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as violências na história
 antônio José Tavares Lima
o processo de pacificação dos costumes
Em todas as sociedades existem níveis de dominação que se estabelecem de diferentes formas, envolvendo dispositivos de coerção, que implicam distintas maneiras do uso de violências. Na história do Brasil, a utilização da força física começou com os modelos de colonização europeia do século XVI, envolvendo extermínio e escravização de grupos étnicos. Durante toda fase Colonial, Imperial, República Velha, Novo Estado, Regime Militar, Nova República, assim como em outros contextos culturais, as violências foram amplamente utilizadas pelo Estado para impor a ordem e solucionar os conflitos. 
Concomitantemente, ao longo da nossa história sempre houve lutas de resistência à dominação, seja contra os portugueses, contra a escravidão ou os modelos econômicos e políticos hegemônicos. O mais antigo episódio registrado foi a revolta dos índios Tupinambás (1556-67), contra a tentativa dos colonos em escravizá-los. Ao longo dos séculos XVII, XVIII, XIX e primeira metade do século XX, as rebeliões foram constantes. Uma história de lutas e muito derramamento de sangue, que contrasta com a imagem do brasileiro como um povo pacífico e submisso. 
Nos cenários atuais, o crescimento das violências não resulta exatamente de conflitos políticos ou ideológicos. Existe um quadro multifacetado, que não permite reducionismos nem explicações gerais. Por outro lado, a palavra violência não representa um aspecto específico da realidade, mas envolve dinâmicas complexas e ambíguas. Uma determinada ação pode ser considerada violenta ou não, a depender do contexto. Determinadas formas de violência podem ser valorizadas, condenadas ou marginalizadas a depender de quem as pratique. 
Violência vem do latim, violentia, que reporta a vis, que significa força física, vigor. Para Zaluar (1999), essa força torna-se violência quando ultrapassa determinados limites, ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações. A percepção do limite, da perturbação e do sofrimento causado, que vai caracterizar um ato como violento ou não, sempre varia de acordo o contexto histórico e cultural. Isso dificulta elaborar uma definição fechada do fenômeno, sempre contingente e multifacetado. A autora situa, em consonância com diferentes pesquisadores citados neste livro (Adorno, 2002; DaMata, 1981; Velho 2004; KantE de Lima, 1999) que a violência constitui um tipo de relação social marcada pela negação do outro devido ao “[...] pouco espaço existente para o aparecimento do sujeito da argumentação, da negociação ou da demanda, enclausurado que fica na exibição da força física pelo seu oponente ou esmagado pela arbitrariedade dos poderosos que se negam ao diálogo” (Zaluar, 1999, p. 8). 
	O conceito de violência, portanto, envolve um vasto campo de eventos e possibilidades, todos marcados pela “(...) imposição das necessidades, expectativas e vontades de um ator social sobre as necessidades, expectativas e vontades de outro ator” (GUIMARÃES E CAMPOS, 2008, p. 903). A partir da década de 80, do século passado, com o aumento da criminalidade urbana em todo o Brasil, o tema violência ganhou grande visibilidade, particularmente na grande mídia. Essa tendência gerou a impressão de que a violência seria um fenômeno novo, o que não é verdade. A tentativa de controlar o uso da força física e pacificar as relações no mundo ocidental fez parte do que Norbert Elias chamou de “Processo Civilizador”, que remonta ao surgimento do Estado moderno, no contexto de transição do feudalismo para o capitalismo, ocorrido no ocidente europeu entre os séculos XV e XVIII. 
Na Grécia antiga, por exemplo, com a fragmentação do poder não havia maiores esforços no sentido de conter a violência. Os próprios cidadãos eram responsáveis pela sua segurança, ou seja, não existia um Estado forte que assegurasse um padrão de controle. Isso se refletia na prática dos esportes de combate, ainda que na sua forma rudimentar, em que as regras eram flexíveis e incontroladas. O público gostava das situações que estimulavam a alegria e a liberdade de competir para vencer o adversário, destruindo-o fisicamente e o prazer de infligir dor física e moral ao vencido, que não raro, morria em combate (Elias & Dunning, 1992). 
No contexto medieval, a vida de um proprietário guerreiro, assim como de todos que viviam em um mundo controlado por uma classe dominante composta de guerreiros, era contínua e diretamente ameaçada por atos de violência física. Era possível ao guerreiro grande liberdade para vivenciar seus sentimentos de paixões. A satisfação sem limites do prazer à custa das mulheres que desejasse, ou ao ódio na destruição ou tortura de todos os que lhes fossem hostis. Contudo, essa possibilidade, por outro lado, ameaçava o guerreiro, em caso de derrota, com o mesmo grau de exposição à violência e às paixões dos demais.
Nessas sociedades tradicionais, as violências, contudo, nunca eram gratuitas ou aleatórias, mas assumiam significados que a integravam ao universo de sentido compartilhado por todos. Havia sempre uma inscrição simbólica no horizonte das práticas violentas, que não eram interpretadas de forma negativa, ao contrário, a força física assumia sentidos rituais, que contribuíam para a coesão do universo sócio cultural. 
Segundo Elias (1993), o controle da violência física se torna um imperativo na medida em que a sociedade fica especializada, com maior divisão do trabalho, quando os níveis de interdependência entre os indivíduos aumentam. Nesses contextos, se torna uma ameaça social o indivíduo que expressa livremente seus impulsos e emoções. Assim, o Estado se desenvolveu no mundo moderno com o objetivo principal de tentar controlar o uso da força física dentro de determinado território, e mediar as relações entre os indivíduos. Um processo complexo, que envolveu uma mudança radical de hábitos e de crenças. 
 Em determinados países como Noruega, Holanda, Austrália, Inglaterra, Suécia, França, Canadá, dentre outros, em função de um longo percurso de lutas e negociações, o capitalismo assumiu feições mais comprometidas com os interesses coletivos. Nesses países, a violência física deixou de constituir uma possibilidade socialmente valorizada para os indivíduos resolverem seus conflitos e a crença na mediação das leis se fortaleceu. Dentro desses contextos, os métodos de controle social tornam-se mais pedagógicos e menos coercitivos. O Estado consolidou seu papel de guardião da ordem e a força física, em grande medida, foi controlada, embora nunca tenha desaparecido completamente.
Velho (2000, p. 11) lembra que “(...) a diferença é, simultaneamente, a base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito”. Segundo o autor, o convívio em sociedade não se constitui a partir de processos homogêneos, mas sempre marcado pelo dissenso, sendo que as divergências podem ser resolvidas através de negociações, como também através de imposições. Os conflitos, portanto, são inerentes ao convívio coletivo e as violências constituem possibilidades na forma das pessoas resolverem suas diferenças.
Para Georg Simmel (1983) os conflitos sociais são inevitáveis, decorrendo da impossibilidade de um consenso pleno entre os indivíduos. Constituem formas de interação social, pois envolvem ações recíprocas, diferente da violência, onde existe a negação do outro. Apesar de Simmel não ter avançado suas análises sobre violência, pode ser lido nas suas ideias que o conflito torna-se violento quando deixa de ser uma interação. Dito de outra forma, quando acontece:
[...] destruição física do adversário ou a imposição do silêncio, na perda do acesso à linguagem, ou seja, na impossibilidade de manter o conflito pela desistência forçada do adversário, pelo seu esmagamento psicológico, pela perda da confiança na sua capacidade e lutar ou na possibilidade de existirem regras justas (Zaluar, 1999). 
Michel Maffesoli (1987) entende que as formas de violências acontecemno confronto entre as diferenças, no choque entre vontade e necessidade. Pensa que a luta, que pode assumir a dimensão de negociação, sedução, convencimento, como também de conflitos violentos, constitui o fundamento da vida social. Maffesoli acredita que, por ser a realidade social uma agregação de diferenças, a violência torna-se uma possibilidade, mas essa mesma violência tira a sociedade da pacificidade paralisante, que embota a criatividade e estagna a sociedade, figurando como estruturante do coletivo. 
A pensadora Hannah Arendt (1994) interpreta a violência como um fenômeno instrumental, relacionado com o meio que se justifica para alcançar algum objetivo. No seu clássico texto Sobre a Violência, defende que o poder resulta da capacidade das pessoas agirem em consenso. Quando o poder se fragmenta e se esvazia dessa capacidade, o individualismo tende a substituí-lo pela “violência”, como uma luta de todos contra todos. Quanto maior a burocratização da vida pública, maior será a atração pela violência, uma vez que a não satisfação das demandas sociais provoca reações incontroláveis cujo saldo é a desintegração dos serviços públicos.
Bourdieu (1975) lembra que a dominação não pressupõe necessariamente violência física, podendo acontecer no nível simbólico. O conceito de violência simbólica parte do princípio de que a cultura é arbitrária, porque não se referenda em uma realidade dada como natural. Os sistemas simbólicos são construções culturais e sua interiorização é fundamental para a perpetuação de uma determinada sociedade. A violência simbólica se expressa na imposição da cultura dominante como legítima. O dominado não se opõe ao seu opressor, já que não se percebe o jogo de dominação deste processo, ao contrário, considera a situação natural e inevitável.
Minayo (1994) considera três dimensões para pensar as violências: estrutural, resistência e delinquência. A primeira se relaciona com as estruturas organizadas e institucionalizadas como dos sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem a opressão de grupos, classes, nações ou indivíduos. A violência de resistência constitui a resposta que os indivíduos, grupos ou nações contrapõem à opressão da violência estrutural. Finalmente, a violência de delinquência envolve ações consideradas criminosas e que se relacionam com interesses de ganho pessoal.
	As violências, portanto, não podem ser banidas totalmente da vida social, porque não existe sociedade totalmente homogênea e livre de relações de dominação. No caso específico do Brasil, em função de diferentes fatores que serão analisados na próxima seção, o Estado nunca consolidou o monopólio sobre o uso considerado legítimo da força física, nem seu papel de mediador das relações sociais. O resultado foi que em lugar da pacificação dos costumes o que existiu, ao longo de toda história, foi a persistência de crenças que cultivam a violência como alternativa amplamente valorizada para solucionar conflitos e impor a ordem.
Desigualdade, individualismo e violência no brasil
Um primeiro aspecto considerado relevante para compreender o fenômeno das violências no Brasil se relaciona com o nosso modelo de sociedade, altamente desigual e excludente na sua forma de organização e distribuição dos bens culturais. Uma característica que muito contribuiu para a formação desse quadro social se relaciona com a presença da escravidão no Brasil até final do século XIX. Essa prática ajudou a naturalizar a desigualdade entre os indivíduos. Na legislação Colonial e Imperial, por exemplo, diante da Lei Civil o escravo era, ao mesmo tempo, coisa e pessoa, embora estivesse privado de todos os seus direitos civis. Por outro lado, diante da Lei Penal, o escravo sujeito ativo ou agente do crime era considerado pessoa e não coisa, ou seja, respondia plenamente pelos seus atos, sendo que a condição de escravo era considerada um agravante (Wolkmer, 2008).
Com a abolição, embora os indivíduos de pele negra tenham se tornado iguais aos de pele branca diante da lei, na prática a discriminação continuou, inclusive com respaldo da antropologia criminal emergente. O médico maranhense Nina Rodrigues (1862-1906) foi um importante divulgador das ideias racistas no Brasil, postulando uma inferioridade dos negros e mulatos em relação aos brancos. Rodrigues (1957) acreditava que os “não brancos” possuíam uma tendência natural a degenerescência e ao crime, defendendo, inclusive a importância de uma legislação especial para essas “raças”.
Mesmo com o final da escravidão e da Monarquia, o modelo de República constituída no Brasil não tinha como fundamento um projeto social que valorizasse os interesses coletivos. Muito pelo contrário, a nossa República se desenvolveu marcada pela desigualdade, onde os ideais de cidadania nunca se fortaleceram. Assim, o nosso Estado se constituiu subordinado a interesses de determinados grupos ou famílias e não a partir de um pacto social baseado em regras formalmente definidas e aceitas por todos. A coisa pública é, nesse modelo, percebida como privada, pois não há uma instância universal legitimada na origem do sistema político e administrativo - o que existe são sempre núcleos locais de poder patrimonialista no sentido elaborado por Faoro (1989). 
Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político (...) impera, rege e governa, em nome próprio num círculo impermeável de comando. Esta camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém-vindos, imprimindo-lhes os seus valores (p. 80).
O sistema jurídico brasileiro foi constituído a partir dessa lógica, representando os interesses de uma elite detentora do poder político e econômico e não de uma origem “popular” ou “democrática”. Os modelos jurídicos de controle social não se desenvolvem enquanto reflexo do estilo de vida e dos costumes locais, mas como dispositivos a serviço da manutenção dos privilégios de determinados grupos. Isso explica porque as leis são repletas de brechas e amplas margens de interpretação e de adaptação. Dessa forma, possibilitam que os seus rigores não sejam iguais para todos.
Um exemplo dessa lógica é a frase: "Aos amigos se faz justiça, aos inimigos se aplica a lei". Aparentemente paradoxal essa frase evidencia que a dureza da lei só vale para as famílias e facções rivais, e, sobretudo, para os pobres, considerados sem família. Logo, não é para ser cumprida por todos, que, obviamente, não são iguais. A justiça é benevolente, “ela não é cega, sabe com quem está falando, mesmo vendada enxerga muito bem quem são os amigos do poder, quem são os outros, inclusive a massa de anônimos” (Vieira & Rego, 2009, p. 9). Muito mais uma estrutura de manutenção de poder do que de justiça. 
Desenvolve-se, assim, uma elite parasitária do poder que manteria o padrão de gestão tradicional e patrimonial decorrente do latifúndio patriarcal. Esse modelo sobrevive em diversas roupagens até a atualidade, fazendo com que os avanços sociais sejam muito lentos e possibilitando enorme concentração de riquezas para poucos e pobreza extrema para muitos. Um projeto excludente e desigual nas ofertas de acesso aos bens culturais. O pobre no Brasil é, antes de qualquer coisa, alguém a que fora negado o acesso às condições básicas de vida, como escolarização e salários dignos. Uma pobreza produzida pela desigualdade na distribuição da renda e das oportunidades de inclusão econômica e social.
Embora a pobreza não seja em si um elemento gerador de violência, não há como negar as relações entre a persistência da concentração da riqueza, a precária qualidade de vida coletiva nos chamados bairros periféricos das grandes cidades e a explosão da violência fatal. Na ausência de um discurso ideológico que legitime essa gritante desigualdade, cresce o ressentimento social, que se manifesta na forma de violência e criminalidade, atingindo, principalmente, a população pobre e jovem. O consumismo damodernidade metropolitana agrava ainda mais as frustrações desses seguimentos, que terminam gerando mais criminalidade. Espinheira (2008) chama a atenção para as relações entre pobreza e violência, lembrando que viver em uma sociedade de consumo sem dinheiro produz uma desvalorização do indivíduo. Essa condição de indivíduo sem valor produz a desvalorização do outro e “a construção do ódio como alimento da alma dilacerada” (p.74). 
Um processo considerado central para a consolidação desse projeto desigual e injusto de sociedade foi o fortalecimento de ideologias individualistas. Esse processo se relacionou, dentre outras coisas, com a expansão da economia de mercado, as migrações, a industrialização, a introdução de novas tecnologias e o florescimento de uma cultura de massa. A disseminação de valores individualistas e a concomitante ampliação das possibilidades de escolha dos estilos de vida implicaram na diminuição do poder de coerção de instituições tradicionais, como família ou religião. Os indivíduos sentiram-se, então, mais “livres” para fazerem suas escolhas a partir dos seus próprios critérios “pessoais”. Velho (200) lembra que, mesmo considerando que a tensão social sempre existiu no Brasil, as interações eram mais pacíficas em função da lógica clientelista existente em uma sociedade tradicional. Os conflitos tendiam a ser resolvidos através de negociações, que impediam o confronto físico direto. 
 Embora o desenvolvimento do individualismo seja considerado condição necessária para o desenvolvimento da democracia, não é condição suficiente. Em determinadas sociedades como na americana, canadense ou na australiana, o movimento do individualismo aconteceu de forma a possibilitar a crença no contrato social como valor. A noção de que o poder político é consequência e expressão das relações entre indivíduos-cidadãos constitui a base dessas sociedades.
No caso do Brasil, o individualismo constituído se acomodou a uma visão de mundo na qual a sociedade é percebida de forma desigual e hierarquizada. Foram criadas condições para o fortalecimento de uma cultura antidemocrática, marcada pela frágil valorização dos interesses coletivos. Assim, desenvolve-se um modelo de individualismo perverso, quando o outro é percebido como alguém inferior, que pode ser ignorado, explorado ou destruído de acordo com os interesses pessoais. Esse modelo de individualismo, embora não seja homogêneo, guardando as devidas particularidades e variações locais, é um traço fortemente presente em todo o tecido social. Constitui, ao mesmo tempo, causa e consequência de uma dinâmica brutal, onde a descrença no diálogo, o desrespeito pelos direitos do outro e a valorização da força física como meio legítimo para resolver os conflitos, constituem uma tônica dominante.
No contexto político, essa lógica se relaciona com a desvalorização radical das questões sociais, gerando um cenário dramático marcado pelo desperdício do dinheiro público e pela corrupção desmedida. O saldo desse processo pode ser avaliado pela dívida pública federal na ordem de 2,44 trilhões de reais, segundo relatório da Secretaria do Tesouro Nacional (2015); pela carga tributária abusiva, uma das mais elevadas do planeta; pelos bolsões de miséria que atravessam todo o país; pela radical falta de segurança pública dominante em todo o país, tanto nas áreas urbanas como rurais; pelas escolas sucateadas, onde imperam a evasão e o fracasso; pelo sistema de saúde público falido; pelas rodovias sem manutenção, verdadeiros corredores da morte, que atrasam o desenvolvimento do país; pelo sistema penitenciário perverso, com uma superpopulação de encarcerados, que funciona como escola de marginais e raramente recupera o sujeito. 
Outro exemplo trágico dessa lógica é o modelo de ação das polícias. No relatório de Philip Alston (2008) sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias no Brasil, figura que os policiais militares executam civis sob o argumento de resistência à prisão e, ao registrar essas mortes, a própria polícia deixa de investigá-las. O autor disse também que o salário muito baixo pago aos policiais, faz com que eles se corrompam e participem até de milícias e grupos de extermínio. 
Aliston acrescenta ainda que, embora já ha algum tempo, sejam cometidos entre 45 e 50 mil homicídios todos os anos no Brasil e estes assassinatos tenham semeado o medo e a insegurança entre a população, pouco é feito, na grande maioria dos casos, para investigar e prender os culpados. Segundo Mapa da Violência (2013), apenas entre 5% e 8% dos crimes cometidos na Brasil termina elucidado. Esse percentual é de 65% nos Estados Unidos, no Reino Unido é de 90% e na França 80%. Outro aspecto é a falta de conclusão por parte da Justiça dos inquéritos policiais por homicídio doloso, produzindo um cenário de impunidade. 
Na esfera econômica a lógica não é muito diferente. O imperativo do lucro se sobrepõe a qualquer interesse coletivo, constituído um contexto selvagem de explorações. Apesar da economia brasileira, segundo estudo recente do Banco Mundial (2014), ocupar a sétima posição no ranking internacional, o valor da hora trabalhada aqui é muito baixo, metade da Argentina e um terço da americana. Por outro lado, os preços cobrados por produtos eletrodomésticos são, em média, 50% mais caros do que no exterior (The Economist, 2013). Embora exista uma tendência entre os empresários de culparem os impostos para justificar esses preços, a margem de lucro, por exemplo, das montadoras de veículos, é três vezes maior no Brasil do que em países similares. De acordo com World Economic Forum (2011), o Brasil tem o segundo maior spread bancário do mundo (diferença entre o que os bancos pagam na captação de recursos e o que eles cobram ao conceder um empréstimo), ficando atrás somente de Madagascar. 
No cotidiano das pessoas a dinâmica segue a mesma direção, predominado um cenário de desrespeitos e de negligências. Uma situação típica, que expressa bem esta forma de pensar, acontece no trânsito de automóveis pelas vias públicas. DaMatta (2010) lembra que para o trânsito funcionar bem, assim como qualquer espaço público, precisa existir uma lógica republicana, ou seja, todos devem obedecer igualmente às regras e às leis existentes. O que no Brasil é infinitamente problemático, porque, em geral, o cidadão acha que tem o direito de adaptar as regras coletivas aos seus interesses pessoais, o famoso “jeitinho”. Assim, se estou atrasado, acelero; se preciso estacionar e não existem vagas, paro em local proibido; caso o trânsito esteja muito lento, dou uma “roubadinha” e por aí vai.
 O motorista tem dificuldade de entender o trânsito como um todo, onde o outro é um parceiro e as partes se beneficiam quando o conjunto funciona bem. Segundo DaMatta, no Brasil é comum o indivíduo se sentir inferiorizado quando é colocado na condição de igual, já que o respeito às leis é percebido como um constrangimento, que apenas os mais pobres e subalternos precisam se submeter. Isto explicaria as agressões e as constantes imprudências que acontecem no trânsito. Seja na faixa de pedestres, nos cruzamentos de veículos ou nos semáforos, a prioridade são sempre os interesses pessoais: os direitos do outro são desconsiderados. Essa percepção aristocrática reedita uma forma de compreender e navegar pelos espaços públicos, contribuindo para nosso trânsito se transformar em um dos mais perigosos do mundo. Consta no Mapa das Violências (2012) que os acidentes envolvendo automóveis mataram 40.989 pessoas em 2010, colocando o Brasil em 6º lugar no ranking internacional. 
 Na margem oposta da sociedade temos os “outros” - os ladrões, assaltantes, traficantes, latrocinas e estupradores - que reproduzem, embora de forma mais explícita, a mesma lógica dominante nos contextos brasileiros: a radical falta de respeito pelo outro. A diferença é que esses personagens são demonizados e suas imagens expostas exaustivamente pela grande mídia, que cobra das autoridades medidas mais duras para acabar com a violência.Alimenta-se, assim, um clima de medo, que fortalece a crença na importância de um Estado punitivo e forte. As questões econômicas e sociais que estão envolvidas na produção da criminalidade ficam fora de foco, justificando-se a importância de usar violência para combater violência. O resultado desta lógica, além de aterrorizar a população, é gerar ainda mais violência. 
Consta no Anuário Estatístico do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2013), que em 2012 foram assassinadas 50.108 pessoas no Brasil. Uma proporção de 27,4 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. Esse número nos coloca em sétimo lugar no ranking mundial. Nossas taxas são 273 vezes superiores as da Inglaterra ou do Japão e 137 vezes maiores do que as da Alemanha ou Austrália. Nossos números são tão alarmantes que superam as mortes nos 12 maiores conflitos armados acontecidos no mundo entre 2004 e 2007 (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2013). 
Uma parte expressiva dessas mortes, contudo, não decorreram de atividades criminosas, como tráfico de drogas ou assaltos. Uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, entre os anos de 2011 e 2012 em 16 Unidades da Federação, aponta que a maioria dos homicídios elucidados foi motivada por conflitos considerados fúteis, como ciúmes, conflitos entre vizinhos, desavenças, discussões, violência doméstica, desentendimento no trânsito, dentre outras. Esses números confirmam que a violência fatal no Brasil decorre, principalmente, de uma cultura onde o desrespeito ao outro é regra e matar tornou-se uma possibilidade banal.
Conclusão 
As violências no Brasil, portanto, não devem ser pensadas como mera reação a uma ordem estabelecida, ou como “desvio” do sistema, mas como um componente bastante enraizado na cultura. Esse quadro se relaciona com as contradições de uma sociedade que tenta ser moderna, valorizando ideais como liberdade e democracia e, ao mesmo tempo, se mantem altamente hierarquizada e desigual. Desta forma, foi gerada uma dinâmica perversa, marcada pelo descompromisso com os interesses coletivos e pela produção de um modelo de individualismo perverso, caracterizado pela negação radical da alteridade, onde o outro é percebido como objeto, que pode ser ignorado ou destruído de acordo com os interesses pessoais.
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