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DOSSIÊ INQUISIÇÃO

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DOSSIE 
A Inquisirdo em Portugal e nas co16nias pode ter acabado oficial-
mente em 1821, mas, pelo menos no Brasil, suas chamas conti-
nuam acesas, ainda que discretamente. Em breve, a Camara dos 
Deputados teni a chance de reaviVli-Ias. Nada de perseguiroes, 
torturas ou bruxaria: 0 unico instrumento necessario e um projeto 
de reJorma do C6digo de Processo Penal, ja aprovado pelo Senado. 
Como em uma viagem no tempo, 0 projeto propoe a criardo de um 
modelo de juiz que surgiu nos prim6rdios da Inquisirdo espanhola 
e nunca mais JOi utilizado. Diferentemente do sistema atual, esse 
juiz passa a poder apresentar provas a favor do reu. 
D chamado "juiz-deJensor" era importante para neutralizar 
um depoimento de acusardo que tivesse 0 objetivo de prejudicar 
o reu. E1e surgiu nas Instruroes do primeiro inquisidor-geral es-
panhol, Tomas de Torquemada, em 1484. Mas, e hoje? Qual seria 
o beneficio desse tipo de juiz para a ]ustira brasileira? "Ndo sei 
qual 0 lado bom, pois esse juiz e tendencioso, ja nasce tendo que 
o gorro usado pelos 
reus - representado 
no filme "Fantasmas 
de Goya" (2006) -
e apontado como 
a origem da expres-
sao popular "a cara-
pu~a serviu". 
proteger 0 reu. Mas se voce for acusado, vai prefe-
rir urn juiz que fique do seu lado ou urn juiz isen-
to? Dai da para se ter uma ideia de quem propos 
isso", ironiza Mauro Fonseca Andrade, promotor 
de Justi<;a do Rio Grande do SuI e autor de Inquisi-
~ao espanhola e seu processo criminal - As Instru~i5es de 
Torquemada e Valdes (2006). 
o projeto ainda nao tern data para ser analisado 
na Camara, mas ja vern sendo criticado por varios 
juristas e organizac;6es. "0 sistema judiciario bra-
sileiro nao tern juizes suficientes; essa ideia esta 
fora da realidade. Alem disso, 0 juiz tern que ser 
imparcial; essa mudan<;a vai contra os principios 
da democracia brasileira", protesta Gabriel Wedy, 
presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros. 
Talvez a criac;ao da figura do juiz-defensor 
nunca seja aprovada. De qualquer modo, ela 
seria so mais lenha na fogueira, pois no Brasil 
nao faltam heranc;as da Inquisic;ao - e a Justic;a 
concentra boa parte delas. Dois exemplos positi-
vos sao a concessao de defensor publico a quem 
nao tern dinheiro para pagar urn advogado e a 
figura do Ministerio PUblico, criada na esfera 
inquisitorial, mas ainda no fim da Idade Media. 
Naquela epoca, a Igreja e a Coroa tinham uma 
especie de funcionario chamado "fiscal", encarre-
gada de apresentar acusac;6es a Inquisic;ao. "Isso 
acontecia justamente porque os particulares nao 
tinham intenc;ao ou entao tinham medo de acu-
sar quem cometia algum crime ou praticava here-
sia" , explica 0 promotor Andrade. Ainda hoje na 
Espanha, 0 nome do orgao equivalente ao nosso 
Ministerio Publico e Ministerio Fiscal. 
o segredo de processo e outra heranc;:a desse 
periodo. Na Idade Media, ele era uma forma de os 
inquisidores manterem maior controle sobre as 
ac;6es. Antes disso, os julgamentos eram publicos e 
chegavam a ter a presenc;a de ate seis mil pessoas. 
Essa participac;ao permitia uma especie de fiscaliza-
c;ao popular. Mesmo com 0 fim dessa plateia, os acu-
sados nao ficaram totalmente desamparados: surgiu 
na mesma epoca 0 recurso em beneficio do reu. Em 
alguns paises, passou a ser possivel recorrer das 
decis6es impostas pelo tribunal. A francesa Joana 
D'Arc (1412-1431), por exemplo, so po de apelar ao 
papa por causa deste recurso. Ele nao foi tao eficaz 
quanta 0 esperado, mas retardou sua morte. 
Esses e outros resquicios da Inquisic;ao se fixa-
ram no processo penal de forma que nem 0 discur-
so liberal no Imperio nem a influencia americana 
na Constituic;ao republicana de 1891 conseguiram 
elimina-los. "Isso se intensificou com 0 Codigo de 
Processo Penal de 1941, elaborado no clima do 
Estado Novo e vigente ate hoje. 0 codigo se baseia 
na hipertrofia do poder e na presunc;:ao de culpa do 
acusado. Ele se choca com a Constituic;ao de 1988, 
cujos pressupostos se encaminham para urn mode-
10 acusatorio que privilegia tres entes separados: 
a promotoria, a defesa e 0 juiz, em lugar da con-
centrac;:ao, tipica do modelo inquisitorial", afirma 
Arno Wehling, presidente do Instituto Historico e 
Geografico Brasileiro (IHGB) e autor de Direito e Jus-
ti~a no Brasil Colonial - 0 Tribunal da Rela~ao do Rio de 
Janeiro (1 751-1808) (2004), com Maria Jose Wehling. 
Mas as heranc;:as inquisitoriais nao estao so na 
Justic;:a. E possivel percebe-las antes dessa fase , 
- - --------- ---------- -
-~\o~s.e Inouisicoo ~nnrtn~~m ' .. 
:r:::ante a investiga<;:ao feita pela policia. "0 inque- as crian<;:as de origemjudaica - habituadas a venerar 
policial e unilateral, nao admite a contradi- 0 astro que dava inicio ao ritual- apontassem para a 
-= _ 0 suspeito ja e visto como culpado e exposto estrela e se denunciassem a Inquisi<;:ao. 
o tal, mesmo que ainda possa ser inocentado 
= -:eriormente pela Justi<;:a. Primeiro descobrem 
_ snspeito e depois extraem dele os fatos. Essa 
-- ralidade e fruto da Inquisi<;:ao", afirma Lana 
~e, historiadora da Uenf. Segundo ela, 0 criterio 
:;c:::a a escolha dos suspeitos tambem parte de es-
::::.::e6tipos, como no perfodo inquisitorial. "Quase 
- ~em suspeita de uma pessoa bem-vestida, mas 
daquelas com a chamada 'cara de ladrao'. Em 
==-al pobres e moradores de favelas", diz. 
.Por mais 6bvias que sejam para especialistas, 
heran<;:as inquisitoriais na Justi<;:a enos pro-
::zOmentos policiais dificilmente sao percebidas 
:;e2 popula<;:ao. Uma das maneiras mais simples de 
~"-<1JlJ..uOS os resquicios do Santo Oficio nos dias de 
- -e talvez seja por meio de express6es populares, 
o "a carapu<;:a serviu". Ha quem garanta que a 
-<Tem esta no ritual que obrigava os reus da In-
-=-~<;:ao a colocar urn gorro canieo na cabe<;:a, assu-
~do a culpa. E quem nunca "ficou aver navios"? 
A lista de mitos e express6es conhecidos ate 
hoje e longa, e inclui itens tambem pejorativos, 
como a palavra "judiar". Usada na maioria das 
vezes por pessoas que nem fazem ideia de sua ori-
gem, ela aparece no Dicionario Houaiss como "ato 
de judiar, de fazer alguem alvo de escarnio ou de 
maus-tratos; judiaria". Exatamente 0 que aconte-
cia com os cristaos-novos de origem judaica, os 
mais perseguidos pela Inquisi<;:ao portuguesa. 
Apesar de ainda restarem hoje express6es nega-
tivas, piadas sobre judeus e algumas manifesta<;:6es 
de racismo isoladas, nao se pode dizer que 0 povo 
brasileiro e antissemita. "Ha algumas pessoas que 
tern antipatia pelos judeus, mas nao sabem 0 por-
que. Ate a Igreja, que manteve a antipatia por urn 
tempo, ja pediu perdao pela Inquisi<;:ao", lembra 
Anita Novinsky, presidente e fundadora do Labo-
rat6rio de Estudos sobre a Intolerancia da USP. Se-
gundo ela, apesar de ter sido uma "institui<;:ao de 
horror", a a<;:ao inquisitorial teve outros desdobra-
-=~ expressao teria surgido em Portugal, quando mentos: "Ela fez com que varios cerebros ilustres 
- judeus se preparavam para deixar 0 reino na 
-";:ra rnarcada por D. Manuel, ainda no seculo XV. 
~ 0 nao passava de uma farsa montada pelo rei, 
-=-~ nao queria que eles partissem. Resultado: todos 
- am convertidos a for<;:a ao catolicismo, e os na-
que os levariam embora nunca apareceram. 
Urn exemplo que mostra bern 0 clima de per-
~<;:ao da epoca e 0 ditado "mesa de mineiro 
gaveta para esconder a comida quando chega 
--=_ -ta". Facilmente relacionado a sovinice, pode 
:E:" uma origem bern diferente, ja que os cristaos-
os eram obrigados a esconder comidas tipica-
- ente judaicas para nao serem identificados por 
fugissem para 0 Brasil. Sem contar os primeiros 
plantadores de a<;:licar, os primeiros mineradores. 
Esse foi seu maior legado". 
Entre tantas heran<;:as, a lista parece infinita. E 
atinge praticamente todos os campos da cultura 
popular,incluindo a rejei<;:ao de muitos nordestinos 
a carne de porco - denunciando ai urn judaismo 
clandestino - e ate a tradicional festa de Sao Joao. 
Pois e, quem pula as fogueiras juninas nem imagina 
que elas estao associadas as chamas da Inquisi<;:ao. 
Mas ambas foram tentativas da Igreja de desfazer a 
imagem negativa das fogueiras acesas nas festas pa-
gas rVer RHBN n045]. Consideradas desde entao "fogos 
_ - 'veis delatores. "Quando chegava uma visita, eclesiasticos", as fogueiras da Inquisi<;:ao nunca che-
~e muitas vezes era urn cristao-velho, dizem que garam a arder aqui no Brasil. No entanto, sua versao 
~ escondiam a cornida kasher nas gavetas e tira-
G:ll, por exemplo, carne de porco, que e proibida 
;: judeus. Isto e 0 que se conta, mas nao se tern 
mais inocente continua a fazer muito sucesso no 
pais e esta, junto com as demais heran<;:as na cultura 
e na Justi<;:a, mantendo as chamas da Inquisi<;:ao ace-
sas, discretamente, por mais -de 200 anos. H "'*-
Saiba Mais 
AN DRADE, Mauro 
Fonseca. Inquisi<;oo 
Espanhola e seu Processo 
Criminal - As Instru<;oes 
de Torquemada e Valdes. 
Cu rit iba: Juru;! Editora, 
2006. 
CARNE IRO, Maria 
Luiza Tucci . Preconceito 
Racial em Portugal 
e Brasil Colonia. as 
Crist8os-Novos e 0 M,to 
da Pureza de Sangue. 
Sao Paulo: Perspectiva, 
2005. 
CASCU DO, LUIS 
da Camara. Mouros, 
Franceses e jude us: Tr~s 
Presen<;as no Brosil. Rio 
de Janeiro: Ed. Letras e 
Artes, 1967. 
Internet 
Associa,ao Brasileira 
dos Descendentes de 
Judeus da Inquisi,ao 
www.anussim.org.br 
o projeto de refor-
ma do C6digo de 
Processo Penal pode 
ressuscitar he,-an,as 
da Inquisi,ao na 
Justi,a brasileira. 
o comprovar", diz Tania Kaufman, presidente 
Arquivo Hist6rico Judaico de Pernambuco. 
Outro exemplo, mais conhecido, ja deixou ame-
:::untadas crian<;:as de todas as religi6es. Muita gente 
a dizer que quando se aponta para as estre-
~ '- ~ ,. I ,.... 
l· 
, nascem verrugas nos dedos. E claro que isso nao 
~ de uma lenda, provavelmente criada por causa 
::2. tradicional cerimania do shabat, que come<;:a na 
sexLa-feira a tarde, quando a primeira estrela apare-
:ee no ceu. A hist6ria era uma maneira de evitar que 
RONALDO VAINFAS 
o que a Inquisi~ao 
veio fazer no Brasil? 
A INQUISI<;:AO PORTUGUESA s6 passou a frequentar 
as terras brasileiras no final do seculo XVI. Entre 
os anos 1540 e 1560, s6 houve dois casos: 0 do 
donatario de Porto Seguro, 0 blasfemo Pero do 
Campo Tourinho, e 0 do frances calvinista Jean de 
Boles. 0 primeiro foi enviado para Lisboa a ferros, seculo XVIII, pela consolidac,:ao de uma rede de fa-
e 0 segundo, preso pelo bispo da Bahia, que tinha miliares e comissarios, alem da justic,:a eclesiastica, 
jurisdic,:ao sobre as heresias. Foram ocorrencias 
isoladas e desvinculadas da preocupac,:ao maior do 
Santo Oficio lusitano desde a sua criac,:ao: perse-
guir os cristaos-novos judaizantes. 
A estreia da Inquisic,:ao no Brasil ocorreu em 
1591, com a primeira visitac,:ao do Tribunal de 
Lisboa a Bahia e a Pernambuco. Justifica-se: na 
segunda metade do seculo XVI, 0 Brasil recebeu 
muitos cristaos-novos envolvidos com a nascente 
economia ac,:ucareira. Eles viveram em paz du-
rante decadas. Muitos continuaram a professar 0 
judaismo nas sinagogas domesticas, alem de se 
unirem, pelo matrimonio, com os cristaos-velhos. 
A ameac,:a de indios na terra e de piratas no mar 
funcionava como forc,:a de coesao. 
Tudo mudou com a chegada da visitac,:ao, que 
integrou nova estrategia inquisitorial, em tempo 
de Uniao Iberica, voltada para 0 AtHintico hispano-
portugues. A estreia do Santo Oficio no Brasil ame-
drontou mais do que prendeu os cristaos-novos, 
embora tenha destroc,:ado a sinagoga de Matoim, 
no Reconcavo Baiano. Em todo caso, deixou urn 
rastro deleterio, rompendo a solidariedade cotidia-
na que unia cristaos-velhos e novos da Colonia. 
Ao longo do seculo XVII, outras visitac,:6es de-
ram seguimento a ac,:ao inquisitorial, reforc,:ada, no 
que pinc,:ava suspeitos de heresia em suas visitas 
diocesanas. Foi esta a rna quina que viabilizou a In-
quisic,:ao no Brasil, resultando no seguinte balanc,:o: 
1.074 presos, sendo 776 homens e 298 mulheres; 
48% deles e 77% delas eram cristaos-novos acusa-
dos de judaizar; a grande maio ria dos homens pre-
sos (62%) morava na Bahia, em Pernambuco e no 
Rio de Janeiro, enquanto a maioria das mulheres 
(54%) vivia em terra fluminense, seguidas de longe 
pelas mulheres da Bahia (14%). 
o auge da ac,:ao inquisitorial ocorreu na pri-
me ira metade do seculo XVIII (51% dos presos). 
Vinte homens e duas mulheres da ColOnia foram 
queimados em Lisboa, todos por judaizar. Dentre 
eles, 0 dramaturgo carioca Antonio Jose da Silva 
(1739) e a octogenaria Ana Rodrigues, matriarca do 
engenho de Matoim. A velha sinha embarcou para 
Lisboa acompanhada de uma escrava e morreu no 
carcere em 1593. Nem assim ela escapou da fo-
gueira. 0 Santo Oficio desenterrou seus ossos para 
queima-Ios em auto de fe, no Terreiro do Pac,:o. H 
RONALDO VAINFAS E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE 
FEDERAL FLUMINENSE E AUTOR DE TROPICO DOS PECADOS 
(NOVA FRONTEIRA. 2010) E ORGANIZADOR DE CONFISSOES 
DA BAHIA. (COMPANHIA DAS LETRAS. 2005). 
Saiba Mais 
CALAINHO. Daniela. 
Agentes da fe: farniliares 
da Inquisi<;iio Portuguesa 
no Brasil colonial. Sao 
Paulo: Edusc, 2006. 
FEITLER, Bruno. Nas 
rnalhas da consci~ncia: 
Igreja e Inquisi<;iio no 
Brasil. Sao Paulo: Ala-
meda, 2007. 
Filme 
"A Santa Visita<;ao", de 
Elza Cataldo, 2006. 
A cima, na gravul'a 
de Bemard Picart, do 
seculo XVIII, formas 
de tortura empregadas 
para extrair a confis-
sao de um herege. 
Abaixo, numa gravura 
da mesma epoca, vista 
da cidade de Salvador, 
um dos locais onde 
a Inquisi~ao agiu 
no Brasil. 
Saiba Mais 
TREVISAN, Joao 
Silverio. Devassos no Pa-
raiso. Sao Paulo: Ed itora 
Record, 2000. 
VAINFAS, Ronaldo. 
Tr6pico dos pecados. 
Rio de Janeiro: Nova 
Fronteira, 20 I O. 
LUIZ MOTT 
Porque os 
homossexuais 
eram perseguidos? 
DE POlS DOS CRISTAOS-NOVOS JUDAIZANTES, OS 
homossexuais foram OS mais perseguidos pela In-
quisi<;ao portuguesa: trinta hom ens "sodomitas" 
foram queimados na fogueira. Proporcionalmente, 
OS gays constituiram 0 grupo social tratado com 
maior intolerancia por esse Monstrum Terribilem. 
Foram mais torturados e degredados que os outros 
condenados e, nao bastasse, receberam as penas 
mais rigorosas. Metade foi condenada a remar para 
sempre nas gales del Rei. 
Mas somente os praticantes do que a Inquisi-
<;ao classificava como "sodomia perfeita" ardiam 
nas fogueiras . Esta perfei<;ao consistia "na pene-
com derramamento de semente de 
homem". Os demais atos homoe-
roticos eram considerados pecados 
graves ou "molice" . 
A sodomia, entretanto, nao foi estigmati-
zada e perseguida em todos os tribunais do Santo 
Oficio da Espanha, nem mesmo pela Inquisi<;ao 
portuguesa em seus primeiros anos de instala<;ao. 
Isto demonstra que inexplicaveis fatores historicos , 
politicos e culturais estariam por tras do maior ou 
menor radicalismo da homofobia catolica. 
Varia<;6es e contradi<;oes da condena<;ao moral 
dos desvios sexuais refletem a condi<;ao pantano-
sa, imprecisa e ilogica do catolicismo em rela<;ao 
ao amor entre pessoas do mesmo sexo. As razoes 
cruciais que levaram a Inquisi<;ao a perseguir os 
homossexuais masculinos teriam sido duas. Ao 
condenar a fogueira apenas os praticantes da co-
pula anal, os Inquisidores refor<;avam a mesma 
maldi<;ao bfblica que condenava ao apedrejamento 
tra<;ao do membro viril desonesto no vasa traseiro "0 homem que dormir com outro homem como 
o se fosse mulher" . Ou seja, 0 crime e derramar 0 
.. , 
~ semen no vasa "antinatural" , uma vez que juda-
~ ismo, cristianismo e islamismo se definem como 
Ao lado, gravura de essencialmentepronatalistas, quando 0 ate sexual 
1741 satiriza padres se destina exclusivamente a reprodu<;ao. Dai a per-
sodomitas num ban- segui<;ao aqueles que ousassem ejacular fora do 
quete dentro de uma vasa natural da fecunda<;ao , uma insubordina<;ao 
igreja. antinatalista inaceitavel para povos dominados 
pelo dogma demografico do "crescei e multiplicai-
vos como as estrelas do ceu e as areias do mar". 
A segunda razao tern a ver com 0 estilo de vida 
androgino e irreverente, qui<;a revolucionario, 
dos proprios sodomitas, chamados de "filhos da 
dissidencia". Eis 0 trecho de urn discurso homo-
fobico lido num sermao de urn Auto de Fe de Lis-
boa em 1645: "0 crime de sodomia e gravissimo 
e tao contagioso, que em breve tempo infecciona 
nao so as casas, lugares, vilas e cidades, mas ain-
da Reinos inteiros! Sodoma quer dizer trai<;ao. 
Gomorra, rebeliao. E tao contagiosa e perigosa 
a peste da sodomia, que haver nela compaixao e 
delito. Merece fogo e todo rigor, sem compaixao 
nem misericordia!" H 
LUIZ MOTT E PROFESSOR DA UNIVERSI D A DE FEDERAL D A 
BAH IA E AUTOR DE SEXO PROIBIDO: VIRGENS, GAYS E ESCRA-
VOS NAS GARRAS DA INQUISI(:AO (PAPIRUS, 1988). 
DANIELA BUONO 
CALAINHO 
Houve queima de 
bruxas e autos de 
fe por aqui? 
Nos TEMPOS DA INQUISI<;:AO, muitos compartilha-
yam varias cren<;as magico-religiosas misturando 
praticas cristis, indfgenas e africanas em nossa 
terra. Considerados hereges pelo Tribunal do Santo 
Oficio portugues, foram acusados de firmar urn pac-
.to com 0 diabo e tachados de feiticeiros pela Igreja. 
Adivinha<;oes, sortilegios, usa de amuletos pro-
tetores, feiti<;os para rela<;oes amorosas, confec<;:ao 
de unguentos e po<;:oes magicas, praticas curativas 
que fugiam aos padroes da medicina oficial, ceri-
manias de culto a fdolos pagaos, comunica<;:ao com 
os mortos, benzeduras, evoca<;:oes ao diabo - enfim, 
todo este universo de cren<;:as e praticas encantou 
a popula<;ao colonial. No entanto, jogou seus prota-
gonistas nos temidos carceres inquisitoriais. 
Mas, dentre os delitos hereticos do foro da 
Inquisi<;ao, a feiti<;:aria foi urn dos menos perse-
guidos, tanto no Brasil como em Portugal, repre-
sentando apenas cerca de 3,6% os acusados deste 
crime nos seculos XVII e XVIII. Nenhuma bruxa foi 
queimada no Brasil, porque todos os casos de reus 
acusados pelo Santo Oficio eram enviados para 
Portugal e lajulgados. E, na verdade, pouqufssimos 
bruxos e bruxas foram queimados. A maioria deles 
foi penalizada com degredo e prisao. Os que rece-
beram a senten<;:a de morte na fogueira correspon-
deram a cerca de 0,6% de todos os reus daquele pe-
rfodo. Isto prova que Inquisi<;ao nao e sinanimo de 
fogueira. A maioria dos que subiram aos cadafalsos 
portugueses era de cristaos-novos supostamente 
judaizantes, ou seja, judeus convertidos ao cristia-
nismo suspeitos de professarem sua fe original em 
segredo, alvo principal do Tribunal. 
As outras penas inquisitoriais nao foram menos 
atrozes: degredos para regioes in6spitas em Portu-
gal, no Brasil ou na Africa; trabalhos for<;:ados nas 
embarca<;:oes do rei; confiscos de bens, levando 
muitos a pobreza e a miseria, e ainda penas social-
mente humilhantes e infamantes, como a<;:oites 
publicos, uso de trajes tfpicos de condenados pela 
Inquisi<;:ao e exposi<;:ao a porta de uma igreja com 
uma vela na mao. 
Os autos de fe eram sfmbolos inequfvocos do 
poderio do Santo Oficio junto a popula<;:ao. Num 
domingo, safam em procissao as autoridades in-
quisitoriais, eclesiasticas e tambem 0 rei, ate che-
garem a uma pra<;:a publica, onde estava montado 
urn grande anfiteatro para 0 evento. Os condena-
dos ouviam os sermoes dos sacerdotes e, depois, a 
leitura publica de suas senten<;:as. 0 apice do espe-
taculo era a execu<;:ao dos "hereges": alguns ago-
nizavam nas fogueiras, por serem renitentes em 
suas cren<;as, e outros eram queimados ja mortos, 
estrangulados antes por terem se rendido a fe cat6-
lica nos ultimos instantes. Mas, aqui no Brasil, nao 
tivemos nenhum auto de fe desta natureza, uma 
vez que 0 Tribunal de Lisboa centralizou todos os 
trabalhos dos casos relativos ao Brasil, desde 0 inf-
cio do processo dos reus ate sua senten<;:a final. H 
DANIELA BUONO CALAINHO E PROFESSORA DA 
UNIVERSIDADE DO ESTA DO DO RIO DE JANEIRO E A UTORA DE 
METROPOLE DAS MANDINGAS. RELIGIOSIDADE NEGRA E INQUISI( AO 
PORTUGUESA NO ANTIGO REGIME (GA RAMON D, 2008) . 
Saiba Mais 
PAIVA, Jose Pedro. 
Bruxario e supersth;oo 
num pais sem "co,o as 
bruxos". 1600-1774. 
Lisboa: Notlcias Edit o-
rial , 1997. 
SCHWARTZ, Stuart. 
Coda um no suo lei. 
Tolerdncio religioso e 
solvo,oo no mundo 
atlantica iberica . Sao 
Paulo: Companh la das 
Letra/Edusc, 2009. 
SO UZ A, Laura de Mello 
e. 0 Diobo e a terra de 
Santo Cruz. Feiti,orio 
e religiosidode popular 
no Brosil colonial. Sao 
Paulo: Companhia das 
Letras, 1993. 
No alto, bruxas mon-
tadas num porco, em 
x ilogravura colorizada 
de I 6 12. Abaixo, 
execu~ao de crimino-
50S condenados pela 
Inquisi~ao . No Brasil 
nao houve autos de fe 
como 0 representado 
na gravura. 
Saiba Mais 
BETHENCOURT. 
Francisco. Hist6ria das 
Inquisi<;oes - Portugal. 
Espanha e le6lia. Lisboa: 
Oreu lo de Leitores, 
1994. 
D EL COL. Andrea. 
L'lnquisizione in Iwlia dol 
XII 01 XXI secolo. Milao: 
Amoldo Mondadori 
Editore, 2006. 
MARTrNEZ MILLAN, 
Jose. La Inquisicion 
espanola. Madri: Al ianza 
Editorial, 2007. 
Abaixo, gravura do 
inicio do seculo XVIII 
mostra a corte da 
Inquisi~ao espanhola 
em Madri. No deta-
Ihe, a gravura de 
Bemard Picard 
( 1673-1734) 
destaca um 
condenado 
usando 0 
traje peni-
tencial. 
JOSE PEDRO PAIVA 
Quais as diferen~as 
entre as I nquisi~oes? 
A INQUlSI<;:AO MODER NA, diferentemente da me-
dieval, contava com estruturas fixas e urn corpo 
hierarquizado de agentes em atividade permanente, 
A de Castela e Leao, fundada em 1478 por iniciativa 
da Coroa, atuou na Espanha e em suas colonias da 
America Latina, nos Paises Baixos e em regi6es da 
Peninsula Italica sob dominio da monarquia hispa-
nica sem maiores problemas de adapta<;ao, So foi 
abolida definitivamente em 1834. 
A portuguesa, estabelecida em 1536, 
na sequencia de dificeis negocia<;6es 
desencadeadas pelo rei D. Joao III, 
vigorou nos territorios de Portugal e 
de seu imperio pluricontinental, desde 
Macau, no Extremo Oriente, ate 0 Brasil. 
Foi extinta em 1821. 
A romana foi fi.-uto de reorganiza<;ao 
em 1542, durante 0 pontificado de Paulo 
III, com a cria<;ao da Congrega<;ao Roma-
na do Santo Oficio. Teve jurisdi<;ao na Pe-
contrario das outras. Embora alguns inquisidores -
franciscanos e dorninicanos - tivessem sido nome-
ados pelo papa, nao ha registro de sua atua<;ao. 
A natureza dos tribunais era distinta. Os iberi-
cos tinham uma aparencia hfbrida, com fortes vin-
cula<;6es e dependencias em rela<;ao a Coroa e ao 
sumo pontifice, 0 que foi bem usado para garantir 
certa independencia, em especial no caso portu-
gues. Em Roma, a Congrega<;ao era exclusivamen-
te dependente do papado, Nos casos espanhol e 
romano, os confrontos entre bispos e inquisidores 
foram mais fortes e recorrentes, enquanto em Por-
tugal houve, de modo geral, grande coopera<;ao e 
complementaridade entre eles. 
Todas tin ham como objetivo principal eli-
minar as heresias e preservar a ortodoxia do 
catolicismo romano. Mas elas se concentraram 
em grupos distintos, A portuguesa centrou sua 
atividade na persegui<;ao aos cristaos-novos judai-
zantes, e assim se manteve ate 1773, quando foi 
abolida pelo marques de Pombal a distin<;ao entre 
cristaos-novos e velhos. A espanhola, inicialmen-
te, teve sua mira apontada para 0 mesmo alvo. No 
entanto, os delitos quantitativamente mais signi-
ficativos foram as blasremias e 0 criptoislarnismo 
praticado pelos mouriscos. A Inquisi<;aoromana, 
ninsula ItaJica, e ja em 1965 pas sou a desig- por sua vez, apontou baterias contra 0 protestan-
nar-se Congrega<;ao para a Doutrina da Fe, tismo e, em segundo plano, contra as praticas 
modificando seus propositos e praticas. magico-supersticiosas. 
Ravia diferen<;as entre as tres . A portu- 0 rigor repressivo tambem foi diferente. Em 
guesa nao teve lastro medieval a precede-la, ao termos de volume, a espanhola se destacou. As 
penas aplicadas eram variadas: prisao, degredo, 
:< 6 exposi<;ao publica na porta das igrejas, usa de ha-
G ~ bito de condenado (sambenitos), A que teve mais 
« 
u 
5 
iii 
as 
condenados a pena capital foi a lusitana (cerca de 
6%), seguida da espanhola (3,5%) e da romana, esta 
muito cautelosa em aplicar este tipo de senten<;a. 
Ate do ponto de vista. da historiografia, as tres 
apresentam perfis heterogeneos. Por mais parado-
xal que pare<;a, aquela que nos dias de hoje conta 
o maior numero de registros, a portuguesa, e a que 
menos se conhece. Nao ha sequer uma historia ge-
ral sobre 0 assunto. H 
JOSE PEDRO PAIVA E PRO FESSOR DA UNIVERSIDADE D E 
COIMBRA E AUTOR DE OS BALUARTES DA FE E DA DISC/PUNA 0 
ENLACE ENTRE A INQUISIc;:AO E as BISPOS EM PORTUGAL (1536-
1750) (IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA. 2011) . 
Saiba Mais 
DELUMEAU, Jean. 
Nascimento e afJrmar;oo 
da Reforma. Sao Paulo: 
Pioneira, 1989. 
LEV ACK, Brian P. A cO/;a 
as bruxas na Europa 
Modema, 2" ed. Rio de 
Janeiro: Campus, 1988. 
SANTOS, Joao Henri-
que dos. "Da concil ia,50 
posslvel a ruptura. Uma 
anali se dos documentos 
de 1520 de Martinho 
Lutero". Tese de douto-
rado, UFJF, 2009. 
Filmes 
"As Bruxas de Salem", de 
Nicholas Hytner, 1996. 
"Lutero", de Eric Till, 
2003. 
Protestantes tambem 
usaram estrategias de 
controle da fe. No 
alto, a gravura de Jan 
Luyken, do seculo 
XIX, representa uma 
execu~ao. No centro, 
o teologo e reforma-
dor Joao Calvi no, em 
oleo do seculo XVI. 
ANGELO ADRIANO 
FARIA DE ASSIS 
Assim como 
os catolicos, 
os protestantes 
• persegulram 
seus fieis? 
A I N QUISI<;:AO NAO FOI 0 UN ICO CASO 
de into Ie ran cia movida em nome de 
Deus na Epoca Moderna. Embora 
nao houvesse a institucionaliza-
<;:ao de tribunais similares aos do 
Santo Oficio, tambem foram usa-
das estrategias de controle da fe 
nos locais em que 0 protestantis-
mo era dominante, levando a per-
segui<;:ao por crimes como adulterio, 
discordancia dos dogmas protestantes 
e bruxaria. 
Na Alemanha, 0 lider protestante Martinho Lu-
tero (1483-1546) exigiu persegui<;:oes aos anabatis-
tas, grupo cristao mais radical da Reforma, porque, 
entre outras questoes, eles nao aceitavam as regras 
da Igreja Evangelica e divergiam sobre 0 batismo. 
A decisao causou a expulsao, 0 encarceramento, a 
tortura e a execu<;:ao de milhares de pessoas. Lutero 
tambem divulgou textos com criticas aos judeus -
embora sem maiores repercussoes na epoca, estes 
escritos acabariam utilizados pela Alemanha nazis-
ta, em pleno seculo xx. 
Em Genebra, urn dos ber<;:os da Reforma Protes-
tante e onde ela se mostrou bastante radical, fun-
cionou uma verdadeira "policia da feu. Joao Calvi-
no (1509-1564), devido a sua autoridade sobre os 
protestantes sui<;:os, era conhecido como 0 "papa 
de Genebra". Ao organizar a Igreja Presbiteriana, 
instaurou comissoes compostas de religiosos e 
leigos: a Veneravel Companhia, responsavel pelo 
magisterio, e 0 Consisterio, que zelaya pela dis-
ciplina religiosa. Para isso, promovia confissoes, 
demincias, espionagens e visitas as residencias, 
levando muitos a prisao, a tortura, ao julgamento 
e, em alguns casos, a morte. 
A popula<;:ao era proibida de cultivar certos 
habitos, como jogar, dan<;:ar e representar. Alguns 
pens adores foram perseguidos, como 0 medico e 
humanista espanhol Miguel Servet Griza. Ele foi 
preso, condenado e queimado em efigie - repre-
sentado por urn boneco. Fugiu em dire<;:ao a Italia, 
mas acabou preso em Genebra, onde foi processa-
do pelo Conselho presidido por Calvino e queima-
do por causa de proposi<;:oes vistas como antibibli-
cas e hereticas, entre outras culpas. 
Na Inglaterra, uma verdadeira ca<;:a as bruxas 
levou a morte centenas de mulheres acusadas de 
feiti<;:aria. A experiencia persecutoria inglesa foi 
ainda "exportada" para as col6nias na America do 
Norte, como no famoso episodio das "bruxas de 
Salem", ocorrido em Massachusetts, em fins 
do seculo XVII, em que varias adolescen-
tes foram mortas, acusadas de pro-
mover reunioes em torno de uma 
fogueira nas quais, supostamente, 
invocavam espiritos. 
Sem duvida, nao sao poucos os 
exemplos de intolerancia religiosa 
nos variados espa<;:os que viven-
ciaram a Reforma Protestante, mas 
nada que representasse 0 equivalente 
dos estruturados tribunais inquisito-
riais cat61icos. H 
ANGELO ADRIANO FARIA DE ASSIS E PROFESSOR DA 
UNIVERSID ADE FEDERAL DE VI<;:OSA E CO-ORGANIZADOR 
DE REliGfOES E REliGfOSfDADES: ENTRE A TRADf(:AO E A 
MO DERNfDADE. (ED I<;:OES PAULINAS, 20 I 0). 
BRUNO FEITLER 
Por que nao foi 
criado urn tribunal 
da Inquisi~ao no 
Brasil? 
COLONIAS ESPANHOLAS na America tiveram seus 
tribunais inquisitoriais, assim como a india portu-
guesa. No Brasil, apesar da insistencia de Felipe IV, 
nao foi bern assim. 
Durante as famosas visita<;6es do Santo Oficio, 
em fins do seculo XVI e come<;o do XVII, foram 
forjados tribunais itinerantes. Houve inqueritos, 
julgamento de casos considerados leves e ate a ce-
lebra<;ao de autos da fe, a cerimonia de leitura das 
senten<;as. Mas urn verdadeiro tribunal, como os 
instalados no Mexico, no Peru, na ColOmbia e na 
India portuguesa, jamais existiu por aqui. Como a 
coloniza<;ao engatinhava e a popula<;ao, alem de 
pequena, era esparsa, foi descartada a ideia de se 
criar urn tribunal especifico. 
Com 0 sucesso crescente da produ<;ao a<;ucarei-
ra e 0 consequente aumento da popula<;ao local, 
suscetivel de cair nas malhas do Santo Oficio, Lis-
boa pas sou a despachar visita<;6es semelhantes as 
que ja circulavam pelo reino. Mas faltou combinar 
com os 6rgaos superiores da Inquisi<;ao. Excessos 
e desmandos cometidos pelos visitadores em ati-
vidade no Brasil definitivamente nao agradaram a 
cupula do Santo Oficio. 
o primeiro projeto de cria<;ao de urn tribunal 
no Brasil s6 surgiu em 1621. Com base nos varios 
pedidos e alertas de autoridades locais, inconforma-
das com a liberdade desfrutada por hereges, sobre-
tudo judaizantes, e tambem temendo urn conluio 
desses cristaos-novos com os iniInigos holandeses, 
o rei espanhol Felipe IV ordenou a cria<;ao de urn 
tribunal em Salvador. Na epoca, Portugal compu-
nha a Uniao Iberica, liderada pela Coroa espanhola. 
Obispo do Brasil devia fazer as vezes de principal 
inquisidor e julgar os casos localmente com a ajuda 
de jesuitas, franciscanos, beneditinos e carmelitas. 
o inquisidor-geral, entretanto, propos que se 
criasse urn tribunal independente, com juizes no-
meados por ele. Nao interessava ao Santo 
Oficio entregar sua jurisdi<;ao ao bispo, pois 
outros eclesiasticos talvez vissem 0 caso como 
urn precedente. Isto poderia enfraquecer a 
autoridade dos inquisidores perante os bis-
pos, pois, em Portugal, eram esses eclesiasti-
cos que julgavam os casos de heresia antes da 
instala<;ao da Inquisi<;ao. 
Mas 0 rei nao se conformou. Foram duas 
as tentativas - em 1622 e 1629 - de criar esses 
tribunais no Brasil. A Inquisi<;ao fez ouvidos 
moucos e nada aconteceu. Os interesses poli-
ticos da Inquisi<;ao falaram mais alto do que a 
ideia de controlar 0 comportamento dos que 
viviam aqui. 
Felipe IV voltou ao assunto em 1639. Preo-
cupado com as devasta<;6es dos paulistas nas 
Iniss6es jesuiticas, 0 rei decidiu conceder po-
deres inquisitoriais ao bispo do Rio de Janeiro. 
Com a sucessao em Portugal no ano seguinte,0 
assunto morreu e nao se falou mais nele, ate porque 
a Coroa pas sou por graves apuros econoInicos, in-
compativeis com a instala<;ao de novos tribunais. H 
BRUNO FEITLER E PROFESSOR DA UNIVERS IDADE FEDERA L 
DE SAO PAULO E AUTOR D E NAS MALHAS DA CONSClt.NC/A 
IGREJA E INQUIS/(:AO NO BRASIL (SAO PAU LO, 2008) . 
Saiba Mais 
SIQUEIRA Son ia. A 
Inquisi,Qo Portuguesa e a 
Sociedade Colonia/. Sao 
Paulo: Atica, 1978. 
VAINFAS, Ronalda. 
Confissoes da Bahia. Sao 
Paulo: Companhia das 
Let ras, 1997. 
Abaixo, 0 rei Felipe 
IV, da Espanha, em 
pintura de D iego 
Velazquez de 1624. 
o monarca tentou 
varias vezes criar um 
tribunal penmanente 
da Inquisi~ao em 
Salvador. No alto, 
a gravura de I 866 
mostra a Corte de 
Circeres da extinta 
Inq uisi~ao de Li sboa. 
Saiba Mais 
MEA, Elvira Cunha de 
Azevedo. A Inquisic;ao de 
Coimbra no seculo XVI. A 
instituiC;ao. os hom ens e a 
sociedade. Porto: Funda-
<;ao Engenheiro Antonio 
de Almeida, 1997. 
PEREIRA, Ana Margari-
da Santos. A Inquisic;ao 
no Brasil. Aspectos 
do sua actuac;ao nos 
capitanias do Sui, de 
meados do sec. XVI 
00 inicio do sec. XVIII. 
Coimbra: Faculdade de 
Letras da Universidade 
de Coimbra, 2006. 
SARAIVA, Antonio Jose. 
InquisiC;ao e cristaos-
novas. 6' ed. Li sboa: 
Editorial Estampa, 1994. 
SCHWARTZ, Stuart 
B. Coda um no sua lei: 
tolerilncia religiosa e 
solva,ao no mundo at/iln-
tico iberica. Sao Paulo: 
Companhia das Letras; 
Bauru: Edusc, 2009. 
Apesar da reconhe-
cida intolerancia. a 
Inquisi~ao nem sem-
pre foi muito eficiente. 
Abaixo, procissao de 
fiagelados em pintura 
de Goya. de 1823. 
· 
~~- . 
'. 
ff) • _ u·s' coo 
MARCO ANTONIO NUNES DA SILVA 
A intoleroncia foi 
incorporada pela 
popula~ao? 
INAcIO DE SOUZA BRAN DAO acusou Crist6vao Ri-
beiro de Lira de "algumas heresias". Lira respon-
deu dizendo que "todos os hereges se salvavam, 
que ninguem se perdia porque Cristo Senhor Nos-
so morrera por todos os homens". 0 argumento 
de Lira assegurava a possibilidade de se encontrar 
salva<;:ao na lei de Moises ou na de Maome. Inacio, 
alem de vigario da Igreja de Nossa Senhora da 
Concei<;:ao da Praia, tambem era 0 comissario do 
Santo Oficio na Bahia, no tim do seculo XVII. 
A ideia de "universalismo religioso" contida 
nas palavras desse homem era defendida tanto 
por cristaos-novos como por cristaos-velhos. No 
caso de Lira, nao ha qualquer indicio de que 
ele tivesse nas veias "sangue infecto", 0 que 
poderia indicar sua condi<;:ao de cristao-velho. E 
natural que pessoas como ele forjassem sua con-
cep<;:ao de mundo baseando-se em experii~ncias 
pessoais. Grande parte do que diziam continha 
mensagens de esperan<;:a ao alcance de muitos 
outros, 0 que de fato era motivo de preocupa<;:ao 
para a Inquisi<;:ao. 
A no<;:ao de intolerancia esta quase sempre 
associada a ideia de infalibilidade, eticacia e 
invencibilidade, caracteristicas que, para mui-
tos , marcaram a a<;:ao inquisitorial. A analise 
aprofundada dos documentos revela que a Inqui-
si<;:ao nao primou pela eficiencia, muito menos 
conseguiu silenciar as pessoas, pois 0 registro 
de criticas e farto . A morda<;:a nao foi tao bern 
apertada. E possivel ouvir as vozes que gritam 
nos documentos. 
o segredo exigido dos presos e ponto funda-
mental nesta discussao. Os reus deviam "ter se· 
gredo em tudo 0 que se pas sou no decurso de suas 
causas" e eram terminantemente proibidos "de 
levar para 0 exterior recados de outros presos". 
No entanto, bilhetes eram trocados com a ajuda 
dos guardas, 0 que prova a falta de controle des sa 
maquina perseguidora. 
A Inquisi<;:ao foi, sim, intolerante, mas nao de 
forma generalizada. E os documentos provam que 
a sociedade imp6s limites ao Santo Oficio. H 
MARCO ANTONIO NUNES DA SILVA E PROFESSOR DA 
UNIVERSIDAD E FEDERAL DO RECONCAVO DA BAHIA E 
AUTOR DA TESE "0 BRASIL HOLANDES NOS CADERNOS DO 
PROMOTOR: INQUISI<;:AO DE LIS BOA, SECULO XVII" (USP. 2003). 
PAULO VALADARES 
Nomesde 
arvores e de animais 
correspondem a 
sobrenomes de 
judeus? 
E COMUM A AFIRMAC;:AO DE QUE certos sobrenomes 
usados por lusodescendentes identificam origem ju-
daica, heranc;a de ancestrais cristaos-novos. De acor-
do com esta explicac;ao popular, sobrenomes como 
Lobo ou Pereira identificariam a procedencia. Sera 
verdade? Para responder, e born que se conhe<;:a urn 
pouco do desenvolvimento da onomastica judaica. 
como as listas de penitenciados e cerca de 40 mil 
processos movidos contra cristaos-novos entre os 
seculos XVI e XVIII. La esta a maioria dos sobreno-
mes usados pelos portugueses. Do simples Santos 
ao dinastico Bragan<;:a. Em alguns casos, e possivel 
encontrar a autoridade inquisitorial e 0 reu com 
o mesmo nome de familia, sem que eles tenham 
vinculos de parentesco entre si. 
o des conhecimento desse passado levou pesqui-
sadores amado res a buscar uma teoria para localiza-
los. Baseados no discurso religioso, principalmente 
nas benc;aos aos filhos de ]ac6 (Genesis, 49:1-33), 
chegaram a conc1usao de que nomes de plantas e 
animais correspondem aos sobrenomes de judeus, 
mas sem qualquer fundamenta<;:ao na realidade. 
E impossivel descobrir a origem de urn Ius odes-
cendente s6 pelo nome de familia. E equivocado 
afirmar que alguem tern origem judaica s6 por ter 
urn sobrenome como Barata, Bezerra, Carneiro, Car-
Saiba Mais 
CARVALHO. Flavia 
Mendes. Roizes judoicos 
no Brosil. 0 orquivo secreta 
do Inquisi<;ilo. Sao Paulo: 
Nova Arcadia, 1992. 
FAIGUENBOIM, G.; 
V ALADARES, P.; 
CAMPAGNANO, AR. 
Dicionario Seforadi de 
Sobrenomes/Dictionary 
of Sephardic Surnames. 
Sao Paulo: Fraiha, 2003, 
2004 e 20 10. 
NOVINSKY, Anita. 
Inquisi<;ilo: prisioneiros do 
Brasil. Seculos XVI-XIX. 
Rio de Janeiro: Expres-
sao e Cultura, 2002. 
Abaixo, uma arvore 
geneal6gica num 
manuscrito do seculo 
XIX e um exemplo 
dos longos estudos 
necessarios para se 
descobrir a origem 
dos sobrenomes. 
Os judeus sempre usaram, para se identificar, 
urn patronimico, 0 nome do pai. E s6 verificar no 
Velho Testamento - a Biblia hebraica - os nomes 
dos personagens como Fulana ben (filho de) Sicrana. 
Hoje eles sao us ados apenas nas cerim6nias religio-
sas. Os sobrenomes foram incorporados primeiro na 
Peninsula Iberica e depois, por influencia napole6-
nica, fora dela. No mundo iberico, ja no seculo XIV, 
havia judeus que se identificavam com prenome bi-
blico e urn sobrenome de variadas origens geografi-
cas - Abravanel, Amado, Arruda, Cavaleiro, Cohen, 
valho, Cordeiro, Falcao, F.iigu=e=ir:a:,~L:e:a:o~, L:e:i~-----------;;:l 
tao, Lobo, Oliveira ou - ~;H 
Pereira. A afirmac;ao 
nao se sustentaria na 
documenta<;:ao produ-
Crespim, Franco, Navarro, Negro, Pinto, Toledano, zida durante 300 anos. 
Valentim etc -, que, com 0 passar dos anos, foram Nao ha sobrenome 
incorporados aos patrim6nios familiares. cristao-novo, mas urn 
A permanencia dos judeus como convertidos, sobrenome iberico usa-
a partir do seculo XV, tornou obrigat6rio 0 re- do por cristaos-novos, 
cebimento de novos nomes e sobrenomes sem que muitas vezes foi 0 
que houvesse urn ordenamento juridico para sua mesmo usado tambem 
aquisi<;:ao. Somente os prenomes tradicionalmente por cristaos-velhos, ci-
usados, como Abraao, Isaac e ]ac6 foram conve- ganos, mouriscos, indi-
nientemente abandonados, mas como 0 objetivo genas... H 
era a incorpora<;:ao desta minoria a populac;ao 
majoritaria, nao havia sinais que os distinguissem 
pela onomastica. Os convertidos que mudavam de 
nome tambem nada traziam do passado. 0 objeti-
vo era desaparecer na massa circundante. 
Mas como encontrar os sobrenomes utilizados 
pelos cristaos-novos e seus descendentes se eles 
desapareceram na populac;ao geral? Convem con-
sultar a documenta<;:ao produzida pela Inquisic;ao, 
PAULO VALADARES E 
AUTOR DE A PRESEN(:AOCUL-
TA. GENEALOGIA, !DENT/DADE 
E CUL TURA CRISTA-NOVA BRA-
SILEIRA NOS SECULOS XIX E 
XX (FUN DA<;:Ao ANA LIMA, 
2007) E EDITOR DO BOLET/M 
DO ARQUIVO H/S TO R/CO JUDAICO 
BRASILE/RO. 
... 
• 
Saiba Mais 
BETHENCOURT, Fran-
cisco. Hist6ria das Inqui-
sir;6es. Portugal, Espanha 
e Itolio, secu los X V-XIX. 
Sao Paulo: Companhia 
das Let ras, 2000. 
FEITLER, Bru no. Nas 
Molhos do Conscien-
cia. Igreja e Inquisir;iio 
no Brasil, Sao Paulo: 
Alameda, 2007. 
PA IVA, Jose Pedro de 
Mat os, Baluartes da (e 
e da disciplina. 0 enlace 
entre a Inquisir;iio e 
os bispos em Portugal 
(1536- 1750) . Coimbra: 
Editora da Universidade 
de Coimbra, 20 I I. 
VAINFAS, Ronaldo, 
FEITLER, Bruno, LAGE, 
Lana (orgs.). A Inquisir;iio 
em Xeque . Temas, 
controversias e estudos 
de coso. Rio de Janeiro: 
Eduerj, 2006. 
Ao fundo, pintura 
mostra 0 ConCilio de 
T rento, dedicado prin-
cipalmente aos delitos 
morais. Ao lado, na 
gravura de Severini, 
de 1881, a Inquisi~ao 
de D. Joao IV em 
Portugal. 
A Inquisi~ao 
era subordinatla 
a Igreja? 
For MUlTO MAIS COMPLICADA do que se imagina 
a instala<;ao da Inquisi<;ao em Portugal. Depois de 
longas negocia<;6es entre 0 rei e 0 papado, 0 Santo 
Oficio enfim foi estabelecido em 1536. 0 surgimen-
to dessa esfera de poder no campo religioso poderia 
desencadear atritos entre a nova institui<;ao e 0 
tribunal do bispo, que ja exercia jurisdic;ao sobre as 
heresias. No entanto, nao houve conflitos relevan-
tes. 0 poder real costurou urn arranjo institucional 
do qual a Inquisi<;ao saiu fortalecida. 
A justi<;a ec1esiastica continuou tendo jurisdic;ao 
sobre os hereges. Mas, na pratica, em sintonia com 
as orienta<;6es reforrnistas do Concillo de Trento 
(1545-1563), dedicou-se aos delitos predOIninante-
mente morais. Quando os agentes do juizo episcopal 
e os visitadores diocesanos se deparavam com com-
portamentos considerados hereticos, eram prestati-
vos e enviavam os casos aos inquisidores. A principal 
diferenc;a entre os dois tribunais e que na Inquisi<;ao 
os processos corriam em segredo, os reus desconhe-
ciam seus denunciantes, os "advogados" nao tinham 
acesso aos autos e era utilizada a tortura. 
Diferentemente dos bispos, que depois de se 
tornarem inquisidores deixavam 0 cargo na dioce-
se, os oficiais que atuavam fora das sedes do Santo 
Oficio - como os comissarios, representantes 10-
cais do tribunal- podiam acumular, se quisessem, 
postos nas duas institui<;6es, Essa boa relac;ao foi 
importante para a presen<;a inquisitorial no Brasil. 
No seculo XVIII, os comissarios mais proeminentes 
da Colonia tambem eram ministros dos tribunais 
diocesanos. Normalrnente, eles eram formados em 
Canones - 0 ordenamento juridico da Igreja - pela 
Universidade de Coimbra. 
Entre 1718 e 1742, por exemplo, a Inquisi<;ao 
expediu diligencias a Gaspar Gon<;alves de Araujo, 
comissario no Rio de Janeiro, 36 vezes. Depois que 
se formou na Universidade de Coimbra, ele obteve 
colocac;6es mais elevadas do bispado fluminense. 
Dentre elas, 0 posto de vigario-geral, a maior auto-
ridade do juizo episcopal. Por isso, ele era urn dos 
preferidos dos inquisidores, e foi 0 sexto agente 
mais contactado no Brasil. 
A monarquia portuguesa estabeleceu uma com-
plexa alianc;a com 0 poder religioso. A Igreja e a 
Inquisi<;ao ate gozaram de certo grau de autonomia 
em deterrninados contextos. Tinham jurisdic;6es 
proprias, e seus agentes projetavam nelas ambic;6es 
de fazer carreira. Mas essa relativa autonomia nao 
abalava 0 quadro geral das instituic;6es geridas pelo 
rei. Nesse cenario, 0 tribunal inquisitorial foi criado 
e funcionou ate 1821. H 
ALDAIR CARLOS RODRIGUES E HISTORIADOR E AUTOR 
DE LlMPOS DE SANGUE: FAMILIARES DO SANTO OF/C/O, SOc/EDADE 
E INQUISI<;:AO EM MINAS COLONIAL (ALAMEDA. 20 I I). 
Os indios tambem 
foram perseguidos? 
QUANDO AS EPIDEMIAS grassaram nas Americas, 0 Tribunal foi mais rigoroso com aqueles que se 
dizimando numa guerra bacteriol6gica boa parte consagraram em verdadeiros rituais gentflicos, tao 
das popula<;oes indigenas; quando a explora<;ao do mais espantosos aos ouvidos do inquisidor. Varios 
trabalho dos nativos pelos colonos levou a escravi- indios foram acusados de beber jurema e "descer de-
za<;ao indiscriminada; quando a atua<;ao das ordens 
religiosas reduziu os indios nas missoes, ainda assim 
nao foram esses todos os desafios que os povos in-
digenas enfrentaram. Outro ainda estava por vir: a 
atua<;ao do Tribunal do Santo Oficio. 
Estudos indicam que 33 indios e mamelucos fo-
ram prisioneiros da Inquisi<;ao em Lisboa entre os 
seculos XVI e XVIII. Mas, se levarmos em conta as 
dentincias, 0 nfunero de casos e bern maior. Somen-
te no seculo XVIII foram registradas 273 denuncias 
contra indios e descendentes mesti<;os de diferentes 
procedencias etnicas por divers as razoes. 
Uma india de nome Narcisa, por exemplo, foi 
acusada em Vila de Borba Nova, em1755, de fazer 
urn maleficio: uma boneca, com cabelos, ossos de 
peixes, retalhos de roupas rotas e amarrilhos, tudo 
cravado com agulhas e alfinetes. Ao desmanchar a 
boneca, a irma da enferma, Benta de Souza, teve as 
maos feridas em chagas sem que houvesse curati-
YO, a nao ser com exorcismos e azeite bento. 
Narcisa e mais 157 indios acusados de feiti<;aria 
e praticas magicas nao escaparam dos agentes da 
Inquisi<;ao. Outros foram envolvidos em roubo, 
venda de h6stias consagradas para a produc;:ao de 
amuletos - as populares bolsas de mandinga - ou 
cartas de tocar, que sao os escritos usados como 
magia amorosa para seduzir 0 amado. 
Havia ainda indios que, por virtuosismo, desco-
briam os maleficios com adivinha<;oes, por meio 
de quibando, uma pratica de adivinha<;ao, recor-
rendo a peneiras e tesouras. Nomeavam seus mal-
feitores e desenterravam as velhacarias. Urn caso 
celebre e 0 de outra india, Sabina, em Belem, que 
atendia 0 pr6prio governador do Grao-Para, Joao 
de Abreu Castelo Branco. 
monios" , enquanto 0 mestre tocava 0 maraca ento-
ando a dan<;a embalada pela cantoria indigena. Uma 
dessas descri<;oes e a de D. Souza e Castro, indio prin-
cipal dos tabajaras, que foi dar conta pessoalmente a 
Mesa do Santo Oficio, em Lisboa, em 1720. Contava 
por meio de seu interprete, 0 padre Antonio Leal, 
que a india Antonia Guiragasu "invocava os demO-
nios que the respondiam varias perguntas do outro 
mundo". Para isso, "tomava umas grandes fuma<;as 
de tabaco de cachimbo ate ficar como fora de si". 
Outro motivo de dela<;oes foi a bigamia. Das 78 de-
ntincias, 24 foram processados, mas nao hci senten<;a 
final em 17 deles. Outros seis foram tornados como 
"casos extraordincirios de absolvic;:ao" pela "ignoran-
cia e rusticidade" dos indios. Essa senten<;a "benevo-
lente" nao poupou Cust6dio da Silva, em 1741. Aos 
28 anos, prestou seu depoimento por meio de urn in-
terprete. Foijulgado e qualificado como bigamo. Con-
denado, abjurou de leve, por ser suspeito de ferir os 
preceitos da fe cat6lica. Sob 0 olhar de urna multidao, 
fez auto da fe na forma costumeira. Foi a<;oitado pelas 
ruas de Lisboa ate a Igreja de Sao Domingos, onde, na 
presen<;a do rei D. Joao V, do principe e dos infantes 
D. Pedro e D. Antonio, inquisidores, ministros e toda 
a nobreza, foi sentenciado ao degredo por cinco anos 
para trabalhar nas gales de Sua Majestade. 
Como se ve, essas narrativas extraordinarias 
mostram 0 quanto ainda precisamos conhecer so-
bre a hist6ria do nosso Brasil indigena. H 
MARIA LEONIA CHAVES DE RESENDE E PROFESSORA DA 
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SAO JOAO DEL-REI E AUTORA DE 
"DEVASSAS GENTfLiCAS INQUISI<;:A O DOS fNDIOS NA MINAS 
GERAIS IN QU ISITORIAL", IN: RESENDE, MARIA l EONIA CHAVES 
DE; BRUGG ER, Srl VIA MARIA JARDIM (ORGS.) . CAMINHOS GERAIS 
ESTUDOS H/ST6RICOS SOBRE MINAS. (ED. UFSJ , 2005) 
Saiba Mais 
CARVALHO JR. "fndios 
hereges",in: indios 
cristaos. A conversoo dos 
gentios na Amazonia 
Portuguesa (1653-1769) . 
Campinas: IFCH/Uni-
camp, 2005 (T ese de 
doutoramento). 
VAINFAS, Ronaldo. 
A heresia dos indios: 
cotolicismo e rebeldia 
na Brasil colonial. Sao 
Paulo: Companhia das 
l etras. 1995. 
Ao fundo, gravura do 
seculo XVI mostra 
um chefe indigena 
sendo queimado pela 
Inquisic;ao. Alem de 
epidemias e escravi-
dao, os indios ainda 
t iveram que enfrentar 
o Tribunal do Santo 
Oficio. 
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"A nova gera~ao 
pesquisa a historia 
desse tribunal corrupto" 
Pioneira na pesquisa sobre a persegui(:ao aos 
cristaos-novos pela Inquisi(:ao no Brasil, Anita 
Novinsky e referencia nos estudos judaicos 
no mundo luso-brasileiro, Autora de obras 
que permanecem essenciais na abordagem 
do Santo Oficio, como Inquisic;ao. Cristaos 
novos na Bahia (1970, 1 g edi(:ao), a professo-
ra livre-docente da Universidade de sao Paulo 
foi desbravadora dos arquivos portugueses 
sobre 0 assunto. Nesta breve entrevista, ela 
avalia a atual produ(:ao brasileira e conclui 
que ainda hci muito para se descobrir. 
REVISTA DE HISTORIA A Inquisi<;:ao e um tema 
urgente no seculo XXI? 
ANITA NOVINSKY A Inquisi<;:ao foi uma institui-
<;:ao repressiva, de exterminio, propria de um regime 
politico totalitario. Hoje 0 mundo sofre amea<;:as do 
ignorando a a<;:ao de um tribunal de tenror, que atuou 
em todos os niveis da vida brasileira - economico, 
social, religioso e cultural. Hoje, em todos os estados, 
estudantes pesquisam a historia desse tribunal corrupto 
e arbitrario. As novas pesquisas estao trazendo a tona 
os interesses materiais dos inquisidores. 
RH 0 que, de fato, ignoramos? 
AN Tudo ainda esta por ser estudado na historia da 
Inquisi<;:ao no Brasil, que atuou do Amazonas ao Rio 
Grande do SuI. Ha estados ainda nao pesquisados, 
completamente virgens, como Alagoas. Interessam-nos 
as rela<;:oes economico-financeiras intemacionais, a vida 
clandestina, a resistencia, 0 contrabando, a religiosida-
de, os cristaos-novos na goveman<;:a, as blasfemias de 
uma popula<;:ao heterodoxa. 
fundamentalismo, do fanatismo, e isso e preocupante RH Como a Inquisi<;:ao afetou a coloniza<;:ao no Brasil? 
para 0 futuro da humanidade. Conhecendo 0 passado AN Afetou, por exemplo, a criatividade da popula<;:ao, 
historico, talvez os homens se conscientizem dos peri- ao proibir leituras, cnticas, estudos superiores e im-
gos que conremos. prensa. A Inquisi<;:ao foi responsavel, de acordo com 0 
poeta portugues Antero de Quental, pel a decadencia 
RH 0 que despertou 0 seu interesse pelo tema? dos povos peninsulares. 
AN Muita gente ignora a presen<;:a da Inquisi<;:ao no 
Brasil durante 300 anos. Houve prisoes, confiscos, tor- RH 0 Santo Oficio uniu ou separou os cristaos-
tura e morte de brasi leiros inocentes. Dois professores novos? 
da USP me incent ivaram: Joao Cruz Costa, de Filosofia, AN Os cristaos-novos foram solidarios com os que 
e Lourival Gomes Machado, de Sociologia. Os dois di- chegavam sem coisa alguma. Recebiam os fugitivos, 
ziam que e impossivel escrever a Historia do Brasil sem os desterrados, a quem davam tenras para trabalhar. 
estudar os cristaos-novos. Muitas vezes a popula<;:ao brasileira se recusou a com-
pactuar com os agentes da Inquisi<;:ao, 0 que levou um 
RH Percebe algum progresso nos estudos? govemador a tomar medidas severas. Durante toda a 
AN A nova gera<;:ao acordou para a necessidade de historia colonial , os cristaos-novos mantiveram uma vi-
compreendernros que a Historia do Brasil foi escrita sao do mundo bem diferente da dos cristaos-velhos.

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