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II •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• A SOCIOLOGIA PRÉ-CIENTíFICA 1. O Renascimento 2. A Ilustração e a sociedade contratual 3. A crise das explicações religiosas e o triunfo da ciência 1 o Renascimento •••••••••••••••••••••••••• Introdução o Renascimento, talvez mais do que a maioria dos diversos momentos históricos, suscita grandes controvérsias. Há quem veja nesse movimento filosófico e artístico o momento de ruptura entre o mundo medieval- com suas características de sociedade agrária, estamental, teocrática e fundiária - e o mundo moderno urbano, burguês e comercial. Mudanças significativas ocorrem na Europa a partir de meados do sécu- loXVlançando as bases do que viria a ser, séculos depois, o mundo contempo- râneo. A Europa medieval, relativamente estável e fechada, inicia um processo de abertura e expansão comercial e marítima. A identidade das pessoas, até então baseada no clã e na propriedade fundiária, vai sendo progressivamente substituída pela identidade nacional e pelo individualismo. A mentalidade vai se tornando paulatinamente laica - desligada das questões sagradas e transcendentais -, as preocupações metafísicas vão convivendo com outras mais imediatistas e materiais, centradas principalmente no homem. Embora as preocupações metafísicas e filosóficas tenham importado ao homem desde a Antigüidade, no Renascimento a nova sociedade que emer- ge exige a distinção entre conhecimento especulativo e pragmático. Diferentes visões do Renascimento Alguns historiadores têm uma visão otimista do Renascimento, como a tiveram também aqueles que assim o batizaram, por terem erroneamente considerado a Idade Média como a Idade das Trevas e do obscurantismo. Para eles as mudanças que ocorreram na Europa, principalmente na Itália, e depois na Inglaterra e Alemanha, foram essencialmente positivas e responsá- veis pelo desenvolvimento do comércio e da navegação, do contato com ou- tros povos, pela proliferação de obras de arte e de obras filosóficas. Nessa ótica foi o movimento renascentista que promoveu o renascer da cultura e da erudição, o gosto pelo saber, além de tê-los, aos poucos, posto à disposição da população em geral. Mas há também os historiadores mais pessimistas, que conseguem perceber nessa época um período de grande turbulência social e política. Para essa análise, esses historiadores apóiam-se na falta de unidade política e reli- giosa, nos grandes conflitos existentes entre as nações, nas guerras intermi- náveis, nas inquisições e perseguições religiosas, no esforço de conservação o RENASCIMENTO de um mundo que agonizava, características marcantes do período. Conside- ram sintomas de tudo isso os exílios, as condenações e os longos processos políticos e eclesiásticos, os grandes genocídios que a Europa promoveu na América e o ressurgimento da escravidão como instituição legal. De fato, um certo clima de fim de mundo perpassa a produção artística do período, expresso na Divina comédia de Dante Alighieri, no Juízo final de Michelângelo, pintado na Capela Sistina e em vários quadros do artista flamengo Heironymus Bosch. Um clima de insegurança e instabilidade per- passa a todos nessa época de profunda transição. A retomada do espírito especulativo De qualquer maneira, o Renascimento marca uma nova postura do ho- mem ocidental diante da natureza e do conhecimento. Iuntamente com o descrédito na Igreja como instituição e o conseqüente aparecimento de no- vos credos e seitas - que conclamavam os fiéis a uma leitura interpretativa das escrituras -, o homem renascentista retoma a crença no pensamento especulativo. O conhecimento deixa de ser revelado, como resultado de uma atividade de contemplação e fé, para voltar a ser o que era antes entre gregos e romanos - o resultado de uma bem conduzida atividade mental. Assim como a ciência, a arte também se volta para a realidade concreta, para o mundo terreno, numa ânsia por conhecê-lo, descrevendo-o, analisan- do-o, medindo-o, quer com medidas precisas, quer por meio de uma perspectiva geométrica e plana. "O visível é também inteligível", afirmava Leo- nardo da Vinci, encantado com as possibilidades de conhecimento pelo do uso dos sentidos. Por outro lado, a vida terrena adquire cada vez mais importância e com ela a própria história, que 19 Ilustração da DIvina comédia, escnta por Dante Alighren. Nela, o artista expressa sua visão da sociedade da época o Renascimento se caracteriza por uma nova postura do homem ocidental diante da natureza e do conhecimento. 20 A SOCIOLOGIA PRÉ-CIENTíFICA Em cenas como a desse banquete de Botticelli, os pintores renascentistas exaltavam a vida terrena. Detalhe do Juízo final (1536-1541), afresco de Michelangelo. o.."c- :::lo oa:~ a: passa a ter uma dimensão eminentemente huma- na. Estimulado pelo individualismo e liberto dos valores que o prendiam irremediavelmente à famí- lia e ao clã, o homem já concebe seu papel na his- tória como agente dos acontecimentos. Ele vai aos poucos abandonando a concepção que o tomava por pecador e decaído, um ser em permanente dí- vida para com Deus, para se tomar, na nova pers- pectiva, o agente da história. Shakespeare evoca constantemente em suas peças a tragédia do homem diante de suas opções e sentimentos, enquanto Michelângelo faz quase se encontrarem os dedos de Deus e Adão na cena da Criação. É nesse ambiente de renovação que o pen- samento científico tomará novo fôlego e, com ele, o pensamento acerca da vida social. Um novo pensamento social Num mundo que se toma cada vez mais laico e livre da tutela da Igreja Católica, o homem se sente livre para pensar e criticar a realidade que vê e vivencia. Sente-se livre para analisar essa realidade como algo em si mesmo e não como um castigo que Deus lhe reservou. E, assim como os pintores que se debruçaram nas minúcias das paisagens, na disposição das figuras numa perspectiva geométrica, os filósofos também passam a questionar e dissecar a realidade social. A vida dos homens passa a ser fruto de suas ações e esco- lhas, e não dos desígnios da justiça divina. Novas instituições políticas e sociais, estados nacionais, exércitos, le- vam os homens a repensar a vida social e a história. o RENASCIMENTO 21 Ao mesmo tempo, emerge uma nova classe social- a burguesia comer- cial-, com novas aspirações e interesses, que renova o pensamento social. Nessa visão humana e especulativa da vida social está o germe do pen- samento social moderno que vai se expressar na literatura, na pintura, na filosofia e, em especial, na literatura utópica de Thomas Morus (A Utopia), Tommaso Campanella (A cidade do Sol) e Francis Bacon (Nova Atlântida). As utopias Como Platão, os filósofos renascentistas tentaram imaginar uma socie- dade perfeita. Assim como a Atlântida, surge através da pena de Thomas Morus uma comunidade onde todas as soluções foram encontradas: a Uto- pia. Uma ilha cujo nome significa "nenhum lugar", onde existe harmonia, equilíbrio e virtude. Desse modo, o pensamento social no Renascimento se expressa na criação imaginária de mundos ideais que mostrariam como a realidade de- veria ser, sugerindo entretanto que tal sociedade seria construída pelos homens com sua ação e não pela crença ou pela fé. Utopia é uma ilha onde reina a igualdade e a concórdia. Todos têm sob as mesmas condições de vida e executam em rodízio os mesmos trabalhos. A igualdade e os ideais comunitários são garantidos por uma monarquia cons- titucional. Cada grupo de 30 famílias escolhe um representante para o conse- lho que elege o imperador; este permanece até o fim da vida como soberano, sob o olhar vigilante do conselho, que opina sobre cada ato real e pode con- sultar previamente as famílias, quando considerar necessário. . Além da igualdade quanto ao estilo de vida e ao trabalho, também a distribuição de alimentos se dá de forma comunitária. Não há necessidade de pagar por nada, porque há de tudo em profusão, uma vez que a vida é simples, sem luxo e todos trabalham. Em A Utopia, Thomas Morus expressaos ideais de vida moderada, igualitária e laboriosa, semelhantes aos praticados pelos monges nos mostei- ros pré-renascentistas, assim como defende, em termos políticos, a monar- quia absoluta. Utopia vem dos termos gregos óu (não) e topos (lugar). Significaria literalmente "nenhum lugar". Corresponde na história do conhe- cimento a essa evocação, através de uma aspiração, sonho ou desejo manifesto, de um estado de perfeição sempre imaginário. Na medida, entretanto, em que a utopia enfoca um estado de perfeição, ela realiza, por oposição, um exercício de análise, crítica e denúncia da sociedade vigente. O estado de perfeição ensejado na utopia é necessariamente aquele no qual se tornam evidentes as imperfeições da realidade em que se vive. Mas, apesar de seu caráter de evasão da realidade, a utopia revela uma apurada crítica à ordem social, podendo inclusive se transformar em autêntica força revolucionária, como indicam os grandes movimentos messiânicos vividos pela humanidade, ou seja, aqueles movimentos que têm por meta a redução da humanidade ou a salvação do mundo. 22 A SOCIOLOGIA PRÉ-CIENTíFICA recusando-se a jurar fidelidade à Igreja Anglicana fundada pelo rei, em parte por ser católico e em parte por ser contrário aos desmandos da autoridade real. Foi preso, condenado e executado. Em 1935 foi canonizado pela Igreja Católica e sua festa é celebrada em 6 de julho, dia de sua morte. Sua grande obra é A Utopia. Thomas Morus (1478-1535) SeriaA Utopia uma obra sociológica? Não no sentido moderno ou cientí- fico do conceito, mas como expressão das preocupações do filósofo com a vida social e com os problemas de sua época. Toda a vida ou, como o próprio autor chama, o "regime social" dos utopienses demonstra claramente a preocupação com o estabelecimento de regras sociais mais jus- tas e humanas como resposta às críticas que o au- tor fez em relação à Inglaterra de seu tempo. Analisar a sociedade em suas contradições e visualizar uma maneira de resolvê-Ias, acredi- tar que da organização das relações políticas, econômicas e sociais derivam a felicidade do ho- mem e seu bem-estar é, seguramente, o germe do pensamento sociológico. E, refletindo basicamente os anseios de sua época, Thomas Morus con- sidera esse mundo ideal possível, graças ao plano sábio de um monarca abso- luto: Utopos, fundador da Utopia. O monarca esclarecido, justo e sábio é o ideal político do Renascimento, organizador das sociedades perfeitas criadas pela literatura de Thomas Morus e de outros. Nasceu em Londres. Foi pensador, estadista, advogado e membro da Câmara dos Comuns. Como bom humanista, desenvolveu estudos sobre o grego antigo. Em 1518, foi nomeado membro do Conselho Secreto de Henrique VIII e chegou em 1529 a ocupar o mais alto cargo do reino. Opôs-se à anulação do casamento de Henrique VIII, Analisar as contradições sociais e procurar resolvê-Ias, acreditar que o bem-estar do homem depende das condições sociais é o germe do pensamento sociológico. Maquiavel: O criador da ciência política Nicolau Maquiavel, pensador florentino, escreveu um livro, O príncipe, dedicado a Lourenço de Médici (1449-1492), governador de Florença, prote- tor das artes e das letras, ele mesmo um ditador. Nesse livro, Maquiavel se propõe a explorar as condições pelas quais um monarca absoluto é capaz de fazer conquistas, reinar e manter seu poder. Como Thomas Morus, Maquiavel acredita que o poder depende das características pessoais do príncipe - suas virtudes -, das circunstâncias históricas e de fatos que ocorrem independentemente de sua vontade - as oportunidades. Acredita também que do bom exercício da vida política de- pende a felicidade do homem e da sociedade. Mas, sendo mais realista do que seus companheiros utopistas, Maquiavel faz de O príncipe um manual de ação política, cujo ideal é a conquista e a manutenção do poder. Disserta o RENASCIMENTO 23 destronado por Lourenço de Médici. A partir de então, limitou-se a ensinar e a escrever sobre a arte de governar e guerrear. É considerado o fundador da ciência política e, segundo alguns, nesse campo jamais foi superado. Suas principais obras são: O príncipe e Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Nicolau Maquiavel (1469-1527) Nasceu em Florença, mas fez sua carreira diplomática em diversos países da Europa. De 1502 a 1512 esteve a serviço de Soderini, presidente perpétuo de Florença. Ajudava-o nas decisões políticas, escrevia-lhe discursos e reorganizou o exército florentino. Foi exilado e afastado da vida pública quando Soderini foi a respeito das relações que o monarca deve manter com a nobreza, o clero, o povo e seu ministério. Mostra como deve agir o sobera- no para alcançar e preservar o poder, como manipular a vontade popular e usufruir seus poderes e aliados. Faz uma análise clara das bases em que se assenta o poder político: como conseguir exércitos fiéis e corajosos, como cas- tigar os inimigos, como recompensar os alia- dos, como destruir, na memória do povo, a ima- gem dos antigos líderes. A visão laica da sociedade e do poder Em relação ao desenvolvimento do pen- samento sociológico, Maquiavel teve mais êxi- to do que Thomas Morus, na medida em que seu objetivo foi conhecer a realidade tal co- mo se lhe apresentava, em vez de imaginar como ela deveria ser. De qualquer maneira, nas obras de Thomas Morus e de Maquiavel per- cebemos como as relações sociais passam a constituir objeto de estudo dota- do de atributos próprios e deixam de ser, como no passado, conseqüência do acaso ou das qualidades pessoais dos sujeitos. A vida dos homens já aparece, nessas obras, como resultado das condições econômicas e políticas e não de sua fé ou de sua consciência individual. Além disso, esses filósofos expressam os novos valores burgueses ao colocar os destinos da sociedade e de sua boa organização nas mãos de um indivíduo que se distingue por características pessoais. A monarquia propos- ta no Renascimento não se assenta na legitimidade do sangue ou da linha- gem, na herança ou na tradição, mas na capacidade pessoal do governante e sua sabedoria. A história, tanto como ciência quanto como conhecimento dos fatos, passa a ter um papel relevante nesse novo contexto. Desconhecer a história é desconhecer a evolução e as leis que regem a sociedade onde se Nicolau Maquiavel, autor de O príncipe, é considerado o fundador da ciência política. 24 A SOCIOLOGIA PRÉ-CIENTíFICA vive. Nessa idéia de monarquia se baseia a aliança que a burguesia estabele- ce com os reis para o surgimento dos estados nacionais, onde a ordem social será tanto mais atingível quanto mais o soberano agir como estadista, pondo em marcha as forças econômicas do capitalismo em formação. Btividades 1. Qual era a forma de identidade social do homem medieval? 2. O que você aprendeu neste capítulo sobre a mentalidade do homem renascentista? 3. Como a tutela da Igreja impedia o florescimento do pensamento e da crítica social? 4. Você acha que, hoje, a Igreja Católica impede ou incentiva o desenvolvimento do pensamento e da crítica social? Faça uma pesquisa a respeito utilizando notícias sobre as campanhas empreen- didas pela Igreja e que estão presentes nos meios de comunicação de massa. 5. O que você entendeu por utopia? Escreva com suas palavras a partir do que foi expresso no texto. 6. Faça uma pesquisa e discuta os significados que as pessoas dão comumente ao termo utopia. 7. "E, como disse ter sido preciso, para que fosse conhecida a virtude de Moisés, que o povo de Israel fosse escravo do Egito; para conhecer-se a grandeza de alma de Ciro, que estivessem os persas oprimidos pelos medas - assim modernamente, desejando-se conhecer o valor de um príncipe italiano, seria preciso que a Itália chegasse ao ponto em que hoje se encontra. Que esti- vesse mais escravizada do que os hebreus, mais oprimida que os persas, mais dispersa que os atenienses, sem chefe, sem ordem, batida, espoliada, lacerada, invadida, e que houvesse, por fim, sofrido toda espécie de calamidade." (p. 81) Nessetrecho de O príncipe, como Maquiavel descreve a situação da Itália? 8. Comparando as propostas de Thomas Morus e Maquiavel, que aspectos elas têm em comum? 9. Em que sentido a obra de Maquiavel se distingue das demais manifestações de literatura utópica? 10. Faça com o seu grupo de trabalho o seguinte exercício: a partir do levantamento de críticas à sua sociedade, descreva uma sociedade utópica na qual essas questões seriam solucionadas. Aplicação de conceitos ••••••••••••••••••••••••• 1. A idéia de que existe um espaço onde reina a felicidade e onde as necessidades do homem serão satisfeitas está presente na literatura em todos os tempos. A literatura brasileira tem um bom exemplo - o poema de Manuel Bandeira, "Vou-me embora pra Pasárgada", em que ele descreve assim sua utopia: o RENASCIMENTO 25 Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei um burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d'água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar - Lá sou amigo do rei - Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada. Manuel Bandeira. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro. José Olyrnpio, 1974. Analise o poema e tente imaginar essa utopia do poeta retirando dela os princípios de ordem social criados nessa sociedade ideal para o escritor. 26 A SOCIOLOGIA PRÉ-CIENTIFICA 2. Em Romeu e Julieta, Shakespeare aborda o conflito entre o indivíduo e a sociedade, uma vez que o drama dos amantes de Verona decorre da oposição entre as regras sociais vigentes e a vonta- de individual dos heróis. Na seguinte fala de Julieta essa questão fica clara: "Somente teu nome é meu inimigo. Tu és tu mesmo, sejas ou não um Montechio. Que é um Montechio? Não é mão, nem braço nem rosto, nem outra parte qualquer pertencente a um homem. Oh! sê outro nome! Que há em um nome? O que chamamos de rosa, com outro nome exalaria o mesmo perfume tão agradá- vel; e assim, Romeu, se não se chamasse Romeu, conservaria essa cara perfeição que possui sem o título. Romeu, despoja-te de teu nome, que não faz parte de ti, toma-me toda inteira!" Analise o conteúdo social desse texto e perceba como já se colocava no Renascimento a per- cepção da relação indivíduo e sociedade. 3. Analise o detalhe do Juízo final, afresco pintado por Michelângelo na Capela Sistina, e procu- re identificar os elementos renascentistas presentes na pintura. 4. Vídeos: a) Agonia e êxtase (EUA, 1965. Direção de Carol Reed. Baseado no romance de Irving Stone. Duração: 140 min.) - Um pequeno documentário dramatizando os conflitos de valores, arte, religião e realização pessoal entre o pintor renascentista italiano Michelângelo e seu patrocina- dor, o papa Júlio 11. Observe como se estrutura a Igreja e a sociedade em torno de valores burgueses emergentes. b) Giordano Bruno (Itália, 1973. Direção de Giuliano Montaldo. Duração: 123 min.) - Esse filme mostra a sociedade italiana do século XVI na qual o filósofo e astrônomo Giordano Bruno é condena- do à morte pela Inquisição por se opor à tradição geocêntrica da Igreja Católica. Aborda o conflito entre a ciência e a religião na ótica de Giordano e da Igreja Católica. Tema para debate. • ••••••••••••••••••••••••• Ficção científica - a utopia contemporânea A literatura utópica é apontada como tendo surgido na Grécia, com Platão, em seus livros Timeu e Crities, e com Aristófanes, em Os pássaros. Depois deles, Luciano Samosata, prosador grego do século 11, também se dedicou ao gênero. Outros filóso- fos como Swift e Voltaire escreveram obras utópicas bastante conhecidas. Kingsley Amis, estudioso da matéria, considera A Utopia, de Thomas Morus, e Nova Atlântida, de Francis Bacon, os melhores exemplos do gênero, por reuni- rem forte crítica social e invenção criadora. Por isso, considera-as precursoras da ficção atual, de onde brotariam as utopias contemporâneas. H. L. Gold, diretor da revista de ficção científica Galaxy, afirma: "Poucas coi- sas revelam tão nitidamente quanto a ficção científica os desejos, as esperanças, os temores, os conflitos interiores e as tensões de uma época, ou definem com tanta exatidão as suas limitações". Você acha que a ficção científica representa uma crítica à sociedade? Justifique sua resposta, a partir de um texto ou de um filme de ficção científica que você conheça. o RENAS CIMENTO 27 leituras Complementares 1 [Sobre o surgimento do pensamento crítico - Maquiavel] É extremamente provável que tenha sido o trato cotidiano com assuntos po- líticos que, pela primeira vez, deu consciência e senso crítico ao homem face ao elemento ideológico de seu pensamento. Durante a Renascença, entre os concidadãos de Maquiavel, emergiu um novo adágio chamando a atenção para uma observação comum na época - que era a de que o pensamento do palácio é uma coisa, e o da praça pública é outra. Isto era uma expressão do crescente grau em que o público ganhava acesso aos segredos da política. Podemos aqui obser- var o início do processo no decorrer do qual o que antes havia sido apenas uma eclosão ocasional de suspeita de ceticismo, face aos pronunciamentos públicos, evoluiu para uma procura metódica do elemento ideológico em todos eles. A diver- sidade de formas de pensamento entre os homens é ainda, neste estágio, atribuí- da a um fator que, sem exagerar o termo indevidamente, poderia ser denominado sociológico. Maquiavel, em sua profunda racional idade, tomou como tarefa espe- cífica relacionar as variações das opiniões dos homens às variações correspon- dentes em seus interesses. De acordo com sua prescrição de medicina forte para toda subjetividade das partes interessadas em uma controvérsia, Maquiavel pare- cia estar explicitando e estabelecendo como regra geral do pensamento o que estava implícito no adágio de seu tempo. Karl Mannheim, Ideologia e utopia, p. 89. 2 [A república para Maquiavel] A república é outro tema fundamental de Maquiavel. Nos Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, o secretário florentino analisa a liberdade como fruto do conflito entre pobres e ricos no interior do corpo político. No texto de Newton Bignotto, podemos observar: Deixando de lado a questão tradicional das origens das instituições, que parecia ser o melhor caminho para a compreensão do tema que nos interessa, nosso autor nos mostra não somente que a liberdade deve ser pensada a partir dos conflitos internos de uma cidade, mas também que nossas idéias sobre a criação das instituições políticas devem ser revistas. A liberdade, tão adorada pelos florentinos, mas tão pouco realizada, é o produto de forças em luta, o resul- tado de um processo que não pode ser extinto com o tempo. Os conflitos são os produtores da melhor das instituições, e não o elemento incongruente de um período infeliz na história de um povo. Maquiavel resume seu pensamento numa frase lapidar: " ... e deve-se considerar como existem em toda república dois hu- mores diversos: o do povo e o dos grandes, e toda lei que se faz em favor da liberdade nasce da desunião entre eles". Para passar da idéia de uma sociedade ideal inteiramente voltada para a paz ao elogio da sociedade tumultuária, foi preciso um enorme esforço de elabora- 28 A SOCIOLOGIA PRÉ-CIENTíFICA ção. Para fortalecer a criação de um novo continente, Maquiavel lançou mãodo fato de que nenhuma sociedade viveu até hoje sem conflitos. Se isso não prova que eles tiveram um papel positivo na história, demonstra, pelo menos, que uma sociedade totalmente imersa na paz é talvez a ficção de mentes bondosas, mas não o espelho da condição humana. A novidade, portanto, não é a afirmação da maldade dos homens, mas a de que essa maldade não impede a criação de insti- tuições boas. Mais radicalmente ainda, podemos dizer que é da propensão ao con- flito que nasce a possibilidade da liberdade. A liberdade é, portanto, o resultado de conflitos, uma solução possível de uma luta que não pode ser extinta por nenhuma criação humana. De uma problemática antropológica passamos a conceber a polí- tica como uma forma da guerra. Mas a guerra não significa aqui a pura nega- tividade, ela aponta para o verdadeiro ponto de partida de toda reflexão sobre a política, que é a existência de desejos opostos na pólis. Voltando, assim, ao tema dos desejos opostos que povoam as cidades, aprendemos com a seqüência do texto que o desejo do povo é que está mais próximo da liberdade, pois, não sendo um desejo de poder, mostra uma face im- portante da liberdade: a não-opressão. "E os desejos dos povos livres raras vezes são perniciosos à liberdade, porque nascem ou da opressão que eles sofrem, ou da suspeição de que poderão sofrê-Ia." Das duas forças principais que dividem a cidade, não podemos dizer que elas sejam o inverso simétrico uma da outra. O povo, não visando à mesma coisa que os grandes, não pode ser compreendido pela imagem do inimigo organizado num campo de batalha. Daí resulta que a liberdade não é um meio-termo estático que satisfaz os desejos dos dois oponentes. Tal fim é absolutamente impossível de ser alcançado por dois adversários que não têm o mesmo objetivo. A liberdade, mais do que uma solução permanente para as lutas internas de uma cidade, é o signo de sua capacidade de acolher forças que, não podendo ser satisfeitas, não deixam de buscar meios de se exprimir. Newlon Bignotto, Maquiavel republicano, São Paulo, Loyola, 1991, p. 85. 2 A Ilustração e a sociedade contratual •••••••••••••••••••••••••••• Introdução: uma nova etapa no pensamento burguês o Renascimento desenvolveu nos homens novos valores, diferentes daqueles vigentes na Idade Média. Os valores renascentistas estavam mais adequados ao espírito do capitalismo, um sistema econômico voltado para a produção e a troca, para a expansão comercial, para a circulação crescente de mercadorias e para o consumo de bens materiais. Instalava-se uma socieda- de baseada na distinção pela posse de riqueza e não pela origem, nome e propriedade fundiária. Essa mudança radical no mundo ocidental exigia uma nova ordem so- cial, dirigida por pessoas dispostas a buscar um espaço no mundo, a compe- tir por mercados e a responder de forma produtiva à ampliação do consumo. Pessoas cuja vida estivesse direcionada para a existência terrena e suas con- quistas, e não para a vida após a morte e para os valores transcendentais. Todas essas mudanças se anunciavam no Renascimento e se tornavam cada vez mais radicais à medida que se adentrava a Idade Moderna e a Revo- lução Industrial se tornava realidade. A nova concepção de lucro, elaborada e praticada pelo comerciante bur- guês renascentista, é a marca decisiva da ruptura com os valores e as idéias do mundo medieval. O lucro não é mais apenas o valor que se paga ao comerciante pelo trabalho realizado. O lucro expressa a premissa da acumulação, da ostenta- ção, da diferenciação individual e assim realiza a idéia de que tenho o direito de cobrar o máximo que uma pessoa pode pagar. A idéia e a realização do lucro não eram de forma alguma novas. Eram conhecidas desde a Antigüidade, a partir do momento em que surgiu o comércio usando o dinheiro como equivalente de troca e, em decorrência, a acumulação de riqueza. No entanto, a forma de pensar e praticar o lucro era distinta. Enquanto no Império Romano o comércio realiza- do com a prática de preços considerados abusivos era considerado ilegale pouco nobre, e a IgrejaCatólicaconsiderava pecaminosa a atividade lucrativa, no capitalis- mo, o lucro tornou-se a finalidade de qualquer atividade econômica. Vejamos esta situação hipotética: na Grécia, um armador vivia da com- pra, do transporte e da venda de azeitonas à Europa. O preço final do produto remunerava o comerciante por seu trabalho de intermediação. Nesse preço estavam embutidas a reposi- ção dos navios e dos escravos e a viagem de volta. Muitos comerciantes enriqueceram, porque agora também se cobra- va o máximo possível pela mercadoria. Essa forma de enten- o pensamento burguês representou uma ruptura com relação ao mundo medieval. 30 A SOCiOlOGIA PRÉ-CIENTíFICA der o lucro era nova na história e foi instaurada pela burguesia a partir do Renascimento. Se um comerciante pode auferir numa troca comercial o maior preço possível que a si- tuação permite - resultante da relação entre oferta e procu- ra e de outras condições pro- dutivas e de mercado -, então é preciso que a produção seja organizada de forma mais racional e em larga escala. a fato de a concorrência ser cada vez maior também exige mai- or racionalidade e previsão. A procura por novas técnicas mais eficientes se torna uma constante. Muitos prêmios são oferecidos aos inventores, e projetos como os de Leonardo da Vinci, que ficaram apenas no papel, passam a fazer enorme sucesso. Desen- volvem-se a ciência e a tecnologia, enquanto na filosofia cada vez mais se procuram as raizes das formas de pensar. a Renascimento introduziu e desenvolveu o antropocentrismo, a laicidade, o individualismo e o racionalismo. Com relação à vida social, pas- sou a concebê-Ia como uma realidade própria sobre a qual os homens atuam; percebeu-se também a existência de diferentes modelos - a República, a Monarquia - e passou-se a analisá-los e a defender um ou outro modelo. Conseguiu-se vislumbrar a oposição entre indivíduo e sociedade, entre von- tade individual e regras sociais. o.<! o- ::l oo~. a: A sociedade que emergiu do movimento renascentista exaltava a livre concorrência e a livre contratação. (Xilogravura de Jost Amman, século XVI) Ao pregar o fim do controle do Estado sobre a economia nacional, a Ilustração ajudou o desenvolvimento da indústria. (Londres em 1870, gravura de Gustave Doré) A ILUSTRAÇÃO E A SOCIEDADE CONTRATUAL --- 31 A Ilustração, movimento filosófico que sucedeu o Renascimento, deu um passo além. Concebeu novas idéias de vida social e entendeu a coletivida- de como um organismo próprio. Começou a discemir aspectos e áreas da vida social com diferentes características e necessidades - a agricultura, a indústria, a cidade, o campo. O conceito de nação, como forma de organiza- ção política pela qual as populações estabelecem relações intersocietárias, já se cristalizara na Ilustração. O nacionalismo emergente do Renascimento, identificado ainda com o monarca e preso ao sentimento de fidelidade e sujei- ção, dá lugar à noção de organismo representativo da coletividade, indepen- dentemente de quem ocupa, por certo tempo, os cargos disponíveis. O princípio de representatividade política, revelando um aprofun- damento no entendimento da vida social, assim como o aparecimento de teo- rias capazes de explicar a origem do valor das mercadorias e outros mecanis- mos sociais, mostram o grau de desenvolvimento do pensamento social. Já era possível identificar fenômenos sociais e concebê-los em sua natureza pró- pria diferenciada. O surgimento de conceitos, como Valor e Estado, revela a existência de uma metodologia e a emergência de uma nova forma de conhe- cer a realidade social. O Renascimento correspondeu a uma primeira fase da sistematização do pensamento burguês, na medida em que procurava trazer de volta à Euro- pa os valores laicos, o gosto pela vida e o racionalismo, e atribuía ao individuo valores pessoais que não provinham da sua origem. Embora ainda tivesse um certo caráter religioso, o Renascimento exal- tava anatureza e os prazeres da vida terrena, fossem o êxtase religioso ou o simples prazer dos sentidos, que se consegue junto à natureza. Nos séculos XVII e XVIII, entretanto, a burguesia avança na concep- ção de uma forma de pensar própria, capaz de transformar o conhecimento não só numa exaltação da vida e dos feitos de seus heróis, mas também num processo que frutificasse em termos de utilidade prática. Afinal, o de- senvolvimento industrial se anunciava em toda sua potencialidade; os em- preendimentos, quando bem dirigidos, prometiam lucros miraculosos. Por- tanto, era preciso preparar a sociedade para receber os resultados desse trabalho. Os próprios sábios deveriam se interessar em desenvolver conhe- cimentos de aplicação prática. A sociedade apresentava necessidades urgentes ao desenvolvimento científico: melhorar as condições de vida; ampliar a expectativa de sobrevi- vência humana a fim de engrossar as fileiras de consumidores e, principal- mente, de mão-de-obra disponível; mudar os hábitos sociais e formar uma mentalidade receptiva às inovações técnicas. A prática de elaboração dos pro- jetos científicos para o desenvolvimento da indústria passa a ser aplicada à sociedade, pois sem um planejamento racional dos meios de transporte ter- restres e marítimos, da distribuição e armazenamento dos produtos, da melhoria da infra-estrutura, todo o esforço produtivo estaria perdido. O pla- nejar e o projetar o futuro trouxeram consigo também o conceito de nação, correspondendo à extensão territorial onde a burguesia de determinado país teria total controle sobre o mercado. A nação deveria se submeter a uma or- 32 A SOCIOLOGIA PRÉ-CIENTíFICA ganização política que pudesse favorecer o desenvolvimento econômico e estimulá-lo. Dentro dessa nova organização política da sociedade deveria pri- vilegiar-se o indivíduo, principal motor do progresso econômico. Este deve- ria estar livre das amarras impostas até então pela sociedade feudal, pois, de posse de sua total liberdade de agir, mover-se e estabelecer-se, o indivíduo poderia promover o progresso econômico. Novos valores guiando a vida social para sua modernização, maior em- penho das pesquisas e do saber em conquistar avanços técnicos, melhora nas condições de vida, tudo isso somado levou a esse surto de idéias, conhe- cido pelo nome de Ilustração. Após um primeiro momento em que a existência de um poder central garantia a emergência e a organização dessa nova ordem social, o mercado exigia liberdade de expansão. As novas formas de pensar e agir aliavam-se à necessidade de a burguesia libertar-se das amarras estabelecidas pelas mo- narquias absolutas, que não permitiam a livre iniciativa, a liberdade de co- mércio e a livre concorrência de salários, preços e produtos. Assim, a Ilustração foi essencialmente pragmática e liberal, uma vez que a burguesia queria uma ordem econômica, política e social em que tives- se participação no poder e pudesse realizar seus negócios sem entraves. Podemos dizer que a burguesia já se sentia suficientemente forte e confi- ante em seus próprios objetivos de vida para dispensar a figura do rei como seu aliado contra os privilégios feudais, tal como sucedera durante a época mercantilista, em que o Estado nacional favoreceu uma política de acumulação de capital por meio de monopólios, fiscalização, manufaturas e colonialismo. Fortalecida, a burguesia propunha agora formas de governo baseadas na legiti- midade popular, até mesmo governos republicanos. Conclamava o povo a ade- rir à defesa da igualdade jurídica e do sufrágio universal. A filosofia social dos séculos XVII e XVIII o desenvolvimento do capitalismo estimulou a sistematização do pensamento sociológico. o pensamento da Ilustração, apoiado principalmente na contribuição dos jisiocratas (escola econômica da época), defendia a idéia de que a economia era regida por leis naturais de oferta e procura que tendiam a estabelecer, de manei- ra mais eficiente do que os decretos reais, o melhor preço, o melhor produto e o melhor contrato, pela livre concorrência. Além desse apreço pelo livre curso das relações econômicas, os fisiocratas, opondo-se ao uso ocioso que a nobreza fazia de suas propriedades agrárias, propunham melhor aproveitamento da agricultu- ra, atividade que consideravam a principal fonte de riqueza das nações. Segundo esse ponto de vista, as relações econômicas e sociais eram regidas por leis físicas e naturais que funcionariam de maneira racional, des- de que não prejudicadas pela intervenção do Estado absolutista. O controle das relações humanas surgia, portanto, da própria dinâmica da vida econômica e social, dotada de uma racionalidade intrínseca, cuja descoberta era a princi- pal meta dos estudos científicos. A ILUSTRAÇÃO E A SOCIEDADE CONTRATUAL 33 A racionalidade estava na origem natural e física das leis de organização da sociedade humana e na base da própria atividade humana e do conhecimen- to, tal como defendiam os pensadores franceses René Descartes e Denis Diderot. O racionalismo cartesiano - termo derivado de Cartesius, nome lati- no de Descartes - se expressava pela frase "penso, logo existo", na qual mos- trava que a razão era a essência do ser humano. Reconhecia-se no homem, portanto, a capacidade de pensar e escolher, de opinar e resolver sem que leis rígidas perturbassem sua conduta. No plano econômico, essa idéia se traduzia na ânsia por liberdade de ação, empreendi- mento e contratação. Traduzia-se ainda na concepção de que as relações entre os homens resultariam na livre contraposição de vontades, na liberdade contratual. No plano político, expressava-se no objetivo de livre escolha dos govemantes, segundo o ideal de um Estado representativo da vontade popular. Finalmente, no plano social, manifestava-se na noção de que as sociedades se baseavam em acordos mútuos entre os indivíduos que as compunham. Um dos pensadores que mais desenvolveu essa idéia de um pacto social originário foi Iean-Iacques Rousseau. Em sua obra Contrato social, Rousseau afirmava que a base da sociedade estava no interesse comum pela vida social, no consentimento unânime dos homens em renunciar as suas vontades particulares em favor de toda a comunidade. Para alicerçar suas idéias a respeito da legitimidade do Estado a serviço dos interesses comuns e dos direitos naturais do homem, Rousseau procu- rou traçar a trajetória da humanidade a partir do igualitarismo primitivo até a sociedade diferenciada. Para ele, a origem dessa diferenciação estava no apa- recimento da propriedade privada. Justamente por essa crítica à propriedade, distingue-se dos demais filósofos da Ilustração. como Diderot. Suas principais obras foram Emílio, Contrato social, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e Discurso sobre as ciências e as artes. Foi alvo de críticas severas e perseguições, mas na época da Revolução Francesa suas idéias foram intensamente divulgadas. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) Nascido em Genebra, filho de burgueses protestantes, Rousseau teve uma vida errante que o levou continuamente da Suíça à Fran- ça, à Itália e à Inglaterra. Foi aprendiz de gravador, secretário de nobres ilustres e até seminarista. Dedicou-se também ao dese- nho, à pintura e à música. Na França, foi contemporâneo de filósofos da Ilustração, Iohn Locke, pensador inglês, também defendeu a idéia de que a socie- dade resultava da livre associação entre indivíduos dotados de razão e vontade. Para Locke, essa contratação estabelecia, entre outras coisas, as formas de poder, as garantias de liberdade individual e o respeito à propriedade. Seus princípios deveriam ser redigidos sob a forma de uma constituição. Entre os filósofos da Ilustração, ganhava adeptos a idéia de que toda matéria tinha uma origem natural, não-divina, e que todo processo vital não 34 A SOCiOlOGIA PRÉ-CIENTíFICA era senão o movimento dessa matéria, obedecendo a leis naturais. Esses prin- cípios guiavam o conhecimento racional da sociedade, na busca das leis na- turais daorganização social. Podemos afirmar que a filosofia social da Ilustração levaria à desco- berta das bases materiais das relações sociais. Percebe-se claramente que os filósofos dessa época já desenvolviam a consciência da diferença entre indivíduo e coletividade. Já percebiam que esta possuía regras próprias que regulavam a vida coletiva, como as regras naturais regiam o surgimento, o desenvolvimento e as relações entre as espécies. Mas, presos ainda à idéia de indivíduos, esses fi- lósofos entendiam a vida coletiva como a fusão de individualidades. O comportamento social de- correria da manifestação explícita das vontades individuais. A filosofia social da Ilustração levou à descoberta das bases materiais das relações sociais. cussão assim como sua contribuição ao problema do conhecimento, expressa na obra Ensaio sobre o entendimento humano, na qual repudia a proposição cartesiana de que o homem possua idéias inatas e defende o conhecimento como resultado da experiência, da percepção e da sensibilidade. Publicou, ainda, Epístola sobre a tolerância, Alguns pensamentos sobre educação e Raciona- lida de do cristianismo. John Locke (1632-1704) Era inglês de Wrington. Formado em Oxford, ingressou na carreira diplomática. Durante o período em que residiu na França, tomou contato com o método cartesiano. Sofreu perseguições políticas na Inglaterra que o obrigaram a se refugiar na Holanda. Em sua obra Dois tratados sobre o governo civil, defende o liberalismo político, os direitos naturais do homem e da propriedade privada. Suas idéias políticas tiveram grande reper- Adam Smith: O nascimento da ciência econômica Foi Adam Smith, considerado fundador da ciência econômica, quem demonstrou que a análise científica podia ir além do que era expressamente manifesto nas vontades individuais. Em sua análise sobre a riqueza das na- ções descobriu no trabalho, ou seja, na produtividade, a grande fonte de ri- queza. Não era somente a agricultura, como queriam os fisiocratas, a princi- pal fonte de bens; mas o trabalho capaz de transformar matéria bruta em produtos com valor de mercado. Veremos adiante como essa idéia será reto- mada e reelaborada no século XIXpor Karl Marx. Adam Smith revelara a importância do trabalho ao pensar a sociedade não como um conjunto abstrato de indivíduos dotados de vontade e liberda- de, tal como fizeram Rousseau e Locke, mas ao aprender e perceber a natu- reza própria da vida social segundo a qual o comportamento social obedece a regras diferentes daquelas que regem a ação individual. A coletividade deixa- va de ser a soma dos indivíduos que a compõem. A Revolução Industrial esta- va em pleno andamento e seus frutos se anunciavam. A ILUSTRAÇÃO E A SOCIEDADE CONTRATUAL 35 Nasceu na Escócia. Foi professor da Universidade de Glasgow. É considerado o fundador da ciência econômica. Sua prin- cipal obra foi Investigação sobre a natureza e as dwsas da riqueza das nações (A riqueza das nações). Desenvolveu idéias a respeito da divisão do trabalho, da função da moeda e da ação dos bancos na eco- nomia. Continuou seus estudos no livro Teoria dos sentimentos morais, no qual afirma que a vida social humana está fun- dada em sentimentos de benevolência e simpatia. Foi o grande defensor do libera- lismo econômico. Adam Smith (1723-1790) Legitimidade e liberalismo As teorias sociais da Ilustração no século XVIII foram ainda o início do pensar científico sobre a sociedade. Tiveram o poder de orientar a ação política e lançar as bases do que viria a ser o Estado capitalista, desenvol- vido no século XIX, constitucional e democrático. Lançaram também as bases para o movimento político pela legitimação do poder, fosse de ca- ráter monárquico, como na Revolução Gloriosa da Inglaterra, fosse de caráter republicano, como na Revolução Francesa, ou ainda do tipo ditato- rial, como no império napoleônico. Tão importante quanto seu valor como forma de entendimento da vida social e política foi sua repercussão práti- ca na sociedade. A filosofia social desse período teve, em relação à renascentista, a van- tagem de não constituir apenas uma crítica social baseada no que a socieda- de poderia idealmente vir a ser, mas de criar projetos concretos de realização política para a sociedade burguesa emergente. A idéia de Estado como uma entidade cuja legitimidade se baseia na pretensa representatividade da sociedade é um avanço em relação à idéia de monarquia absoluta. O Estado já não é a pessoa que governa, mas uma insti- tuição abstrata com relações precisas com a coletividade. Além da circulação de leis e de riquezas, o Estado criava o princípio da circulação de poder. O confronto de interesses também está subjacente às idéias propostas pelos políticos iluministas. As idéias de Locke e de Montesquieu, outro importante pensador da Ilustração, foram a base da Constituição norte-americana de 1787. Ambos pregaram a divisão do Estado em três poderes: legislativo, incumbido da elaboração e da discussão das leis; executivo, encarregado da execução das leis, tendo em vista a proteção dos direitos naturais à liberdade, à igualdade e à propriedade; e judiciário, responsável pela fiscalização à observância das leis que asseguravam os direitos individuais e seus limites. Essa divi- são estabelecia a distribuição das tarefas governamentais e a mútua fiscali- zação entre os poderes do Estado. Locke defendia, ainda, a idéia de que a origem do poder não estava nos privilégios da tradição, da herança ou da concessão divina, mas no contrato expresso pela livre manifestação das von- tades individuais. 36 A SOCiOlOGIA PRÉ-CIENTíFICA A legislação norte-americana, instituindo a divisão do Estado nos três poderes e estabelecendo mecanismos para garantir a eleição legítima dos governantes e os direitos do cidadão, pôs em prática os ideais políticos libe- rais e democráticos modernos. Os Estados Unidos da América constituíram a primeira república liberal-democrática burguesa. 6tividades 1. "Uma vez que homem nenhum possui uma autoridade natural sobre seu semelhante, e que a força não produz nenhum direito, restam, pois, as convenções como base de toda autoridade legítima entre os homens." (p. 25) Nesse trecho de Rousseau, tirado do Contrato social, o autor: a) considera natural a autoridade de um homem sobre outro? Por quê? b) identifica alguma base legítima para essa autoridade? Qual? Justifique. 2. "Como a natureza dá a cada homem um poder absoluto sobre todos os seus membros, dá o pacto social ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe, como eu disse, o nome de soberania." (p. 42) A partir do trecho citado, o que é soberania, para Rousseau? 3. Leia cuidadosamente o capítulo e extraia cinco conceitos que, na sua opinião, melhor caracteri- zam a Ilustração. 4. O que o homem da Ilustração esperava da ciência? E você, o que espera da ciência hoje? 5. Em que termos se expressou o liberalismo da Ilustração nas questões econômicas? 6. Nesse capítulo procuramos explicar o liberalismo econômico. Hoje vivemos um período de reflorescimento desses princípios, que chamamos de neoliberalismo. Faça uma pesquisa nos jor- nais procurando notícias a respeito. 7. Por que Adam Smith pode ser considerado o fundador da ciência econômica? 8. Qual era a fonte de riqueza de uma nação para Adam Smith? Por quê? Os trechos a seguir foram extraídos do Segundo tratado sobre o governo civil, de Locke. Leia-os com atenção e responda às questões 9 a 11. "O grande objetivo da entrada do homem em sociedade, consistindo na fruição da propriedade em paz e segurança, e sendo o grande instrumento e meio disto as leis estabelecidas nessa sociedade, a primeira lei positiva e fundamental de todas as comunidades consiste em estabelecer o poder legislativo." (p. 86) A ILUSTRAÇÃO E A SOCIEDADE CONTRATUAL 37 "Todavia, como as leis elaboradas imediatamente e em prazo curto têm força constante e duradoura, precisando para isso de perpétua execução e assistência, torna-senecessária a existência de um poder permanente que acompanhe a exe- cução das leis que se elaboram e ficam em vigor." (p. 91) 'Ern'todõs os casos, enquanto subsiste o governo, o legislativo é o poder supe- rior; o que deve dar leis a outrem deve necessariamente ser-lhe superior." (p. 94) 9. Como Locke justifica a criação do poder legislativo e do poder executivo? 10. Qual deve ser, segundo Locke, a relação entre os poderes legislativo e executivo? 11. Para Locke, os poderes executivo e legislativo podem ser exercidos ao mesmo tempo pelas mes- mas pessoas? Por quê? Aplicação de conceitos ••••••••••••••••••••••• 1. Vídeo: Danton, o processo da revolução (França, 1982. Direção de Andrej Wajda. Duração: 136 min.) - Essa obra retrata a segunda fase da Revolução Francesa, o período do Terror, marca o debate entre os jacobinos Danton e Robespierre, este fortemente comprometido com as razões do Estado. Procure perceber como na Revolução Francesa é criado o Estado burguês proposto pela Ilustração. Tema para debate ••••••••..••••••••••••••••••• A racionalização do pensamento burguês recomeça com a segunda época, isto é, na manufatura relativamente desenvolvida. Só então a classe burguesa se mostra como um fato social firmemente estabelecido, isto é, só então a posição social dos indivíduos adota formas relativamente estáveis, e a inquietude da as- censão e da decadência, do progresso e do retrocesso, não constitui mais o as- pecto predominante na imagem da sociedade. Leo Kofler, Contribución a Ia historia de Ia sociedad burguesa, p. 283. Segundo o autor, quais as condições sociais e econômicas que favorecem o desenvolvimento do pensamento burguês do século XVII? leitura Complementar As duas faces do liberalismo Se, portanto, queremos compreender e apreciar o liberalismo, não temos que escolher entre as duas interpretações, não temos que optar entre o aspecto ideológico e a abordagem sociológica. Ambos concorrem para definir a originali- dade do liberalismo e para revelar o que constitui um de seus traços essenciais, 38 A SOCIOLOGIA PRÉ-CIENTíFICA essa ambigüidade que faz com que o liberalismo tenha podido ser, alternativa- mente, revolucionário e conservador, subversivo e conformista. Os mesmos ho- mens passarão da oposição para o poder; os mesmos partidos passarão do combate ao regime à defesa das instituições. Agindo assim, eles nada mais farão do que revelar sucessivamente dois aspectos complementares dessa mesma doutrina, ambígua por si mesma, que rejeita o Antigo Regime e que não quer a democracia integral, que se situa a meio caminho entre esses dois extremos e cuja melhor definição é, sem dúvida, o apelido dado à Monarquia de Julho: "o justo meio". É porque o liberalismo é um justo meio que, visto da direita, parece revolucionário e, visto da esquerda, parece conservador. Ele travou, sucessivamente, dois combates, em duas frentes diferentes: primeiro, contra a conservação, o absolutismo; depois, contra o impulso das forças sociais, de doutrinas políticas mais avançadas que ele próprio: o radicalismo, a demo- cracia integral, o socialismo. É a conjunção do ideal e da realidade, a convergência de aspirações intelec- tuais e sentimentais, mas também de interesses bem palpáveis, que constituíram a força do movimento liberal, entre 1815 e 1840. Reduzido a uma filosofia política, ele sem dúvida não teria mobilizado grandes batalhões; confundido com a defesa pura e simples de interesses, ele não teria suscitado adesões desinteressadas, que foram até o sacrifício supremo. O liberalismo transformou a Europa tal qual era em 1815, ora graças às re- formas - fazendo uso da evolução progressiva, sem violência -, ora lançando mão da evolução por meio da mudança revolucionária. Entre esses dois métodos, o liberalismo, em sua doutrina, não encontra razão para preferir um ao outro. Se ele pode evitar a revolução, alegra-se com isso. Na verdade isso aconteceu muito raramente. Talvez somente na Inglaterra, nos Países Baixos e nos países escandinavos é que o liberalismo transformou pouco a pouco o regime e a sociedade por meio de reformas. Em todos os outros lugares, acossado pela resistência obstinada dos defensores da ordem estabelecida, que recusava qualquer concessão, o liberalis- mo recorreu ao método revolucionário. É a atitude de Carlos X, em 1830, e a pro- mulgação de ordenanças que violavam o pacto de 1814, que levam os liberais a fazer a revolução para derrubar a dinastia. É assim também que a política obsti- nada de Metternich levará a Áustria, em 1848, à revolução. Renê Remand, o século XIX; 1818-1914, p. 34-35. 3 A crise das explicações religiosase o triunfo da ciência Vários aspectos da filosofia da Ilustração prepararam o surgimento das ciências sociais no século XIX. O primeiro deles foi a sistematização do pen- samento científico. Os efeitos de novos inventos, como o pára-raios e as vaci- nas, o desenvolvimento da mecânica, da química e da farmácia, eram ampla- mente verificáveis e pareciam coroar de êxitos as atividades científicas. Claro está que a sociedade européia da época não se dava conta das nefastas conse- qüências que a Revolução Industrial do século XVIII traria para o mundo tra- dicional agrário e manufatureiro. Aos olhos dos homens da época, eram vitoriosas as conquistas do conhecimento humano, no sentido de abrir caminho para o controle sobre as leis da natureza. As idéias de progresso, racionalismo e cientificismo exerceram todo um encanto sobre a mentalidade da épo- ca. A vida parecia submeter-se aos ditames do homem esclarecido. Preparava-se o caminho para o amplo pro- gresso científico que aflorou no final do século XIX. •••••••••••••••••••••••••••• , Introdução: o milagre da ciência Se a ciência tinha sucesso na explicação da natureza, poderia também explicar a sociedade, como elemento da natureza. o.'"c- :oooo:n, w"'JL---- Emoposição à religiosidade medieval, a ciência na era modema se afirmava como sinônimo de verdade e progresso. (Tela elaborada para a Grande Exposição de 1851 na Grã-Bretanha) 40 A SOCIOLOGIA PRÉ-CIENTíFICA Se esse pensamento racional e científico parecia válido para explicar a natu- reza, intervir sobre ela e transformá-Ia, ele poderia também explicar a socie- dade vista como um elemento da natureza. E a sociedade, da mesma forma que a natureza, poderia ser conhecida e transformada. As questões de método o filósofo da Ilustração, além de preocupar-se com a descoberta das leis que regiam o próprio conhecimento, queria conhecer a natureza e inter- vir sobre ela. Dessa preocupação provieram as discussões em torno do méto- do científico. A indução, método que concebia o conhecimento como resultado da experimentação contínua e do aprofundamento da manipulação empírica, havia sido desenvolvida por Bacon desde o fim do Renascimento. Em contraposição, Descartes defendia a validade do método dedutivo, ou seja, aquele que possibilitava descobertas pelo encadeamento lógico de hipóteses elaboradas exclusivamente a partir da razão. A ciência se fundava, portanto, como um conjunto de idéias que diziam respeito à natureza dos fatos e aos métodos para compreendê-los, Por isso, as primeiras questões que os sociólogos do século XIX tentarão responder serão relativas à definição dos fatos sociais e ao método de investigação. Tanto o método indutivo de Bacon como o dedutivo de Descartes serão traduzidos em procedimentos válidos para as pesquisas sobre a natureza da sociedade. o anticlericalismo Um aspecto de especial importância no pensamento desse período, so- bretudo aquele de origem francesa, foi o anticlericalismo. Entre os filósofos e os literatos que se insurgiram contra a religião, em particular contra a Igreja Católica, destaca-se Voltaire, que, não se atendo somente à propagação de idéias anticlericais, também moveu processos judiciais contra a Igreja Católi- ca, a fim de rever antigas condenações da Inquisição. Voltaire chegou a com- provar a injustiça de alguns veredictos eclesiais e a obter indenizações para as famílias dos condenados.Dessa forma, a Igreja foi questionada como fonte de poder secular, po- lítico e econômico, na medida em que se imiscuía em questões civis e de Estado. Tal questionamento levou a uma descrença na doutrina e na infalibi- lidade eclesiásticas, ass,im como ao repúdio à secular atuação do clero. Esse processo, denO'f!linado por alguns historiadores "laicização da so- ciedade", por outros, "descristianização", atingiu seu apogeu no século XIX. Nesse período desenvolveram-se filosofias materialistas e o próprio estudo da religião como instituição social, em suas origens e funções. A Igreja como objeto de pesquisa A existência da Igreja como instituição social foi discutida por alguns pensadores e sociólogos do século XIX. Émile Durkheim a considerava um A CRISE DAS EXPLICAÇÕES RELIGIOSAS E O TRIUNFO DA CIÊNCIA 41 meio de integrar os homens em torno de idéias comuns. Karl Marx a julgava responsável por uma falsa imagem dos problemas humanos, ligada à acomo- dação e à submissão pregadas por sua doutrina. Defendida por uns, repudiada por outros, a Igreja perdia, de qualquer maneira, o importante papel de explicar o mundo dos homens; passava, ao contrário, a ser explicada por eles. A religião começou a ser encarada como um dos aspectos da cultura humana, como algo criado pelos homens com finalidades práticas relativas à vida terrena, e não apenas à vida futura. As- sim, a Igreja e sua doutrina sofreram um processo de dessacralização, em que se eliminou muito de seu aspecto sobrenatural e transcendente. Toda religião - em especial o catolicismo - era agora vista de maneira favorá- velou desfavorável, conforme sua inserção na vida concreta e material dos homens, como promotora de valores sociais importantes para a orientação da conduta humana. Na filosofia, grandes pensadores sistematizaram o pen- samento laico e anticlerical. Feuerbach, filósofo alemão, atacou a concep- ção segundo a qual o homem havia sido criado por Deus, invertendo a situ- ação ao afirmar que o homem criara Deus à sua imagem e semelhança. Nietzsche chega a anunciar a morte de Deus e a necessidade de o homem assumir a plena responsabilidade sobre sua existência no mundo. A nova maneira de encarar a doutrina religiosa auxiliou o desenvolvimento das ciências humanas, em particular das ciências sociais, na medida em que a pró- pria sociedade perdeu a sacralidade, isto é, deixou de ser vista como obra de Deus. Para o pensamento cientificista do século XIX,são os homens que criam os deuses e não o contrário. A vida humana em sociedade deixa de ser mero estágio para a vida após a morte e passa agora a buscar explicações para a existência das crenças religiosas na própria sociedade. o pensamento laico-científico permitiu pensar a sociedade como obra humana e não divina. A sacralização da ciência A sociologia se desenvolveu no século XIX quando a racionalidade das ciências naturais e de seu método havia obtido o reconhecimento necessário para substituir a religião na explicação da origem, do desenvolvimento e da finalidade do mundo. Nesse momento, a ciência, com sua possibilidade de desvendar as leis naturais do mundo físico e social, por meio de procedimentos adequados e controlados, havia conquistado parte da sacralidade que antes pertencia às explicações religiosas: a de descobrir e apontar aos homens o caminho em direção à verdade. A ciência já não parecia mais uma forma particular de saber, mas a única capaz de explicar a vida, abolir e suplantar as crenças religiosas e até mesmo as discussões éticas. Supunha-se que, utilizando-se adequadamente os méto- dos de investigação, a verdade se descortinaria diante dos cientistas - os novos "magos" da civilização -, quaisquer que fossem suas opiniões pes- soais, seus valores sobre o bem e o mal, o certo e o errado. 42 A SOCIOLOGIA PRÉ-ClENTíFICA A ciência mostrava sua capacidade de desvendar o mundo. Com a mesma proposta de isenção de valores com que se descobriria a lei da gravitação dos corpos celestes no universo, julgava-se possível desco- brir as leis que regulavam as relações entre os homens na sociedade, leis naturais que existiriam independentemente do credo, da opinião e do julga- mento humano. O poder do método científico assim se assemelhava ao po- der das antigas práticas mágicas: bem usado, revelaria ao homem a essência da vida e suas formas de controle. Toda essa nova mentalidade, reforçando a crença na materialidade da vida e no poder da ciência, orientou a formação da primeira escola científica do pensamento sociológico, o positioismo, que estudaremos no próximo capítulo. ~tividades 1. De que maneira se desenvolveu a credibilidade no pensamento científico? Ouais os fatores sociais que contribuíram para esse desenvolvimento? 2. É de Francis Bacon a frase: "A melhor demonstração é, de longe, a experiência, desde que se atenha rigorosamente ao experimento". Procure encontrar nessa afirmação os princípios do pen- samento desse filósofo expostos neste capítulo. 3. René Descartes afirmou em Discurso do método: "Porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar". De que maneira essa frase representa sua postura frentê ao conhecimento? 4. Neste capítulo procuramos explicar as diferenças entre dois métodos de conhecimento - o dedu- tivo e o indutivo -, um baseado na lógica e o outro na experiência. Dê dois exemplos de pesqui- sas nas quais você perceba a aplicação dessas metodologias. 5. Por que, na época, sob o aspecto filosófico, o estudo científico era uma negação da religião? 6. O que significa laicização da sociedade? A CRISE DAS EXPLICAÇÕES RELIGIOSAS E O TRIUNFO DA CIÊNCIA 43 7. Qual a primeira escola de pensamento sociológico científico? 8. Por que podemos dizer que houve uma sacralização da ciência? 9. No que a sacralização da ciência favoreceu o surgimento da sociologia? 10. Em que sentido o cientista pode ser identificado como o novo "mago" da civilização? I Aplicação de conceitos •..•••••••••••••••••••••• 1. Hoje em dia podemos observar na propaganda outra forma contemporânea de sacra- lização da ciência, por exemplo, quando anunciam poderes "mágicos" dos remédios - "Tomou Doril, a dor sumiu". Em grupo, faça uma pesquisa nos jornais e periódicos buscando exemplos dessa atitude. 2. Vídeo: Frankenstein (EUA, 1931. Direção de James Whale. Baseado no romance de Mary Shelley. Duração: 71 min.) - Cientista, no século XIX, cria um homem a partir da união de partes de diversos cadáveres, dando-lhe vida. Crítica à ciência e sua pretensão divina. Discuta a crítica que o filme apresenta ao poder da ciência. Temas para debate ••••••••••••••••••••••••••• 1 Seguiu-se, com toda intensidade, uma luta intelectual mas também políti- ca, cujo preço foi pago pelos jesuítas, atacados pela frente antiescolástica, varia- da, embora sob uma liderança relativa do Oratório. Simples luta de facções, nes- te caso? Mero antijesuitismo? Estamos certos de que não. Antiescolasticismo, antijesuitismo não representam senão uma transformação bem mais profunda então em marcha: a secularização política, o racionalismo imanentista no plano filosófico, o individualismo em todos os níveis do real. .. Um outro momento políti- co e uma outra perspectiva ideológica forçaram a sua revisão, levando de roldão aquilo que se identificava com as antigas formas de pensamento e com os inte- resses criados à sua sombra ... O conflito era entre ciência e religião, entre duas visões completamente distintas do mundo, não se resolvendo apenas pela assi- milação do novo ao velho, na medida em que cada um deles partia de premissas irredutíveis uma à outra. Francisco José Calazans Falcon, A época pombalina, p. 342. 1. Qual é a transformação profunda no modo de pensar subjacente à luta contra os jesuítas no século XIX? 2. O que se entende, pelo texto, por secularização? 3. Qual é a oposição básica, segundo o autor, entre pensamento religioso e pensamento científico? 44 A SOCIOLOGIA PRÉ-CIENTíFICA 2 A medicina antesde 1700 o homem já estava sabendo quais as plantas que serviam para alimentar e curar. As doenças eram consideradas artimanhas do demônio ou castigo de Deus ofendido que disparava setas, pedras e vermes para atingir o corpo do doente. O tratamento aplicado em caso de loucura consistia em atrair a alma para dentro do corpo do qual tinha fugido, ou exorcizar o demônio do interior do mesmo. Faziam um buraco na cabeça da vítima, viravam-na de cabeça para baixo e punham-se a sacudi-Ia. Este método antefreudiano até hoje é praticado em certos lugares da Argélia e Melanésia, depois de ter sido usado em tempos remotos tanto na França quanto na Inglaterra. A magia e a religião faziam parte da medicina primitiva. Os chás de folhas de raízes eram administrados em meio a danças, bruxarias, care- tas e outros truques. Como prevenção de doenças era usado o talismã. Com exce- ção dos ossos quebrados ou feridas abertas, a medicina primitiva tratava tanto a alma quanto o corpo do paciente. Sônia Uns, Almanaque, p. 36. Analise o texto com base no que foi discutido neste capítulo. leitura Complementar [A sacralização da ciência] A ciência representa sempre a forma mais elevada da captação da realidade pela mente humana, que cada época se mostra capaz de produzir. Mesmo nas con- dições mais primitivas de cultura houve ciência, se aceitarmos que em tais situações é possível distinguir um conhecimento vulgar, cotidiano, não dirigido à interpretação que pretendia ser racional da realidade, de outro, que se presume derivar da aplica- ção de métodos investigatórios e interpretativos, ainda quando sejam aqueles a que, de nosso ponto de vista atual, atribuímos o caráter de mágicos. A historicidade da ciência consiste na historicidade dos métodos de que se utiliza e na do exame e compreensão do próprio pensamento. Os métodos foram se aperfeiçoando ao longo do tempo, até chegarem às modalidades de análise atual da capacidade de reflexão subjetiva e às técnicas instrumentais da pesquisa experimental e descoberta das regularidades quantitativas entre os fenômenos, que permitirão o emprego, em es- cala cada vez mais ampla, dos raciocínios matemáticos. A historicidade essencial do método é o conceito fundamental que nos deve guiar na compreensão da ciência e nos servir de regra para discernir em cada etapa civilizatória o que era aí produto do saber empírico, popular, tradicional, não científico, resultado de crenças injus- tificadas ou opiniões individuais, em contraposição ao que, para essa fase histórica, já possuía o caráter de ciência. Assim, nas civilizações primitivas a interpretação mágica da realidade, patrimônio de restrito círculo sacerdotal, que a detinha, quase sempre em forma de saber esotérico, era a manifestação, então a única possível, da ciência nas condições históricas vigentes. Tanto assim era que seus detentores mereciam socialmente o reconhecimento de sábios. Pouco importa que de nossa perspectiva atual apareçam ignorantes do que para nós são agora as verdadeiras funcionalidades da natureza. Álvaro Vieira Pinto, Ciência e existência, p. 92.
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