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Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 225 DA CRISE DA SOCIOLOGIA RURAL À EMERGÊNCIA DA SOCIOLOGIA DA AGRICULTURA: REFLEXÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA NORTE-AMERICANA1 Sergio Schneider 2 RESUMO O propósito deste ensaio é apresentar as características da sociologia da agricultura, enfatizando seus marcos teóricos e metodológicos e os temas sobre os quais seus autores têm-se debruçado com maior intensidade. O ensaio divide-se em três seções. A primeira está subdividida em três partes: uma reservada à discussão dos “community studies” baseados na teoria do continuum rural-urbano; a outra destinada a abordagem do difusionismo; e a última trata da crise da “rural sociology”. Na segunda seção analisam-se a emergência e a consolidação da sociologia da agricultura como vertente alternativa de análise dos fenômenos e processos sociais agrários, dedicando-se especial atenção ao ambiente acadêmico- institucional e ao contexto político nos quais se desenvolve. Na terceira seção analisa-se o que os autores desta corrente chamam de “nova economia política”, que é o enfoque teórico e analítico no qual se apóia a sociologia da agricultura. Na conclusão apresentam-se algumas considerações acerca dos impasses que marcam a curta trajetória desta abordagem e lançam-se especulações sobre os possíveis desafios que implicaria a sua adoção no estudo dos processos sociais agrários brasileiros. Acredita-se que uma apreciação dessa natureza poderá, virtualmente, indicar caminhos que poderão ser úteis à compreensão das relações e dos processos sociais que têm lugar no espaço rural-agrário brasileiro. 1 Trabalho apresentado no Woorkshop Teórico de Economia Política da Agricultura. Campinas, Instituto de Economia, 9-10 de dezembro de 1996. 2 Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Endereço: Av. Bento Gonçalves, 9.500, Agronomia (Sala 217 - Prédio 43.321). CEP: 91509-900, Fone: (051) 988-2580, Fax (051) 319-1400, E-mail: schneider@vortex.ufrgs.br. Porto Alegre, RS. O autor agradece os comentários preliminares ao texto realizados por Zander Navarro, assumindo, entretanto, a responsabilidade pelo seu conteúdo. S. Schneider Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997226 FROM A RURAL SOCIOLOGY CRISIS TO AN AGRICULTURAL SOCIOLOGY EMERGENCE: REMARKS BASED ON THE NORTH AMERICAN EXPERIENCE ABSTRACT This paper introduces the main features of the Sociology of Agriculture, a still narrowly-defined academic field born especially in the United States in recent years. The article intends to describe its theoretical and methodological framework and also the agenda of relevant themes researchers informed by Sociology of Agriculture have preferred to investigate. It is divided into three sections: firstly, it discusses the birth of a tradition rooted on “community studies” (based upon the conventional rural- urban continuum), wich was followed by “diffusionist theories”, in particular after the Second World War, and the ensuing crises of conventional “rural sociology”, in the seventies and afterwards. A second section summarizes the emergence of research efforts and theoretical discussion embodied under this new perspective, as an alternative route to analyze social processes in agrarian domains. A especial focus is directed to its academic and institutional origins and the political context that favoured its development in recent years. A final section investigates the “new political economy” that is claimed to be the founding premises of Sociology of Agriculture. To conclude, the article discusses some challenges faced by the short history of this new approach and its possible implications for a sociology interested in social process in Brazilian agrarian areas. INTRODUÇÃO Nas últimas duas décadas, a produção intelectual das ciências sociais voltada para o estudo dos fenômenos agrários e rurais tem se caracterizado pela efervescência de temáticas de pesquisa inovadoras e, sobretudo, pela emergência de novas abordagens teórico-metodológicas. Entre estas encontramos a chamada “sociologia da agricultura”. A maioria dos autores que integram esta abordagem é radicada nos países desenvolvidos, especialmente nos Estados Unidos, e seus trabalhos focali- zam preferencialmente a estrutura da agricultura e o sistema agroalimentar destes países (Buttel et al., 1991: p.16). No Brasil, somente no final dos anos 80, os estudiosos da agricultura e da questão agrária passaram a discutir esta bibliografia. Embora essa literatura não fosse desconhecida nos trópicos latinos abaixo da linha do equador, somente a partir da publicação dos Da crise da sociologia rural à emergência da sociologia da agricultura: Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 227 trabalhos de Veiga (1991) e Abramovay (1992), o público brasileiro passou a apreciá-la de maneira sistemática.3 O propósito deste ensaio é apresentar as características da sociologia da agricultura, enfatizando seus marcos teóricos e metodológicos e os temas sobre os quais seus autores têm-se debruçado com maior intensidade. Neste sentido, recorreu-se a três obras de referência fundamental desta corrente de pensamento, que são os livros de Buttel & Newby (1980) e, mais recente- mente, de Friedland et al. (1991) e Buttel et al. (1991). Segundo a caracterização apresentada por Buttel et al. (1991), a trajetória da sociologia rural nos EUA pode ser dividida em três períodos, que apreendem as principais diferenças teóricas, metodológicas e de enfoque. O primeiro iniciou-se por volta de 1900 e se estendeu até meados de 1950, período em que foram lançadas as bases da sociologia rural. Durante esta fase, a produção agrícola era enfocada como um elemento complementar à compreensão da comunidade rural. O segundo período iniciou-se por volta de 1950 e estendeu-se até meados de 1970, caracterizando-se pelo predomínio da abordagem psicológico-behaviorista. Esta perspectiva conceitualizava o agricultor como um ator que respondia aos estímulos das novas tecnologias, da educação, das oportunidades ocupacionais e outras. Em razão de sua excessiva preocupação com a difusão e adoção de novas práticas agrícolas, esta corrente também foi designada de difusionismo ou “diffusion research” (Fliegel, 1993). O terceiro e último período apontado por Buttel refere-se à “nova sociologia da agricultura”, que se iniciou em meados de 1970 e ainda busca consolidar-se. O ensaio divide-se em três seções. A primeira está subdividida em três partes: uma reservada à discussão dos “community studies”, baseados na teoria do continuum rural-urbano; a outra destinada à abordagem do difusionismo; e a última trata da crise da “rural sociology”. Na segunda seção, analisam-se a emergência e a consolidação da sociologia da agricultura como vertente alternativa de análise dos fenômenos e processos sociais agrários, dedicando-se especial atenção ao ambiente acadêmico- institucional e ao contexto político nos quais se desenvolve. Na terceira seção analisa-se o que os autores desta corrente chamam de “nova economia política”, que é o enfoque teórico e analítico no qual se apóia a sociologia da agricultura. Na conclusão apresentam-se algumas considerações acerca dos 3 O texto de Tourinho, M.M. & Cruz, L. (1986), talvez tenha sido o primeiro trabalho publicado no Brasil a abordar a sociologia da agricultura. S. Schneider Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997228 impasses que marcam a curta trajetória desta abordagem e lançam-se especulações sobre os possíveis desafios que implicaria a sua adoção no estudo dos processos sociais agrários brasileiros. Acredita-se que uma apreciação dessa naturezapoderá, virtualmente, indicar caminhos que poderão ser úteis à compreensão das relações e dos processos sociais que têm lugar no espaço rural-agrário brasileiro. DO EVANGELHO AO POSITIVISMO: A TRAJETÓRIA DA SOCIOLOGIA RURAL NOS EUA – 1900-1970 Para compreender a trajetória da sociologia rural nos Estados Unidos é preciso situá-la em meio ao contexto em que surge o pensamento socioló- gico neste País. A primeira experiência concreta de realização de pesquisas de cunho sociológico remonta aos estudos da ecologia urbana feitos no âmbito da “Escola de Chicago”. Estes trabalhos privilegiavam a análise dos problemas que afetavam as populações urbanas. Tomando estes estudos como referencial, alguns sociólogos passaram a se preocupar com a face rural da sociedade da época, inaugurando uma nova disciplina: a sociologia rural. A partir deste momento, a dicotomia rural versus urbano deixou de ser apenas uma área de concentração dos estudos para ser tomada como a própria delimitação do objeto específico de cada disciplina. Embora no início esse paradoxo não tenha gerado maiores preocupações, a partir da década de 1930 muitos sociólogos rurais começaram a perceber que seus temas de estudo em nada se diferenciavam dos abordados pelos estudiosos dos problemas urbanos, a não ser pelo fato de que uns se referiam às populações que residiam nas cidades e os outros àquelas que moravam no campo. A delimitação dos objetos e do conteúdo específico de cada uma era, portanto, fornecida pelo ambiente empírico e geográfico em que se realiza- vam os estudos. A esse problema definicional genuíno acrescentaram-se outras críticas à manutenção da sociologia rural como disciplina strictu sensu. Uma delas está na extensa tradição no uso de métodos empíricos, notadamente a utilização das técnicas de “survey” e pesquisas quantitativas, em detrimento Da crise da sociologia rural à emergência da sociologia da agricultura: Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 229 da teoria4. Não obstante, devem-se destacar as reformulações e inovações metodológicas (análise fatorial e multivariada com uso de computadores) introduzidas por Lazarsfeld na década de 1950, que foram fundamentais para a reorientação da sociologia rural neste período (Lazarsfeld et al., 1955). A dificuldade de incorporar elementos teóricos à pesquisa empírica acompanha a sociologia rural norte-americana desde os “community studies” até a “diffusion research”, quando as críticas começaram a se dirigir à incorporação da “grande teoria” de Parsons5 e às explicações socio-lógicas ligadas aos aspectos psicocomportamentais da difusão/inovação de novas tecnologias. Esta postura ateórica, e mesmo antiteórica, da “rural sociology” norte- americana, talvez seja sua característica mais marcante. A explicação para ela pode ser encontrada em vários fatores. O primeiro tem a ver com sua ligação umbilical com a Igreja, da qual herdou as técnicas de coleta de informações, e a descrição e a elaboração de relatórios sobre o mundo rural. O segundo refere-se à influência decisiva que recebeu da “Escola de Chicago”. O terceiro fator, talvez o mais importante, está relacionado à postura dos sociólogos americanos em face das teorias de origem européia. Antes de Parsons, as obras de Marx e Weber eram praticamente desco- nhecidas (e até ignoradas) nas universidades americanas, ao passo que a teoria de Durkheim era lida e aplicada com rigor. Além disso, muitos sociólogos da Escola de Chicago e de origem européia tinham contato direto com as contribuições de Tönnies, Tarde, Sombart e Simmel, o que explica a predominância destes autores nas pesquisas da época. Outra crítica dirigida à sociologia rural refere-se à sua separação da Sociologia Geral, em grande parte decorrente das posições antiteóricas comentadas. Embora essa separação tenha sido menos evidente no início, ela passou a se acentuar a partir de 1930 através da incorporação da sociologia rural nos “land grant colleges”6. Este afastamento culminou com a criação 4 Esta constatação parece ser recorrente entre os estudiosos da trajetória da sociologia rural nos EUA. Entre os autores que confirmam esta constatação estão Gilbert (1982) e Sewell (1950 e 1965). 5 Sobre a trajetória da sociologia norte-americana e o papel da obra de Parsons neste contexto, consultar Rocher, G (1976). 6 Os “land grant colleges” foram instituidos pelo Morril Act em 1862 e pelo Hatch Act de 1887. Eles compõem o conjunto das escolas agrícolas, estações experimentais e órgãos oficiais de divulgação de tecnologias. Entre suas atribuições estão o ensino, a pesquisa e a S. Schneider Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997230 da revista “Rural Sociology”, em 1936, e com a ruptura formal com a American Sociological Association, em 1937, fundando-se a Rural Sociological Society. A ligação umbilical da “rural sociology” com as instituições praticantes de pesquisa aplicada fez com que a maioria dos sociólogos sentisse a necessidade constante de demonstrar às instituições e à sociedade o caráter aplicativo desta disciplina. Para Newby, durante o longo período compreendido entre 1900 até meados da década de 1970, pode-se dizer que a “rural sociology passou de uma expressão das preocupações rurais do clero para um campo de pesquisa indutiva sistemática: do evangelho ao positivismo” (Newby, 1980: p.13). OS “COMMUNITY STUDIES”: A TEORIA DO CONTINUUM RURAL-URBANO (1900-1950). A primeira fase da sociologia rural norte-americana é caracterizada pelos estudos de comunidade. Eles foram responsáveis pelo estabelecimento de alguns dos pressupostos mais sólidos da “rural sociology”, que se mantêm até os dias atuais. Por este motivo, vale a pena resgatar algumas de suas principais características. Segundo Newby (1980: p.10), o prelúdio daquilo que posteriormente viria a ser chamado de “rural sociology” nos EUA aparece com a crise agrícola desencadeada pela Guerra Civil (1861-1865). No final do Século XIX, os problemas agrários (especialmente os conflitos de terras, o aumento dos fretes ferroviários e das taxas de crédito) passaram a ser vistos não apenas pelo aspecto econômico. A vida rural como um todo, especialmente a família rural, a religião, as instituições e a comunidade, passou a ser de interesse público e a receber manifestações políticas. O poder público teve um papel decisivo no reconhecimento da especifi- cidade dos problemas rurais. Este interesse resultou na criação da Comissão de Vida no Campo (Commission of Country Life), em 1908, pelo então Presidente Theodore Roosevelt. Em 1911, essa Comissão, chefiada por Liberty Hyde Bailey, apresentou um relatório sobre a vida rural que deu grande ímpeto ao estudo das comunidades rurais americanas. difusão de conhecimentos em todos os Estados do País. Em razão de sua grande influência na trajetória da sociologia, alguns autores chegam a falar em “land grant system”. Na década de 1970, os recursos anuais de que dispunham ultrapassavam a cifra de 750 milhões de dólares. Para maiores informações consultar Newby (1980), Buttel et al. (1991) e Hightower (1973). Da crise da sociologia rural à emergência da sociologia da agricultura: Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 231 Os estudos produzidos no escopo desta Comissão constituem-se nos primeiros trabalhos identificados como “community studies”. Eles seguiam uma metodologia fortemente marcada pela descrição empírica, em geral, decorrente das incursões de membros do clero (sobretudo da Igreja Presbiteriana) sobre a problemática social do mundo rural. Estes trabalhos detinham-se nas condições de vida das populações rurais, sendoos pioneiros na aplicação de “survey” e na coleta de dados qualitativos (Buttel et al., 1991: p.11). Alguns desses religiosos acabaram sendo incorporados às universidades como professores. O melhor exemplo é o de Charles Galpin, membro do clero que entrou para a Universidade de Wisconsin, em 1911, e produziu um clássico dos estudos sobre comunidades rurais, intitulado “The Social Anatomy of a Community”, em 1915. Este trabalho influenciou toda uma geração de pesquisadores, e sua metodologia foi incoporada pela recém-criada “Division of Farm Population and Rural Life Studies”, do USDA (Departamento de Agricultura), em 1919, quando Galpin tornou-se seu presidente7. Em 1925, através do Purnell Act, consolida-se a montagem da estrutura institucional de apoio à sociologia rural. Esta lei permitiu a utilização de recursos públicos, antes destinados à pesquisa agronômica nos “Land Grant Colleges”, no estudo dos problemas econômicos e sociais. Do ponto de vista analítico, a obra de Tönnies e sua conceituação de “gemeinschaft” (comunidade) e “gesellschaft” (sociedade) forneceu o arcabouço teórico do período em que predominaram os estudos de comunidade na sociologia rural americana. Esta teoria se baseava na idéia de que existia um continuum entre o estádio comunitário, em que as relações sociais se caracterizam pela coesão emocional, pela intensidade e pela continuidade, e o estádio societário, em que as relações eram impessoais, racionalizadas e contratuais8. O livro “Principles of Rural-Urban Sociology” (1929), de Sorokin & Zimmerman, tornou-se a obra seminal de referência sobre os estudos de comunidade rural. 7 A partir desta posição Galpin pode estabelecer ligações entre o Departamento de Agricultura e as universidades, o que resultou em forte estímulo à “rural sociology” (Newby, 1980: p.12). 8 Outro autor relevante na tradição do “continuum rural-urbano” é o antropólogo Robert Redfield, que enfatizou o “folk-urban continuum” (1947). A teoria do continuum também encontra ressonância nos estudiosos da “ecologia urbana”, no âmbito da Escola de Chicago, influenciados por autores como Simmel, Wirth, Burguess, e Znaniecki. S. Schneider Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997232 A “DIFFUSION RESEARCH”: A “RURAL SOCIOLOGY” CLÁSSICA (1950-1970) A partir do final da II Guerra Mundial a teoria do continuum rural-urbano foi paulatinamente superada. As razões para o abandono desta perspectiva analítica estão nas transformações sociais e econômicas que sofreram a estrutura agrária dos EUA neste período. O processo de modernização tecnológica e a mercantilização das relações sociais no campo solaparam a base social e econômica da dicotomia “gemeinschaft/gesellschaft”, que fundamentava a teoria do continuum rural-urbano. Com a modernização da agricultura e a transformação do espaço rural, a sociologia passou a ocupar- se da elaboração de estudos sobre a difusão/inovação das novas tecnologias, bem como seus impactos psicocomportamentais sobre os indivíduos. Esta mudança de enfoque foi acompanhada pelo aperfeiçoamento das metodologias tipo “survey” e das técnicas quantitativas de pesquisa (Buttel et al., 1991: p.42). De maneira geral, as mudanças que a sociologia rural sofreu a partir deste período também estão relacionadas ao impacto que a publicação da obra principal de Parsons, “The Structure of Social Action”, em 1937, causou na comunidade acadêmica americana nas décadas de 40 e 50. Por um lado, os sociólogos se viam desafiados pela nova realidade agrária e, por outro, percebiam claramente os limites da abordagem teórica tradicional do continuum. A questão que se tornou objeto de reflexão obrigatório dos estudiosos era: Como fazer uso da grande teoria para estudar as ações dos agricultores? A fim de resolver problemas dessa natureza, sociólogos de diversas universidades americanas passaram a orientar seus estudantes na perspectiva do “social psychological-behaviorist approach”, também conhecido como difusionismo (“diffusion/adoption research”). A partir deste momento, a dicotomia rural versus urbano foi substituída por uma nova concepção que via os “agricultores como atores de uma determinada propriedade ou comunidade local, que respondiam racionalmente aos estímulos das novas técnicas agrícolas, da “mass media” e da educação gerando novas oportunidades ocupacionais” (Fliegel & van Es, 1983: p.14). Esta perspectiva concentrava seus trabalhos em três áreas diferentes. A primeira abordava as características psicossociais, os grupos de influência externa, o papel da mídia e dos meios de comunicação, que influenciavam os agricultores que adotassem novas práticas agrícolas (Wilkening, 1958; Rogers, 1962). O segundo grupo analisava as orientações valorativas dos Da crise da sociologia rural à emergência da sociologia da agricultura: Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 233 agricultores, explorando aspectos sociais e psicológicos (Fliegel, 1959). A última área estudava as aspirações educacionais e ocupacionais dos indiví- duos que deixavam a atividade agrícola. Segundo Buttel et al. (1991), o difusionismo reúne as seguintes caracte- rísticas: a) ênfase no aspecto psicossocial, que influencia a tomada de decisões individuais; b) identificação dos estádios pelos quais passam os indíviduos para adotar um nova tecnologia; c) elaboração de tipologias dos modelos e das práticas adotadas anteriormente; d) construção da curva (“S”) cumulativa da percentagem de adoção; e-) classificação dos agricultores nos diferentes estádios de aceitação da nova idéia ou prática para calcular a taxa e o tempo de que necessitam; e f) ênfase nos aspectos da comunicação/ divulgação das novas técnicas. Na abordagem difusionista o trabalho do sociólogo é concebido como um misto entre a assistência social e a extensão rural. Como cientista o papel do sociólogo consistia em estudar e avaliar a relevância dos fatores psicocomportamentais na difusão/inovação de novas tecnologias. Como assistente social e extensionista deveria produzir recomendações que auxiliassem os técnicos das estações experimentais a convencer o agricultor a adotar novas práticas. Mais do que um modelo operacional da realidade rural, o difusionismo reivindicava um estatuto científico apoiando-se nas “teorias de alcance médio”, preconizadas por Merton (1957). Através destas, os sociólogos buscavam uma saída honrosa ao problema do intercâmbio entre as proposições abstratas do funcionalismo estrutural-sistêmico de Parsons com as hipóteses passíveis de serem testadas com dados empíricos de nível microssociológico, envolvendo indivíduos, propriedades e organizações. Para muitos autores, o difusionismo pode ser considerado o protótipo das teorias de alcance médio, exatamente por saber combinar aspectos sócio- psicológicos com um tipo de análise funcional (Buttel et al., 1991: p.45). S. Schneider Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997234 DA CRISE DA “RURAL-SOCIOLOGY” À EMERGÊNCIA DA “SOCIOLOGY OF AGRICULTURE” A partir de meados da década de 1960, alguns sociólogos começaram a manifestar críticas à “diffusion research”. Estas críticas se alinham em três frentes: a) a falta de um objeto de análise e de conteúdo heurístico de categorias teóricas fundamentais; b) o caráter excessivamente institucionali- zado da pesquisa em sociologia rural, feita no interior dos “Land Grant Colleges”; c) as discussões em torno da especificidade do rural em face das transformações sociais e econômicas sofridas no pós-Guerra. No que se refere à primeira, pode-se afirmar que são as críticas formuladas por Wrigth Mills, em 1959, à sociologia parsoniana que abalaram a grande teoria. Mills rebelou-se contra o que denominou de empiricismo abstrato, que congrega em um paradigma a perspectivaestrutural-funcionalista de Parsons, a operacinalização das teorias de alcance médio de Merton e o uso das técnicas quantitativas propostas por Lazarsfeld.9 Segundo Buttel & Newby (1980: p.4) a maior parte dos sociólogos rurais americanos relutou em aceitar que o termo “rural” não configurava um objeto científico, pois se limitava a uma categoria empírica, uma expressão geográfica vazia de conteúdo conceitual. Logo, se o “rural” era destituído de conotação sociológica, então a “rural sociology” operara por décadas com um objeto de estudo que não era nada mais do que uma referência empírica. Para Buttel & Newby, esta constatação trouxe duas conseqüências importantes: primeiro, a idéia de que, se não pode existir uma definição sociólogica do rural, também não poderia haver uma teoria da sociedade rural, e tampouco uma teoria social “tout court”. Isto explicaria o caráter ateórico e até antiteórico da sociologia rural e mesmo seu esforço de desenvolver uma teoria rural específica ou de “alcance médio”, ficando a meio caminho da “grande teoria” sociológica. Segundo, mesmo que a sociologia rural conseguisse operar sem uma teoria social propriamente dita, ela não poderia furtar-se de uma teoria da alocação espacial e populacional. Ou seja, mesmo trabalhando com objetos empíricos, a sociologia rural demandava uma teoria de ligação do social com o espacial. De certa forma, 9 Wright Mills teve o mérito de questionar o funcionalismo estruturalista, por ele denominadas de “empiricismo abstrato”, quando este se encontrava no auge. Também por isso sua obra passou a ser considerada um marco contra os defensores da “grande teoria”. Da crise da sociologia rural à emergência da sociologia da agricultura: Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 235 a teoria do continuum rural-urbano respondera a esta necessidade mas, uma vez que a agricultura se moderniza e se integra à sociedade como um todo (via divisão social do trabalho), esta dicotomia deixa de existir. Assim, o fim do rural enquanto referência empírica decretava o sepultamento do próprio objeto da “rural sociology”. Para Buttel & Newby (1980: p.3) aí estão as razões que explicam a crise de paradigma, no sentido kuhniano, que enfrentou esta corrente, pois desde sua origem “permaneceu em aberto a definição do que constitui a “rural sociology”. Segundo Newby (1980: p.31) este caso demonstra que nem a “grande teoria” nem a escolha dos fatos empíricos levam à explicação científica do social; é preciso que ambos andem juntos e interajam entre si. No que se refere à crítica sobre o caráter excessivamente instituciona- lizado da pesquisa em sociologia rural, feita no interior dos “Land Grant Colleges”, os analistas enfatizam seu caráter subserviente. Segundo Sewell (1965), e posteriormente Hightower (1973), a estrutura institucional oferecia um sério risco ao desvirtuamento da sociologia, uma vez que eram os técnicos agrícolas e burocratas que definiam os objetos de pesquisa e a prioridade dos assuntos a serem investigados: “(...) the pervasive aversion of rural sociology generally to theoretical work coupled with its insistence on keeping everthing on the pratical level. This is futher born out by insistence on a definition of needed research in terms of what agricultural leaders, administrators and congressmen think rural sociology should be doing... (Sewell, 1965: p.121). As críticas à estrutura institucional, à qual a sociologia estava umbilical- mente ligada, tornaram-se o alvo principal daqueles que questionavam a tutela exercida sobre os pesquisadores e o caráter demasiadamente paroquial e empiricista das pesquisas. A afirmação de Sewell (1965) é eloqüente neste sentido: “(...) What rural sociologists seem to need most is not more money for research but the drafting of an effective plan for gaining more freedom to do significant research within their present social settings. (...) Attention on local populations and local situations tends to restrict the sociological imagination and the inventiveness of the rural sociologist and to prompt him to give undue attention to problems and S. Schneider Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997236 findings which may have local significance but may be trivial in the larger context” (Sewell, 1965: p.128 e 447). Entretanto, a crítica mais contundente ao esquema institucional do “Land Grant System” foi elaborada por Jim Hightower (1973). Em seu livro, “Hard Tomatoes, Hard Times”, Hightower criticou duramente o sistema de pesquisa agrícola que, segundo ele, estava estruturado para beneficiar as grandes corporações e as agroindústrias e não a maior parte do público interessado, que seriam os agricultores. Embora sua crítica seja mais forte com relação aos economistas, Hightower também dispara contra a sociologia: “sociological bullshit constitutes the bulk of rural sociology research” (1973: p.50-51). “(...) In their efforts with food gadgetry, in their work for the in-put and ou-put industries and in their mechanisation research, land grant colleges and state agricultural experiment stations exist primarily as tax-paid clinics for agribusiness. Land grant college research is directed toward those private interest that least need assistance, while it ignores or works against the interests of those who desperately need help. The advantage is all on one side – agribusiness, millions, folks, zero. It is an outrageous allocation of public resources”. Segundo Buttel & Newby (1980: p.7), as condições institucionais em que a “rural sociology” nasceu e se desenvolveu são responsáveis pelo caráter excessivamente empírico10 e até mesmo paroquial da sociologia: “(...) In our view, one of the problems plaguing rural sociology is its parochialism (...) The fact that each land grant university and state agricultural experiment station receives a substantial share of its funding from its state legislature presents a strong “localizing” or “parochializing” influence on the rural sociologist because of the land grant university’s strong identification with its own state and the 10 Este constatação pode ser observada através do conteúdo dos artigos que foram publicados na Revista Rural Sociology entre 1970 e 1980. Segundo Hainard & Buttel (1983 e Friedland, 1982), 50% destes artigos são sobre temas de psicologia social e demografia. Mais de 74% são elaborados a partir de análises estatísticas e 53% (mais da metade) a partir de um questionário de entrevistas. Da crise da sociologia rural à emergência da sociologia da agricultura: Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 237 perceived need to place highest priority on problems specific to that state.” Este paroquialismo está entre os principais fatores que impediram que a sociologia rural norte-americana deixasse de ser um ramo à parte da Sociologia Geral, mantendo-se avessa à teoria e profundamente marcada pela descrição empírica. Além disso, a neutralidade exigida pelos pressu- postos positivistas da “rural sociology” obrigavam o pesquisador a se isolar da realidade enquanto cientista, pois os critérios de cientificidade recomendavam “afastar as pré-noções e tratar os fatos sociais enquanto coisas”. Quanto maior o “rigor” estatítisco alcançado pelo uso de técnicas dedutivas e quantitativas mais científica se supunha ser a pesquisa. No que diz respeito às discussões em torno da especificidade do rural e das transformações sócio-econômicas vigentes desde o final da II Guerra, é preciso lembrar que os anos 60 foram o período áureo da Guerra Fria e das mudanças nos padrões de acumulação capitalista. A partir deste período, a “green revolution” alteraria profundamente a estrutura produtiva da agricultura através dainternalização de aspectos de produção industrial mediante utilização de máquinas e equipamentos mecânicos, uso de insumos químicos inorgânicos em larga escala (fertilizantes do complexo NPK, inseticidas, etc.) e das inovações biogenéticas. A crise da agricultura familiar e os impactos ambientais decorrentes do processo de modernização foram identificadas como conseqüências imediatas do modelo difusionista, trazendo-lhe grande desprestígio. Ademais, o próprio processo de urbanização da sociedade americana se incumbia de questionar a manutenção de extensos programas de investigação sobre uma reduzida parcela da população que ainda permanecia no meio rural. Em razão dessas transformações, alguns sociólogos como Pahl (1966) passaram a questionar a manutenção dos conceitos de rural e urbano como noções descritivas. Segundo este autor, a industrialização e a modernização da agricultura homogeneiza a base ocupacional (mercado de trabalho assalariado) da população. Nestas circunstâncias, o significado heurístico do termo rural perde sua importância para o sociólogo. Numa situação em que não há mais especificidades ou diferenças espaciais e ocupacionais entre o rural e o urbano, qual seria o sentido de uma sociologia específica do rural? Estas críticas abalaram as convicções de muitos sociólogos adeptos da “rural sociology”. Como se verá na próxima seção deste trabalho, foram S. Schneider Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997238 estas críticas que estimularam o aparecimento de novas perspectivas teóricas de abordagem dos fenômenos rurais-agrários. De certo modo, a “rural sociology” tentou absorver estas críticas ao longo dos anos 70, buscando inserir critérios “mais científicos” em sua disciplina através do uso cada vez mais refinado de metodologias quantitativas e qualitativas. Segundo Hainard & Buttel (1983) e Buttel & Newby (1980), este recurso, no entanto, não a livrou das acusações de “esterilidade teórica” e de “trivialidade analítica.” A análise da trajetória da “rural sociology” mostra como ela se tornou uma disciplina isolada, atuando no interior de uma estrutura institucional pouco interessada em refletir os aspectos sociológicos da produção agrícola, e em razão de sua inserção neste ambiente, esgotou-se seu poder explicativo empírico e heurístico, tornando-se devedora de formulações teóricas. Isso ocorreu em menor escala com a teoria do continuum rural-urbano, extraída das formulações de Tönnies, mas foi largamente dominante na “diffusion research” do período de 1950 a 1970, quando a sociologia rural esteve ancorada à “grande teoria” de Parsons (1937) e às “teorias de alcance médio” de Merton (1957). Neste contexto, ampliava-se o fosso existente entre a teoria e a realidade rural-agrícola, tornando a “rural sociology” uma disciplina institucionalizada e inerte (Friedland, 1982: p.594). Embora nas duas últimas décadas a “rural sociology” tenha perdido terreno para a “sociologia da agricultura”, sua influência acadêmico- institucional está longe do esgotamento. Os recentes trabalhos de Gartrell & Gartrell (1985) e, sobretudo, de Fliegel (1993) mostram que a “rural sociology” vem enfrentando os novos temas do mundo rural-agrícola, mesmo que em alguns casos seja para rever antigas posições.11 A SOCIOLOGIA DA AGRICULTURA É difícil definir um marco no surgimento da sociologia da agricultura. Os primeiros trabalhos apareceram em meados do anos 70, muito embora tenham sido identificados como os pioneiros desta abordagem mais de uma década após sua publicação. A sociologia da agricultura define-se, sobretudo, pela sua oposição e negação aos presupostos da “rural sociology”. Influenciada pela tradição marxista clássica (Marx, Lênin e Kautsky) e pelos 11 O trabalho de Fliegel (1993) é uma demonstração de como a “diffusion research” pretende reciclar algumas idéias difusionistas para abordar temas como a sustentabilidade e o ambientalismo na agricultura. Da crise da sociologia rural à emergência da sociologia da agricultura: Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 239 chamados neomarxistas, a sociologia da agricultura caracteriza-se por uma clara preocupação com o estudo da “estrutura da agricultura” a partir de uma “perspectiva crítica” (Buttel et al., 1991). Ao longo dos anos 80, a sociologia da agricultura conquistou grande número de adeptos e espaço nas universidades e instituições de ensino superior norte-americanas. Mais significativo do que isso, contudo, é o fato de que gradualmente ela vem conseguindo romper o isolamento entre os sociólogos que estudam o espaço rural e a agricultura em relação à Sociologia Geral e à teoria sociológica latu sensu. Esta ruptura vem sendo conquistada através do diálogo e da incorporação de contribuições teóricas de outras áreas do conhecimento, como a antropologia, a geografia e a política. Apesar de já existir grande quantidade de publicações identificadas com a sociologia da agricultura, ainda são tímidos os avanços e as definições em torno de seu arcabouço teórico-conceitual. Neste sentido, pode-se afirmar que sua característica mais marcante é a ambigüidade. É exatamente a diversidade de leituras da economia política e as polêmicas teóricas que vem motivando os cientistas sociais adeptos de formulações críticas a discutir o conteúdo científico e o estatuto epistemológico desta vertente. Este fato, entretanto, não minimiza o esforço dos seus autores em primar pelo rigor de uma produção acadêmica séria e comprometida com as implicações sociais e políticas da ciência. Contexto Histórico A emergência da sociologia da agricultura como uma abordagem dos fenômenos sociais e econômicos agrários está diretamente ligada ao contexto político e econômico no qual seus autores se formaram e à crescente conquista de espaço dos sociólogos de inspiração crítica (marxistas e neomarxistas) nas universidades americanas. Ao contrário da “rural sociology”, os precursores desta corrente logo perceberam que não poderiam ficar presos à estrutura institucional do “Land Grant System”. Para romper com esta tradição, trilharam os espaços abertos pela “nova esquerda” nas universidades americanas, o que permitiu a entrada da sociologia da agricultura na academia e a introdução de uma nova prática de pesquisa. As origens deste processo remontam à efervescência social e aos protestos políticos que ocorreram na década de 1960. Os movimentos pelos direitos civis, os protestos contra a Guerra do Vietnã, o feminismo e outros, S. Schneider Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997240 levaram muitos sociólogos a questionar sua adesão às teorias que reforça- vam o status quo do racismo, do militarismo e das desigualdades reinantes no mundo. Estes movimentos parecem ter sido a inspiração para toda uma nova geração de sociólogos, mais politizada em função de suas práticas estudantis e, talvez por isso, mais receptivos às teorias críticas, como o marxismo. Segundo Friedland et al. (1991: p.12), a este grupo se juntaram intelectuais universitários da “nova esquerda”, de orientação neomarxista, formando um ambiente propício à emergência de uma crítica social e política mais conseqüente e engajada. Além disso, nos anos 60, os autores e as teorias européias, como, por exemplo, os remanescentes da “teoria crítica” (Escola de Frankfurt e outros marxistas) e as perspectivas antifuncionalistas ou neoweberianas (Dahrendorf, Bendix, Gouldner) passaram a exercer grande influência nas universidade americanas12. Ao longo dos anos 60, dificilmente um estudante de gradução ou pós- graduação ficava imune aos movimentos estudantis e ao ativismo político (Friedland et al., 1991: p.12). Na década seguinte, grande parte destes alunos tornaram-se professores e permaneceram trabalhando nas univer-sidades13. O contato destes estudiosos com as idéias marxistas e neomar- xistas tornou-se um fator excepcionalmente relevante à emergência de um novo tipo de sociologia rural. No que se refere às correntes neomarxistas, pode-se identificar pelo menos duas tradições diferentes, que atuaram conjuntamente no cenário acadêmico americano a partir de meados dos anos 70. A primeira delas descende de um grupo de intelectuais americanos, nem todos ligados às universidades, que aderiram ao marxismo na primeira metade do Século XX, entre os quais destacam-se Paul Baran, Paul Sweezy, Harry Magdoff, Harry Bravermann e alguns “pensadores livres”, como Edmund Wilson, Lionel Trilling e Lewis Mumford. A segunda tradição apoiou-se inicial- mente nos intelectuais americanos não ligados ao funcionalismo parsoniano, como Daniel Bell, Jonh Kenneth Galbraith e, sobretudo, Wrigth Mills. Mills foi sem dúvida o grande referencial do movimento estudantil e da corrente 12 Entre os intelectuais de inspiração marxista que alcançaram prestígio nos EUA neste período estão Sartre, Frans Fanon, Herbert Marcuse, Isaac Deutscher e Wilhem Reich. Além desses deve-se citar a contundente crítica de Alvin Gouldner, em “The Coming Crisis of Western Sociology” (1970), à “grande teoria” e ao empiricismo. 13 Para maiores informações sobre a trajetória dos intelectuais de esquerda nos EUA e a entrada do marxismo nas universidades ver Jacoby (1990). Da crise da sociologia rural à emergência da sociologia da agricultura: Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 241 que ficou conhecida como Nova Esquerda14. Apesar de sua morte precoce (1962), suas idéias constituíram-se em fonte de inspiração para toda uma geração de jovens intelectuais de pós-graduação dos anos 70, que passaram a contestar o papel da pesquisa e da universidade. Para Newby, as críticas de Wrigth Mills e, depois, de Alvin Gouldner, ao funcionalismo empiricista tiveram efeitos devastadores sobre esta abordagem. Além disso, não se deve esquecer o impacto da tradução e publicação em língua inglesa dos “Grundrisse” de Marx, em 1972, e da obra de Chayanov, “The Theory of Peasant Economy”, em 1966. A partir deles se estabeleceu um vasto debate acerca da natureza do desenvolvimento capitalista na agricultura e as razões da persistência da forma familiar de produção. A estas críticas agregaram-se as reconsiderações teórico-metodo- lógicas iniciadas por Harvey e Castells, citados por Newby (1980: p.32), na sociologia urbana. Este conjunto de iniciativas excerceu forte influência nos estudiosos da agricultura e do mundo rural15. A partir daí dissemina-se um consenso entre os sociólogos de que a “nova sociologia rural” deveria enfatizar menos os aspectos da adoção/difusão de novas tecnologias e dos elementos psicocomportamentais dos agricultores e dedicar-se mais à “análise das relações sociais na agricultura” (Friedland, 1979, citado por Friedland et al., 1991). Outro aspecto que contribuiu para a emergência da sociologia da agricultura foi a crise do padrão fordista de acumulação, vigente nos EUA desde o final da II Guerra (Friedland et al., 1991). A partir de meados dos anos 60, quando este padrão começou a sofrer significativas transformações, economistas e sociólogos comprometidos com o difusionismo não arriscaram explicações, pois sua matrizes teóricas positivistas não lhes permitiam detectar a dinâmica das mudanças que subvertiam a ordem estabelecida. A desilusão com a abordagem do “social psychological-behaviorist approach” aumentou ainda mais com as notícias do fracasso do difusio- 14 Parece que foi Mills quem cunhou a expressão “nova esquerda” no artigo “Letter to the New Left”, de 1960 (publicado mais tarde em Power, Politics and People, em 1967), onde buscou caracterizar a emergência de um novo tipo de intelectual que, segundo ele, não deveria abdicar de seu papel público para ser tornar “agitador da classe operária ou político convencional”. Estes escritos eram dirigidos ao movimento dos jovens estudantes que criticavam as velhas ideologias e valores conservadores da sociedade americana. 15 Harvey e Castells, citados por Newby (1980), propuseram uma solução dupla para sair da teoria do continuum rural-urbano que seria, ao mesmo tempo, teoricamente interligada e separada analiticamente. S. Schneider Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997242 nismo em regiões subdesenvolvidas da América Latina e da África. Os trabalhos de Havens & Flinn (1975) e Griffin (1974) desnudaram as falsas espectativas geradas pelos prospectos da difusão/adoção de novas técnicas e desmistificaram sua falácia salvacionista. Os impactos sócio-ambientais causados pela “green revolution” produziram efeitos inesperados em vários países e regiões, o que fez aumentar as críticas e o descontentamento em relação aos “pacotes verdes” (Goodmann & Redclift, 1989). De maneira geral, pode-se dizer que o difusionismo foi incapaz de enfrentar e dar explicações de natureza global às transformações da agricultura a partir de 1970.16 Principais Autores e Definições Analíticas da Sociologia da Agricultura Depois das críticas de Hightower ao “Land Grant System”, os trabalhos de Hefferman (1972) e Rodefeld (1974) podem ser considerados como os pioneiros no campo da sociologia da agricultura. Embora suas posturas teórico-metodológicas tenham sido convencionais, seus méritos estão no fato de terem apresentado um novo enfoque para a “rural sociology”. Sua abordagem consistiu em demonstrar que a partir dos anos 70 a agricultura familiar americana começou a se desintegrar e a ser substituída pelas corporações industriais e grandes propriedades (“large-than-family-farms”). Estes estudos despertaram a atenção de muitos pesquisadores e suscitaram o aparecimento de inúmeros trabalhos e incursões sobre temas que até então eram estranhos à tradição difucionista. Ao impacto destes trabalhos somaram-se os esforços acadêmicos de alguns neomarxistas, herdeiros do ativismo da década de 1960. Os resultados mais profícuos dessa nova fase começam a surgir no final dos anos 70, com a publicação de trabalhos como os de Mann & Dickinson (1978) e Friedmann (1978). Essa primeira fase completa-se com a antologia de Buttel & Newby (1980) e os livros de Friedland (1981), De Janvry (1981) e Havens (1986). Nos anos 80, a sociologia da agricultura direciona-se para uma perspectiva neoweberiana, perceptível com nitidez nos trabalhos de 16 Neste período a sociologia do desenvolvimento, que propagava a “teoria da modernização” como forma dos países atrasados e subdesenvolvidos alcançar estágios mais elevados de evolução (W.W. Rostow, G. Germani, etc), exercia grande influência sobre os sociólogos, especialmente no terceiro mundo. Da crise da sociologia rural à emergência da sociologia da agricultura: Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 243 Newby (1978; 1983) e Mooney (1983; 1985 e 1988) e para abordagens ambientalistas, como as de Dunlap & Martin (1983) e Redclift (1987). Segundo Buttel, a sociologia da agricultura possui uma ampla diversidade teórica e esforça-se para combinar as teorias macrossociais com formulações teóricas falseáveis e hipóteses testáveis. Além disso, atribui grande importância aos métodos qualitativos e históricos, utilizando-se de estudos comparativos e de técnicas de pesquisa baseadas na coleta de dados empíricos. O que, no entanto, cimenta toda esta diversidade é um “legitimacy accorded” em torno de uma perspectiva crítica, que pode estar ancorada às formulações marxistas, neomarxistas e até neoweberianas (Buttel et al., 1991: p.77). A conjunção destas características imprime à sociologiada agricultura a marca da pluralidade, em que o neomarxismo predominante convive com outros aportes, tais como o neoweberianismo. A origem da sociologia da agricultura nos EUA, segundo Friedland et al., (1991: p.13), tem como marco o ‘Encontro Anual da Rural Sociological Association’ (RSA), em 1978, em Davis (Califórnia), quando as correntes neopopulistas e neomarxistas disputaram a posição de principal corrente de oposição ao difusionismo17. Os neopopulistas representavam as teses em defesa da agricultura familiar, ao passo que os neomarxistas tentavam demonstrar que as leis do desenvolvimento capitalista tenderiam a eliminar a forma familiar de produção. Entretanto, o primeiro autor a mencionar a existência de uma identidade entre os estudiosos que adotavam uma perspectiva crítica identificada com a economia política marxista foi Newby (1980). É sua a chancela de “sociology of agriculture”, pela qual esta corrente se tornou conhecida. Em 1980, após extensa revisão da trajetória da sociologia rural nos EUA e na Inglaterra, Newby chegou à seguinte conclusão: “... There still remains, therefore, a great need for sociological studies of how, under similar technological and ecological conditions, the property relationships which underpin the process of agricultural production have been shaped and moulded by the historical development of the societies within which they are located. However, 17 Em 1981 os autores da sociologia da agricultura organizaram um grupo de trabalho informal no interior da RSA. Em 1982 este grupo se estendeu ad hoc à International Sociological Association (ISA), passando a Comitê de Pesquisa na mesma em 1986. Ver também Hainard & Buttel (1983: p.151). S. Schneider Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997244 there have been few attempts to develop either a systematic political economy of modern capitalist agriculture or a comparative theory of rural social structures under modern economic condition. The contrast with peasant studies is here quite marked. What remain are a few highly suggestive attempts at concep-formation. There is emergeing in the United States a self-conscious attempt to create a new sociology of agriculture which begins from analysis of landholding and the class structure (Newby, 1980: p.49).” A sociologia da agricultura parece ter se consolidado ao longo da década de 1980, apoiando-se em contribuições de outras disciplinas, como a antropologia (Chibnik, 1987), a geografia (Fuller, 1984; Marsden et al., 1986; 1987) e a ciência política (MaClellan, 1991). Além disso, o diálogo com outras vertentes da economia política também vem estimulando a pluralidade e despertando novos enfoques, o que parece ser uma caracte- rística genuína da sociologia da agricultura. Um dos exemplos mais eloqüentes neste sentido talvez seja a interlocução da sociologia da agricultura com a “teoria da regulação”, que se evidencia em trabalhos como os de Kenney et al. (1989), Friedmann (1993) e outros. A Economia Política da Sociologia da Agricultura Apesar das várias tentativas de definir o conteúdo e os conceitos fundamentais da sociologia da agricultura, seus autores parecem não ter chegado a um consenso em torno destas questões. A definição apresentada por Friedland et al. (1991: p.17) parece ser a que melhor representa o estádio atual dos debates: “... What became increasingly clear as the field emerged was that the designation sociology, while convenient, failed to grasp, in terms of the historic parameters of a very flexible and adaptive discipline, the complexity of agricultural social relations. In this respect, what emerged was an interest in what conventional social science circles migth refer to as inter-disciplinary work, a term that undoubtedly would be rejected by most of the participants in this tendency. Most neo-marxist social scientists do not perceive of themselves as interdisciplinarians. Further, the term polical economy emphasizes the Da crise da sociologia rural à emergência da sociologia da agricultura: Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 245 impossibility of disaggregating the social from the economic, political, cultural or, indeed, the scientific.” Para compeender a natureza desta definição e a reivindicação do estatuto de economia política, é preciso analisar outras tentativas de definição do conteúdo teórico e metodológico da sociologia da agricultura. Uma delas aparece no livro organizado por Buttel & Newby (1980:15), em que os autores definem o campo de análise da sociologia da agricultura nos seguintes termos: “... rural sociology was primarily preoccupied with matters such as the adoption and diffusion of agricultural technology, quality of life and social indicators... While most rural sociologists of this new genre would not deny the legitimacy of exploring such issues, they have tended to stake out decidedly different empirical terrain. ‘The principal research foci of this new rural sociology include the structure of agriculture in advanced capitalism, state agriculture police, agriculture labor, regional inequality, and agricultural ecology (...) it is fair to say that the rediscovery of agriculture as a legitimate focus of rural sociology inquiry was largely inaugurated by representatives of this new theoretical tradition in rural sociology.”’ Nesta citação, dois aspectos merecem ser destacados. Primeiro, o fato de os autores colocarem em evidência que sua abordagem trata das transfor- mações da agricultura ocorridas nas “advanced societies”. Deixando claro, portanto, que a problemática com a qual se ocupam tem uma delimitação espacial precisa. Segundo, estabelecem como enfoque e o objeto de análise a “estrutura da agricultura”, o que define como objeto empírico e fenome- nológico as relações de trabalho e de produção que ocorrem na atividade agrícola. Do ponto de vista epistemológico, a sociologia da agricultura vincula-se teoricamente à economia política marxista, estabelecendo como objeto de estudo as transformações da estrutura da agricultura que ocorrem nos países capitalistas avançados. Esta definição parece estar relacionada ao significado estratégico que assumiu a produção de alimentos nas sociedades desenvol- vidas. Por isso, a partir dos anos 80, o estudo da estrutura da agricultura tornou-se o centro das atenções de sociólogos e economistas, conforme salientam Friedland et al.: S. Schneider Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997246 “... Analysis of capitalist social and production relations demands class analysis, studies of capital accumulation via the explotation of labor and labor markets, and attention to localized developments in production and reproduction as mediated reflections of global trends (...) Finally, the political economy of new relations within global capitalism requires an examination of the transitions which began long before the imediate historical era, from polyglot local farming practices to concentrated corporate-capitalist agricultural production. This movement from rural farming to industrial agriculture is directly related to the development of new productive practices and new economic formations within, and outside, the food sector” (Friedland et al., 1991: p.3). Não obstante, segundo Buttel et al. (1991), embora os integrantes da sociologia da agricultura tenham conhecimento do caráter global de seus temas, ainda persiste uma enorme pluralidade de enfoques analíticos e empíricos. Para superar estas dificuldades os autores propõem que através da economia política se busque “uma frutífera integração das perpectivas de Kautsky, Marx e Weber”. Esta articulação, segundo eles, permitiria à sociologia da agricultura desviar-se das correntes neopopulistas (que não debitam ao capitalismoa persistência da agricultura familiar, mas à lógica autônoma de sua organização social e econômica) e da ortodoxia do modelo original de Marx,no qual a oposição econômica dos atores gera o antagonismo de classe. Na opinião de Buttel et al. (1991), o desafio da economia política reside em responder a questão de qual é o significado do progresso técnico e da persistência da agricultura familiar nas sociedades capitalistas avançadas (op. cit.). Neste sentido, conforme estes autores, duas orientações têm sido seguidas pela sociologia da agricultura. De um lado, estão as teses de autores como Mann & Dickinson (1978), Mann (1990), Friedmann (1978), Goodmann & Redclift (1991) e Goodmann et al. (1987), que buscam em Marx os argumentos para demonstrar que a penetração do capitalismo na agricultura vem seguindo a via do progresso técnico18. De outro, estão 18 Para Mann & Dickinson (1978) o principal obstáculo à penetração do capitalismo na agricultura está na diferença insolúvel entre o tempo trabalho e tempo de produção das mercadorias agrícolas. Para Friedmann a “petty commodity production” ou agricultura Da crise da sociologia rural à emergência da sociologia da agricultura: Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 247 autores como Friedland (1981, 1991), Pugliese (1991), De Janvry (1981) e Goss et al. (1980), que acreditam que o capitalismo tende a industrializar a agricultura, tornando-a um processo de produção de mercadorias como outro qualquer. Além dessas contribuições mais originais, a economia política tem revelado uma série de autores e trabalhos que buscam conciliar estas duas orientações, como é o caso de Buttel (1982; 1983), Mooney (1983; 1988), Pffefer (1983) e Newby (1983). No que se refere à pluralidade das tendências teóricas, Friedland et al. (1991: p.25) demonstram que os autores da sociologia da agricultura seguem orientações distintas, mesmo dentro do escopo do marxismo (1991: p.25). Segundo eles, podem-se identificar pelos menos quatro tendências diferentes. Primeiro, continua haver uma adesão às explicações nomoló- gicas, utilizando-se teorias dedutivistas para explicar as transfor-mações na estrutura da agricultura (é o caso dos autores que seguem as teses leninistas da inexorabilidade da diferenciação social)19. Segundo, a questão agrária continua no centro do debate, especialmente no que se refere aos temas transformação versus persistência da agricultura familiar e à discussão acerca da posição do setor agrícola em relação à economia. Terceiro, existem autores que consideram que o desenvolvimento do capitalismo na agricultura tende a seguir os mesmos rumos que tomou na indústria (como é o caso dos neokautskistas)20. Quarto, existe a emergência do neoweberia- nismo, que segundo Buttel et al. (1991) talvez seja a caricatura mais fidedigna da sociologia da agricultura. Seu principal expoente é Mooney (1988), que propõe a junção das proposições estruturais dos neomarxistas com os conceitos neoweberianos de “social agency” para focalizar a subjeti- vidade dos atores e sua interação com os processos macrossociológicos. Além da notória ambigüidade das orientações teórico-metodológicas da economia política da agricultura, uma outra característica parece identificar a sociologia da agricultura. Trata-se do esforço de vários autores em colocar familiar é funcional ao capitalismo e por isso ao invés de desaparecer tem-se ampliado. Já Goodmann et al. (1987) dizem que os limites naturais à penetração do capitalismo agricultura tem sido historicamente vencidos pela apropriação e substituição de tecnologias, sendo esta uma tendência do progresso técnico. 19 Essa tendência é integrada por autores como Friedland (1981), Goodmann & Redclift (1985; 1989; 1991) que se baseiam na inexorabilidade dos processos sociais e econômicos que levarão ao desaparecimento da agricultura familiar e à industrialização da agricultura. 20 Veja-se, por exemplo os trabalhos de Goodmann et al. (1987) e Goodmann & Redclift (1991). S. Schneider Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997248 as teses de Kautsky no centro da economia política da agricultura. Esta tendência neokautskista vem revigorando a idéia de que a agricultura dos países capitalistas avançados não é um setor à parte da economia. As funções históricas da produção agrícola, como fornecimento de matérias- primas e força de trabalho, a produção de alimentos para os trabalhadores urbanos e a constituição de um mercado de consumo para os bens de origem industrial teriam sido subvertidas pela conversão da própria agricultura em um “ramo da indústria”, operando sob um único padrão de produção. Desse modo, acreditam que a estrutura agrária tende a consolidar um modelo dual (também chamdo de bimodalismo): de um lado, persistirá uma diversidade de formas familiares de produção e, de outro, como pólo hegemônico, se consolidará a industrialização e a mercantilização da agricultura21. Friedland et al.(1991: p.18) exemplificam de modo eloqüente esta postura: “... Confronting the increased share of national production concentrated in the largest 200,000 agricultural units and representing continuity in developments that had spearheaded the formation of the sociology of agriculture approach, debate has been continuing – and now represents a significant part of literature – on persistence versus disappearance of family farm. Two distinctive approaches have emerged as this literature has crystallized. The first emphasizes the persistence, adaptability, and flexibility of smaller units; the second sees the continuing demise of such units and their conversion into units in which a growing share of family income is derived from off- farm sources.” Como se percebe, a economia política da sociologia da agricultura caracteriza-se por uma ampla ambigüidade, que ainda deverá receber novas contribuições. Entretanto, no que se refere aos principais temas de investi- 21 Esta bifurcação da estrutura agrária em um dualismo representado de um lado pelos grandes e produtivos e de outro pelos pequenos e residuais, encontra respaldo na economia política de Kautsky. Na sua opinião, o processo de penetração do capitalismo na agricultura favoreceria os grandes produtores via progresso técnico. Kautsky, ao contrário de Lênin, não via o camponês como uma vítima da modernização tecnológica, porque eles seriam capazes de se adaptar à nova realidade através da execução de tarefas temporárias e acessórias à atividade agrícola (Goodmann et al., 1987 e Hussain & Tribe, 1981). Para boa parte dos autores da economia política da agricultura este dualismo caracteriza o futuro da estrutura agrária no capitalismo. Da crise da sociologia rural à emergência da sociologia da agricultura: Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 249 gação, parece haver um certo consenso entre autores como Buttel & Newby (1980) e Hainard & Buttel (1982). Estes temas comuns são: o estudo das condições sociais e econômicas de existência da agricultura familiar, as políticas públicas e a crise agrícola mundial e as relações de trabalho na agricultura (“part-time”, migrantes, assalariados, etc.). Mais recentemente, segundo as revisões de Friedland et al. (1991) e Buttel et al. (1991), novos temas como a reestruturação das economias capitalistas, o comércio de “commodities” agrícolas, a constituição do “international agri-food system”, a análise das classes sociais na agricultura e a problemática ambiental foram anexados a esta listagem. Uma análise da literatura produzida no período recente pelos estudiosos da sociologiada agricultura mostra sem dificuldades que estes temas ocuparam de fato o centro das atenções. Não obstante, como fazem questão de salientar Buttel et al. (1991), a economia política da sociologia da agricultura ainda está longe de se consolidar. Muito embora os avanços até aqui alcançados já estejam despertando uma provocativa e estimulante agenda de pesquisa, que, espera-se, seja cumprida em breve para que novas apreciações retroavaliativas sejam possíveis. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este ensaio não pretende ser conclusivo sob nenhum aspecto. Seu objetivo não é explicar um processo ou um conjunto de relações sociais mas, problematizar o desenrolar de um debate em torno do objeto da sociologia que se ocupa do estudo das relações sociais que ocorrem na agricultura. Não constitui tarefa fácil analisar um período tão extenso da trajetória de um campo do pensamento científico. Na verdade, a estratégia classificatória aqui adotada deve ser entendida como um recurso expositivo, uma vez que, tal como frisam Buttel et al. (1991), “qualquer demarcação é um tanto arbitrária e merece ser relativizada.” Ao longo deste trabalho, buscamos dissecar uma das mais ricas e peculiares tradições do pensamento sociológico. Até bem pouco tempo atrás uma reflexão desta natureza não teria sentido na conjuntura acadêmica brasileira. No entanto, ao que parece, estamos nos aproximando de um momento em que qualquer aspirante a cientista social não pode mais deixar o obscurantismo ideológico tomar o lugar do olhar lúcido e crítico. Em nossas trajetórias acadêmicas aprendemos a criticar o empiricismo e a S. Schneider Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997250 combatê-lo como mal maior, enquanto não percebíamos os limites do que representa o postulado da teoria pela teoria. A crise da “rural sociology” norte-americana, iniciada em meados dos anos 70 ensina-nos, entre outras coisas, que o rural não é uma categoria de análise e tampouco um conceito analítico, ele é apenas uma noção espacial. Os critérios espaciais e ocupacionais nada revelam sobre as relações que de fato os compõem e constituem, são apenas adjetivações. Toda e qualquer explicação científica não pode ter um caráter particular ou localizado. Pois a ciência é genuinamente generalizante. Para escapar a semelhantes desígnios, a emergente sociologia da agricultura precisa delimitar melhor seu campo de estudo, definido genericamente como a “estrutura da agricultura”, e precisar seu arcabouço teórico-conceitual, que por enquanto permanece ambíguo e cimentado pela “perspectiva crítica”. Este desafio parece adquirir uma importância ainda maior em um contexto onde os aportes de explicação sociológica são variados, como é o caso americano. Além da sociologia da agricultura, a perspectiva dos estudos de comunidade e o difusionismo ainda se mantêm presentes no espaço acadêmico, não havendo nada que indique seu desaparecimento. Segundo Buttel et al. (1991), o que realmente caracteriza a economia política da sociologia rural nos EUA é seu “hiperpluralismo”: em termos de temas e objetos, teorias, métodos e “approaches”. Por um lado, este pluralismo é benéfico porque permite que os objetos sejam analisados de ângulos variados, o que estimula o debate e o diálogo acadêmico. Porém, de outro lado, a excessiva fragmentação pode trazer efeitos negativos pois nada garante que métodos, teorias e abordagens próprias possam, por si só, evitar o corporativismo ou a pulverização dos recursos disponíveis para realização das pesquisas, impedindo que a sociologia rompa as barreiras disciplinares e reivindique o estatuto de ciência. Não obstante estes desafios, outras questões também parecem ficar em aberto neste ensaio, apesar dos esforços já dispendidos, como é o caso do estatuto epistemológico da sociologia da agricultura. Afinal, ela pretende se consolidar enquanto um novo modelo de abordagem da estrutura da agricultura ou está aplainando o terreno para um salto mais ambicioso em direção a um novo paradigma? Na opinião de Newby (1980), um dos seus primeiros expoentes, a sociologia da agricultura indica a emergêcia de um novo paradigma. Mais céticos, no entanto, são Buttel et al. (1991), para quem o futuro da economia política da agricultura ainda é incerto, podendo Da crise da sociologia rural à emergência da sociologia da agricultura: Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.2, p.225-256, 1997 251 levar apenas a um novo “approach” ou representar uma ruptura epistemológica em sentido kuhniano: “... Another factor influencing the future of the sociology of agricultura is the emergence of theoretical breakthorughs that seek to explain the heretofore unexplained. These kinds of breakthorugh sare difficult to predict, but can have effects as profound as the introduction of serious neo-marxists theorizing into rural sociological thinking that accompanied the rise of the “new rural sociology” movement within the discipline. Even in the absence of major breakthorughs, an important characteristic of the structure of social sciences is the tendency for research to be driven by novelty. A key requirement for a work to be publishable is that it add something new to the existing stock of theories, methodologies, or empirical findings. Thus, normal science (Kuhn, 1970) in the social sciences typically involves quite ingenious attempts to fid new wrinkles in familiar topics approachs (...) The net result is that we can expect the sociology of agriculture to continue to manifest theoretical, methodological, and empirical change, wheter this change comes in the form of incremental novelty (“normal science”) or by discontinuities (‘scientifical revolutions’) along the lines suggested by Kuhn (Buttel et al., 1991: p.175).” Espera-se que este desafio não seja esquecido e nem desviado de seu foco, pois, de seu esclarecimento depende a ampliação do campo de estudos da sociologia da agricultura para temas e referenciais empíricos que não sejam os das sociedades avançadas. Sem esta reflexão mediadora não há como importar a economia política da agricultura para a realidade brasileira. E sem a pretensão à totalidade a inclusão efetiva da sociologia da agricultura em futuras agendas de pesquisa poderá ficar comprometida ou, pelo menos, desviar-se da rota da velha, verdadeira e boa economia política REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, R. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. 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