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Metafilosofia - Murilo Seabra

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Brasília, 2014
METAFILOSOFIA
Lutas simbólicas, sensibilidade e sinergia intelectual
 
Murilo Seabra 
2a Edição
Revista e Ampliada
Diagramação: Éric Seabra e Murilo Seabra
 Seabra, Murilo 
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SUMÁRIO
Principais conceitos
7
Prefácio
9
Apresentação
45
Bloco 1: A arte de analisar poeira 
49
Bloco 2: Originalidade
69
Bloco 3: Estética da austeridade
83
Bloco 4: A ƒlosoƒa acadêmica não teve século XX 
103
Bloco 5: Estar à vontade
135
Bloco 6: Placas e deƒnições 
173
Bloco 7: Implementação e impacto
195
Bloco 8: O senhor Quita
227
Bloco 9: Cordas vocais
247
Bloco 10: Trilhos
265
Carta aos estudantes
285
Créditos das ideias
305
Mais conceitos
309
Obras citadas
317
PRINCIPAIS CONCEITOS
Estar à vontade
§§40, 203, 204, 215, 229, 237, 259, 266, 417
Iemanjá e Nossa Senhora
§§43, 44, 52, 415, 417
Luta
§§105, 120, 121, 124, 166, 253, 279, 300, 305, 318, 319, 321, 
324, 372, 473, 474
Metafísicas da inovação e da repetição
§§429, 430, 434, 435 
Originalidade
§§2, 3, 52, 53, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 64, 69, 70, 71, 72, 
73, 88, 103, 195, 196, 261, 334, 338, 366, 379, 382, 418, 429, 
437, 438, 479, 494, 500
Retina
§§91, 92, 136, 339, 350, 369, 423 
Sensibilidade
§§59, 91, 98, 105, 453, 471
Prefácio
Comenta-me ou te devoro:
O que um ‚lósofo vê quando abre a janela
Julio Cabrera 
(Universidade de Brasília)
I – Entrando numa escrita: a insurgência de Murilo Seabra
A melhor coisa que se pode dizer sobre este livro é que ele 
foi escrito “à vontade”. O “estar à vontade” ou “pensar à vontade” 
é uma das categorias que Murilo Seabra usa neste pequeno 
metalivro, que corre na contramão de certas convicções 
acadêmicas enraizadas. Para Murilo, os pensamentos 
/uem de maneira autêntica, espontânea e genuína quando 
‚losofamos entre amigos e para amigos, para pessoas que não 
nos intimidam. Os pensamentos, pelo contrário, travam e 
‚cam falsos quando somos obrigados a pensar para um meio 
acadêmico impessoal e anônimo. Sabe-se que a “qualidade” de 
um trabalho ‚losó‚co mede-se, nas universidades, precisa-
mente pelo fato de ser ele julgado – fria e objetivamente – por 
pessoas que não constam entre nossos amigos. A ‚loso‚a 
universitária não apenas não nos deixa “à vontade”, mas faz 
questão de nos deixar tão constrangidos quanto possível. Mas 
isto marca também o paradoxo da publicação deste livro, que 
cairá fatalmente nas mãos de inimigos, de pessoas para as quais 
não estava destinado.
Parece um destino inglório dos ‚lósofos latino-americanos 
o fato de que seus textos tenham que ser, por um bom tempo, 
12
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
metaƒlosóƒcos. Já faz algo em torno de 20 anos que outro 
pensador solitário, Edson Andrade, escreveu no Rio Grande do 
Sul uma obra-prima metaƒlosóƒca, Da arte de criar mundos, e 
Gonzalo Armijos, um equatoriano radicado no Brasil, inventou 
outra obra deste tipo, mencionada várias vezes por Murilo, De 
como ser !lósofo sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Mas 
não somos metaƒlósofos por paixão. Somos metaƒlósofos 
por imperiosa necessidade de sobrevivência. Quando não nos 
deixam ƒlosofar, nosso pensar tem que falar sobre si mesmo 
num movimento de insurgência. Um pensamento genuíno 
não pode, em nosso meio atual, apenas “surgir”, ele tem que 
“insurgir-se”, surgir apesar das ameaças e travas, vir a existir 
contra tudo o que quer abortá-lo e impedi-lo de se manifestar. 
Em tempos melhores, não haveria necessidade de explicar 
ao leitor a maneira como a ƒlosoƒa se instaurou e como ela agora 
impede o pensar ao invés de estimular a re&exão. Vivemos num 
tempo em que somos obrigados a ensinar, em meio a expressões 
de animosidade, como retomar a trilha do pensamento num 
ambiente não interessado em ƒlósofos. Para dizer tudo isto 
é preciso ser metaƒlósofo, gastar tempo escrevendo livros 
como este. Este livro seria perfeitamente inútil se a ƒlosoƒa 
pudesse se manifestar de maneira exuberante. Em bons tempos 
ƒlosóƒcos, a metaƒlosoƒa deveria ser inócua; um termômetro 
das coisas estarem tão mal para a ƒlosoƒa desde a América 
Latina é a nossa imperiosa necessidade de metaƒlosofar. Que 
livros como o de Murilo sejam indispensáveis é um sintoma 
dos nossos tempos. 
Que não se diga, em todo caso, que Murilo Seabra seja autor 
de um livro único, e que só faz metaƒlosoƒa por ser incapaz de 
ƒlosofar. Isto seria redondamente falso. Desde o ƒnal da década 
de 90, quando era um jovem aluno da graduação, Murilo escreve 
textos curtos numa espécie de aprendizado fantasma, paralelo 
a seus penosos estudos acadêmicos (aqueles nos quais você 
13
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
nunca está “à vontade”). Na minha mesa de trabalho encontro 
“O ataque do mal”, um texto com o qual Murilo se debate há 
muitos anos; “Lutas simbólicas”, um texto que acabou de ser 
publicado numa coletânea da Revista de Artes da UnB, e que é 
aproveitado dentro da arguição do presente livro; e milhares de 
textos curtos, alguns deles montados de maneiras insólitas, em 
pequenas encadernações cheias de becos sem saída (e muitas 
vezes sem entrada). Menciono alguns: “Eletroencefalograma 
de um louco”, “Morfeio”, “Filoso‚a da música: notas sobre o 
processo de composição musical”, “Entalhes sobre a linguagem”, 
“Notas sobre o processo de endoculturação”, “Fim dos tempos”, 
“O desaparecimento dos diálogos, das cartas, dos aforismos, dos 
desenhos, dos poemas, dos ensaios, das con‚ssões autobiográ‚cas 
e dos diários da ‚loso‚a”, “Regras para a geração de mundos”, 
“O mundo interno e seu vocabulário externo”, “Pano de fundo”, 
“O racionalista medieval”, “Cores”, “A contradição e a dor”, 
“Mawatwa”. Existem muitos outros, alguns sem título ou 
mesmo com títulos sem graça (“Algumas observações”), como 
se a re*exão estivesse, às vezes, tão à solta que não fosse mais 
possível titulá-la. Tampouco é Murilo um produtor compulsivo 
de textos; ele só escreve quando algo queima dentro dele. 
Como em todo +lósofo, é difícil de+nir claramente o seu estilo 
(“literário”? “+losó+co”?) ou a “área” de re*exão destes escritos: 
+loso+a da mente, +loso+a da linguagem, ética, ontologia 
– tudo isso e algumas outras áreas inventadas (+loso+a das 
miudezas? +loso+a das falas de rua?) vêm à tona quando você 
“está à vontade”, quando simplesmente pensa em lugar de 
redigir papers para revistas especializadas. 
É claro que Murilo teve que se habilitar (teve mesmo ou 
foi escolha?). Tentou mestrado na UnB várias vezes e não 
conseguiu; tentou a USP, mas tampouco conseguiu ter seu modo 
de trabalhar admitido; voltando a Brasília, tentou novamente e 
esta vez foi aceito – eu fazendo parte da banca de seleção – com 
14
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
um projeto sobre um autor europeu (Wittgenstein), condição 
necessária, como se sabe, para a aceitação em qualquer 
instituição latino-americana séria. Poucos perceberam, no 
entanto, que a dissertação de Murilo, “Porque não se devem 
interpretar as Investigações Filosóƒcas de Wittgenstein”, foi, 
do ponto de vista metodológico, uma devoração oswaldiana 
das ferramentas conceituais do ƒlósofo austríaco aplicadas a 
questões que jamais passaram pela cabeça de Wittgenstein, 
e, do ponto de vista temático, uma violenta crítica ao modo 
acadêmico de ƒlosofar. Durante a convulsionadadefesa da 
dissertação, houve tumultos e incômodos, o que provou que 
a dissertação, apesar de tudo, atingiu o seu alvo em cheio. 
Foi dessa forma que um belo dia, depois de sonhos agitados, 
Murilo acordou transformado num Mestre em Filosoƒa. 
II – Final dos tempos ƒlosóƒcos: Murilo pisa em cadáveres 
cercado por um ódio profundo
Qual é, aƒnal, a situação contra a qual Murilo Seabra 
se insurge? Uma situação muito grave, não apenas pela sua 
intrínseca relevância, mas também porque ela não é sequer 
percebida como problemática, sendo, pelo contrário, tomada 
como uma situação extraordinariamente positiva. Trata-se do 
que denomino de “crise do autoral”. A formação de um “ƒlósofo” 
(talvez seria melhor falar numa “formatação”) passa hoje, nas 
universidades, pelo estudo aprimorado e rigoroso da tradição 
ƒlosóƒca europeia (e norte-americana). O que se espera de um 
“ƒlósofo” é que ele conheça perfeitamente algum setor desta 
tradição, se especialize nela, publique papers e livros dentro da 
mesma, atinja certa “excelência” no domínio das suas fontes – 
com o necessário domínio das línguas estrangeiras relevantes 
–, publique em revistas indexadas e tenha uma agenda cheia de 
viagens nacionais e internacionais para expor seus trabalhos 
��
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
exegéticos, históricos ou de comentários, explicativos ou 
críticos (passar a vida acadêmica inteira “lendo criticamente” 
uma tradição †losó†ca é outra maneira de †car totalmente 
atrelado a ela). 
Não existe neste esquema nenhum espaço para alguém que 
pretenda expor seus pensamentos, aquilo que provém das suas 
próprias tradições e entranhas existenciais (latino-americana, 
brasileira, comunal, familiar, pessoal). Qualquer tentativa neste 
sentido produzirá o efeito dos professores enviarem essa pessoa 
para estudar os autores da tradição europeia, para ali encontrar 
subsídios que, em algum dia longínquo, lhe permitirão talvez 
apresentar algum pensamento próprio. Mas o pensador é 
um ente singular, com uma breve vida †losó†ca pela frente; 
ele quer †losofar agora. Há pessoas – não muitas talvez – que 
não querem ser comentadores, exegetas ou historiadores; 
eles querem ser autores, pensadores, mesmo que pensadores 
menores. A situação contra a qual Murilo se insurge é aquela em 
que não existe qualquer espaço para o autoral. Pior ainda: onde 
o autoral é considerado pouco sério, diletante, improvisado, 
autodidata, não pro†ssional e até moralmente reprovável. O 
†lósofo autor virou incompetente, ridículo e amoral. 
A questão da autoralidade é muito grave porque os 
atuais produtores de †loso†a, tal como a conhecemos, 
são cegos para qualquer criação †losó†ca alternativa sem 
quali†cá-la simplesmente de diletante, não pro†ssional ou de 
“†loso†smo” improvisado e “sem rigor”. Propositalmente falo 
em criação e não em produção, que é o termo mercadológico 
usualmente utilizado, termo que convém perfeitamente ao 
tipo de †loso†a que se produz nas universidades. Gerações e 
gerações de estudantes foram perdendo esta capacidade ótica 
e não conseguem mais ver a †loso†a a não ser pelos olhos 
institucionais, o que era, precisamente, o objetivo almejado. 
Quando o pensador autoral, depois de muitas hesitações e 
��
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
temores, ousa escrever e apresentar suas ideias, a sua criação 
será desquali‚cada se medida com a vara acadêmica. Para 
apreciarem a criação ‚losó‚ca alternativa e autoral, os leitores 
de ‚loso‚a teriam que ser capazes, depois de anos e anos 
de “formatação” acadêmica, de mudar os critérios usuais 
de avaliação. Se aplicarem os critérios vigentes, qualquer 
produção autoral será vista como “má ‚loso‚a” e rejeitada. 
Se um “bom texto ‚losó‚co” deve estar construído tomando 
como base a história do pensamento europeu, citando 
interminavelmente seus autores, de‚nindo perfeitamente seus 
conceitos, argumentando logicamente, não se permitindo 
nenhuma narrativa ou intuição norteadora, perseguindo 
um objetivo perfeitamente claro que não possa mudar no 
meio do percurso, não tocando em temas cotidianos e não se 
permitindo rupturas de estilo, então um livro autoral não será 
jamais considerado como um “bom texto ‚losó‚co”. Este é o 
problema inicial, não um problema conceitual, mas, eu diria, 
quase um problema perceptivo. Não é que o autoral pareça de 
má qualidade; ele é realmente de má qualidade, se medido 
com os critérios vigentes. Se for realmente autoral, parecerá 
inevitavelmente não ter “qualidade”. Fugir da “excelência” se 
torna um requisito do autoral. 
Neste sentido, talvez seja ainda otimista o primeiro 
aforismo de Murilo neste livro, onde se apresenta o comentador 
como ainda desejando ser ‚lósofo, e até tendo inveja de quem 
é capaz de sê-lo (“No âmago do comentador fermenta uma 
dor indizível: ‘Eu queria ter tido essa ideia’”). Seria bom se 
as coisas fossem assim, a situação não seria tão dramática. 
Na verdade, porém, o comentador se convenceu totalmente 
de que a ‚loso‚a se resume em comentar; ele não se permite 
mais fermentar qualquer “dor indizível”; ele nem sabe mais 
que ele “queria ter tido essa ideia”. Murilo matiza seu aforismo 
§1 com o §366: na verdade, já não aparece na consciência do 
17
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
comentador qualquer visão do original, porque simplesmente 
não há, para ele, o original; portanto, não há nada a invejar 
ou fermentar. Em outros aforismos, como §315 e §353, Murilo 
tem aguda consciência deste problema da autovisualização do 
comentador, que já aprendeu a identiƒcar a ƒlosoƒa com o que 
ele faz, sem qualquer aceno para um dever ser pelo qual ainda 
valeria a pena lutar. 
Na situação atual, há uma espécie de cegueira (não de 
nascimento; doença adquirida) para perceber que o autoral é 
uma ruptura, algo que provém do vivido, escutado e sofrido, 
das entranhas do ƒlósofo em seu ambiente (ambiente do 
qual é afastado em seus estudos de pensamentos alheios em 
línguas e raízes estranhas). Trinta anos de estudos eruditos 
não gerarão jamais um ƒlósofo, assim como o melhor casal 
de gatos jamais gerará um ƒlhote de cachorro. Trata-se de 
algo de outra natureza, não há uma continuidade. À medida 
em que se tornar mais talentoso e aprimorado, o comentador 
de ƒlosoƒa, pelo contrário, ƒcará mais e mais acanhado 
para expor as suas ideias, ƒcará cada vez mais cauteloso, até 
abandonar totalmente a ideia de pensar algo que seja seu. Não 
há nada que prepare alguém para a ƒlosoƒa; o ƒlósofo poderá 
ter muitos conhecimentos, mas no momento de pensar, já os 
terá superado. Terá feito com eles o que os ƒlósofos costumam 
fazer com o que leem: dar uma olhada rápida e interesseira, 
interpretar mal, utilizar inescrupulosamente o que leu para a 
própria escrita.
Murilo aponta, já no início de seu livro, que a primeira 
reação contra estas ideias será de “ódio profundo”. Isto é 
compreensível. Pense numa pessoa que trabalhou durante anos 
para constituir toda a sua existência intelectual em cima de uma 
certa competência (por exemplo, a de conhecer e comentar a 
obra de Kant ou de Wittgenstein ou de Aristóteles) e vem uma 
pessoa – de menos idade, talvez com menos conhecimentos 
18
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
– e lhe diz que o que ele faz carece de valor, que ele não está 
fazendo losoa genuína. Pode-se imaginar outra reação a não 
ser a de “ódio profundo”? Contra o que pensam as metafísicas 
da “pessoa”, os animais humanos são seres sem nenhum “valor 
intrínseco”; portanto, temos constantemente que nos dar 
valor, precisamos avidamente de reconhecimento; não somos 
reconhecidos por termos valor, mas temos valor por sermos 
reconhecidos. Ideias como as de Murilo ou as minhas ou as de 
Gonzalo Armijos devem abalarprofundamente os mecanismos 
de autovaloração dessas pessoas e gerarem um ódio arrasador 
contra os responsáveis pelo abalo. Ideias como as deste livro 
são como …echas que você deve atirar no alvo e sair correndo, 
pois a reação será aterrorizadora. 
Mas não é apenas o ódio profundo explícito que estas 
ideias provocam numa comunidade como a nossa, avessa a 
qualquer tipo de autoralidade, e que identicou a losoa com 
o pensamento institucional, técnico e produtivo. Elas também 
disparam outras atitudes que Murilo não considera, talvez mais 
amedrontadoras que o ódio profundo manifesto; rero-me ao 
cinismo, à dissimulação, à falsa cordialidade e, inclusive, ao total 
acordo no plano das ideias. Já falei com comentadores de Kant 
que me cumprimentavam pela minha defesa da autoralidade, 
declarando-se totalmente de acordo com a armação de que o 
Brasil precisa estimular a exposição de ideias próprias. Esta é 
uma vicissitude psicológica do ódio profundo (porque o ódio 
continua ali dentro) que pode tornar-se muito complicada, 
porque ela gera a impressão de que estamos todos lutando 
pelas mesmas causas, e o inimigo está sempre em outro lugar. 
Este ódio tem algo de emocional e não racionalmente 
justicado nas ideias ou seu modo de exposição. Murilo e 
eu discordamos em muitas coisas – como explicarei melhor 
na seção IV deste prefácio – mas principalmente num ponto 
fundamental: enquanto eu penso que o comentário e a exegese 
19
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
histórica e temática constituem uma forma perfeitamente 
legítima de se fazer ‚loso‚a, e que o que deve ser criticado é o 
fato de terem se transformado em uma opção exclusiva, Murilo 
pensa, pura e simplesmente, que o comentário é anti‚losó‚co, 
e que quem desenvolve esse tipo de atividade não faz realmente 
‚loso‚a. O caso é que tanto a minha postura mais tolerante 
quanto a postura mais radical de Murilo são habitualmente 
recebidas com exatamente o mesmo tipo de ódio profundo (e 
de cinismo, dissimulação e falsa cordialidade), sem qualquer 
distinção. Isto me leva a pensar que a reação do ódio profundo 
é totalmente emocional e não racionalmente sustentada.
III – Contra a ‚loso‚a teórica, técnica e europeia: Murilo entre 
a arte, a história, a geogra‚a e a ‚loso‚a
O que foi falado até aqui constitui a parte mais crítico-
negativa da questão. Indo para as partes mais positivas, 
Murilo Seabra propõe neste livro três linhas de ação contra a 
situação antes exposta. Possivelmente não lhe agradará muito 
esta classi‚cação que eu faço, já que, em seu escrito, todas 
estas linhas estão imbricadas, embora algumas recebam mais 
desenvolvimento que outras. Eu as chamo: (1) A questão 
empírica (contra a ideia da ‚loso‚a ser uma atividade 
puramente teórica); (2) A questão linguística (contra a ideia 
de que a ‚loso‚a precisa ser técnica); (3) A questão geopolítica 
(contra a ideia de que a ‚loso‚a é exclusivamente europeia). 
A ‚loso‚a institucional perdeu totalmente de vista a 
dimensão “de campo” da ‚loso‚a, abraçando a suposição 
de que o ‚lósofo trata exclusivamente de ideias e não de 
fatos; quem lida com fatos é antropólogo ou sociólogo, não 
‚lósofo. Assim, quando o ‚lósofo pro‚ssional abre a janela 
de seu quarto de manhã, ele não mais vê o brilho do sol; ele 
vê um texto (em alemão?) que fala do brilho do sol. (Como 
20
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
naquela cena do início de Zabriskie Point, de Antonioni, onde 
os letreiros e cartazes à beira da estrada cobrem a totalidade 
da paisagem). O €lósofo apenas lida com textos, seu último 
contato com o real é a citação. Frequentemente vemos textos 
€losó€cos que já começam com uma citação (“Em Benjamim 
(2001) encontramos a ideia de que...”). A ideia de Murilo 
é que a €loso€a, numa das fases da sua libertação, deveria 
começar a atender seriamente para este aspecto “etnográ€co” 
do pensamento, e tentar pensar sobre as coisas em lugar de 
limitar-se a citar. É claro que um texto pode virar coisa para o 
€lósofo etnógrafo (os comentários, por exemplo), mas isto já 
está num registro diferente da citação; em lugar de ser citado, o 
texto vira objeto de curiosidade. 
A questão não é apenas metodológica, mas também 
substantiva, pois se esta dimensão empírica da atividade 
€losó€ca for suprimida, então, realmente, como foi dito a 
Murilo certa vez, não há diferença entre €losofar e interpretar 
(§29 e §317). Se, em última instância, só há textos, não há tanta 
diferença entre um texto original e um texto sobre um texto. O 
€lósofo acadêmico concebe a investigação €losó€ca como algo 
que consiste em sentar-se e ler; não há saída para o exterior 
nesta remissão incansável de textos a outros textos (como a 
menina Alice presa em labirintos, conseguindo fugir de um 
somente para cair em outro e outro e outro). Quando o €lósofo 
acadêmico caminha pelas ruas, e, aparentemente, “observa” o 
mundo ao seu redor, ele não pensa estar recolhendo material 
para seu trabalho. Na verdade, ele “olha sem ver”, pensando 
no que acabou de ler e no que ainda vai ler. Com isto, um 
imenso acervo de problemas €losó€cos lhe escapa totalmente; 
para ele, o depoimento de um morador de rua sobre a morte 
de um colega não tem nada a ver com a €loso€a; para ele, um 
problema €losó€co é um enigma colocado por algum escritor 
europeu, talvez vinte e cinco séculos atrás (§142). Mas apesar 
21
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
da sua recusa ao empírico, quando um €lósofo lê Platão ou 
Heidegger, a sua leitura pode ser vista também como uma 
empreitada empírica (§143, §148). E os próprios €lósofos 
€zeram pesquisas empíricas, como quando Platão registrou as 
falas dos so€stas (§152). 
Para fazer €loso€a, e não meros comentários, esta 
dimensão etnográ€ca do pensamento deveria ser utilizada 
e desenvolvida; ela foi muito importante, segundo Murilo, 
para outras manifestações da cultura, tais como a arte, a 
história e a geogra€a, atividades humanas em contato com o 
mundo e não com meras representações do mundo. Por que 
temos hoje uma arte brasileira admirada no planeta inteiro, 
mas não temos – e, se seguirmos pelo caminho atual, não 
teremos – uma €loso€a brasileira admirada no planeta inteiro? 
Questão de genes? Murilo pensa que não, e isto nos leva para 
a segunda questão positiva, a questão linguística, e ao que 
Murilo chama “lutas simbólicas”. Pois para a €loso€a assumir a 
sua dimensão etnográ€ca, para se debruçar sobre o cotidiano 
e fugir do domínio exclusivo dos livros, tem que haver uma 
espécie de “conversão” das pessoas e comunidades a um novo 
vocabulário, e as expressões cruciais tem que começar a ser 
entendidas de outro modo. Nesse viés, Murilo considera a 
€loso€a enormemente atrasada em comparação com as artes, a 
história e a geogra€a. Nestes outros âmbitos culturais, durante 
o século XX, houve renovações extraordinárias do que tinha 
sido até então entendido como arte, história ou geogra€a, até 
o ponto que mentes tradicionais e conservadoras geravam 
invariavelmente frases como: “Isto não é arte”, “Isso não é 
história”, “Isto não é geogra€a”. Quando surge uma renovação 
profunda de estruturas, há uma luta pelos símbolos, pelas 
próprias palavras que de€niram até então a atividade humana 
em questão (“€loso€a”, “arte”, etc.) (Na Argentina, um exemplo 
muito apropriado disto é a discussão sobre o “tango” após o 
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surgimento de Astor Piazzola, diante do qual os admiradores 
de Carlos Gardel diziam: “Pero eso no es tango!”). 
A história das mudanças nessas atividades humanas pode 
contar-se, segundo Murilo, de duas maneiras antagônicas: 
como a história da degradação de uma forma pura, de uma 
essência, ou como a história de uma ampliação defronteiras 
(§102 e seguintes). A primeira impressão da nova pintura, 
da nova música, etc., foi que ela sofria de extrema fealdade, 
desproporção e desagrado, na medida em que se continuava 
vendo os produtos novos com os olhos antigos: há uma luta 
entre a visão como degradação e a visão como ampliação; se 
a nova visão ganhar, as coisas passarão a ser vistas da nova 
maneira: “As opiniões que vencem a guerra deixam de ser 
opiniões... Deixam de parecer performativas para parecerem 
puramente descritivas” (§111). O mesmo aconteceu com a 
história quando se passou da concepção meramente política 
para a concepção plural, que permitia, por exemplo, falar de 
uma história do meio ambiente ou de uma história das drogas 
(§116, §120, §300). 
Mas enquanto a arte, a história e a geograˆa se renovaram 
de maneira radical, a ˆlosoˆa, segundo Murilo, não teve seu 
século XX, não houve renovação, os ˆlósofos continuaram 
ˆlosofando como faziam no século XIX (§131). Não adianta 
mencionar obras ˆlosóˆcas renovadoras, em estilo e temática 
(como, digamos, A caminho da linguagem de Heidegger ou O 
cartão postal de Derrida), que são sempre casos excepcionais; 
fala-se aqui do que é produzido em massa pelos departamentos 
de ˆlosoˆa de todo o mundo (§132). Precisamente, neste livro 
de Murilo Seabra se declara oˆcialmente a luta simbólica que 
deveria acontecer dentro da ˆlosoˆa, a luta pelos símbolos 
“ˆlosoˆa”, “qualidade”, “originalidade”, etc. (§315, §318, §319, 
§324), luta que deveria permitir o alargamento das fronteiras 
da ˆlosoˆa, como aconteceu nessas outras áreas. Mas na 
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0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
situação atual de marasmo, conformismo e rotina acadêmica, 
a ‚loso‚a não renova seu campo de trabalho e não enriquece 
suas possibilidades de investigação. 
A questão linguística não se exaure na questão das lutas 
simbólicas. Segundo Murilo, não pode haver ‚loso‚a a não 
ser através de uma liberação da linguagem; o pensamento 
†uído e natural, pensado entre amigos, precisa lançar mão da 
linguagem cotidiana, com todas as suas “imperfeições”, suas 
gírias e deselegâncias, precisa fugir como da peste de qualquer 
“terminologia ‚losó‚ca”, de qualquer jargão especializado, 
de qualquer linguagem empostada na qual nos sintamos na 
obrigação de sermos reconhecidos por algo que não somos, 
substituindo nossa persona ‚losó‚ca por um vocabulário 
elegante (um traje à rigor ‚losó‚co). Já na primeira página 
da apresentação do seu livro, Murilo escreve: “Não temos 
uma sacada a expressar”. O leitor tradicional de ‚loso‚a ‚cará 
chocado com esta palavra, que mais tarde será tematizada em 
contraste com “insight”; quem fala e pensa academicamente 
terá insights, quem pensa solto e “à vontade” terá sacadas 
(§196). “Sem o destronamento do dialeto acadêmico, a 
‚loso‚a não tem chance alguma de vir à existência” (§166). A 
universidade combate e exclui a linguagem local e comunal e 
procura substituí-la por um jargão especi‚camente ‚losó‚co 
(§169). “Se você quiser ‚losofar, use a linguagem que você 
usa quando está descontraído” (§193, §222). Pelo contrário: 
“(...) quem só sabe falar de forma institucional, só sabe pensar 
de forma institucional” (§195) A “linguagem comunal” é 
aquela que falamos quando estamos à vontade; aí é quando 
nosso pensamento dispara. Quando ‚losofamos livres e à 
vontade, a linguagem se torna uma parte inseparável de nós 
mesmos, enquanto que, quando ‚losofamos para a academia, 
a linguagem transforma-se num “curioso código de etiqueta” 
(§257). 
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A terceira linha de ataque é a que chamo de geopolítica; 
além da !loso!a ser puramente teórica (sem nada de 
empírico) e técnica em sua linguagem (sem nada de comunal 
ou cotidiano), ela está ligada exclusivamente com uma 
tradição, a ocidental europeia. A partir daí, detecta-se uma 
persistente assimetria entre as atitudes diante do pensamento 
supraequatorial e do pensamento subequatorial; a linha do 
Equador não é meramente geográ!ca. Há uma supervalorização 
do primeiro e uma subvalorização do segundo, o que provoca 
nos subequatoriais “uma sede profunda de europeidade” 
(§25). Os julgamentos a respeito destes dois grupos não são 
objetivos, mas curiosamente “rígidos”: mesmo as excelências 
dos subequatoriais são depreciadas, enquanto os erros e 
ingenuidades dos supraequatoriais são perdoados e explicados 
(§53). Há hipercondescendência com os supraequatoriais, 
nenhuma boa vontade com africanos e sulamericanos (§73, 
§326, §338). Não são, pois, apenas os traços internos dos 
textos o que conta, mas também a nacionalidade do autor 
(§64). As coisas estão colocadas de modo que o pensamento 
subequatorial se mostra sempre de!ciente, diante de exigências 
que não podem, por de!nição, ser atendidas (§83). O anseio 
pelo europeu baseia-se mais num componente estético do que 
estritamente epistêmico (§91, §96). 
O pior é que esta assimetria é assumida, especialmente, 
pelos subequatoriais, e não pelos supraequatoriais: “Os esforços 
críticos da meta!loso!a devem ser dirigidos mais contra a 
mentalidade dos subequatoriais do que contra a mentalidade dos 
supraequatoriais: não são os supraequatoriais que subestimam 
o pensamento subequatorial – são os subequatoriais” (§489). 
O movimento de resistência a isto seria, por exemplo, começar 
a questionar a real relevância do pensamento supraequatorial 
para os subequatoriais: “Não são apenas perguntas do tipo 
‘O que Kant entende por juízo sintético a priori?’ e ‘O que 
��
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Wittgenstein entende por ‘norma de expressão’?’ que deveriam 
importar aos artesãos da €loso€a. Eles também deveriam fazer 
perguntas do tipo: ‘Qual é a verdadeira importância de saber 
o que Kant entende por ‘juízo sintético a priori’?’ e ‘Qual é a 
verdadeira importância de saber o que Wittgenstein entende 
por ‘norma de expressão’?’” (§275). “Kant foi um €lósofo em 
Königsberg. Mas aqui no hemisfério sul, ele nunca foi um 
€lósofo” (§389). 
IV – Murilo contra Cabrera: a€nal, o que fazer com os 
comentadores? 
Até aqui tentei expor tudo aquilo com o qual concordo 
plenamente, aquilo que me deixa jubiloso neste metalivro. Mas 
nem tudo são concordâncias. Sem dúvida, não acusarei Murilo 
de “simpli€car demasiado as coisas”. Ele escreve: “Escrever 
é simpli€car!” e faz notar que os supraequatoriais também 
simpli€cam (§22). Penso que Murilo se dá a si mesmo o direito 
de simpli€car porque seu protesto é necessário e premente. 
Gerações de jovens pensadores serão ainda sacri€cadas em 
nome da “excelência” da obra exegética, histórica e eurocentrada. 
Diante da gravidade da situação, a simpli€cação se torna 
necessária. Outros talvez o acusem de criar “falsas dicotomias” 
(ou €lósofo ou comentador), insistindo que se pode €losofar 
através do comentário. Já muito cedo, na apresentação, Murilo 
escreve: “(...) ao contrário do que muitos professores apregoam, 
longe de ser necessário ser um bom comentador para ser um 
bom €lósofo, é preciso antes ser um bom €lósofo para ser um 
bom comentador. Você precisa ter algo a dizer para ter algo 
a dizer sobre o que os outros têm a dizer (...)”. E ao longo do 
livro, ele irá arguindo de que forma aquilo que o €lósofo faz 
é estruturalmente diferente do que o comentador faz; isto é 
certamente uma dicotomia, mas não uma falsa dicotomia. De 
��
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
maneira que as minhas linhas críticas não vão por aí. 
Há algumas questões pontuais com as quais discordo. 
Jamais poderia assinar embaixo do ingênuo e autobenevolente 
aforismo §462: “Ninguém sabe mais sobre as suas capacidades 
do que você mesmo”. Creio que ninguém sabe menos. Sou 
muito menos esperançoso do que Murilo no quese refere a 
“†lósofos de rua” (§144, §154). Tenho bastante experiência 
nisto e posso dizer que as pretensas “†loso†as” dessas pessoas 
são monótonas e desinteressantes, mistura de crenças religiosas, 
ressentimento social e preconceitos incutidos pelas classes 
dominantes. O senhor Quita (§157) poderá ser †lósofo graças 
ao fato de que Murilo estava por perto para recolher e sublimar 
reˆexivamente o que esse senhor disse; qualquer morador de 
rua se transformará num †lósofo interessante se algum †lósofo 
interessante (como Murilo) estiver por perto com uma pena na 
mão. Outra discordância pontual é com a questão das gírias; 
não creio que as gírias sejam mais criativas do que as linguagens 
comuns sem gírias (embora eu concorde com Murilo que as 
gírias sejam mais criativas do que os linguajares acadêmicos); 
pessoalmente, consigo pensar completamente “à vontade” sem 
usar gírias, mas também sem utilizar jargões incompreensíveis. 
Por outro lado, as gírias também se institucionalizam e passam 
a nivelar discursos: para dizer que algo está ótimo, sou hoje 
(fevereiro de 2014) obrigado a dizer: “Só ouro!”; mas não sou 
livre para inventar outra gíria sem ser punido com olhares 
reprovadores ou de incompreensão. Há, pois, uma ditadura das 
gírias. Creio que esta questão †ca, em de†nitivo, no plano das 
preferências: Murilo sente-se à vontade com elas enquanto eu 
nunca senti a menor falta delas. 
Mas nada disto é importante. O realmente importante, a 
discordância crucial, está na utilização que Murilo faz da minha 
famosa frase: “É impossível não ser original”, dizendo que esta 
ideia mantém uma tolerância indesejável com os comentadores, 
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que fariam “ƒlosoƒa desde” em meu sentido sem qualquer 
problema. Então, temos que começar por recuperar o sentido 
primitivo dessa frase. Ela aparece em meu texto: “Descobrindo 
a pólvora: o caso René Descartes”, incluído em meu Diário de um 
"lósofo no Brasil. Sua intenção original contra o comentador 
era dizer a ele: “Você se insurge contra a nossa pretensão de 
originalidade e a‡rma que é impossível ser original; mas, na 
verdade, o ser humano está feito de tal forma que nunca pode 
simplesmente aceitar o dado; ele sempre está além do dado 
e o transforma; mesmo você, comentador juramentado, que 
pretende ‡car no frio e objetivo distanciamento do puramente 
descritivo, mesmo você também deturpa os autores aos quais 
você quer permanecer totalmente ‡el. Nesse sentido, até você 
é original sem querê-lo, no meio da sua reverência servil ao 
autor (europeu)”. Esta era a intenção original. (Ver Diário, 2ª 
edição, p.179). 
Aqui Murilo se incomoda porque eu estaria com isto 
conferindo originalidade ao comentador e apagando as 
diferenças gritantes entre ‡lósofos e comentadores. Mas a 
originalidade do comentador é apenas aquela que ele ganha 
de presente pelo fato de ser um ser humano, pelo fato de ser 
um ser que, inevitavelmente, transcende tudo o que toca, algo 
que já pode ser observado em crianças (e podia ser observado 
muito antes do existencialismo francês). Resta fazer as 
diferenças indispensáveis entre esta originalidade elementar 
que caracteriza o humano e as peculiaridades muito mais 
complexas da originalidade de um ‡lósofo. A originalidade 
do ‡lósofo não se limita ao mero transcender o dado, é um 
transcender criativo e perturbador. A originalidade do ‡lósofo 
decorre de algo que ele fez com aquele transcender, e não 
do mero transcender, também presente no comentador. De 
maneira que as enormes, abissais diferenças que Murilo quer – 
e eu também quero – manter entre o ‡lósofo e o comentador, 
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continuarão a valer perfeitamente mesmo se a minha frase (“É 
impossível não ser original”) for aceita como verdadeira. 
Murilo entende mal a minha noção de “ƒlosofar desde”, 
também apresentada no Diário, ao alegar que o comentador 
seria, só pelo fato de transcender o texto comentado, um 
ƒlósofo-desde. Eu explico cuidadosamente a diferença entre 
ƒlosofar em X e ƒlosofar desde X; os comentadores brasileiros 
fazem ƒlosoƒa no Brasil quando apresentam seus trabalhos 
em congressos; é inegável que eles estão fazendo ƒlosoƒa no 
Brasil; mas eles não fazem ƒlosoƒa desde o Brasil, no sentido de 
tecerem comentários impessoais e anônimos, não autorais, que 
poderiam perfeitamente serem feitos desde Berlim, Londres 
ou da Escandinávia. Não há nenhum cuidado em situar os 
pensamentos, em ver as peculiaridades da origem de uma 
re$exão, pois rapidamente – como Murilo mostra bem – é 
imposta uma situação re$exiva que não é a nossa (e é isso o que 
torna Kant um ƒlósofo em Königsberg mas não em Brasília, 
com o que concordo plenamente). 
Mas então é totalmente falso dizer que um comentador 
consegue ser um “ƒlósofo desde” na minha perspectiva. Pelo 
fato de comentar europeus exclusivamente, e com o “desde” 
dos europeus, ele já está radicalmente excluído do âmbito do 
que chamo um “ƒlosofar desde”. Portanto, é totalmente absurdo 
sugerir que a noção de “desde” compactua com a manutenção 
do eurocentrismo (§377). Mas como Murilo é um ƒlósofo e não 
um comentador, ele deturpa a minha ideia de “desde” em lugar 
de estudá-la e compreendê-la pacientemente, como faria um 
bom comentador. Aƒnal de contas, Murilo vai além da minha 
frase, como acontece sempre, mas de uma maneira criativa que 
o comentador é incapaz de executar. 
Já numa nota de rodapé da segunda edição do meu 
Diário (p.180), eu menciono a observação de Murilo de que 
isto concederia originalidade ao comentador; eu respondo 
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dizendo que sim, que não tenho o menor problema com isso; 
para fazer a diferença que nos interessa, ainda seria necessário 
levar em conta qual tipo de transcender o dado caracteriza o 
comentador e qual tipo de transcender o dado caracteriza o 
genuíno ƒlósofo, e aqui as enormes e abissais diferenças que 
Murilo quer manter apareceriam novamente. Mas dizer que 
um comentador consegue permanecer totalmente ƒel ao 
que comenta, seria aƒrmar não que o comentador é um mal 
sujeito, um ser humano errado, maldoso ou incompetente; 
seria aƒrmar que o comentador é uma máquina; seria despojar 
o comentador da sua característica de humano; é isso o que 
queremos? Fazer com o comentador o que os espanhóis e 
portugueses ƒzeram com os indígenas da América, negar-lhe 
a mera humanidade? Devemos considerá-lo um monstro para 
poder combatê-lo?
Vejamos em detalhe o que Murilo fez com a famosa frase. 
O que primariamente lhe incomoda é que o comentador 
não é atacado com o devido vigor: “As ideias de Cabrera me 
parecem bem formuladas e convincentes. O meu coração, 
porém, hesita entre abraçá-las integralmente ou reprová-las 
por não golpearem com o devido vigor o ƒlosofar do tipo ‘a’” 
(§377). O ƒlosofar do tipo ‘a’ é o do comentador: “consiste em 
ensinar e discutir a ƒlosoƒa produzida na Europa e nos Estados 
Unidos com um grau moderadíssimo de consciência crítica 
(...)”, §374). Ele acha que o fato de hoje estarmos imersos numa 
terrível tirania do ƒlosofar de tipo ‘a’ habilita – e inclusive exige 
– assumir diante dela uma atitude de total rejeição. Segundo 
ele, não se negocia com uma tirania: se derruba; não há mesa 
de negociações, apenas revolução armada. 
No mesmo aforismo, ele propõe a noção de “impacto” 
para tentar desempatar a situação. Uma obra ƒlosóƒca deve ter 
impacto pelo menos no local onde ela nasce. E é esse impacto o 
que a genuína obra ƒlosóƒca teria, e o comentário não (apesar 
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de ambos serem “originais” no sentido de transcenderem o 
dado). Os textos “losócos” produzidos pelas universidades 
não têm impactona comunidade extra-universitária e nem 
mesmo dentro da universidade (§382). No que considero um 
erro de leitura, ele arma que muitos destes textos poderiam 
“até estar de acordo com o ‘losofar desde’ de Cabrera”, o que é 
falso; minha noção de “desde” deixa de fora todo transcender 
do dado meramente exegético e centrado na Europa. Aqui 
Murilo inventou uma controvérsia entre nós que não existe (e 
não viu outra que existe, da que falarei logo a seguir). Ele pensa 
que porque se concedeu ao comentador o mero transcender 
humano do dado, se concedeu ao comentador o caráter de 
lósofo original pleno; falta sutileza de análise aqui: o bisturi 
tem que entrar na carne e distinguir nitidamente os tipos de 
transcendências, a do lósofo e a do comentador. O mero 
fato de transcender o dado não transforma o comentador 
magicamente em lósofo, como Murilo acredita em todo o 
longo e apaixonado aforismo §382.
Ele desaa a encontrar então quais seriam as ideias originais 
de um comentador de Wittgenstein; você não vai encontrá-las 
(para tranquilidade de Murilo). Você só vai encontrar frases, 
termos e proposições do comentador que não estavam no 
texto original de Wittgenstein; ao tentar reescrever o autor 
comentado, ele o colocou de outra maneira (e é isso o que dá 
pé às intermináveis discussões nos congressos de losoa: cada 
um dos comentadores defende a sua exegese como sendo a 
mais el ao autor, o que mostra que eles se afastaram da fonte 
de uma maneira perceptível). Tudo isso é muito pouco para 
tornar lósofo um comentador; nem todo ir além é criativo e 
autoral. E é por isso que você não entrará num mestrado com 
um projeto sobre as ideias de um comentador de Wittgenstein; 
mas nada disto derruba a ideia de que é impossível não ser 
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original no sentido do inevitável transcender do dado, que 
parece ser uma característica do humano. 
O ponto controverso é que enquanto para mim o problema 
do comentarismo consiste na sua pretensão à exclusividade e 
unicidade, para Murilo o comentário constitui uma forma de 
„losofar intrinsecamente problemática. Ele é, pois, contra a 
minha ideia de considerar o comentário como uma das formas 
que a „loso„a pode legitimamente adotar (§405). Ele admite que 
o comentário seja uma forma de codi„car nossos pensamentos, 
mas isto „ca muito aquém de um genuíno „losofar. Seu 
argumento é bom: em comentários, o comentador não pode 
expressar livremente seu pensamento, como o „lósofo pode 
fazer em diálogos, aforismos ou cartas. Um bom comentário 
implica que seu autor „cou em segundo plano, e isso não 
é „losofar; „losofar é expressar os próprios pensamentos 
livremente (§414). “Infelizmente”, diz ele, “trata-se da única 
forma admitida nos departamentos de „loso„a brasileiros. 
(...) Então, será que os departamentos de „loso„a brasileiros 
estão na verdade cheios de „lósofos, cheios de gênios?” (§405). 
Suponho que a resposta negativa a isto „cou clara pelo anterior. 
Na verdade, os comentadores não se disfarçam de „lósofos; 
apenas os transcendem em mudanças de expressão, e depois 
„cam anos e anos discutindo sobre elas. Os seus disfarces nem 
chegam a ser disfarces. Realmente, este mero transcender 
de expressões (o que Murilo chama, em outros lugares, de 
reescrever o que já foi escrito), continua contribuindo para 
a canonização dos „lósofos europeus. Concordo plenamente 
com o aforismo §407: se o comentário é apenas uma das formas 
de „losofar, já não passou da hora de experimentar as outras? 
Este é o ponto! Por isso, o §410 vai novamente na direção 
errada: é claro que a academia não está justi„cada em exigir 
que os estudantes desenvolvam os pensamentos dos „lósofos
 
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canônicos, se é isso a única coisa que eles podem fazer; mas 
não vejo o que haveria de errado em deixar os estudantes que 
querem comentar ƒlosóƒcos canônicos comentá-los. 
Os aforismos §418 e seguintes são um tanto equívocos; 
parece-me que eles são fortemente ditados por uma maneira 
de ƒlosofar que Murilo, em certos momentos do seu livro, 
denomina de “geométrica” (§393, §463), e que não é certamente 
a minha. Ele coloca exemplos de triângulos e quadrados, 
problemas que possuem uma objetividade esmagadora, que 
a imensa maioria dos problemas ƒlosóƒcos não possuem: é 
mais fácil alguém reproduzir um triângulo azul diante de um 
triângulo azul do que alguém reproduzir, digamos, a ideia da 
morte da arte em Hegel exatamente nos mesmos termos de 
Hegel; de maneira que os exemplos colocados em §418 podem 
cometer a falácia da falsa analogia. Mas eu diria que mesmo 
diante de ƒguras de cores, já à criança humana custa muito 
reproduzir as ƒguras tal qual as vê; sempre há uma subjetividade 
em jogo (este é um termo que não aparece no livro num viés 
hermenêutico-existencial) que enfeita, aumenta, diminui, 
acentua, escamoteia, etc. Murilo debocha aqui da ideia de que é 
impossível não inovar, mas trata-se de uma ideia perfeitamente 
compreensível: os humanos tem problemas em simplesmente 
repetir o dado. 
Talvez a concepção geométrica de ƒlosoƒa seja herdada de 
Wittgenstein, que tampouco fala em subjetividade e excessos 
existenciais; o próprio Murilo admite que pode ter “incorporado” 
Wittgenstein ao tentar enfrentar a ideia cabreriana da 
impossibilidade de não inovar. Os resumos da situação 
expostos em §429 e §434 são completamente geométricos, e 
não considera mediações: é claro que a “metafísica da inovação” 
autoriza o comentar; apenas desautoriza a exclusividade do 
comentar. Portanto, o “então vamos comentar!” de §429 não 
decorre, assim como não decorre o “(...) não precisamos nos 
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entregar à tarefa de €losofar, visto que, de um jeito ou de outro, 
ela será inevitavelmente realizada”. O raciocínio mais correto 
seria dizer: “A ‘metafísica da inovação’ autoriza o comentário 
como uma forma entre outras de €losofar; mas essa forma 
é extremamente limitada e pobre; vamos então explorar as 
outras!” Ou dizer: “Mesmo que, inevitavelmente, iremos além 
do dado, tentemos ir além do dado de maneiras mais criativas 
do que o comentar”. 
Parece-me que, neste ponto, as diferenças entre Murilo e 
Cabrera são políticas, e não estritamente conceituais. Ambos 
concordamos que o comentador faz algo que empobrece 
enormemente as possibilidades da €loso€a, e que ele 
obstaculiza o desenvolvimento de outras formas de €losofar. 
Mas enquanto eu não tenho problemas em manter o comentar 
como uma forma entre outras de se fazer €loso€a, Murilo quer 
destruí-lo, quer tomar o poder que ele possui e substituí-lo 
por outro, norteado por outros valores. O erro consiste em 
passar da crítica ao transcender comentador como insu€ciente 
(concordância) para a atitude da destruição do comentador. 
Concordamos plenamente com o diagnóstico, mas não 
com o procedimento. Se o comentador está hoje armado de 
metralhadora e os €lósofos autorais apenas com pedras, é 
preciso desarmar o comentador; não se trata de pronunciar-
se em seu favor ou colocar-se ao seu lado (§414). Realmente, 
o comentador-tirano deve ser derrotado. Entretanto, o saldo 
dessa luta deveria ser que autores e comentadores, ambos 
desarmados, façam €loso€a como quiserem. Para o autoral, 
fazer €loso€a consiste em expressar os próprios pensamentos 
livremente; para o comentador, €loso€a é percorrer autores e 
tentar parafraseá-los. Para cada um deles, o outro não estará 
fazendo genuína €loso€a. Talvez eu queira utilizar o tempo 
que Murilo gasta em destruir comentadores para construir 
as formas de €loso€a que o comentador ignora. O grande 
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problema do comentador não é que ele comenta;o grande 
problema do comentador consiste nas forças políticas que ele 
é capaz de mobilizar para impedir que se faça outra coisa além 
de comentar, que é só o que ele sabe fazer. A di„culdade do 
comentarismo é a mesma de qualquer outro dogmatismo: a 
sua incapacidade para se reconhecer como um entre muitos, 
e o querer reivindicar unicidade e exclusividade. Mas não há 
nada intrinsecamente perverso no comentar.
O ódio profundo de Murilo pelos comentadores deixa-
se ver em alguns aforismos que estão além da contundência 
e mais perto da simples agressividade; por exemplo, segundo 
ele, qualquer trabalho universitário constitui um “deverzinho 
de casa” (§7, §59); qualquer estudioso transforma-se num 
“espanador” (§9), que remove a poeira dos livros em lugar de 
pensar; os comentários são “sempre rasos e sempre risíveis” 
(§59); e: “Quem ainda quiser defender que nos departamentos 
de „loso„a se faz história da „loso„a, precisará estar preparado 
para defender que a revista de celebridades Caras é uma 
revista de sociologia” (§123). Ou: “O único que se pode fazer é 
somente jogar uma chave inglesa nas engrenagens que mantêm 
os departamentos de „loso„a brasileiros funcionando a todo 
vapor – e atrapalhar um pouco o seu ininterrupto processo de 
fabricação de comentadores” (§323); ou: “Para se fazer „loso„a, 
é preciso tomar aquilo que se faz nos departamentos brasileiros 
de hoje como um modelo do que não se deve fazer” (§443); 
ou: “Quem se protege atrás de autores cujo mérito não está em 
questão não é nada mais e nada menos do que um covarde: 
os comentadores fazem pouco exteriormente por serem pouco 
interiormente” (§457). No curioso epílogo autobiográ„co, um 
tanto „ccional, achamos frases como “O crime organizado está 
no poder”, assim como louvores incondicionais a "eodore 
Kackzynski. Às vezes, a mira da arma está mais cuidadosamente 
focada em alguém, como, por exemplo, Marilena Chauí. 
��
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
O comentador almeja “encontrar o seu próprio Spinoza e 
tornar-se mais uma Marilena Chauí” (§2); os departamentos 
de losoa assumem como óbvio “que fazer losoa é fazer 
o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do real 
(expor os pensamentos de outrem)” (§324; ver também: §344, 
§352, §354, §355, §358, §361, §406, onde Chauí e Spinoza 
são focados mais como fenômenos sociais e institucionais 
usados para veicular a ideologia do comentarismo, do que 
propriamente como lósofos, como o próprio Murilo o coloca 
na Apresentação). 
Meu problema aqui é o seguinte: se o comentador tem que 
ser destruído como comentador, e não apenas como tirano (ou 
seja, como alguém que não deixa losofar de outra maneira 
a não ser comentando), o ideal de Murilo é a substituição de 
uma tirania por outra. Porque eu suponho que na república de 
Murilo estará proibido comentar por considerar-se ocialmente 
que se trata de uma maneira empobrecedora de losofar (algo 
com o qual concordamos); os estudantes serão obrigados 
a criar losoa autoral própria e quem quiser meramente 
comentar autores será excluído, mesmo que seja de maneiras 
sutis e indiretas (de maneira semelhante a como, na situação 
atual, são excluídos estudos sobre lósofos latino-americanos, 
sem proibições explícitas, mas de maneira sorrateira: não tem 
orientadores, não há linhas de pesquisa sobre esses temas, 
etc.). Se o comentar tem algum “vício intrínseco” que deva ser 
eliminado, ele não pode ser deixado como uma forma entre 
outras de losofar, mas deve ser radicalmente extirpado como 
uma erva daninha. Bom, isto eu não posso aceitar, porque não 
consigo descobrir qual seria o argumento que me serviria para 
excluir a tirania comentarista e me permitiria admitir a tirania 
autoral. Assim como uma sociedade livre não é uma sociedade 
sem submetidos, mas uma sociedade onde alguém possa 
decidir se quer ou não se submeter a outro, uma sociedade 
��
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
losóca livre não é uma sociedade sem comentadores, mas 
uma sociedade onde alguém possa decidir se quer ou não 
ser comentador; em nossa situação atual, isso não pode ser 
decidido; isso está imposto. 
Aqui realmente a questão toda se assume como uma luta 
(não apenas simbólica) em termos de vencedores e vencidos; 
não há nada para entender ou analisar; trata-se de ocupar 
belicamente um terreno ocupado pelo inimigo. Os aforismos 
473 e 474 armam isto claramente. Ao referir-se às lutas na 
arte, na história e na geograa do século XX, Murilo diz que 
se pode assumir duas posturas diante delas: engajar-se num 
dos lados erguendo uma bandeira ou “(...) sair do campo de 
batalha para examiná-la através de uma lente de aumento”, 
“colocá-la em perspectiva”. “De fato, mais interessante do 
que torcer para um time e entrincheirar-se contra o time 
adversário, é ver a profunda necessidade que um tem do 
outro (...)”. E ainda: “(...) torna-se claro que as partes litigantes 
numa luta simbólica tentam sempre solidicar as opiniões que 
defendem, e volatizar as opiniões que atacam...”. No aforismo 
seguinte, Murilo descarta a segunda postura: “Não existem 
critérios que possamos usar para observar as lutas simbólicas 
confortavelmente sentados do lado de fora da arena, critérios 
que possamos usar para determinar quem está com a razão 
independentemente de quem vence a disputa (...)” (§474). 
Mas precisamente porque não temos nenhum critério 
externo para julgar quem está certo ou errado, o mais sensato 
seria aceitar todas as posturas sem transformar nenhuma delas 
no padrão geral e obrigatório. A primeira coisa a ser feita seria 
destruir a atual hegemonia do comentarismo; o segundo passo 
consistiria em dar um lugar para o comentário na nova ordem; 
de hegemônico, o comentário passaria a ser um entre muitos. 
Caso contrário, o autoritarismo terá simplesmente mudado de 
lugar. 
37
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
O manifesto metaƒlosóƒco está escrito e era preciso 
escrevê-lo. Curiosamente, foi uma pura contingência (a 
hegemonia do comentarismo) que tornou necessário este 
livro. Mas a necessidade deste Metalosoa tornou agora 
necessário que Murilo escreva, no futuro, seus livros ƒlosóƒcos 
mais contingentes. Que mostre o que deve ser feito após ter 
mostrado, com tanta lucidez, o que não deve ser feito. 
Julio Cabrera.
Brasília, fevereiro de 2014.
METAFILOSOFIA
Lutas simbólicas, sensibilidade e sinergia intelectual
 
Murilo Seabra 
“Parece também que a organização do cérebro é menos perfeita nos 
dois extremos. Nem os negros nem os lapões 
têm a inteligência dos europeus.”
Jean-Jacques Rousseau
“Mansidão e indiferença, humildade e submissão perante um 
crioulo, e mais ainda perante um europeu, são as principais 
características dos americanos do sul, e ainda custará muito até que 
europeus lá cheguem para incutir-lhes uma dignidade própria. 
A inferioridade desses indivíduos, sob todos os aspectos, até 
mesmo o da estatura, é fácil de se reconhecer.”
Georg W. Hegel
“O bom desempenho numa disciplina ou série de disciplinas pode 
ser a mais coerente decorrência da apatia de um estudante. Da 
mesma maneira, o mau desempenho pode ser o atestado mais 
signicativo de envolvimento com os estudos. Somente para quem 
não †losofa o desempenho é uma questão crucial para a †loso†a.”
Gabriel Antunes
“Antes de mais nada, quero dizer que a vitória extraordinária do 
Brasil foi a vitória do futebol. Do futebol que o Brasil joga, sem 
copiar de ninguém, fazendo da arte de seus jogadores a sua força 
maior e impondo ao mundo futebolístico o seu padrão, que não 
precisa seguir esquemas dos outros, pois tem sua personalidade, 
a sua †loso†a e jamais deverá sair dela.”
João Saldanha
Apresentação
É quandoescrevemos para as pessoas que fazem parte 
do nosso círculo de amizades – e não para a academia – e 
não para receber uma nota numa disciplina – que os nossos 
dedos se sentem realmente à vontade para correr livremente 
sobre o teclado. No primeiro caso, escrevemos praticamente 
sem pensar. Ou melhor, o ato de escrever e o ato de pensar se 
fundem numa unidade: pensamos à medida que escrevemos, 
e escrevemos à medida que pensamos. Tudo é natural. Não 
escrevemos tentando passar a impressão de que somos o que 
não somos. Não nos preocupamos em ser sérios e empostados, 
muito menos esnobes e empolados. Não substituímos as nossas 
palavras de uso diário por palavras de uso exclusivamente 
universitário. Não substituímos a nossa forma natural de 
expressão por uma forma arti&cial que visa gerar a impressão 
de que realmente sabemos do que estamos falando. Não 
escrevemos preocupados com a estética do saber.
No segundo caso, também escrevemos praticamente sem 
pensar. Mas agora é porque todo o pensamento foi elaborado 
antes de sentarmos para escrever – ou porque simplesmente 
não foi elaborado. Não temos uma sacada a expressar. Não 
temos realmente nada a expressar. O ato de escrever e o ato 
de pensar se apartam, se distanciam – um some da vista 
do outro. Tudo é arti&cial. Escrevemos tentando passar a 
impressão de que somos o que não somos: preocupamo-nos 
em ser sérios e empostados, bem como esnobes e empolados: 
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0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
substituímos as nossas palavras de uso diário por palavras de 
uso exclusivamente universitário: substituímos a nossa forma 
natural de expressão por uma forma arti‚cial que visa gerar a 
impressão de que realmente sabemos do que estamos falando. 
Em poucas palavras, escrevemos preocupados com a estética 
do saber.
A adoção da estética da austeridade como uma tática para 
gerar a impressão de conhecimento é extremamente infeliz. 
Do ponto de vista estilístico, a ‚loso‚a andou na contramão da 
literatura do século XX. A primeira se enrijeceu e se mediocrizou, 
e o seu apequenamento estético não foi compensado por 
nenhum ganho epistêmico; pelo contrário, é justamente por 
causa dessa clausura estética que vastos territórios re‡exivos 
permanecem ainda completamente inexplorados. Já a segunda 
ampliou não apenas os seus horizontes temáticos, como 
também os seus recursos expressivos. Enquanto a literatura 
usa fartamente a linguagem coloquial, já não distinguindo 
mais entre os termos cultos e as gírias, enquanto a literatura 
torce ferozmente a gramática e a ortogra‚a, admitindo dentro 
dos seus domínios o que era antes terminantemente proibido, 
a ‚loso‚a continua humilde e obedientemente na era do 
narrador onisciente.
Eu não fui ousado do ponto de vista estilístico neste livro. 
Eu apenas escrevi sem pensar. De fato, uma parte considerável 
das re‡exões reunidas aqui foram originalmente formuladas 
em e-mails enviados aos meus amigos. E o que elas carregam 
em comum é a expressão de um desejo bem simples: abrir 
espaço para o ‡orescimento da ‚loso‚a. Por mais que divulgar 
e comentar as obras dos ‚lósofos supraequatoriais tenha lá 
o seu valor, comentar nunca foi, não é e nunca será igual a 
‚losofar. Além do mais, ao contrário do que muitos professores 
apregoam, longe de ser necessário ser um bom comentador 
para ser um bom ‚lósofo, é preciso antes ser um bom ‚lósofo 
47
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
para ser um bom comentador. Você precisa ter algo a dizer 
para ter algo a dizer sobre o que os outros têm a dizer. 
Relendo hoje as notas reunidas aqui, €quei com a impressão 
de que fui várias vezes mais agressivo do que o necessário e 
do que o desejável. Mas acho que não há razão alguma para 
suprimir a minha cólera e abrandar o meu tom agora. Este 
livro é acima de tudo um registro da minha indignação com 
a situação a qual os estudantes dos departamentos de €loso€a 
brasileiros estão sujeitos.
Acho que preciso esclarecer um ponto. Em vários 
momentos, eu menciono a professora Marilena Chauí, a maior 
especialista brasileira em Spinoza, para ilustrar as minhas 
críticas. Mas eu uso o nome de Marilena Chauí como uma 
entidade cultural. O meu objetivo não é de modo algum criticá-
la e sim criticar a insistência da maior parte dos professores dos 
departamentos de €loso€a brasileiros de que se deve comentar 
e não €losofar, o que pode ser expresso por “O que se deve 
fazer é o que Marilena Chauí fez quando escreveu A nervura do 
real, não o que Spinoza fez quando escreveu a Ética”. Portanto, 
o que pode parecer à primeira vista uma crítica à Marilena 
Chauí é na verdade uma crítica à mentalidade reinante 
nos departamentos de €loso€a brasileiros. É lamentável o 
fato de que ela conquistou respeito e admiração dentro da 
comunidade acadêmica não por suas próprias ideias, mas 
por seus comentários a Spinoza. Naturalmente, o problema 
não foi que ela escreveu uma obra monumental sobre um 
pensador clássico: ela tem direito de fazer o que quiser com 
o tempo de que dispõe para escrever. O problema é que se ela 
tivesse escrito uma obra monumental com os seus próprios 
pensamentos, ela muito provavelmente teria sido ridicularizada 
pela comunidade €losó€ca brasileira. O problema não está nos 
interesses teóricos particulares da Marilena Chauí (embora 
seja, sim, relevante perguntar como eles se constituíram), mas 
48
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
na mentalidade reinante nos departamentos de ‡loso‡a, que 
lutam tanto no plano institucional quanto no plano simbólico 
para literalmente massacrar qualquer movimento em direção 
à originalidade. E as mesmas observações valem, sem dúvida, 
para o professor Roberto Machado. As minhas críticas se 
dirigem à mentalidade que o louva não como pensador, mas 
como comentador. É inadmissível o fato de que um projeto de 
pós-graduação sobre as suas ideias não tem a mínima chance 
de ser aceito nos departamentos de losoa brasileiros. É 
inadmissível o fato de que as suas obras só podem gurar na 
seção da bibliograa reservada para a literatura secundária, 
não na seção reservada para a literatura primária.
Não tive a ajuda de um revisor. Também não domino 
bem a nova ortograa da língua portuguesa, que me pegou 
de surpresa. Então, espero que os meus erros de português 
sejam perdoados (achei melhor publicar logo este livro do que 
aguardar até que todos eles fossem corrigidos). De qualquer 
maneira, a melhor forma de ler este livro não é com as pontas 
dos dedos – é com os órgãos internos.
Murilo Seabra.
A arte de analisar poeira
BLOCO 1
A arte de analisar poeira
1
No âmago do comentador fermenta uma dor indizível: “Eu 
queria ter tido essa ideia”.
2
Como os comentadores odeiam quem se atreve a sair do 
território do reescrever para entrar no território do escrever, 
quem se atreve a sair do território do repensar para entrar 
no território do pensar, quem se atreve a sair do território da 
repetição para entrar no território da inovação! Como eles 
odeiam quem se atreve a sair do território do comentar para 
entrar no território do †losofar! Como eles odeiam! Como 
eles odeiam! Trata-se de um ódio profundo... Trata-se de um 
ódio descomunal... Que ‚ca muito bem escondido atrás de 
um ar de superioridade: “Você acha que está sendo original? 
Você só está repetindo o que outros ‚lósofos já disseram! 
Você está apenas reinventando a roda!”, atrás de conselhos 
aparentemente responsáveis: “Você deveria estudar mais 
a fundo a história da ‚loso‚a! Sim, você deveria estudá-la 
mais a fundo! É preciso primeiro conhecer o que já foi feito! 
Só depois você terá condições de saber se as suas ideias são 
realmente novas! Só depois você terá condições de oferecer 
��
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDOuma contribuição verdadeiramente original, verdadeiramente 
própria!”, e atrás de uma metafísica assustadoramente fatalista: 
“É impossível ser original nos dias de hoje... Nos tempos de 
Tales, era possível... Nos tempos de Descartes, era possível... 
Nos tempos de Heidegger, era possível... Mas nos dias de hoje? 
Ah, é impossível! Tudo já foi escrito!”. E o que ele está querendo 
é que você se conforme a fazer o que ele faz: o que ele está 
querendo é que você se conforme ao uso das funções de copiar 
e colar, CTRL+C e CTRL+V. O que ele está querendo é que 
você não use a sua energia! O que ele está querendo é que você 
abra mão das suas forças reˆexivas! O que ele está querendo é 
que você jamais coloque o seu intelecto para trabalhar a todo 
vapor! O que ele está querendo é que você estabeleça em seu 
horizonte um objetivo absolutamente medíocre: o de ser um 
mero comentador, apenas um mero comentador, nada além 
de um mero comentador. Pois ele estabeleceu para si mesmo 
um objetivo absolutamente medíocre: o de encontrar o seu 
próprio Deleuze e tornar-se mais um Roberto Machado! Pois 
ele estabeleceu para si mesmo um objetivo absolutamente 
medíocre: o de encontrar o seu próprio Spinoza e tornar-se mais 
uma Marilena Chauí! Tornar-se um comentador reconhecido, 
um comentador respeitado, um comentador imbatível: o que 
mais pode almejar um professor de ‰loso‰a brasileiro? Sim, os 
professores de ‰loso‰a brasileiros acalentam o sonho de serem 
eruditos. E eles querem que os estudantes acalentem o mesmo 
sonho: o de serem eruditos, apenas eruditos, nada mais do que 
eruditos.
3
Ah, como os comentadores adorariam saltar na garganta de 
quem se atreve a perseguir o ideal de escrever ao invés do ideal 
de reescrever! Mas eles represam os seus impulsos em nome de 
��
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
uma estratégia mais sutil, mais civilizada: a de deslegitimá-los, 
a de estigmatizá-los, a de torná-los alvo de riso, a de torná-
los alvo de escárnio, a de despojá-los de sua lucidez, de sua 
sobriedade, de sua seriedade, de seus conhecimentos: “Você 
deveria estudar mais a fundo a história da ƒlosoƒa! Sim, você 
deveria estudá-la mais a fundo! É preciso primeiro conhecer 
o que já foi feito! Só depois você terá condições de oferecer 
uma contribuição verdadeiramente original, verdadeiramente 
própria!”. Mas por que você acha que quero contribuir para as 
discussões típicas da história da ƒlosoƒa ocidental? E por que 
você acha que conhece a história da ƒlosoƒa ocidental mais a 
fundo do que eu? Acaso você sabe até onde realmente chegam 
os meus conhecimentos? O comentador passa de “Ele está 
fazendo uso de suas forças re‰exivas a ƒm de pensar ao invés 
de repensar, a ƒm de desdobrar as suas próprias ideias ao invés 
de desdobrar as ideias alheias” para “Ele é um irresponsável, 
ele é um ingênuo, ele não tem conhecimentos acadêmicos, ele 
ignora a história da ƒlosoƒa” de forma automática e irre‰etida. 
Aos olhos dele, todo mundo que se coloca a trabalhar em 
sua oƒcina está necessariamente se colocando a trabalhar na 
reinvenção da roda.
4
Então, não se espante se o seu professor desdenhar das suas 
ideias! Não se espante se ele tratá-las com sarcasmo! Ele não 
quer que você faça o que ele não faz! Ele não quer que você 
mostre que consegue fazer o que ele não consegue fazer!
5
A maioria dos professores não tem o menor interesse em 
ajudá-lo a desenvolver as suas ideias. Pelo contrário, se você 
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0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
mostrar a eles os seus rascunhos, eles provavelmente tentarão 
redirecionar a sua energia e transformá-lo em mais um 
exegeta. É in€nitamente melhor discuti-las com amigos! Sim, 
é innitamente melhor discuti-las com amigos! Não há espaço 
para o desenvolvimento de ideias próprias nos departamentos 
de losoa brasileiros de hoje... Realmente, não há espaço... 
Infelizmente, não há espaço... Mas não deixe de trabalhar em 
seus pensamentos só pelo fato de que a universidade não serve 
como uma o€cina! 
6
O que você gosta de fazer com a sua energia? Você gosta de 
trabalhar em sua o#cina? Então, trabalhe em sua o#cina! Você 
gosta de pensar a todo vapor? Então, pense a todo vapor!
7
Os seus deverzinhos de casa, escreva-os para a academia. E as 
suas ideias, escreva-as para os seus amigos. Pois a academia 
não está interessada nas suas ideias, e os seus amigos não estão 
interessados nos seus deverzinhos de casa. 
8
Não tome a #loso#a acadêmica como um parâmetro na hora 
de desenvolver as suas ideias! Elas não precisam ter nenhuma 
semelhança com as ideias que circulam dentro da academia. 
9
Eu não tinha entrado no curso de #loso#a para #car 
desempoeirando os clássicos, eu não tinha entrado no curso 
��
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
de ‡loso‡a para virar um espanador – então, revoltei-me, 
revoltei-me, revoltei-me: e gritei todos os argumentos que 
consegui formular contra o fato de que os absurdos escritos 
pelos estudantes eram vistos de cima para baixo (isto é, com 
um olhar hipercrítico), ao passo que os absurdos escritos pelos 
lósofos de renome eram vistos de baixo para cima (isto é, com 
um olhar hipercondescendente). Gritei, gritei, gritei – até car 
rouco – contra aquilo que queriam fazer de mim: contra o fato 
de que eu não poderia optar entre ser um lósofo e ser um 
espanador – contra o fato de que eu precisava, ao contrário, 
optar entre ser um espanador e não ser nada dentro da 
academia. 
10
É importante escrever trabalhos acadêmicos! É importante 
escrever comentários! É importante escrever exegeses! É 
importante! De fato, não há nada mais importante aos olhos da 
academia... A maior parte dos professores de losoa não está 
realmente interessada no que você pensa, não está realmente 
interessada nas suas ideias... Apenas em ver se você absorveu 
bem a matéria! Apenas em ver se você tem uma boa memória! 
Apenas em ver se você domina com destreza a arte de usar 
as funções CTRL+C e CTRL+V! Sim, o que os professores de 
losoa brasileiros de hoje fazem é apenas treinar os estudantes 
a usarem com destreza as funções CTRL+C e CTRL+V! 
Reescreva a losoa de Wittgenstein usando as suas palavras! 
Ou a losoa de Heidegger! Ou a losoa de Deleuze! Ou a 
losoa de Agamben! Explique as ideias deles! Mostre que 
você absorveu as descobertas deles e que você é capaz de levá-
las adiante e de desdobrá-las! Mostre que você é um bom 
discípulo! Mostre que você é um bom boneco de ventríloquo! 
Sim, mostre que você consegue emprestar as suas cordas vocais 
��
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
aos pensamentos dos outros! Mostre que você pode ser um 
€el porta-voz de um €lósofo europeu ou norteamericano de 
renome! Mostre que você tem condições de entrar para o time 
empenhado em torná-lo um €lósofo de renome! 
11
Sim, o que os professores de €loso€a brasileiros de hoje fazem é 
apenas treinar os estudantes a usarem com destreza as funções 
CTRL+C e CTRL+V! Reescreva a €loso€a de Wittgenstein 
usando as suas palavras! Ou a €loso€a de Heidegger! Ou a 
€loso€a de Deleuze! Ou a €loso€a de Agamben! Os nomes não 
importam tanto... Eles mudam de tempos em tempos... O que 
não muda é o fato de que você precisa escolher um €lósofo 
importante aos olhos dos professores do departamento e usar as 
suas forças re(exivas para escrever sobre ele... Sim, um €lósofo 
importante aos olhos dos professores do departamento! Nunca 
lhe ocorreu que “ser um €lósofo importante aos olhos dos 
professores” não é o mesmo que “ser um €lósofo importante”? 
Nunca lhe ocorreu que podem haver €lósofos importantes 
que os professores não tomam como importantes? Ou que os 
€lósofos que eles tomam como importantes podem não ser 
importantes? Você entendea expressão “€lósofo importante aos 
olhos dos professores” como se ela signi€casse simplesmente 
“€lósofo importante”?
12
Reescreva a €loso€a de Wittgenstein usando as suas palavras! 
Ou a €loso€a de Heidegger! Ou a €loso€a de Deleuze! Ou a 
€loso€a de Agamben! Os nomes não importam tanto... Eles 
mudam de tempos em tempos... O que gera a impressão 
de avanço, a impressão de progresso... Os €lósofos recém 
��
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
traduzidos imediatamente empurram os anteriores para o ‡nal 
da la! 
13
Os chamados “analíticos” e os chamados “continentais” não 
brigam tanto: estão ambos com os olhos voltados para o 
hemisfério norte ocidental. 
14
A maior parte dos professores de losoa não está realmente 
interessada no que você pensa, não está realmente interessada 
nas suas ideias... Apenas em ver se você absorveu bem a 
matéria! Apenas em ver se você tem uma boa memória! 
Sim, é importante mostrar na atual conjuntura que se tem 
uma memória prodigiosa... Muito mais do que mostrar que 
se tem também capacidade de raciocínio! “Mas você está 
simplicando as coisas: não é verdade que os professores não 
se interessam pela capacidade de raciocínio dos estudantes!”. 
Mas às vezes é preciso simplicar as coisas para enxergá-las! 
Você já viu um mapa que não simplica o que ele mapeia? 
Dizer que os professores estão mais interessados na memória 
do que no raciocínio dos estudantes não é uma simplicação 
irresponsável e gratuita; pelo contrário, é uma formulação em 
palavras simples das diretrizes que orientam as suas aulas. 
15
É importante escrever deverzinhos de casa! Mas escrevê-
los não é um trabalho importante em si mesmo... Toda a sua 
importância vem do fato de que os professores fazem com que 
seja importante. “Deverzinhos? Essa é uma expressão muito 
��
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
depreciativa!”. A qualidade dos deveres de casa depende da 
quantidade de liberdade concedida aos estudantes.
16
Com esmero! Escreva os seus deverzinhos de casa sobre 
Wittgenstein e Heidegger com esmero! Sim, escreva-os com 
esmero! Mas não se esqueça de que eles são apenas deverzinhos 
de casa! Apenas deverzinhos de casa! E se não foi simplesmente 
para adquirir um diploma que você entrou no curso de ‚loso‚a? 
E se não eram deverzinhos de casa o que você realmente queria 
escrever?
17
Por que você entrou no curso de ‚loso‚a?!
18
Você entende a expressão “‚lósofo importante aos olhos dos 
professores” como se ela signi‚casse simplesmente “‚lósofo 
importante”? De‚nitivamente, existe um problema com a 
expressão “‚lósofo importante”! Sim, existe um problema 
com ela! Pois não há ‚lósofos importantes em si mesmos! 
Na verdade, um ‚lósofo importante é apenas um ‚lósofo 
importante aos olhos de quem o considera importante! Aos 
olhos de quem batalha para torná-lo importante! E também, 
naturalmente, aos olhos de quem é convencido a considerá-lo 
importante!
19
O que faz um ‚lósofo ser um ‚lósofo importante? 
��
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
20
Não consideramos os €lósofos importantes por eles serem 
importantes. Eles são importantes por nós os considerarmos 
importantes.
21
Ah, existem €lósofos demais para serem todos considerados 
importantes! É preciso, portanto, submetê-los a uma triagem... 
Pois não cabem todos no curso de €loso€a! Não cabem! Mas 
como fazer uma triagem que respeite a ordem objetiva das 
coisas? Isto é, como fazer uma triagem que espelhe a real 
importância deles? Mas eles mesmos não se organizam de 
forma espontânea e objetiva numa €la onde primeiro €guram 
os mais importantes e por último os menos! São as pessoas 
que os organizam em €la! São as pessoas! Ou melhor, são 
os professores! E você está de acordo com eles? E você já se 
perguntou como é que os professores dos departamentos de 
€loso€a fazem as escolhas deles? Mas a escolha é feita mesmo 
por eles? Ou ela foi feita para eles – assim como está sendo feita 
para você? 
22
Para um €lósofo €gurar no começo da €la, ele precisa, antes 
de mais nada, provir do hemisfério norte ocidental. “Mas você 
está simpli€cando as coisas! Por exemplo, não estudamos 
€lósofos portugueses!”. Sim, estou simpli€cando as coisas – 
é importante simpli€cá-las. Um mapa de uma cidade pode 
muito bem se contentar em mostrar as suas ruas e avenidas, 
negligenciando os seus quebramolas e as rachaduras das 
suas calçadas! Um mapa que subtrai, que desconsidera, que 
��
0HWD¿ORVR¿D��OXWDV�VLPEyOLFDV��VHQVLELOLGDGH�H�VLQHUJLD�LQWHOHFWXDO
elimina informações não é necessariamente um mapa que as 
deturpa! Pelo contrário! Da mesma forma, é absolutamente 
natural simpli„car ao escrever... É absolutamente natural! Sim, 
escrever é simpli„car! Os detalhes têm lá a sua importância... 
Mas é preciso antes de tudo ter uma visão geral das coisas para 
saber onde e como situá-los... Sim, sempre se subtrai, sempre 
se desconsidera, sempre se elimina quando se escreve! Sempre! 
Ou você acha que os seus queridos „lósofos do hemisfério 
norte ocidental não simpli„cam ao escrever? Ah, como é forte 
o impulso para protegê-los! Os „lósofos supraequatoriais 
não simpli„cam a realidade! Eles não subtraem, não 
desconsideram, não eliminam nada.... Eles mantêm todos os 
quebramolas e todas as rachaduras das calçadas! Por outro 
lado, como os subequatoriais são enviesados! Não os li... Não 
os li... Mas eu sinto que são enviesados! Sim, eu sinto! Eles 
subtraem, desconsideram e eliminam precisamente os dados 
mais importantes! Ah, como eles são enviesados! Quando os 
supraequatoriais simpli„cam a realidade, é para depurá-la e 
revelar os seus aspectos essenciais... Quando os subequatoriais 
a simpli„cam, é para deturpá-la. Pura e simplesmente, para 
deturpá-la.
23
Quando lemos „lósofos com os quais nos sentimos indispostos 
de antemão, pensamos em linhas de crítica nas quais nunca 
pensaríamos se nos contentássemos apenas em ler „lósofos 
com os quais estamos sentimentalmente prontos a aquiescer.
24
Observe como os olhos dos estudantes e dos professores de 
„loso„a se movimentam quando eles entram numa livraria: os 
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olhos deles se iluminam quando descobrem títulos de €lósofos 
europeus que desconheciam (ou títulos desconhecidos de 
€lósofos europeus que conheciam); e quando por acaso 
descobrem títulos de autores sulamericanos, as suas pupilas 
se contraem – os seus olhos se anuviam. Há uma perfeita 
continuidade entre a contração involuntária das pupilas e 
a irresistível certeza emocional de que os subequatoriais 
simpli€cam a realidade.
25
O fato de que distinguimos nitidamente entre os €lósofos 
supraequatoriais e os subequatoriais pode ser lido no 
comportamento dos nossos olhos. E o que eles denunciam 
são os nossos desejos mais recônditos. A supervalorização 
dos €lósofos das metrópoles e a subvalorização dos €lósofos 
das colônias irradiam a partir do nosso íntimo. Em nossas 
subjetividades está inscrita uma sede profunda de europeidade.
26
Você não encontrará no departamento de antropologia um 
professor sequer que responderá a pergunta “Você é um 
antropólogo?” com um “Não, não sou um antropólogo”. Nem no 
departamento de história um professor sequer que responderá 
a pergunta “Você é um historiador?” com um “Não, não sou 
um historiador”. Mas nos departamentos de €loso€a você 
encontrará aos montes professores que responderão a pergunta 
“Você é um €lósofo?” com um “Não, não sou um €lósofo”.
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27
Você já leu as obras escritas pelos seus professores? E quantas 
delas você realmente admira? Nenhuma? Então, por que você 
quer seguir o exemplo deles?

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