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1 - TEORIA GERAL DO PROCESSO - - PARTE I -: SOCIEDADE E TUTELA JURÍDICA 1. A SOCIEDADE E OS CONFLITOS DE INTERESSES O homem, por natureza, é um ser gregário, social. É de sua essência, pois, viver em sociedade. Não consegue viver sozinho. Necessita do convívio, do relacionamento com o outro. Ocorre, entretanto, que o relacionamento humano, isto é, o convívio entre os homens, não é pacífico. Ao contrário. É extremamente conflituoso, de modo que a lide, ou seja, o conflito de interesses, é algo absolutamente natural, ínsito ao convívio social, inerente à vida em sociedade. Mas o que é a lide, o conflito de interesses? A lide, de acordo com o conceito largamente adotado pela doutrina processual, con- cebido por Francesco Carnelutti, respeitado processualista italiano que lecionou na Uni- versidade de Roma, é o conflito de interesses caracterizado por uma pretensão resistida, isto é, uma pretensão que, formulada por um sujeito, encontra em outro uma resistência ao seu atendimento. Assim, o que se passa, no âmbito da lide, é a formulação, por um dado sujeito, de uma pretensão em face de outrem, que opõe, todavia, uma resistência, de maneira a re- chaçar a pretensão deduzida. É o que acontece, por exemplo, quando um credor pretende receber de seu devedor a quantia de R$ 100.000,00 (pretensão), e este, contudo, resiste ao pagamento, dizendo que não entregará ao pretendente (resistência) o montante exigido. É o que ocorre, também, quando um filho concebido fora do casamento pretende, diante de seu suposto pai, o re- conhecimento da paternidade (pretensão), e este, o provável genitor, resiste ao reconhe- cimento (resistência). São vários, pois, os conflitos de interesses, como estes, que surgem, constantemente, na seara social. São, as lides, de fato, como se viu, inerentes ao convívio humano. Sucede que os conflitos de interesses que surgem em sociedade não podem perma- necer sem solução alguma. Ao reverso. Necessitam, de algum modo, que sejam solucio- nados, sob pena de se ferir de morte a desejada paz social, instalando-se o verdadeiro caos 2 em sociedade. Assim, as lides precisam ser, de alguma maneira, resolvidas. E existem vários mecanismos predispostos a tanto. Vejamos. 2. OS MEIOS DE SOLUÇÃO DOS CONFLITOS DE INTERESSES Diversos são os modos pelos quais as lides que surgem no seio social podem ser so- lucionadas. Tais modo podem ser: 1) PARCIAIS. Quando as próprias partes (daí parciais), isto é, os próprios envolvidos no li- tígio, é que solucionam a lide em que estão submetidos, temos uma solução par- cial do conflito de interesses. Dois são os meios parciais de solução dos litígios: A) AUTOTUTELA. Na autotutela, a solução do conflito de interesses é imposta pela parte mais forte à parte mais fraca. O mais forte, valendo-se de sua força, impõe a solução da lide ao mais fraco, que é subjugado por aquele dotado de maior poder, seja ele físico, eco- nômico, financeiro, hierárquico. A palavra força, aqui nos domínios da autotutela, deve ser tomada de maneira ampla, designando toda forma de superioridade de uma das partes em relação à outra, sendo que tal superioridade é utilizada por uma, a mais forte, para impor a solução do litígio à outra, a mais fraca. A parte mais forte impõe a sua pretensão ou a sua resistência à parte mais fraca. B) AUTOCOMPOSIÇÃO. Na autocomposição, a solução do conflito de interesses é ditada por um acordo a que chegam as próprias partes envolvidas no litígio. É a resolução negociada da lide. É a solução do litígio por acordo havido entre as partes envolvidas no embate. 3 A autocomposição pode ocorrer diretamente entre as próprias partes, sem a presença de um intermediário que as aproxime para a solução negoci- ada do conflito de interesses. Mas pode ocorrer, também, que as partes, para a solução a que chegam, de modo negociado, do conflito de interesses em que estão inseridas, sejam aproximadas por um intermediário. Quando há tal aproximação das partes em conflito por um intermediá- rio, para que cheguem a uma solução negociada do litígio, a doutrina tem chamado a autocomposição de conciliação. É o que ocorre com o acordo celebrado em audiência, em que as partes são aproximadas pela figura do juiz. Mas cuidado. A doutrina mais atual tem diferenciado a conciliação da mediação. Embora em ambas as hipóteses exista a presença de um intermediário aproximando as partes para o acordo, na conciliação a atitude de tal interme- diário é apenas a de aproximar os sujeitos do conflito, colhendo as propostas das partes, numa postura mais passiva, ao contrário da atitude do intermedi- ário na mediação, que vai além da mera aproximação, tomando parte nas negociações, adotando uma postura mais ativa na solução da lide por acordo entre as partes. Três são as espécies possíveis de autocomposição: i) DESISTÊNCIA. Na desistência, por acordo havido entre as partes, aquele que estava a pretender algo diante da parte contrária, deixa de pretender o que esta- va almejando. Aquele que estava a pretender o recebimento de R$ 100.000,00 diante do devedor, deixa de pretender a mencionada quantia, em razão de um acordo a que chegou com a parte adversa. ii) SUBMISSÃO. Na submissão, também por acordo entre as partes, aquele que estava a resistir à pretensão alheia, deixa de resistir, concordando com a preten- são deduzida pela parte contrária. Nesse caso, o devedor aceita pagar ao 4 credor a quantia de R$ 100.000,00, também em razão de um acordo que firmou com a parte oposta. iii) TRANSAÇÃO. Na transação, ainda por acordo celebrado entre as partes, aquele que estava a pretender deixa de pretender em relação a parcela de sua pre- tensão, e aquele que estava a resistir deixa de resistir quanto a porção de sua resistência. Ou seja: quem estava pretendendo, deixa de pretender um pouco; quem estava resistindo, deixa de resistir um pouco. É o que ocorre quando o credor, em relação a uma pretensão inicial de receber R$ 100.000,00, concorda em receber R$ 60.000,00 (deixando de pretender quanto a R$ 40.000,00), enquanto o devedor, que dizia, inicial- mente, que nada pagaria, concorda em pagar R$ 60.000,00 (deixando de resistir quanto a R$ 60.000,00). 2) IMPARCIAIS. Quando um terceiro, imparcial, estranho ao litígio, é que dita a solução da li- de, temos uma solução imparcial do conflito de interesses. Dois são os meios imparciais de solução dos litígios: A) ARBITRAGEM. Na arbitragem, a solução do litígio é dada por um terceiro imparcial, par- ticular, estranho ao conflito, indicado de comum acordo pelas próprias partes envolvidas no embate. As próprias partes do conflito, pois, é que nomeiam um terceiro, particular, que passará a ser, a partir de então, o responsável por solucionar o litígio havido entre elas. Assim, por exemplo, quando dois contratantes estipulam, no contrato que celebram, que qualquer conflito de interesses que surja do ajuste contra- tual estabelecido entre elas será resolvido por um terceiro imparcial, particu- lar, nomeado de comum acordo. B) JURISDIÇÃO. Na jurisdição a solução do litígio também é tomada por um terceiro im- parcial. Mas não por um particular. Pelo Estado. Pelo Estado-Juiz. 5 Na jurisdição, portanto, a resolução do conflito também advém de um terceiro imparcial, o Poder Judiciário, responsável, na separação dos poderes, por exercer, de forma típica, a jurisdição, isto é, a atividade jurisdicional. A jurisdição é o foco de nosso estudo este semestre, compondo, a sua a- tuação, ou seja, a atuação da jurisdição, o objeto de estudo do direito proces- sual. 3. A AUTOTUTELA, A AUTOCOMPOSIÇÃO E A ARBITRAGEM NO DIREITO MODERNO A autotutela, ou seja, a solução dos conflitos de interesses por meio da força, é absolu- tamente vedada nos tempos atuais, ressalvadas raríssimas exceções de legítima defesa permitida em nosso sistemajurídico. Constitui crime até, de exercício arbitrário das pró- prias razões, previsto nos arts. 345 e 346 do CP. E é compreensível que seja assim, pois em uma sociedade civilizada, como a brasileira, não poderia de fato prevalecer que a solução dos conflitos de interesses fosse ditada força. Ademais, é sabido, a autotutela pode em muitas ocasiões levar, para não dizer que leva sempre, a uma solução injusta do litígio. Ela não é, no mais das vezes, justa. Com efeito, nem sempre o mais forte é aquele que tem razão, e que deve ter a lide resolvida a seu favor. Assim, natural que fosse proibida, como regra. A autocomposição, ao contrário da autotutela, é, atualmente, absolutamente permiti- da. Mas não só. Incentivada também. É o que se extrai da simples leitura do art. 125 do CPC, ao dizer que é dever do juiz, a todo momento, tentar a conciliação entre as partes. É o que se nota, ademais, do disposto nos art. arts. 331 e 447 a 449 do Código de Processo Civil, que cuidam de disciplinar, respectivamente, as audiências preliminar e de instrução e julgamento. De acordo com os dispositivos legais mencionados, o primeiro ato que o ju- iz deve praticar em tais audiências é a tentativa de conciliação entre as partes. Mas para que seja possível a autocomposição, é prudente anotar, é necessário que o direito discuti- do entre partes em litígio seja disponível, pois apenas em relação a este é que se faz possí- vel a solução negociada do conflito de interesses. A arbitragem, também ao contrário da autotutela, seguindo a mesma trilha da auto- composição, é permitida, atualmente, em nosso ordenamento jurídico. E mais. Também é incentivada, assim como a autocomposição. Há até uma lei específica tratando da maté- ria. A Lei 9.307/96. Mas também em relação à arbitragem é preciso que o direito envolvi- do seja disponível. Só assim será possível a utilização da arbitragem A autocomposição e a arbitragem, pois, compõem o que se tem chamado, hoje, de meios alternativos (incentivados) de solução de litígios. Alternativos à jurisdição, que é a regra em nosso sistema processual, vedada que é a autotutela, sendo a autocomposição e 6 a arbitragem dependentes da vontade das partes, com atuação restrita ao campo dos di- reitos disponíveis. 4. ACESSO À JUSTIÇA Não sendo possíveis, por qualquer motivo, a autocomposição e a arbitragem, seja porque o direito envolvido é indisponível, seja porque não há consenso entre as partes, apenas resta, a estas, para o solução do conflito de interesses em que estão inseridas, a via da jurisdição, vedada que é, em nosso ordenamento jurídico, como regra, a autotutela. Apenas restará, portanto, àquele que está envolvido num litígio, recorrer ao Poder Judiciário, à jurisdição. Por esse motivo, o acesso ao Poder Judiciário deve ser cada vez mais facilitado aos cidadãos. É o que resta àquele envolvido numa lide, quando não hou- ver a possibilidade da autocomposição e da arbitragem. Assim, a parte deve ter a ampla possibilidade de acessar o Poder Judiciário. Sob pena de se perenizar a "litigiosidade contida", na feliz expressão cunhada por Kazuo Watana- be, que é causa de infelicidade e insatisfação para as pessoas. O enfoque, portanto, que se deve ter, hoje, é o de facilitar o acesso à justiça, conceben- do mecanismos que garantam a sua efetivação. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a edição da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95), que dispensa, para que os órgãos que institui atuem, e possam ser utilizados pelas partes, o pagamento prévio de quaisquer custas judiciais; com a Lei de Assistência Judiciária Gratuita (Lei 1.060/50); com a assistência da defensoria pública aos mais neces- sitados, que não precisarão, pois, arcar com os custos de um advogado particular; dentre diversas outras medidas que têm sido implementadas com o escopo de garantir o mais extenso acesso à justiça. Mas acesso à justiça, entretanto, não é apenas, simplesmente, recorrer ao Poder Judi- ciário. É mais que isso. É participar de um processo que respeite todas as garantias constitucionais aplicáveis ao instrumento estatal de solução de controvérsias, sobretudo o devido processo legal. É ter a oportunidade de utilizar os mecanismos processuais adequados, predispostos em lei, para exercer a mais segura defesa de seus direitos em juízo. Daí a necessidade da concepção, além de aperfeiçoamento, de instrumentos, institu- tos e técnicas processuais que sejam capazes de proporcionar à parte a mais adequada de- fesa de seus interesses quando atua no ambiente jurisdicional. Até mesmo de forma pre- ventiva. Antes que o direito seja objeto de algum dano. Protegendo de modo efetivo to- 7 dos os direitos possíveis, inclusive os coletivos e os inerentes à personalidade humana. E é também, por fim, deixar o Pode Judiciário, depois de provocá-lo, e de participar de um processo que respeitou os direitos fundamentais inerentes ao âmbito processual, com uma decisão, ademais de tomada em tempo razoável, eficaz, efetiva, capaz de pro- porcionar, a quem tem razão, exatamente aquilo que ele tem o direito de obter de acordo com as regras do direito material. Somente assim é que se estará a garantir um verdadeiro e autêntico acesso à justiça, ou, de modo mais acurado, à ordem jurídica justa. - PARTE II -: O DIREITO PROCESSUAL 1. CONCEITO DE DIREITO PROCESSUAL O direito processual é o conjunto das normas que têm por finalidade disciplinar o e- xercício da jurisdição. 2. RAMO DO DIREITO PÚBLICO O direito processual, sem qualquer dúvida, pode ser colocado, com segurança, como um dos ramos do direito público. Tem por objetivo regular o exercício da atividade juris- dicional, função típica de um dos poderes estatais, o Poder Judiciário. 3. O DIREITO PROCESSUAL E O DIREITO MATERIAL Não se confundem o direito processual e o direito material. Cada qual tem a sua fun- ção própria, a sua incumbência específica. O direito processual tem por fim, como já mencionado, disciplinar o exercício da ju- risdição, isto é, da atividade jurisdicional do Estado, visando à solução das lides surgidas em sociedade. Tem por escopo, pois, regular o modo como se persegue a solução do con- flito. De que forma, de que modo se chega à solução do conflito de interesses no âmbito jurisdicional, ou, ainda, por meio da utilização dos mecanismos alternativos de solução de controvérsias. Enfim, dita como, ou seja, por que método deve ser resolvido o litígio. Já o direito material, ao oposto, tem por intuito disciplinar qual deve ser a solução do conflito de interesses. Dita qual a solução a ser dada ao litígio. O direito processual, portanto, estabelece como, isto é, de que maneira é possível atin- gir a solução do conflito. Já o direito material, de seu turno, determina qual deve ser solu- ção da controvérsia. Assim, não é possível confundir o direito processual com o direito 8 material. Eles têm desígnios diferentes. Propósitos diversos. Exercem funções diferentes. Mas embora exerçam funções diferentes, não estão desvinculados um do outro. Bem ao reverso. O direito processual, não se pode perder de foco nunca, é instrumento de atu- ação do direito material. Serve ao direito material. Serve à efetivação do direito material. É por meio do direito processual que, ao final da demanda, o juiz aplicará o direito material ao caso submetido a julgamento, solucionando o litígio. 4. A NORMA PROCESSUAL 4.1. OBJETO DA NORMA PROCESSUAL O objeto da norma processual, ou seja, o que a norma processual tem por meta re- gular, é o exercício da jurisdição, isto é, da atividade estatal de resolução dos conflitos de interesses. 4.2. NATUREZA DA NORMA PROCESSUAL A norma processual, como regra, por pertencer a um ramo do direito público, tem caráter cogente, não podendo ter a sua incidência, assim, derrogada, ou seja, afastada, pela vontade das partes. É de incidência, portanto, obrigatória, compulsória, indepen- dentemente do desejodas partes. Tem como pressuposto a proteção do interesse pú- blico, já que a jurisdição, que visa regrar, é manifestação de um dos poderes do Estado, o Poder Judiciário Todavia, é possível, de modo excepcional, que algumas normas processuais as- sumam a condição de dispositivas, admitindo-se que sejam derrogadas pela vontade das partes, que podem, de comum acordo, afastar a sua incidência a uma dada situa- ção concreta. Não são, pois, de incidência necessária, imperativa. É permitido, pois, que sejam afastadas em razão do desejo das partes. Têm como pressuposto a proteção do interesse meramente privado das partes, e não do interesse público, como sucede com as normas cogentes. É o que ocorre, por exemplo, com as normas que estabelecem a competência relativa, passíveis de serem afastadas pelo desejo dos sujeitos envolvidos, por intermédio do foro de eleição, em que as partes, nas situações em que tal opção se apresenta possível, escolhem o foro, ou seja, a comarca em que o conflito de interesses em que estão envolvidos deve ser solucionado, ainda que as regras de competência fi- xadas na legislação processual estejam a apontar para comarca diversa. 4.3. INCIDÊNCIA DA NORMA PROCESSUAL NO ESPAÇO A norma processual, em relação à sua incidência no espaço, deve ter a sua aplica- ção destinada, de acordo com a diretriz fixada no art. 1º do Código de Processo Civil, a 9 todo território nacional. Aplica-se, pois, em todo território nacional. Pois é da União, por intermédio da edição de uma lei federal, a competência para legislar acerca do di- reito processual, segundo estabelece o inciso I do art. 22 da Constituição Federal. Ressalvadas apenas duas exceções, em que os Estados terão competência para le- gislar sobre direito processual: procedimento, matéria que raramente vem sendo obje- to das intervenções legislativas estaduais, e organização judiciária, matéria que tem si- do destinatária, com muito mais freqüência, de disposições legislativas de caráter esta- dual. 4.4. INCIDÊNCIA DA NORMA PROCESSUAL NO TEMPO A norma processual, quanto à sua incidência no tempo, deve seguir a regra da a- plicação imediata, atingindo os processo em curso, respeitados os atos processuais que já foram praticados sob a égide da lei antiga. Assim, temos as seguintes hipóteses. Se o processo já se encerrou, tendo sido totalmente regulado pela norma processu- al antiga, nada deve ser alterado se sobrevém uma norma processual nova. O processo já encerrado foi bem regulado pela norma antiga. Se o processo, ao contrário, ainda não teve o seu início quando advém uma norma processual nova, esta é a que deve regular, por completo, o processo que será iniciado. O processo deverá ser integralmente regulado pela norma nova. Mas se o processo, entretanto, está em curso, quando sobrevém a norma processu- al nova, esta deve ter aplicação imediata, regulando os atos processuais que ainda se- rão praticados, respeitados os atos processuais que já foram praticados de acordo com a norma antiga. Todavia, o problema mais grave em relação à incidência da norma processual no tempo diz respeito à norma nova que altera o prazo processual. Em relação ao pro- blema temos o seguinte equacionamento. Se a norma processual nova altera o prazo antes que ele tenha tido o seu início, ela mesma é que deve regular o lapso temporal em que o ato processual deve ser pratica- do. Se a norma processual nova, porém, altera o prazo depois que ele já se esgotou, não terá ela incidência, tendo sido o prazo bem regulado pela norma antiga. 10 Mas é possível que a norma processual nova altere o prazo quando ele está em curso. Aí a solução deve ser a seguinte. Se a norma aumenta o prazo processual, ela deve ter incidência imediata, beneficiando, com o prazo maior, aquele que deve reali- zar o ato processual dentro do prazo. Mas se, entretanto, a norma diminui o prazo pro- cessual, não deve ter ela incidência imediata, em prejuízo àquele que deve praticar o ato processual dentro do prazo, sob pena de causar uma surpresa demasiada à parte, ferindo a segurança jurídica. - PARTE III -: O DIREITO PROCESSUAL E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL É assente, em tempo recentes, de constitucionalismo acentuado, que a abordagem de qualquer ramo do direito, em geral, e de qualquer instituo ou regra jurídica, em particu- lar, deve ser empreendida a partir de um enfoque absolutamente atado à ideologia e às disposições constitucionais vigentes, figurando a Constituição Federal como parâmetro interpretativo a ser obrigatoriamente seguido na compreensão do exato e correto alcance que deve ser atribuído às normas de índole meramente infraconstitucional, que devem estrita obediência, nessa perspectiva, aos paradigmas da República estampados na Cons- tituição Federal de 1988. E se assim deve ser, hodiernamente, para todos os ramos do direito, o que parece ser, na moderna concepção do constitucionalismo, inquestionável, o mesmo padrão deve ser adotado, com maior medida de razão, no âmbito processual, em que se desenvolve a a- tuação de uma das mais relevantes funções estatais, a função jurisdicional, toda delineada na Constituição Federal, que esparge sobre a atuação da jurisdição todos os fundamentos e todas as diretrizes que devem ser seguidas pelo Estado brasileiro. Inegável, portanto, que o sistema normativo processual civil, contemporaneamente, deve ser interpretado e compreendido a partir da Constituição Federal, em postura que vê nas disposições constitucionais fundamentais, quando aplicadas em província proces- sual, um autêntico modelo constitucional a ser aplicado ao processo civil, na feliz expres- são cunhada por Cássio Scarpinella Bueno. Diz, de fato, Cássio Scarpinella Bueno, que é a partir da Constituição Federal que se deve buscar compreender o que é, para que serve e como funciona o direito processual civil. Assim, ainda na linha do que defende o citado doutrinador, para tratar de direito processual civil é insuficiente referir-se ao Código de Processo Civil. Se é que isto já foi válido alguma vez em tempos idos, o que é certo, absolutamente certo, é que o direito processual civil como, de resto, todos os outros ramos e disciplinas jurídicas está inserido em um contexto bem mais amplo, que é o da Constituição Federal. 11 Não há como, para ir direto ao ponto, tratar de direito, de qualquer direito, sem que se volte os olhos em primeiro lugar para a Constituição. Até porque, e isto é uma especial verdade para o direito positivo brasileiro, uma mera leitura que se faça de nossa Constituição revelará que ela regula uma gama absolutamen- te fantástica de assuntos, quase tudo, a bem da verdade. Evitando desvios de toda ordem, apregoa, ainda, o autor que o que releva afirmar e fixar como premissa metodológica fundamental para se tratar de qualquer assunto de di- reito processual civil é que os dispositivos do Código de Processo Civil ou da legislação processual civil extravagante não bastam por si sós. Não estão soltos. Mais ainda. É insuficiente para a tão conhecida e festejada interpretação sistemática do direito que sejam comparados alguns poucos textos de lei com outros textos da mesma ou de outra lei para estabelecer, entre eles, uma aparente ordem de regra geral para regra específica ou de regra geral para regra excepcional. Mais importante, e que deve ser posto em primeiro lugar, inclusive em ordem de pensamento, é verificar em que medida a Constituição Federal quer que o direito proces- sual civil seja. É extrair, da Constituição Federal, o modelo constitucional do direito processual civil e, a partir dele, verificar em que medida as disposições legais anteriores à sua entrada em vigência foram por ela recepcionadas e em que medida as disposições normativas baixa- das desde então encontram-se em plena consonância com aqueles valores ou, escrito de forma mais precisa, bem realizam os desideratos que a Constituição impõesejam realiza- dos pelo direito processual civil ou que têm condições de concretizar o modelo constitu- cional do direito processual civil. É verificar, em suma, de que maneira o legislador e o magistrado, este sempre muni- ciado por todos os sujeitos do processo, isto é, todos aqueles que de uma forma ou de ou- tra atuam no processo, cada um desempenhando seu próprio mister institucional, têm que conceber, interpretar e aplicar as leis para realizar adequadamente o modelo consti- tucional do direito processual civil. O plano constitucional, pois, delimita, impõe, molda, contamina o modo de ser de todo o direito processual civil e de cada um de seus temas e institutos. O plano infraconstitucional do direito processual civil é, assim, caracterizado, con- formado, pelo que a Constituição impõe acerca da forma de exercício do poder estatal 12 que deve ser entendida por processo. O enfoque constitucional, pois, como se nota, é aquele que deve pautar o intérprete, em tempos atuais, na tarefa da leitura hermenêutica de qualquer disposição normativa infraconstitucional, mormente em província de direito processual, cujos preceitos devem ser, com mais vigor ainda, compreendidos, além de conformados, todos, sem exceção de quaisquer, a partir da perspectiva das garantias fundamentais constantes, seja como re- gras, seja como princípios, na Constituição Federal. - PARTE IV -: PRINCÍPIOS DO DIREITO PROCESSUAL 1. CONSTITUCIONAIS A) PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL a) Previsão Legal O princípio do devido processo legal está previsto no inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal, que preceitua: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". b) Importância O princípio do devido processo legal, sem dúvida, é o mais importante princí- pio processual previsto na Constituição Federal. Pois é dele que decorrem todos os demais princípios processuais constitucio- nais. De modo que é possível dizer, segundo Nelson Nery Júnior, que bastaria ter si- do enunciado, a Constituição Federal, o princípio do devido processo legal, e não se- ria necessária a referência a nenhum outro princípio constitucional pertinente à atu- ação da jurisdição. c) Âmbito de aplicação O devido processo legal, como decorre da própria nomenclatura do princípio, está destinado à seara processual. Mas o que quer dizer a palavra processo, inserida na expressão "devido proces- so legal"? 13 Quer dizer, em primeiro lugar, processo jurisdicional, ou seja, aquele que se de- senvolve diante do Poder Judiciário para a solução dos conflitos de interesses surgi- dos em sociedade. Quer dizer, em segundo lugar, processo administrativo, que se desenvolve di- ante do poder executivo, para a aplicação de uma multa de trânsito, por exemplo. Quer dizer, em terceiro lugar, processo legislativo, de elaboração das leis. Quer dizer, por fim, processo particular, isto é, aquele que se desenvolve diante de uma instituição privada, para a aplicação, principalmente, de uma penalidade. É o que acontece, por exemplo, quando um clube visa aplicar uma sanção a um de seus associados. Deve garantir-lhe o contraditório e a ampla defesa. É o que diz o Supremo Tribunal Federal. Trata-se da aplicação dos direitos fundamentais nas re- lações privadas. Ou seja, da incidência horizontal dos direitos fundamentais. d) Aspectos O princípio do devido processo legal pode ser tomado em dois aspectos: o pro- cessual e o substancial. O devido processo legal, em seu aspecto processual, determina que todo pro- cesso deve ser formalmente devido, justo. E será formalmente devido, justo, quando observar todas as demais garantias constitucionais aplicáveis em âmbito processual, como o contraditório e a ampla de- fesa, a isonomia, a publicidade, a imparcialidade do juiz, a razoável duração do pro- cesso, o acesso à justiça e etc. Mas não basta que ele seja formalmente devido. É preciso que ele seja substancialmente devido também. Materialmente devido. E será materialmente devido quando o seu resultado for razoável, proporcional. Daí os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. São uma mera decor- rência do devido processo legal substancial. Não estão previstos de modo explícito na Constituição Federal. Mas decorrem do devido processo legal substancial. De modo que é possível afirmar que são princípios constitucionais. Nada adianta respeitar todas as garantias formais do processo, se o resultado deste é desarrazoado, desproporcional. Nada adianta garantir à parte o contraditó- rio e a ampla defesa, e todos os direito fundamentais de aplicação nos domínios 14 processuais, se a pena aplicada na sentença, como resultado do processo, fere a pro- porcionalidade, a razoabilidade. B) PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA a) Previsão Legal Encontra previsão, o princípio do acesso à justiça, no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal, que estabelece: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judi- ciário lesão ou ameaça a direito". b) Significado O princípio do acesso à justiça, também chamado de princípio do amplo acesso à justiça, traduz, na verdade, três significados. Quer significar, em primeiro lugar, o princípio em evidência, a necessidade de se proporcionar aos cidadãos envolvidos em conflitos de interesses o mais amplo acesso ao Poder Judiciário. Mas não uma mera permissão de se socorrer do Poder Judiciário quando em litígio. E sim uma facilitação de busca do Poder Judiciário pa- ra solver o embate em que estão situados. Superar, pois, todas as barreiras existentes, que estão a impedir que a parte se valha do Poder Judiciário para resolver a lide em que está inseridas. Por esse motivo o acesso ao Poder Judiciário deve ser cada vez mais facilitado aos cidadãos. Assim, a parte deve ter a ampla possibilidade de aces- sar o Poder Judiciário. O enfoque, portanto, que se deve ter, hoje, é o de facilitar o a- cesso à justiça, concebendo mecanismos que garantam a sua efetivação. Foi o que se ocorreu, por exemplo, repise-se, com a edição da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95), que dispensa, para que os órgãos que institui atuem, e possam ser utiliza- dos pelas partes, o pagamento prévio de quaisquer custas judiciais, com a Lei de As- sistência Judiciária Gratuita (Lei 1.060/50), com a assistência da defensoria pública aos mais necessitados, que não precisarão, pois, arcar com os custos de um advoga- do particular, dentre diversas outras medidas que têm sido implementadas com o escopo de garantir o mais extenso acesso à justiça. Mas acesso à justiça, entretanto, não é apenas, simplesmente, recorrer ao Poder Judiciário. É mais que isso. É participar de um processo que respeite todas as garantias constitucionais apli- cáveis ao instrumento estatal de solução de controvérsias, sobretudo o devido pro- cesso legal. É ter a oportunidade de utilizar os mecanismos processuais adequados, 15 predispostos em lei, para exercer a mais segura defesa de seus direitos em juízo. Daí a necessidade da concepção, além de aperfeiçoamento, de instrumentos, institutos e técnicas processuais que sejam capazes de proporcionar à parte a mais adequada defesa de seus interesses quando atua no ambiente jurisdicional. Até mesmo de forma preventiva. Antes que o direito seja objeto de algum dano. Protegendo de modo efetivo todos os direitos possíveis, inclusive os coletivos e os inerentes à per- sonalidade humana. É deixar o Poder Judiciário, depois de provocá-lo, e de participar de um proces- so que respeitou os direitos fundamentais inerentes ao âmbito processual, com uma decisão, ademais de tomada em tempo razoável, eficaz, efetiva, capaz de propor- cionar, a quem tem razão, exatamente aquilo que ele tem o direito de obter de acor- do com as regras do direito material. Mas não é só. O princípio do acesso à justiça quer dizer mais. Quer dizer, ainda, inafastabili- dade do controlejurisdicional. Ou seja, que a lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Que a lei não pode tolher a parte, enfim, de recorrer à jurisdição, quando afirma que um direito seu foi lesado ou está amea- çado de sofrer uma lesão. C) PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO a) Previsão Legal Tem previsão, o princípio da razoável duração do processo, no inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição Federal, que determina: "a todos, no âmbito judicial e ad- ministrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garan- tam a celeridade de sua tramitação". b) A expressão "duração razoável" É certo que a expressão duração razoável é vaga, incerta, aberta, dependendo, a sua correta compreensão, das circunstâncias do caso concreto. Mas o que se deve entender por duração razoável é que o processo deve ser o mais rápido, isto é, o mais célere possível, sem que sejam desrespeitadas as demais garantias constitucionais do processo. Essa a perspectiva que deve extraída da expressão "duração razoável".
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