fato é que, enquanto Taylor mostra que atores perdedores na arena legislativa inserem o Judiciário no processo decisório de políticas públicas como um ator que pode instituir veto (anulação ou atraso) a atos Legislativos, Vieira mostra que o próprio STF, ao ser chamado a decidir, de alguma forma expande sua atuação para esfera legislativa, criando, de certa forma, políticas públicas diretamente. Essas duas formas de atuação serão discutidas no capítulo posterior, no qual os conceitos de judicialização e ativismo judicial serão analisados mais detidamente. Por ora, é importante enfatizar que os casos apresentados até o momento mostram que, de fato, o Poder Judiciário pode e deve ser considerado um ator relevante no processo decisório e suas decisões têm tido impacto importante na configuração de políticas públicas, não apenas no Brasil, como em diversos Países. A participação do Judiciário por meio de suas instâncias inferiores Não apenas a judicialização dos temas políticos e a participação direta de órgãos superiores do Poder Judiciário têm implicações importantes para as políticas públicas e, consequentemente, para a configuração das esferas sociais, econômicas e políticas. O Poder Judiciário, ao ser chamado a resolver conflitos cotidianos de cidadãos comuns, pode criar novos entendimentos normativos a partir de sua base (instâncias de primeiro e segundo graus) que, a longo prazo, contribuem para a própria mudança social. Este tipo de atuação pode ser ilustrada com o caso sobre fornecimento de material genético deixado por um marido falecido a sua mulher por parte de uma clínica de reprodução. O caso apresentado pelo jornal Valor é o da professora Kátia Adriana Lenerneier e diz respeito a um tema de reprodução assistida. Kátia teve a gestação autorizada pela justiça com material genético deixado pelo marido morto, vítima de câncer. O Poder Judiciário teve que ser acionado por Kátia, pois o contrato assinado com a clínica que recolheu o material genético não tinha uma autorização do seu marido para que seu sêmen fosse usado. As etapas e argumentos apresentados nesse processo foram resumidos pelo Valor: As advogadas Dayana Sandri Dallabrida e Adriana Szmulik, do Escritório Vernalha Guimarães & Pereira Advogados Associados, propuseram uma ação 23 POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO │ UNIDADE I denominada de “obrigação de fazer” para forçar a clínica a liberar o material congelado para que a fertilização fosse realizada. O laboratório entendeu que seria necessária autorização expressa de Roberto. Três dias após o pedido da professora, uma decisão do juiz Alexandre Gomes Gonçalves autorizou o procedimento. Um dos argumentos das advogadas foi o de que sua cliente, na época com 38 anos, já teria sinais de envelhecimento ovular. “Ela não poderia aguardar por muito tempo longos debates na Justiça”, afirma Dayana. O que chama a atenção nesse caso, para o propósito da análise realizada neste capítulo sobre a participação do Poder Judiciário na produção de políticas públicas é o fato de que o Judiciário foi convocado a decidir sobre um tema para o qual não há lei para problemas e conflitos que possam surgir a partir da reprodução assistida. Na ausência de lei sobre o tema, conflitos como o da professora Kátia, assim como questões como herança de filhos nascidos de material genético depai morto, destinação de embriões excedentes de uma inseminação, registro de filhos gerados por “barriga de aluguel”, doação anônima de óvulos e sêmen, não têm previsão legal. Generalizando tais questões, o filósofo e professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Tércio Sampaio Ferraz Júnior, afirma no Valor que “A escala de situações geradas hoje pela tecnologia é muito alta e as leis simplesmente não conseguem acompanhá-las”. Nos casos citados acima, o que ocorre é que a matriz normativa existente para lidar com questões de família não acompanham situações novas, geradas pelo desenvolvimento tecnológico. Nesses casos, na ausência de lei, é o Poder Judiciário que, através de suas decisões, está, de algum modo, construindo o arcabouço normativo para resolver conflitos e regulamentar questões controversas. O exemplo de casos relacionados a direito de família podem ser expandidos para outras áreas, nas quais a tecnologia altera as relações sociais em um ritmo muito mais rápido do que a lei é capaz de acompanhar. Diante de uma espécie de “vazio” legal, muitas vezes é o Poder Judiciário quem toma decisões, já que a resolução de conflitos é judicializada pelas partes interessadas. Ao decidir, o Judiciário cria regras ou normas que passam a orientar a conduta dos demais atores. Implicações: democracia, separação de Poderes e contestação legal Não é difícil perceber que os processos empíricos de judicialização, com suas diferentes características apresentadas acima, têm implicações normativas importantes para a operação da própria democracia. Como será problematizado posteriormente questões como independência e controle do Poder Judiciário, legitimidade e limites de sua atuação, deferência a decisões do Executivo e Legislativo são temas que têm ganhado relevo na agenda de pesquisas acadêmicas sobre a relação entre os três Poderes nas democracias contemporâneas. Tais temas serão discutidos ao longo da disciplina. Por ora, será abordado as implicações da participação do Poder Judiciário para a teoria de separação de Poderes e para a teoria democrática. Nova separação de Poderes X “adversarismo legal” O que chama a atenção na discussão acima é a capacidade do Poder Judiciário em atuar, no processo decisório, seja influenciando outros atores, quando age como ator com capacidade de vetar 24 UNIDADE I │ POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO determinadas políticas, seja diretamente, ao “criar” estruturas normativas, tanto por meio de seus órgãos de cúpula, como por suas instâncias inferiores. Como visto na introdução, esse modelo difere de uma abordagem tradicional de democracia de supremacia legislativa, como também da visão tradicional de separação de Poderes. De acordo com uma abordagem conhecida como “nova separação dos Poderes”, o processo decisório das democracias contemporâneas é, inerentemente, formado pela interação institucional entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (FIGUEIREDO, JACOBI, WEINGAST, 2008). Nesse sentido, a análise do processo decisório deve incorporar as características de atores “externos” à produção de políticas públicas, ou seja, daqueles que não atuam diretamente na decisão em um primeiro momento, mas podem se constituir em obstáculo importante em um momento subsequente, tal como visto anteriormente no estudo de Taylor. Diante da possibilidade de veto, diversos atores da arena decisória podem antecipar as preferências dos atores com poder de barrar políticas em suas escolhas de políticas, a fim de evitar uma derrota posterior das suas decisões. É nesse sentido que o Poder Judiciário pode ser e normalmente é inserido na análise de políticas públicas: como um ator com poder de restringir as opções do Executivo e do Legislativo a) durante o processo de elaboração da política pública e b) quanto à entrada de determinada política na agenda legislativa. Dessa forma, para ter suas preferências e escolhas de políticas públicas atendidas, os atores majoritários do Executivo e do Legislativo podem agir de acordo como o que esperam do Poder Judiciário, nos casos de contestação de políticas por parte da oposição ou de grupos insatisfeitos da sociedade civil. Outro modelo de análise do papel do Poder Judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas foi desenvolvido com base em caso norte-americano e foi denominada pelos cientistas sociais Robert Kagan e Jeb Barnes como “adversarial legalism”, ou seja, “legalismo adversarial”. Tal modelo contesta a visão tradicional, pela qual o processo de elaboração e de políticas públicas se dá por meio de negociações entre o chefe do Poder Executivo e os membros do Poder Legislativo e sua implementação é realizada por diferentes órgãos do Poder Executivo. Nesse modelo tradicional, cabe ao Judiciário tão somente o papel de adjudicar disputas e conflitos surgidos na aplicação da legislação da política pública proposta e impor sanções aos atores que violarem as normas e regras criadas. O modelo tradicional, em resumo, afirma que as decisões fundamentais de políticas são realizadas pelo corpo representativo eleito pelo povo, que sua implementação é de responsabilidade de corpos administrativos especializados do Poder Executivo e que os tribunais cumprem a função de julgar, mediante especialistas em direito, politicamente independentes, a legislação ou atos regulatórios criados pelos outros Poderes. Contudo, os casos ilustrativos e os estudos apresentados acima problematizam esse modelo ao afirmar que a linha de divisão entre os Poderes é menos nítida do que a teoria tradicional supõe. Grupos da sociedade civil ou atores políticos relevantes apelam ao Judiciário quando podem para contestar ou manifestar oposição a políticas públicas. Mais ainda, esses grupos se derrotados em um primeiro recurso, muitas vezes reingressam no Judiciário, seja com outras ações, seja em outras instâncias, com suas contestações. Grupos e atores majoritários fazem sua defesa, também, utilizando o Poder Judiciário. Essa forma de atuação, por meio do Judiciário, de atores políticos, econômicos e sociais na defesa de seus interesses e preferências de políticas públicas é o que Robert Kagan denomina “legalismo 25 POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO │ UNIDADE I adversarial”, em um artigo sobre os Estados Unidos, intitulado “American Courts and the Policy Dialogue: the role of adversarial legalims” publicado no livro Making Policy, Making Law: a interbranch perspective, editado por Mark Miller e Jeb Barnes. Para o autor, este é um modo de governança em que a elaboração e implementação de políticas públicas e de resolução de conflitos se caracteriza pelo uso frequente do Judiciário como recurso de contestação legal. No caso dos Estados Unidos, Robert Kagan com estudos de caso, chama a atenção para o fato de que, em geral, os juízes norte-americanos incorporaram essa participação no processo decisório como atores ativos, extrapolando suas funções tradicionais. Ao analisar um caso sobre a extrapolação de Poderes de uma agência administrativa em um conflito ambiental, por exemplo, o autor observa que os juízes, ao julgarem tal caso, repetidamente agiram como especialistas administrativos e como elaboradores de políticas públicas, que emitiram suas opiniões, desafiando modelos científicos e análises de dados levados por especialistas e fundamentalmente o tribunal se constituiu como um fórum político alternativo aos interesses de ambientalistas envolvidos na disputa. O autor afirma que no caso dos Estados Unidos, o modelo de “adversarismo legal” é extremo, em função do modelo do direito consuetudinário, e resume da seguinte forma o seu processo: 1. “uso organizado dos tribunais por parte de grupos de interesse como um fórum político alternativona consecução de seus objetivos de políticas públicas; 2. ousadia judicial em escrutinar e reverter decisões governamentais científicas e decisões de políticas públicas e Persistência de incerteza legal e controvérsia política em torno das decisões judiciais.” (KAGAN, p. 41) Conclusão Observa-se que o processo apresentado acima por Robert Kagan é uma situação extrema, na qual os juízes extrapolaram suas funções, ao criarem políticas públicas a partir da contestação legal a ser decidida por eles. Esse modelo, embora possa ser observado em algumas situações, difere do modelo de análise apresentado no início dessa seção denominada “nova separação de Poderes”. Ambos os modelos analíticos, “nova separação de Poderes” como o “adversarismo legal” podem ser úteis para se analisar a realidade social. A aplicação de um outro modelo de análise dependerá dos casos concretos em estudo. De fato, como visto nos casos ilustrativos e nos estudos sobre o Brasil, o Judiciário pode se constituir em: » um ator cujas preferências devem ser levadas em consideração por elaboradores e implementadores de políticas públicas, diante do seu poder de veto; » um ator a ser explorado como “recurso” de contestação ou de manifestação de descontentamento por parte de atores perdedores na arena legislativa; » um ator que cria estruturas normativas, uma vez que casos concretos são resolvidos judicialmente. 26 UNIDADE I │ POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO Tais formas de atuação são, recorrentemente, apreendidas na literatura especializada através dos conceitos de judicialização e ativismo judicial. Esses termos, apesar de serem extremamente difundidos na literatura especializada e mesmo na mídia, são controversos. Nesse sentido, o capítulo seguinte procura sistematizar a discussão teórica sobre os fenômenos da judicialização e do ativismo, complementando o referencial teórico que relaciona Judiciário, processo decisório e políticas públicas. 1. Leia os textos abaixo, disponíveis da base de dados Scielo e compare as formas por meio das quais o Poder Judiciário foi incorporado na análise como ator relevante do processo decisório: › TAYLOR, Matthew. O Judiciário e as políticas públicas no Brasil”. Dados. v. 50, 2007. › VERÍSSIMO, Marcos Paulo Veríssimo. A Constituição de 1988, vinte anos depois: suprema corte e “ativismo judicial à brasileira”. Revista DIREITO GV. v. 4. n. 2. p. 407-440, jul./dez. 2008. 2. Quais as principais características das vertentes teóricas “nova separação de Poderes” e do “adversarismo legal” sobre o papel do Poder Judiciário nos processos de elaboração e implementação de políticas públicas? 3. Estudo de caso: pesquise casos concretos na mídia ou na jurisprudência em que o Judiciário tenha atuado como ator no processo decisório nos seguintes casos: › Na configuração das políticas de ação afirmativa, na garantia dos direitos fundamentais, no acesso a políticas sociais (educação, saúde e assistência social). › Na prática judicial: novos instrumentos de gestão da justiça, novos paradigmas gerenciais, monitoramento e avaliação, seja como criador legislativo, seja como recurso de poder a ser utilizado por outros atores. 4. De que forma o Poder Judiciário pode ser utilizado como recurso estratégico por parte de atores políticos e econômicos e sociais na defesa de seus interesses? Ilustre sua resposta com casos concretos (encontrados na jurisprudência ou na mídia). 5. Refletindo sobre casos concretos julgados pelo Supremo Tribunal Federal, qual a sua opinião sobre os resultados práticos para a democracia brasileira da atuação do Tribunal como ator relevante no processo decisório? 27 CAPÍTULO 2 Judicialização e ativismo judicial como categorias de análise sobre o Poder Judiciário: sistematizando a discussão Discussão conceitual sobre judicialização da política e ativismo judicial Este capítulo apresenta as principais formulações teóricas sobre a judicialização e ativismo judicial discutidas na literatura especializada. O conceituação desses termos é importante para complementar a discussão iniciada no capítulo 1, na medida em que » revela as condições necessárias para que judicialização ocorra, tal como definido pelas abordagens teóricas; » ressalta os elementos que permitam pensar na variação da judicialização da política, seja em intensidade ou grau, seja em sua direção, seja como veto a maioria legislativa ou em concordância com a maioria legislativa; » mostra os diferentes tipos de “solução” dada pelo Judiciário aos temas políticos. Nesse sentido, a sistematização da discussão sobre judicialização ativismo é fundamental para analisar empiricamente as formas de participação do Judiciário no processo decisório e de sua influência na produção de políticas públicas. Judicialização como ativismo contramajoritário: a proposta de Tate e Vallinder Em um volume dedicado à análise da expansão do Poder Judiciário em diversos Países e que se tornou referência importante sobre o tema, Tate e Valinder (1995) dividem analiticamente o conceito de judicialização da política como 1) referente a um fenômeno “mais dramático” de transferência de decisões normativas do Legislativo e/ou do Executivo para o Judiciário – e que se dá, principalmente, através de instrumentos de controle de constitucionalidade – e 2) um fenômeno “menos dramático” de incorporação de métodos próprios de decisão e resolução de conflitos dos tribunais para setores administrativos diversos. Em seu sentido “mais dramático”, a judicialização significa um processo por meio do qual tribunais e juízes se tornam atores ou aumentam sua participação na produção de políticas públicas previamente elaboradas por órgãos dos Poderes Legislativo e Executivo (TATE; VALINDER, 1995, p. 28). Os autores listam oito condições “facilitadoras” da judicialização, em seus dois sentidos: a existência de um regime democrático, que aumenta a probabilidade de que juízes independentes 28 UNIDADE I │ POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO participem do processo decisório e de que os demais atores aceitem suas decisões; a separação de Poderes, o que permite que os juízes interpretem atos normativos; a existência de direitos políticos formalizados, os quais garantem os direitos de minorias; o uso dos tribunais por parte de grupos de interesse e pela oposição; partidos políticos e governos de coalizão fracos que, ao produzirem políticas inefetivas e com pouco apoio, aumentam a ação da oposição no Judiciário – condição que os autores denominam de “instituições majoritárias inefetivas”; percepção negativa das instituições majoritárias por parte do público e da elite, o que pode aumentar contestações de políticas públicas no Judiciário; e, por fim, a delegação para os tribunais de medidas e decisões que as instituições majoritárias não querem tomar. Vale reforçar que as condições expostas por Tate e Valinder são descritas como “facilitadoras”, ou seja, não são necessárias e muito menos suficientes para produzir o fenômeno da judicialização. Para que isso ocorra é necessário, segundo o modelo explicativo dos autores, que os juízes decidam que devem participar do processo decisório que poderia ser realizado por outras instituições e que devam interferir em soluções de políticas públicas realizadas por outras instituições. Embora cientes de que uma não decisão de alguma forma implicar tomar uma decisão, Tate e Valinder conferem ao fenômeno da judicialização um componente ativo ou positivo dos juízes na tomada de decisão. Nesse sentido, a judicialização requer que os juízes tenham atitudes ou predisposições pessoais e tenham preferências de políticas ou valores que os levam a procurar participar do processo decisório. Dessa forma, tal como elaboradopelos autores, a judicialização pressupõe uma orientação dos juízes para o que os autores chamam de “ativismo judicial” e para preferências por políticas públicas. É importante notar que, no sentido dado por Tate e Valinder, a judicialização é um fenômeno que pode ocorrer quando (a) as condições facilitadoras existem e (b) os valores dos juízes não são coincidentes com os valores da coalizão majoritária. Segundo o argumento dos autores, caso os valores sejam compartilhados entre os juízes e as instituições majoritárias, os incentivos para que os juízes procurem participar do processo decisório são baixos. Nesse caso, a própria formulação do conceito de judicialização que se tornou referência nos estudos sobre o tema já chamava a atenção para a complexa interação entre valores dos atores relevantes, relações e interações entre instituições e condições objetivas restritivas da ação política. Judicialização como resolução de conflitos e a participação dos juízes constitucionais no processo Legislativo: a proposta de Stone Sweet Em trabalho intitulado Governing with Judges: constitutional politics in Europe, Alec Stone Sweet, ao analisar o impacto das cortes constitucionais sobre as leis e a política na França, Alemanha, Itália, Espanha e União Europeia, define judicialização da vida social como um processo de resolução de conflitos por meio do qual um mecanismo de resolução de conflitos formado por três atores principais – duas partes em disputa e uma terceira, da qual tribunais podem se constituir como ator relevante, seja capaz de impor a solução – se estabelece sobre uma estrutura normativa em dada comunidade. Stone Sweet elabora o conceito de judicialização como um processo formado por uma dimensão micro – na qual dois atores interagem e, não havendo acordo voluntário quando a conflitos surgidos entre eles, um terceiro ator é mobilizado – e uma dimensão macro – constituída pela estrutura 29 POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO │ UNIDADE I normativa subjacente às interações sociais. As regras de resolução definidas pelo ator competente (terceiro ator) fazem a ligação entre essas duas dimensões. A reputação de neutralidade do terceiro ator é fundamental para sua legitimidade social e, consequentemente, para que os atores em conflito recorram a ele. Nesse sentido, Stone Sweet afirma que, para resolver os conflitos de forma efetiva e manter a legitimidade social, o terceiro ator lança mão de duas estratégicas básicas: 1. justificam seu comportamento normativamente, enquadrando os argumentos apresentados pelas partes em disputas em posições normativas e não revelando suas próprias preferências e 2. em casos difíceis, procuram decidir dentro do espaço que incorpora os pontos medianos de preferência dos atores em disputa, evitando declarar um claro vencedor ou um claro perdedor da disputa. A decisão tomada pela terceira parte cria regras, as quais de alguma forma reforçam ou introduzem mudanças na própria estrutura normativa existente, fechando o que o autor chama de ciclo da judicialização. Elaborado dessa forma, o processo de resolução de conflitos em uma dada comunidade pode variar em um contínuo que vai desde o uso de procedimentos voluntários e mutuamente consentidos de resolução até a adjudicação, com seu componente compulsório e base jurisdicional. Nesse polo da adjudicação é que os juízes e os tribunais exercem seu papel. Ao decidirem, os juízes e tribunais criam regras – assim como qualquer terceiro ator – que afeta, como mencionado acima, a estrutura normativa existente. Embora Stone Sweet não use o termo “judicialização da política”, sua análise volta-se ao processo de judicialização dos conflitos envolvendo medidas elaboradas e implementadas pelos agentes governamentais – Legislativo e Executivo. Uma das formas – se não a principal – de atuação do Judiciário nesses casos é de rever atos do governo e, considerando que tais atos contrariem regras definidas na Constituição, invalidá-los – fenômeno que o autor chama de revisão constitucional, sendo realizado por juízes constitucionais. Os juízes constitucionais, ao fazerem a mediação entre as regras constitucionais – nível macro do processo de judicialização – e os atos do poder público e de outros indivíduos – nível micro do processo – criam e recriam regras e constroem um discurso, ou diálogos coletivos, sobre as capacidades e limites do uso do poder do estado – fenômeno denominado política constitucional. Observa-se que essa proposição ressalta o caráter contramajoritário do Judiciário, ou seja, sua atuação como veto às decisões majoritárias, tendo como parâmetro as Constituição vigente. Esse modelo decisório se expandiu na Europa através da instituição de cortes constitucionais em diversos Países após a Segunda Guerra. No entanto, na concepção de Stone Sweet, a incorporação do Judiciário (ou juízes constitucionais) no processo decisório vai além da atuação contramajoritária nos Países que adotam o modelo de corte constitucional: ele é um ator participante do próprio processo Legislativo. Isso ocorre nos contextos nos quais coexistam cortes constitucionais e constituições que codificam direitos. A instituição das cortes institucionais na Europa foi uma forma pensada de resolver o problema da defesa da normas constitucionais sem gerar um outro problema de “confusão” entre os Poderes 30 UNIDADE I │ POLÍTICAS PÚBLICAS NO PODER JUDICIÁRIO – sendo esse um dos temores em se adotar a solução do judicial review do tipo norte-americano. Tais cortes exercem o monopólio da revisão constitucional, decidem exclusivamente casos de disputa constitucional e ocupam um espaço constitucional que não é nem judicial nem político; alguns modelo de cortes constitucionais têm Poderes de rever uma legislação antes dela produzir efeitos (controle abstrato). O modelo de corte constitucional, portanto, difere-se do modelo norte-americano e do desenho institucional judicial brasileiro. Seu desenho institucional foi elaborado a partir das considerações de Hans Kelsen, mas sua concretização difere em um aspecto central: para Kelsen as cortes constitucionais não deveriam ter jurisdição sobre direitos, a fim de garantir a separação entre as funções judiciais e legislativas. Na medida em que os direitos foram codificados nas constituições europeias em Países que adotaram cortes constitucionais, portanto, a condição de separação das funções dos Poderes Legislativo e Judiciário foi quebrada. Na concepção de Stone Sweet, a natureza, o escopo e a intensidade da interação entre o Legislativo e as cortes constitucionais – o que o autor chama de grau de judicialização da governança parlamentar – se relacionam com o modelo de revisão exercidos pela corte constitucional e a extensão e radicalismo com que a as maiorias parlamentares buscam reformar a legislação. No caso de controle abstrato, a interação é direta, enquanto no controlo concreto a relação é indireta, já que mediada pelas cortes comuns. A possibilidade de exercício do controle abstrato aumenta a probabilidade da judicialização. Por outro lado, quanto mais drástica for a pretensão de alteração do status quo, maior também a probabilidade de judicialização. Essa interação entre os Poderes permite que Stone Sweet conceba o processo Legislativo como um locus da política constitucional e, nesse sentido, considere as cortes constitucionais como um tipo de órgão Legislativo especializado e a revisão constitucional é entendida pelo autor como um estágio da produção normativa. Assim, Stone Sweet concebe as cortes constitucionais como espécie de câmara especializada dotada de independência para tratar de assuntos constitucionais, sem capacidade de iniciar legislação e obrigada a justificar suas decisões em bases legais. Difere,
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