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HABITABILIDADE E LUTAS PELO DIREITO A MORADIA 1 Ana Paula de Oliveira Vilaça (1); Luis de la Mora (2); (1) Mestranda Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ana.vilaca@uol.com.br (2) Prof. Dr. Universidade Federal de Pernambuco, luis_de_la_mora@hotmail.com RESUMO A comunicação procura refletir sobre a situação habitacional e urbanística de 421 áreas pobres da cidade do Recife, as quais congregam 43,36% dos habitantes, em 40.92% dos domicílios, ocupando 15,26% da área do município, para denunciar a gravidade do problema posto pelas precárias condições de habitabilidade, desta e da maioria das cidades brasileiras, caracterizadas pela heterogeneidade urbanística, segregação espacial e exclusão social. Num segundo momento, passamos a definir o conceito de habitabilidade, que não se limita apenas às condições físicas da unidade habitacional em si, mas a partir de uma visão ampla e integrada de suas várias dimensões e componentes, inclui a segurança da posse da terra, o traçado e a morfologia do assentamento, a infra-estrutura, os serviços públicos e equipamentos comunitários, e as condições de acesso e mobilidade. Nesse quadro complexo, marcado pelas desigualdades, emergem os movimentos sociais, como manifestação dos excluídos do mercado de trabalho e conseqüentemente do mercado imobiliário, e ao mesmo tempo excluídos das políticas urbanas e habitacionais. Finalmente, discutimos a relação dialética entre a lógica do capital (mercado imobiliário), a lógica do poder (políticas públicas) e a lógica da organização e mobilização popular para inserir-se na “cidade para todos” proposta pelas recentes conferências das cidades. Palavras-chave: segregação espacial, exclusão social, habitabilidade, movimentos sociais. 1. INTRODUÇÃO Se observarmos o quadro atual das cidades brasileiras, verificamos que a maioria delas são formadas por partes radicalmente heterogêneas e constituídas por conjuntos de segmentos sociais distintos, onde os ricos vivem isolados por imensos muros, grades e segurança própria, enquanto os pobres vivem segregados e marginalizados em áreas inundáveis, nas encostas dos morros, longe da infra-estrutura e do alcance dos equipamentos urbanos e comunitários, ou seja, nas áreas precárias e, até o momento, não cobiçadas pelo mercado imobiliário. Esses espaços de assentamentos precários marginalizados e excluídos se relacionam com a cidade formal, dos que comandam e participam da sociedade, ora de forma complementar, através do comércio e dos serviços, ora despertando conflitos de ordem urbana, social, gerencial e estética. Vale destacar que, no Brasil, o crescimento urbano bem como o desenvolvimento econômico e social sempre ocorreram associados à inclusão econômica subalterna e a exclusão social, especialmente com o fim da escravatura e a transformação do antigo escravo em trabalhador livre, mas agudamente pobre, no final do século XIX, quando as cidades começaram a ganhar nova dimensão e surgiu, de fato, o problema da habitação. VILLAÇA (1986) assinala que o que entendemos hoje por problema da habitação surgiu com o “homem livre” produzido pelo capitalismo e por suas configurações históricas, inclusive pelas especificidades da luta de classes que sob ele ocorrem. Segundo o autor, com o desenvolvimento do capitalismo e dos bens necessários para atender às necessidades humanas, a habitação começou a assumir a forma de mercadoria. 1 http://www.clacs04.org/tem_por.htm. Nome do Evento: claCS 04/ ENTAC 04, São Paulo, julho 2004 A exclusão econômica e social de grande parte da população, frente ao processo de produção do espaço urbano fortemente regulado pela lógica do mercado, tem impossibilitado o acesso de grandes contingentes populacionais à produção formal da cidade. A intensa invasão de terras urbanas no Brasil, que se vincula diretamente ao processo de urbanização do país, é uma questão estrutural, institucionalizada pelo mercado imobiliário excludente e pela ausência de políticas urbanas e habitacionais adequadas. No centro dessa problemática, está a questão da valorização fundiária e imobiliária, que define quem se apropria dos ganhos imobiliários e quem tem direito à cidade. Os obstáculos ao mercado habitacional formal constituídos pelo acentuado nível de pobreza e a política habitacional incapaz de atender as demandas crescentes da população, impedem, do ponto de vista dos gestores, um desenvolvimento urbano adequado e sustentável e estimula a produção de irregularidades. Porém, vale destacar também as funestas conseqüências para os próprios excluídos, que são obrigadas a viver em péssimas condições de habitabilidade, ou seja, em situações de precariedade e insegurança da posse, insalubridade e desconforto, além da violência e da promiscuidade decorrente da alta densidade residencial. Diante do quadro acima descrito, ressaltamos que esses assentamentos precários se multiplicaram nas várias cidades do país durante todo o século XX, através da solução de casa própria, empreendida pelos próprios moradores, que resolveu em grande parte o déficit de novas habitações surgido com a urbanização acelerada. Em função do grande número e da consolidação dessas ocupações, buscamos discutir as condições de habitabilidade dos assentamentos precários, bem como o papel dos movimentos sociais nesse processo, focalizando o caso da cidade do Recife. 2. OS ASSENTAMENTOS PRECÁRIOS NO RECIFE A cidade do Recife ocupa uma área de 220 km2, formada de subáreas com características próprias, que se distribuem da seguinte forma, 67,43% da superfície da cidade é formada por ambiente de morros de pequena elevação, 23,26% de ambiente de planície aluvionar e 9,31% de ambiente aquático. A cidade possui uma população urbana de 1.422. 905 habitantes, sem apresentar nenhuma zona rural, estando dividida em seis Regiões Político-Administrativas denominadas: RPA1 – Centro , RPA2 – Norte, RPA3 – Noroeste, RPA4 – Oeste, RPA5 – Sudoeste e RPA6 – Sul, que compreende os 93 bairros da cidade. (PREFEITURA DO RECIFE;FUNDAJ, 2001). O processo de urbanização se fez por aterros nas áreas de maré e nas terras procedentes dos latifúndios originários dos antigos engenhos de açúcar, onde as terras planas e secas adquiriram maior valor imobiliário, enquanto os baixios sujeitos a inundações e os terrenos dos morros que circundam a cidade passaram a ser ocupados pela população mais pobre. A estrutura urbana moldada pela economia açucareira – com a concentração de terras nas mãos de poucas famílias – e o fato de ser o Recife uma cidade situada entre o oceano, os rios e os alagados, tem favorecido o surgimento de conflitos de propriedade que acompanham desde o início o crescimento da cidade. Figura 01 – Vista geral da ocupação da cidade do Recife Dessa forma, o cenário urbano atual do Recife é caracterizado por fronteiras tênues entre áreas de alto valor de marcado, com padrões nobres de edificações e serviços de infra-estrutura, e assentamentos populares com casas precárias e tecido urbano tortuoso, sem infra-estrutura adequada, cujo contexto de contrastes nos dá a idéia da presença de dois mundos num só lugar. A cidade é então marcada por acentuadas desigualdades nas condições de moradia e de acesso a bens e serviços de consumo coletivo. Parcelas significativas da população, mais de 40%, residem em áreas com condições precárias de habitabilidade, que se estendem no centro e na periferia, nos morros e nas planícies. Hoje, no Recife, nenhum ponto está a mais de 1,2 Km destes assentamentos. Segundo dados do Censo 2000, o Recife possui 376.022 domicílios particulares permanentes,sendo 88% com abastecimento d’água ligado a rede geral, 97% possuem banheiro ou sanitário e 96% tem o lixo coletado. No que se refere ao esgotamento sanitário, 43% dos domicílios estão ligados à rede geral de esgoto ou pluvial, enquanto 15% possuem fossa séptica. Em se tratando da renda, em 53% do total de domicílios a pessoa responsável pelo domicílio recebe até dois salários mínimos. O Cadastro de Áreas Pobres da Cidade do Recife (2001) 2 identificou 421 assentamentos pobres na cidade, com um total de 659. 076 pessoas e 154.158 domicílios, com uma densidade demográfica bastante alta. O diagnóstico das áreas pobres do Recife mostra que as condições de moradia da população de baixa renda, de modo geral, estão muito aquém dos padrões desejáveis, não somente do ponto de vista das necessidades individuais, isto é, das unidades habitacionais em si, mas também das carências coletivas, ou seja, das condições básicas de infra-estrutura das áreas onde se localizam as habitações em que vive essa população. Figura 02 – Mapeamento das áreas pobres da cidade do Recife 2 PCR-URB/UFPE-FADE. Cadastro de Áreas Pobres da Cidade do Recife, 1998.In: PREFEITURA DO RECIFE;FUNDAJ, 2001 Quadro 01 – Precariedade Habitacional da cidade do Recife ÁREAS POBRES (Cadastro 1998) RECIFE (Dados Censo 2000) % DAS ÁREAS POBRES EM RELAÇÃO AO RECIFE ÁREA (ha) 3357,14 22000 15,25% POPULAÇÃO (hab) 659.076 1.422. 905 46,31% DOMICÍLIOS (unid) 154.158 376.022 41,00% DENSIDADE (hab/ha) 196,32 64,64 ------- Fonte: PREFEITURA DO RECIFE; FUNDAJ, 2001 Em relação a topografia, os assentamentos pobres se distribuem da seguinte forma: 143 (33,97%) assentamentos ocupando 1933,54ha (57,59%) de áreas de morros, 243 (57,72%) assentamentos ocupando 1254,55há (37,37%) de planície e 35 (8,31%) assentamentos ocupando 169,05há (5,04%) de alagados. Muito embora os morros sejam preponderantes em termos de hectares, eles não o são quando a referência é o número de assentamentos, o que leva à conclusão de que a pobreza se encontra mais concentrada na planície. Quase 70% desses assentamentos apresentam algum tipo de risco relacionado à topografia da área onde se encontram localizados, aparecendo o desabamento e a inundação como os fatores de risco predominantes. (PREFEITURA DO RECIFE;FUNDAJ, 2001). Figura 03 - Expansão sobre encosta de morro, no Vasco da Gama, Buriti. Fonte: Programa Viva o Morro, 2003. Com relação ao tempo de existência, dos 421 assentamentos pobres existentes, 380 (90,26%) tem mais de 10 anos de existência, já se encontrando, portanto, consolidados no tempo e com uma história sendo construída a cada dia. Os demais tem entre 5 e 10 anos, 36 (8,55%), e somente 5 áreas (1,19%) têm até 5 anos de existência. No que se refere à renda familiar, constata-se o predomínio de 296 áreas (70,31%) com faixa de rendimento entre 1 e 2 salários mínimos, verificando-se ainda 49 áreas (11,64%) com renda familiar inferior a 1 salário mínimo. Esses dados indicam a dimensão da pobreza em que se encontra a população das áreas pobres do Recife. (PREFEITURA DO RECIFE;FUNDAJ, 2001). O padrão construtivo das áreas pobres é, de modo geral, bastante precário, no entanto, a tipologia construtiva predominante, é a alvenaria, que aparece em 89,31% do total de assentamentos. Em seguida, estão 9,74% dos assentamentos com predomínio de restos de materiais, 0,71% com predomínio de madeira e 0,24% com predomínio da taipa. Em se tratando da infra-estrutura, chama atenção os dados referentes ao esgotamento sanitário e à drenagem, onde 92,16% das áreas pobres não possuem rede de esgoto e em 40,86% a ausência de drenagem é total. (PREFEITURA DO RECIFE;FUNDAJ, 2001). Diante desse quadro, o Recife tem se destacado a nível nacional com propostas inovadoras na intervenção de áreas pobres, uma vez que, desde o início da década de 80, institucionaliza grande parte de suas áreas pobres como Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS e, posteriormente, cria o Plano de Regularização das ZEIS – PREZEIS, que se torna um instrumento de planejamento e participação popular de referência. No entanto, o levantamento da produção habitacional na última década mostra que os resultados e os impactos ainda são inexpressivos, mesmo nas áreas ZEIS, que foram os espaços privilegiados pelas intervenções. 3. DISCUTINDO AS CONDIÇÕES DE HABITABILIDADE A dualidade entre a cidade formal x cidade informal é uma constante na maioria de nossas cidades. GORDILHO-SOUZA (2000:15), ao tratar da relação pobreza/urbanização, define segregação como “separação da população no espaço habitacional por classes sociais relacionadas à renda, em localizações distintas, com características físico-ambientais diferenciadas”, e conceitua exclusão como “privação do direito dos benefícios urbanos individuais e coletivos”, os quais se revelam nas cidades brasileiras através de espaços segmentados para cidadãos e não-cidadãos, construídos de forma aleatória, deficiente e desassistidos pelo poder público. Tais espaços constituídos pelos assentamentos populares são caracterizados pela sua precariedade que se expressa pela ocupação desordenada das habitações, ocupação de áreas de risco (áreas inundáveis, encostas...), carência de infra-estrutura física, equipamentos urbanos insuficientes, irregularidade do assentamento quanto à propriedade do solo e/ou quanto às condições de uso e ocupação do solo previstas nas legislações, predação ambiental, desemprego, pobreza, violência e proliferação de doenças. Assim, é possível perceber nas nossas cidades, cuja reprodução do espaço segue a lógica capitalista, a existência desses dois fenômenos: a segregação espacial e a exclusão social, que determinam diferentes condições de habitabilidade e de acesso às benfeitorias urbanas. Diante desse contexto, buscamos discutir o que entendemos por condições de habitabilidade a fim de se compreender o problema habitacional de uma forma mais ampla e integrada, e que a partir daí, sejam elaboradas propostas mais abrangentes e que garantam a sustentabilidade das iniciativas. Primeiramente, acreditamos que as condições de habitabilidade se referem não apenas às questões relacionadas à unidade habitacional em si, mas à configuração urbana, de posse da terra, de oferta de infra-estrutura, equipamentos comunitários e serviços públicos, condições de higiene e salubridade bem como de acesso e mobilidade que envolvem todos os tipos de assentamentos precários. Procuraremos a seguir apresentar algumas indicações e/ou recomendações para cada um desses aspectos apresentem soluções adequadas e sustentáveis. Em relação a unidade habitacional, o material de construção deve ser durável e resistente, o número mínimo de cômodos deve ser quarto, sala, banheiro e cozinha, as divisórias internas devem garantir privacidade, as instalações elétricas e hidráulicas devem ser bem instaladas e seguras, e deve-se garantir ainda uma boa ventilação e iluminação. No que se refere à configuração urbana consideramos como princípio básico a permanência da população nas suas áreas de origem, buscando manter as características do parcelamento e da estrutura fundiária, bem como respeitar as estruturas físicas das edificações existentes, para que se possa, a partir daí, elaborar projetos de intervenção específicos para essas áreas.Trata-se de intervir sobre uma realidade estética de uma paisagem em que a ocupação original não foi orientada por um projeto técnico, “resultando em uma qualidade espacial específica, social e historicamente construída”. (BUENO,2000). O estudo e identificação das configurações espaciais distintas; a leitura e análise dos padrões de ocupação segundo a sua decomposição em elementos analíticos tais como a forma urbana e os tipos construídos; e a análise das relações entre os edifícios e o lote permite a elaboração de projetos mais sustentáveis e adequados à realidade local. A fim de se promover a regularização jurídica da posse da terra em áreas ocupadas pela população de baixa renda devem ser utilizados três instrumentos, de acordo com cada caso: Usucapião para áreas particulares, com posse ininterrupta e sem oposição de no mínimo 5 anos, com área máxima de 250m 2 , não sendo proprietário de outro imóvel urbano ou rural e sendo utilizada para fins de moradia; a Concessão de Uso Especial para fins de moradia, no caso de terras públicas e a CDRU – Concessão do direito real de uso, aplicável a terrenos públicos ou particulares, de caráter gratuito ou oneroso, para fins de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra ou outra utilização de interesse social. A oferta de infra-estrutura deve estar baseada em projetos elaborados especificamente para a realidade dos assentamentos precários, com preocupações de custo, qualidade, cobertura e sobretudo de manutenção, de modo que contemple: rede de água, rede de esgoto, rede de drenagem, rede viária, pavimentação, rede elétrica e rede telefônica. Os serviços públicos devem ser ofertados de maneira eficiente e eficaz, sobretudo com qualidade e regularidade, dentre os quais destacamos: coleta e tratamento do lixo, inclusive com a possibilidade de implementação de programas de coleta seletiva;limpeza pública e varrição, eliminação de vetores, através, de vacinação e fumacé, por exemplo; programas preventivos de saúde como os de agentes de Sáude da Família; Iluminação Pública em todas as ruas e áreas de convivência, Segurança Pública e Correios. Os equipamentos comunitários visam incentivar e promover a sociabiliade da comunidade, minimizando inclusive problemas relacionados às drogas e violência, e assim devem ser definidos de acordo com os anseios e as potencialidades locais, dentre os quais ressaltamos: creches, escolas, centros profissionalizantes, centros comunitários, Postos de Saúde, Postos de Segurança Comunitária, praças, parques, campos de futebol e Ponto de ônibus. Esses equipamentos possibilitam uma maior convivência entre as pessoas, bem como uma maior integração dos assentamentos precários com as áreas vizinhas. As boas condições de higiene e salubridade devem ser buscadas através de algumas medidas que visem tornar a área drenada, saneada, sem lama nem poças d’água, sem poeira, sem esgoto à céu aberto, sem mosquitos e ratos, onde as redes de água e esgoto, drenagem, coleta de lixo, limpeza pública e o combate aos vetores funcionem adequadamente. No que se refere ao acesso e à mobilidade, deve-se evitar a necessidade de percursos longos, onde se precise caminhar no máximo 10 minutos, sobretudo por conta das crianças e idosos. O transporte coletivo deve ser priorizado e devem ser observadas algumas condições: o ponto de ônibus deve ficar próximo a comunidade e deve ser protegido das intempéries, a freqüência das linhas deve ser adequada a demanda, devem ser assegurados conforto, rapidez e segurança nos transportes, bem como o preço das passagens devem ser compatíveis com os rendimentos da população. Além do transporte coletivo, podem ser incentivados outros meios de transporte, como a bicicleta. Como vimos, o acesso da população a adequadas condições de habitabilidade é mediado pelo acesso ao Mercado de Trabalho, ao Mercado Imobiliário e ao Mercado Político, bem como pela atuação das Políticas Urbanas e Habitacionais, onde fatores como dinheiro, prestígio, educação e profissionalização acabam favorecendo e beneficiando às camadas privilegiadas, restando apenas a união e a luta para as classes mais pobres como possibilidades de se alcançar as condições de habitabilidade tão almejadas. 4. EXLUSÃO SOCIAL E MOVIMENTOS SOCIAIS O quadro descrito acima, caracteriza com todo seu rigor as manifestações de exclusão social conseqüências do modelo de desenvolvimento adotado no Brasil desde os primórdios da sua formação social, econômica e política. A exclusão econômica, decorrente de altas taxas de desemprego e de subemprego e da baixa remuneração, contribui de forma essencial para a conformação de um cenário de exclusão social ou ainda de espoliação urbana que Kowarick define como “o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho.” (KOWARICK,1979:59). Essas manifestações de exclusão social se expressam de diferentes maneiras: na falta de acesso e pouca permanência na escola de enormes contingentes da população, agravada ainda pela má qualidade do ensino básico oferecido nas redes públicas; nas condições de saúde, decorrentes da má alimentação e das condições de higiene precárias, acentuadas pela ausência de serviços preventivos eficazes e pelo precário funcionamento dos serviços básicos de saúde. É fácil relacionar as precárias condições de higiene à inexistência ou mal funcionamento dos serviços relativos aos saneamento: infra-estrutura de abastecimento d’água, drenagem, coleta de esgoto e lixo, além do combate aos vetores transmissores de doenças. As condições de habitabilidade descritas na primeira parte desta comunicação descrevem com toda clareza as condições subhumanas as quais estão condenados os habitantes pobres das nossas cidades. Nesta situação, como conseqüência de processos de reflexão crítica da prática, espontânea ou estimulada por agentes de conscientização, é que emergem os movimentos sociais na esfera da reprodução e do consumo, para encontrar formas de sobrevivência dentro da cidade excludente. Para nós, os movimentos sociais surgem quando uma determinada categoria social toma consciência de alguns aspectos da sua situação de espoliação e organiza seus componentes para lutar visando a preservação ou conquista de um direito reconhecido como legítimo e justo por eles 3 São varias as formas como a Sociedade Civil se relaciona com o Estado, como por exmplo, através da eleição dos governantes, aqueles que por um determinado período dirigirão dos destinos da cidade, do estado ou do país, e através do pagamento de impostos, fonte de recursos para colocar em movimento a maquina administrativa e promover políticas públicas em beneficio dos contribuintes, que são também eleitores. Quando a população que elegeu e que paga impostos espera serviços públicos que não chegam na quantidade e principalmente na qualidade requerida para assegurar uma vida digna para os habitantes, surge assim uma outra forma de relação: alguns membros da sociedade mais esclarecidos, refletindo sobre suas precárias condições de existência resolvem organizar-se e mobilizar-se para exigir serviços de educação, saúde, cultura, lazer, justiça, segurança e principalmente acesso à cidade: acesso ao solo urbano, à uma casa com as condições mínimas de segurança, conforto e higiene, ao transporte público para permitir o acesso ao trabalho, escola ou locais de abastecimento. 5. LUTAS URBANAS PELA CONQUISTA DE CONDIÇÕES DIGNAS DE HABITABILIDAE Nas nossas cidades, a forma natural de acesso ao solo urbano e a moradia dá-se através do mercado imobiliário onde a oferta de terrenos e de unidades residenciais se encontram com a demanda constituída pelos compradores dotados de capital próprio ou muito mais freqüentemente de crédito.Acontece que os custos da produção do espaço habitável são dados pelos custos dos terrenos, dos materiais de construção, das máquinas, da tecnologia, da mão de obra, dos juros do capital empregado, dos impostos e da taxa de lucros, entre outros fatores. Os números e a capacidade dos compradores, considerada demanda solvável, decorrem do potencial de gerar renda no mercado de trabalho. A população dotada de capacidades e principalmente oportunidades radicalmente heterogêneas enfrenta o mercado de produção e trabalho também de forma muito diversificada. Como conseqüência, um grande número de pessoas não consegue ingressar no mercado de trabalho formal e vão aumentar o exército de desempregados e trabalhadores eventuais, sempre sub-remunerados. Aqueles que superam, de alguma maneira, essa primeira barreira vão enfrentar o mercado imobiliário onde encontrarão facilidades ou dificuldades para ingressar nele. Os que conseguem, atingem finalmente o sonho almejado: ter acesso formal à cidade, os que não, continuarão fora do mercado imobiliário utilizando-se das mais diversas formas alternativas. De forma similar a este processo de acesso ao espaço urbano e a moradia, gerido e configurado pela lógica da acumulação do capital via maximização de lucros e minimização de custos e conseqüentemente de qualidade, do outro lado temos a vertente do acesso ao solo urbano e à moradia via a política pública habitacional. Analogamente à via de acesso através do mercado de trabalho e imobiliário, nesta outra via, antes de enfrentar os critérios de seleção de cada programa habitacional, os habitantes tem que superar um mercado preliminar: o mercado político, que assim como o mercado de trabalho, inclui ou exclui os grupos dependendo do perfil político do governante em turno. Tem governos que priorizam as políticas urbanas e habitacionais de inclusão social mais que outros. E mesmo aqueles que facultam o acesso dos excluídos aos programas habitacionais, tem comportamentos diferenciados: uns utilizam critérios e procedimentos mais democráticos, transparentes e justos na hora de selecionar candidatos, e outros continuam a utilizar critérios e procedimentos clientelistas e eleitoreiros. Assim pela via da política urbana e habitacional termos como resultado que alguns terão acesso à cidade, ao solo urbano e a moradia, e outros, infelizmente a maioria, irão juntar-se ao contingente dos 3 DE LA MORA, Luis. “Os movimentos sociais na formação do espaço urbano recifense” In: RESENDE et al. Recife que estória é essa? Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1987. excluídos do mercado de trabalho. Resta uma terceira via. Uma via síntese entre as duas anteriores. A via que exige a organização e a mobilização de grupos de sem-teto, para conquistar o direito à cidade. Esta terceira via é constituída pelos excluídos do mercado de capital e do mercado de poder. No entanto, confrontam tanto o capital quanto o poder. As ocupações urbanas quebram a legalidade do código civil, do direito à propriedade, mesmo atribuindo um grande valor à propriedade, tanto é que estão lutando para ter acesso a ela. Confrontam também a ordem mantida pelo poder público, não sendo raros os atos de violência nos enfrentamentos com a polícia. Mas por outro lado, organizam outra ordem para assegurar o sucesso e a sustentabilidade da ocupação. As decisões tomadas coletivamente constituem regra sagrada respeitada por todos. A unidade do movimento, o respeito ao acordado entre eles constitui a garantia da permanência no local. A lógica da primeira via é fundada no lucro e na capacidade de compra dos clientes. A lógica da segunda via é fundada na legitimação do poder público e na capacidade do povo de se fazer ouvir. Ao passo que a lógica da terceira via é fundada na união, na organização, na persistência e na luta para conquistar um lugar numa cidade para todos. 6. MUDANÇAS DE PARADIGMAS NAS POLÍTICAS URBANA E HABITACIONAL Nesse contexto de confronto e luta entre interesses hegemônicos do capital e do Estado legitimador da exclusão social de um lado e os excluídos do mercado de trabalho e do poder de outro, os atuais paradigmas das Políticas Urbanas e Habitacionais registram sinais de mudança. As políticas excludentes do ponto de vista econômico e político desenvolveram ao longo dos tempos ações de erradicação das sub-habitações: mocambos, cortiços, casebres, etc. As políticas de desfavelização, implantadas desde a primeira metade do século XX no Brasil, tiveram sua origem no higienismo que, pretendendo erradicar as doenças, combatia os seus focos. Assim, o mocambo, o casebre, a favela eram considerados focos de doenças (físicas e sociais) e conseqüentemente deveriam ser erradicados (com seus habitantes dentro deles). Erradicava-se a favela e o favelado. Felizmente, o ideário urbanístico excludente e segregador começou a mudar nas últimas décadas do século XX com o surgimento de uma nova maneira de perceber e interpretar a cidade. A política urbana e habitacional que começa a consolidar-se fundamenta-se nos princípios da inclusão social, da agregação dos diferentes no espaço urbano e da construção da cidadania. Destacamos, nesse sentido, o papel fundamental dos movimentos sociais pois acreditamos que padrões de habitabilidade mais elevados só serão alcançados quando a população conseguir desenvolver canais de reivindicações vigorosos e autônomos, tanto no que se refere às condições de trabalho como de melhorias urbanas. Nesta nova perspectiva, a cidade é o locus no qual as pessoas exercitam sua cidadania, sua humanidade e sua dignidade. A cidade é um meio, as pessoas são o fim, as pessoas são o foco de atenção. A cidade deve ser construída e preservada de tal forma que permita oferecer condições dignas de habitabilidade para todos os seus habitantes bem como inclusão econômica, social, cultural e política. Assim procedendo, caminharemos no sentido de podermos construir uma cidade para todos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. BUENO, Laura Machado de Mello. Projeto e favela: metodologia para projetos de urbanização. São Paulo, 2000. 362p. Tese. De Doutorado - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. DE LA MORA, Luis. “Os movimentos sociais na formação do espaço urbano recifense” In: RESENDE et al. Recife que estória é essa?Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1987. GORDILHO-SOUZA, Ângela. Limites do Habitar: segregação e exclusão na configuração urbana contemporânea de Salvador e perspectivas no final do século XX. Salvador: EDUFBA, 2000. KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. MORA, Luis de la. Os movimentos sociais na formação do espaço urbano recifense. In: Recife, que estória é essa?. Resende, Antonio Paulo, et alii. Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1987. PREFEITURA DO RECIFE; FUNDAJ. A Habitação de Interesse Social no Recife. Recife: Prefeitura do Recife; FUNDAJ, 2001. VILLAÇA, Flávio. O que todo cidadão precisa saber sobre Habitação. São Paulo: Global, 1986.
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