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1 Texto didático para Ciências Sociais Aplicadas à Odontologia Foram selecionados trechos da tese Autonomia ou assalariamento precário? O trabalho dos cirurgiões-dentistas na cidade de Salvador, que pode ser obtida em http://odentistaeomundodotrabalho.blogspot.com.br/ Investigar o mercado de trabalho do dentista O objeto de estudo é a inserção do cirurgião-dentista no mercado de trabalho. Tal fenômeno ocorre em um contexto no qual o regime de acumulação flexível promove formas precárias de trabalho e apreende a subjetividade do trabalhador, valorizando o “empreendedorismo” e a “empregabilidade”, ao mesmo tempo em que a subsunção do trabalho ao capital exige um progressivo assalariamento das chamadas “profissões liberais”. Esta pesquisa teve por objetivo geral analisar as principais transformações que têm ocorrido na condição de trabalho e inserção profissional de um conjunto de trabalhadores marcados pela tradição de profissão liberal: os dentistas. Mais especificamente, os objetivos foram: 1) entender de que forma o contexto mais geral de precarização social do trabalho afeta os dentistas que atuam em Salvador, Bahia; 2) apontar as singularidades das condições de trabalho dos recém- formados; 3) compreender a maneira pela qual os dentistas percebem as mudanças em seu mercado de trabalho. A escolha deste tema justifica-se face às dramáticas transformações do mundo do trabalho no contexto da acumulação flexível reveladas pelos inúmeros estudos da Sociologia do Trabalho, que, ao mesmo 2 tempo em que atingem os trabalhadores assalariados impondo-lhes uma diversidade de novas modalidades de trabalho, mais precárias, também alcançam as chamadas “profissões liberais”, que se encontram cada vez mais subsumidas ao capital. Este processo não ocorre mais no sistema protegido das relações salariais do modelo fordista, mas em um contexto de flexploração (BOURDIEU, 1998). Embora estudos desta natureza sobre outras “profissões liberais” (a exemplo dos médicos) já tenham sido realizados, muito pouco tem sido produzido sobre dentistas. Compreender o cenário O mercado de trabalho dos dentistas se torna mais heterogêneo. A prática liberal ainda é significativa, tanto em termos numéricos quanto – principalmente – no plano simbólico. Não ocorreu seu desaparecimento, conforme previsto por alguns autores, comentados mais adiante. Contudo, nota-se a coexistência entre essa prática e formas variadas de assalariamento, quer sejam típicas ou disfarçadas. Nossa hipótese é a de que esse assalariamento encontra-se, em diversas situações, marcado pelo signo da precarização social do trabalho e que a persistência ideológica da prática liberal torna o dentista mais suscetível ao discurso do empreendedorismo e da empregabilidade. Embora seja um fator importante o aumento explosivo do número de dentistas no Brasil nas três últimas décadas, este não é o único aspecto a ser analisado. Não estaríamos estudando este fenômeno se os dentistas continuassem exercendo a prática autônoma, ainda que vivenciassem uma concorrência interprodutores bem mais acirrada. Nosso interesse reside no fato de que o trabalho do dentista se dá sob novos moldes, o do assalariamento atípico. 2.1 Precarização social do trabalho: debate teórico e quadro empírico O significado de “precarização” não é unívoco. Barbier (2002) relata que na sociologia francesa do final dos anos 1970 e início dos 1980, o conceito de precarização surgiu vinculado aos estudos sobre pobreza. Mais tarde foi utilizado nos estudos sobre emprego e finalmente chegou- se à noção de precarização da sociedade como um todo – daí a frase de Bourdieu (1998) “a precariedade está em toda parte”. Para Barbier, o fato de o termo ter surgido no contexto de risco e de pobreza não é de modo algum irrelevante, pois faz com que o antigo conteúdo de pobreza permeie o debate atual. Nosso debate privilegiará os autores 3 que discutem a precarização sob a perspectiva dos estudos do trabalho. Precarização e flexibilização são conceitos que tendem a figurar juntos. Insegurança e instabilidade: essas são as ideias mais comumente associadas ao termo “flexibilização”. Thebaud-Mony e Druck (2007) o conceituam desta forma: ... processo que tem condicionantes macroeconômicos e sociais derivados de uma nova fase de mundialização do sistema capitalista, hegemonizado pela esfera financeira, cuja fluidez e volatilidade típicas dos mercados financeiros contaminam não só a economia, mas a sociedade em seu conjunto, e, desta forma, generaliza a flexibilização para todos os espaços, especialmente no campo do trabalho. (THEBAUD- MONY; DRUCK, 2007, p. 29, grifos nossos) A flexibilização se expressa em jornadas móveis de trabalho, salários flexíveis e formas de gestão inspiradas no toyotismo. O trabalhador flexível é aquele que tudo suporta, que se verga sem se partir. Este é o motivo pelo qual flexibilização e precarização são conceitos que costumam ser associados. Thebaud-Mony e Druck (2007) conceituam precarização da seguinte forma: ...Processo social constituído pela amplificação e institucionalização da instabilidade e da insegurança, expressa nas novas formas de organização do trabalho – onde a terceirização / subcontratação ocupa um lugar central – e no recuo do papel do Estado como regulador do mercado de trabalho e da proteção social através das inovações da legislação do trabalho e previdenciária. Um processo que atinge todos os trabalhadores, independentemente de seu estatuto, e que tem levado a crescente degradação das condições de trabalho, da saúde (e da vida) dos trabalhadores e da vitalidade da ação sindical. (THEBAUD- MONY; DRUCK, 2007, p. 31, grifo nosso) Queremos chamar atenção para o fato de que o fenômeno da precarização não se limita apenas aos trabalhadores já historicamente fragilizados. Essa é uma característica que as autoras fazem questão de pôr em relevo: não se trata de imaginar uma sociedade dual, com “incluídos” e “excluídos”. É um fenômeno que, embora afete de maneira diferente grupos distintos de trabalhadores, não pode ser entendido como residual. 4 3.2 Influência do debate sobre classes na produção teórica sobre mercado de trabalho de médicos e dentistas O referencial que pressupõe uma sociedade crescentemente polarizada entre proletariado e burguesia, na qual a tendência dos setores médios é dissolver-se nestas duas classes dará o tom às primeiras discussões sobre o assalariamento de dentistas. E isto se dá mediante a influência do estudo de Maria Cecília Donnangelo, de 1975, sobre o assalariamento dos médicos. Para Donnangelo, o processo de assalariamento se traduzia em perda de autonomia do médico. Para estudar o fenômeno, ela elegeu três critérios que permitem identificar a posição do médico no mercado: a) controle sobre a clientela; b) posse de meios materiais de trabalho e c) liberdade na fixação do preço do trabalho. Tais critérios balizariam a constituição de três formas puras de participação do médico no mercado de trabalho e duas compostas. Cabe destacar que a prática liberal é tomada por referência para descrever as demais formas de participação no mercado de trabalho. Isto permite que Donnangelo afirme que o assalariamento é o “padrão oposto” ao trabalho autônomo, pois este se caracteriza pelo controle da clientela, da liberdade de fixação do preço do trabalho e posse dos instrumentos de trabalho, enquanto aquele se encontra plenamente destituído de todos estes elementos. O conceito de empresário também é construído por derivação da forma liberal: “caracterizado pelo controle de condições materiais de trabalho ampliadas em relação aos instrumentos que podem ser manipulados por um único ou por poucos profissionais” (DONNANGELO, 1975, p. 81). O médico-empresário de Donnangelo é um profissional cuja “fonte de renda não se reduz à atividade estritamente profissional”.(DONNANGELO, 1975, p. 81). É necessário explicar que no contexto histórico em que Donnangelo produziu seu estudo, o Estado assumia um papel cada vez maior como comprador de serviços médicos no setor privado, via Previdência Social. Este é o motivo pelo qual Donnangelo afirma que o “empresário, mais que qualquer dos outros produtores privados, encontra-se em uma relação de dependência do setor público” (DONNANGELO, 1975, p. 81) O empresário de Donnangelo é nada mais que um autônomo que assume feição de empresa, para mais facilmente vender serviços ao Estado: Dando por suposto que à condição de empresário nem sempre corresponde o assalariamento de outros médicos, a quase equivalência numérica de ambos os grupos sugere, entre outras, as hipóteses 5 alternativas de que o setor privado se compõe predominantemente de pequenas empresas; ou que a associação entre empresários constitui a modalidade mais freqüente na origem e organização desse tipo de propriedade. (DONNANGELO, 1975, 117) É importante reter que o cenário analisado por Donnangelo sofreu profundas transformações, havendo atualmente grandes empresas no setor. Donnangelo defende que há ainda outras modalidades de inserção no mercado de trabalho além das três acima mencionadas. Ela denomina autônomos atípicos aqueles que têm controle parcial dos meios de trabalho, ou seja, obtêm sua clientela a partir de relações com empresa, resultando em perda da liberdade de fixação do preço de trabalho e de certo controle sobre o padrão técnico do trabalho. Esta categoria será de extrema importância, porque se repete nos estudos que analisaremos em seguida e assume especial relevância com o crescimento da assistência à saúde suplementar nas últimas décadas. A autora também denomina autônomos atípicos aqueles que dispõem de clientela própria, mas utilizam os meios de trabalho de organizações. Por fim, a autora aponta a existência da categoria “cooperativa”, que em seu entendimento seria tendencialmente assalariada, mas apresentaria controle coletivo sobre as condições da venda do trabalho e a renda do grupo. Naquele momento, o sistema Unimed ainda era pouco desenvolvido, e Donnangelo não pôde lhe dedicar maior atenção. 5. - A inserção do dentista no mercado de trabalho Em uma perspectiva poulantziana, o assalariamento dos dentistas, em função das novas configurações do trabalho destes a partir dos anos 1990, significa a migração de indivíduos da pequena burguesia tradicional para a nova pequena burguesia, fenômeno condizente com os processos de realinhamento das classes sociais ao longo do século XX. Trata-se de um conjunto de pequenos produtores que, sob novas condições, passam a vender sua força de trabalho, porém mantendo diferenças expressivas com o operariado. A complexificação da classe- que-vive-do-trabalho, de que fala Antunes (2000), pode ser observada aqui. Contudo, a especificidade destes assalariados torna necessário recorrer a teóricos que joguem luz sobre os detalhes deste processo. Nossa escolha recai sobre Donnangelo (1975) e, por consequência, sobre Paixão (1979), que utilizou o mesmo referencial. Todavia, o cenário que estas duas autoras analisaram sofreu mudanças substantivas dos 6 anos 1970 aos dias atuais. São estas novas conformações que serão abordadas a seguir. Os três critérios definidores (controle sobre a clientela, posse de meios materiais de trabalho e liberdade na fixação do preço do trabalho) são ainda cardeais para os estudos hodiernos. Posse dos meios de trabalho Importantes transformações têm ocorrido na indústria de equipamentos odontológicos no Brasil, conforme apontam Manfredini e Botazzo (2006). Os autores destacam que há um discurso corrente de que exista uma forte dependência de importação de produtos e equipamentos odontológicos, que seria a responsável pelos altos preços dos serviços odontológicos privados. Sua pesquisa, contudo, revelou que o Brasil é detentor de um pujante parque industrial odontológico, tendo obtido superávit no comércio exterior na maior parte do período de 1990 a 2002. O fenômeno também foi relatado pela entrevistada 09, que narra uma redução dos valores cobrados em tratamentos ortodônticos, decorrente não apenas do maior número de cursos de especialização, mas também do fato de anteriormente os insumos serem predominantemente importados, enquanto na atualidade são nacionais. Isto talvez possa significar uma maior facilidade para os dentistas controlarem os meios de trabalho, mas é um fenômeno de difícil constatação. A metodologia utilizada nesta pesquisa não permite afirmar que as atuais gerações de dentistas tenham acesso facilitado a equipamentos e insumos de menor preço. Este é um ponto a ser estudado em investigações futuras. Controle sobre a clientela Este é provavelmente o aspecto que mais tenha se alterado nas últimas décadas. Donnangelo (1975) e Paixão (1979) referiam-se à intermediação do INAMPS na captação da clientela, mas atualmente são as empresas de Odontologia Suplementar as responsáveis pelas principais transformações. O maior número de profissionais e sua má distribuição também guardam relação com o fenômeno. Liberdade de fixação do preço de trabalho e do processo de trabalho É necessário ampliar o critério, incorporando também a liberdade de definição do processo de trabalho. A dissolução da autonomia e a subordinação a formas abertas ou disfarçadas de assalariamento fazem com que dentistas gradativamente percam a possibilidade de estabelecer como, quando e onde trabalhar. 7 Modalidades de inserção do mercado de trabalho As três formas típicas definidas por Donnangelo ainda são válidas se tomarmos o “típico” numa acepção do tipo-ideal weberiano. O “profissional autônomo” é um modelo pelo qual estudamos os dentistas, não uma situação generalizada. Isto não significa que tenha ocorrido o desaparecimento das formas autônomas, mas que a autonomia “pura” é bem pouco encontradiça. Muito mais comum é a combinação a outras modalidades, o que nos leva à inusitada situação em que o “atípico” é a “norma”. Este não é um fato surpreendente, se consideramos a nova morfologia do trabalho, de que fala Antunes (2000). A contribuição trazida por esta pesquisa é a ampliação e atualização da tipologia originalmente formulada por Donnangelo (1975) e adaptada por Paixão (1979). Partimos das três modalidades fundamentais elencadas por estas autoras e analisamos diversas variações, algumas já foram esboçadas por elas, outras são novidade. FIGURA 4 – Modalidades fundamentais de inserção do dentista no mercado de trabalho e variações. O estudo das modalidades de inserção no mercado de trabalho faz-se necessário porque estas condicionam o processo de trabalho e estão intimamente relacionadas como os processos de precarização que afetam os dentistas.
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