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RESUMO - CULTURA E DEMOCRACIA

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CULTURA E DEMOCRACIA – MARILENA CHAUÍ
Em sua origem, cultura significava cultivo, pondo-o como a ação de potencializar plenamente alguma coisa ou alguém.
No século XVIII, com o Iluminismo, cultura surge como sinônimo de civilização, deixando de lado seu conceito à respeito do cultivo (ação de potencializar plenamente algo ou alguém). Cultura significaria portanto, o grau de civilização de uma sociedade; isto é, o grau de atividade (política) e de regime político. 
Práticas como arte, ciência, técnica e filosofia permitiriam "medir" o grau de civilização de uma sociedade, o que implicaria na existência de uma hierarquia (sociedades mais civilizadas que outras).
Cultura, pois, passa a ser elemento avaliativo do progresso de uma nação, no sentido de que, quanto mais civilizada fosse a sociedade, mais desenvolvida ela seria - maior progresso teria.
Já no século XIX, a antropologia utiliza do conceito iluminista de cultura, considerando-a como indicador de progresso (ou da falta dele), instituindo a Europa Capitalista como o exemplo máximo possível de desenvolvimento. As demais sociedades passaram a ser avaliadas em confronto ao ideal europeu capitalista, de forma que a presença ou a ausência de elementos como Estado, Mercado e Escrita moldavam a classificação do progresso daquela dada comunidade.
Isto significa que, as sociedades que apresentaram formas de organização do poder, de troca ou de comunicação/linguagem diferentes da europeia, foram taxadas como "primitivas".
A utilização desses elementos (Estado, Mercado e Escrita) como expressões culturais de uma sociedade (e, portanto, de sua civilização) levaram à criação de um juízo de valor, de tal modo que foi considerado que aquelas sociedades as quais ainda não tinham alcançado o modelo europeu capitalista de cultura/civilização, chegariam necessariamente a este estágio um dia.
Este juízo de valor e a consequente imposição de seguir o modelo europeu para alcançar pleno desenvolvimento legitimou e justificou processos futuros como a colonização e o imperialismo.
A relação de cultura com imperialismo e colonização se dá em face de cultura ter sido considerada sinônimo de civilização, o que implicou na formação de um juízo de valor, no qual se tinha supervalorização da Europa capitalista (impondo-a como caminho necessário ao progresso).
Também no século XIX o conceito de cultura sofre uma mutação, passando a significar não mais cultivo ou civilização, mas a diferenciar natureza e história.
Cultura seria algo inerente ao ser humano, rompendo com a ordem vital/biológica que rege os demais animais no meio ambiente.
A relação humana com cultura é de ordem simbólica, em que o homem se diferencia dos animais por ser capaz de transcendência. A linguagem e o trabalho dotam o homem de condição superior à ação vital; de ter como fim um expediente engenhoso para alcançar um alvo fixo. O homem vincula meios e fins, definindo-se como agente histórico.
Este conceito alemão de cultura que diferencia natureza e história, pondo o homem como agente histórico e superior à ação vital, dotado de transcendência, dada pelo trabalho e pela linguagem, é adotado pela antropologia do século XX, desfazendo a ideologia etnocêntrica (europeizante) e imperialista de cultura, comum ao século XIX.
Inaugura-se em face deste novo conceito, as antropologias social e política, nas quais cada cultura exprime histórica e materialmente sua individualidade e estrutura.
A cultura passa a ser vista como expressão simbólica dos sujeitos humanos, compreendendo a dimensão dos valores, das práticas sociais, do tempo, do espaço, da vida e da morte, do sagrado e do profano, das formas de organização de poder, da justiça, do verdadeiro e do falso, do belo e do feio, e da lei (reverberando o proibido e o permitido).
A abrangência já citada do conceito de cultura esbarra, quando na sociedade moderna, em um problema: a sociedade moderna é, de fato, uma sociedade, desconhecendo comunidade.
Sociedade é consequência do modelo capitalista de produção, em que indivíduos agem por si mesmos, na busca da realização de seus interesses e desejos, destoando do que é comum às comunidades. Na sociedade há a atomização dos sujeitos humanos.
Numa comunidade, os sujeitos estão sempre numa relação mútua de busca ao bem comum, não se moldam por mediações institucionais e se guiam pelo sentimento de destino único.
A comunidade surge como consequência natural/biológica de organização ou ordenada por um caráter divino (Bíblia). A sociedade, por sua vez, exige que se explique a origem do social. É, como fruto dessa exigência, que se entende a sociedade como resultado de um contrato social firmado entre indivíduos, em face da boa convivência e do fim do estado de guerra de todos contra todos.
A marca da sociedade é a divisão interna; a existência de múltiplas e diferentes classes, sendo oposta, de tal modo, à característica de indivisão interna inerente às comunidades.
É impossível diante da divisão de classes peculiar às sociedades manter o conceito abrangente de cultura que se dava enquanto comunidade.
A divisão social reverbera na divisão cultural, pondo em conflito a cultura letrada/formal e a de senso comum. Dá-se a elas os nomes de: cultura dominante x cultura dominada; cultura opressora x cultura oprimida; cultura de elite x cultura popular.
O conceito de cultura popular não se resume às ideias livremente veiculadas na sociedade.
Durante a história recebeu direcionamentos diversos, como o iluminista do século XVIII, o romancista do século XIX e o populista do século XX.
O Romantismo definiu cultura popular como boa, verdadeira e justa, que exprime a alma da nação e do povo.
O iluminismo do século XVIII pôs cultura popular como tradição, sendo uma mistura de superstição e ignorância a ser corrigida pela educação do povo.
Já o conceito populista do século XX misturou ambas as abordagens, mantendo do conceito romancista a ideia de cultura popular como boa e verdadeira e, do conceito iluminista, manteve-a como expressão do tradicional, concluindo que, apesar de a tradição de um povo ser boa e verdadeira, ela é vinculada a um tempo histórico, precisando da ação pedagógica do Estado para ser atualizada.
Por sua vez, a cultura dominante é revelada nas relações de exploração econômica, exclusão social e dominação política.
Este lugar no qual reside a cultura dominante sustenta uma quarta análise acerca da cultura popular: seria ela tudo aquilo produzido pelas classes que são economicamente exploradas, socialmente excluídas e politicamente dominadas.
A indústria cultural vende cultura e, deste modo, não deve assustar ou afastar o consumidor, agradando-o e seduzindo-o, portanto.
Nesse sentido, em vez de dar a todos à totalidade da produção cultural, divide entre elite 'culta' e massa 'inculta' os conteúdos que serão à elas destinados. O faz, porém, sobre a ilusão de que todos têm acesso aos mesmos bens culturais e que os objetos de suas escolhas foram livremente escolhidos conforme suas vontades próprias.
É invenção dessa indústria ainda, a criação do sujeito "médio" - aquele a quem se destina o senso comum cristalizado, o qual nada mais é que as informações já conhecidas veiculadas com nova aparência.
Diz Hanna Arendt a respeito da indústria cultural, que a cultura em si sofre transformação pelos meios que realizam sua massificação, tendo as obras e os trabalhos culturais passado a significar lazer e entretenimento.
O entretenimento também é uma forma de cultura quando aborda as formas dos sujeitos sociais de distração, diversão, lazer e repouso, constituindo uma oposição ao conceito de cultura como trabalho criador e expressivo das obras de pensamento e de arte.
A noção de cultura como trabalho criativo e expressão de arte e pensamento nega o entretenimento como forma cultural. Cultura seria movimento de criação, experimentação do novo, abordagem de vivências cotidianas e direito do cidadão. Direito deste de ter acesso aos bens e obras culturais, direito de produzir e participar da política
cultural. 
O entretenimento enquanto cultura não seria cultura em si, justamente por ser fruto de sua massificação; a indústria cultural torna todos os acontecimentos, cultura e os meios de comunicação de massa transformam esse 'todo' em entretenimento.
Para entender a dimensão econômica e social da nova forma do capital é preciso compreender a experiência do espaço e do tempo sem precedentes, designada por "compressão espaço-temporal". Basicamente se entende por esta compressão a condição de um espaço indiferenciado e de um tempo fugaz desprovido de profundidade.
O mundo do novo capital é o da telepresença e teleobservação, no qual fica impossível diferenciar aparência de real; realidade de virtual.
Volátil e efêmera, a realidade atual implica na dissociação entre cultura e história, visto que foi perdida a percepção de continuidade temporal, havendo somente uma "memória imediata".
A massificação da cultura, isto é, a transformação de tudo em cultura pela ação da indústria cultural, corresponde à negação da democratização da cultura. 
Isto já foi dito anteriormente, quando tratada a forma de agir da indústria cultural, em que se nega à todos a integralidade do acesso aos trabalhos e obras culturais, dividindo-se os conteúdos destinados a massa inculta e a elite culta, ludibriando os sujeitos, de forma a acreditarem que suas escolhas são livres e próprias; subentende-se, pois, que não há acesso democrático à cultura e, como tal, a massificação da cultura é a renúncia da democratização desta.
A relação entre Estado e Cultura no Brasil tradicionalmente se deu na ação do Estado como "produtor de uma cultura oficial". Retirava-se, pois, a cultura do local de onde ela surgiu (da luta entre classes antagônicas) e dotava-a de generalidade nacional.
Em 1990 surge um tratamento novo a ser dado pelo Estado a cultura, conhecido por "tratamento moderno da cultura". Nele, o Estado assume as condições de funcionamento da indústria cultural e impõe, por meio de instituições governamentais, os padrões de mercado. Se no tratamento clássico o Estado se punha como produtor de uma cultura oficial, no tratamento moderno ele adota o padrão da massificação cultural, consagrando o já consagrado.
Pela condição de sociedade fundamentada em divisão interna, na qual coexistem diferentes classes sociais, se entende também que existe divisão cultural. Em face dessa divisão, o Estado não pode ser produtor de cultura, sendo, na verdade, o produto dela; um elemento que a compõe e simboliza, exprimindo as relações de poder e multiplicidade, as quais são características de uma sociedade.
O Estado pode (e deve) também agir garantindo o direito do cidadão de acesso às obras culturais, à produção e a participação de políticas culturais.
A adoção do funcionamento da indústria cultural pelo Estado é renunciável no sentido de que reduz cultura à consumo, moda (efemeridade) e consagração do consagrado; à transformação de todos os acontecimentos em cultura e cultura, pela massificação, em entretenimento.
A afirmação de cultura enquanto direito é uma oposição a política neoliberal, no sentido de que se abandona cultura como elemento a ser vendido e comprado pelo mercado, pondo-a como uma garantia do cidadão.
Cultura como direito e oposição à política neoliberal é, também, a democratização da cultura; a negação de sua massificação.
Democracia vai além de ser um regime político de garantia de liberdades individuais. Se constitui, sócio e antropologicamente, pelo que assegura os princípios da isonomia e isegoria: igualdade de todos perante a lei e direitos de todos à liberdade de expressão, opinião e posicionamento. Na democracia todos são iguais porque ninguém está sob poder de um outro, já que todos agiram na autoria das leis que os regem.
Trata-se da forma política na qual o conflito é legítimo e necessário, visto que gera debate, discussão e ação do Estado em exprimir posicionamento.
A democracia tem de conciliar o princípio da isonomia com as desigualdades inerentes a sociedade e o faz por meio da criação de direitos novos e da ampliação de direitos existentes; os direitos surgem como forma de garantir igualdade aos desiguais. Desponta-se, pois, como único modelo político realmente disposto a inovação (por meio a criação de direitos) e aberto a participação efetiva de minorias.
Por fim, pela democracia se entende ainda, a distinção entre poder e governo, sentido de que governante é aquele que assume temporariamente um cargo de poder, o qual lhe foi dado pelos verdadeiros soberanos: os eleitores.
Democracia então, revela-se como uma sociedade e não apenas como um regime político.
O fato de a eleição de representantes se dá pela maioria dos votantes recai sobre uma situação em que a classe dominante é aquela que realmente elege; esta condição, porém, não coloca o regime democrático como ilegítimo - uma vez que pela própria criação de direitos se dá maior participação de minorias - mas é entendida como insatisfatória.
Uma sociedade brasileira autoritária nasce com a experimentação diferenciada de cidadania: a cidadania surge como um privilégio da classe dominante dada à dominada, de maneira a ser retirada quando a primeira bem entender.
É uma sociedade em que as leis sempre foram armas para a defesa dos interesses de uma classe dominante privilegiada, a qual utilizava-se da violência legitimada como instrumento de repressão e opressão das classes oprimidas. Notadamente infere-se: "Para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão".
Os partidos políticos perpetuam uma atividade de tutela e de favor, não havendo, então, uma representação política autêntica no Brasil, enquanto a esfera pública é, de fato, o espaço de ação e defesa do privado. A consequência disto, pois, é a confusão entre público e privado, característica peculiar da realidade brasileira.
É uma sociedade em que a classe dominante se nega a enxergar e discutir as desigualdades, ludibriando-se sobre a crença de uma igualdade e de um envolvimento mútuo na esfera nacional.
É uma sociedade em que a desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a exploração do trabalho infantil e dos idosos são consideradas normais.
Resumidamente, se entende que a sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes.
A economia neoliberal implica num alargamento do caráter privado e no estreitamento do caráter público, perfeitamente perceptível na realidade brasileira de confusão entre público e privado, em que o público é restrito em função dos interesses privados.
Socialmente, o socialismo se compreende pelas ideias de justiça: 1. não há apropriação privada da riqueza social; 2. não há uma classe detentora de riqueza e privilégios; 3. não há uma classe detentora do poder social e político; 4. o saber não está a serviço dos interesses privados de uma classe dominante; 5. as obras de pensamento e as obras de arte não estão determinadas pela lógica do mercado nem pelos interesses de uma classe dominante.
O socialismo enquanto sistema político abole a existência de um Estado, em que se há um órgão deliberativo máximo de poder. O governo se daria por práticas de auto-gestão e participação efetiva, por meio de movimentos sócio-políticos e decisão coletiva.
Democracia corresponde a instituição de uma sociedade democrática, enquanto o socialismo é a instituição de política democrática. É no socialismo que há espaço para que os direitos possam concretizar-se e somente na democracia a prática de política socialista (auto-gestão; decisão coletiva) seria efetiva.

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