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As Narrativas
Na obra Poética da Prosa, Tzvetan Todorov sintetiza os parâmetros que deve seguir um investigador na análise de narrativas, conforme a proposta dos formalistas russos
1) uma classificação tipológica e não genética: o analista deve examinar o próprio texto, a sua estrutura interna, e não as influências diretas de uma obra sobre outra;
2) definição do tema, ou seja, a sequência de acontecimentos (e não apenas de imagens) como é apresentada na obra, sendo que, no romance, após o desfecho do tema, deve haver um certo declínio, enquanto na novela e no conto, o desfecho em ápice coincide com o fim do texto. 
4) identificar uma gramática da narrativa (léxico), a fim de que seja possível associar tanto a trama quanto os personagens a frases e seus componentes (substantivos, verbos, advérbios, adjetivos etc.);
5) por fim, a estrutura da narrativa pode ser evidenciada tanto na relação entre os personagens, destacando-se as oposições e as afinidades entre eles, quanto nos diferentes estilos de narrativa, ou mesmo no ritmo do texto determinado pelo autor. 
Sintetizando: Todorov orienta o analista de uma narrativa a observar que, em alguns textos, cada personagem representa uma nova trama. Assim, nem sempre é possível separar a análise do tema da análise dos personagens. Esse tipo de personagem, que por si só estrutura todo o enredo e modifica-o, é chamado pelo teórico de “homens-narrativa” e apresenta, como exemplo, Sherazade, personagem central da obra As Mil e Uma Noites. (TODOROV, Tzvetan. Poética da prosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003.)
Ao analisar a obra O Capote, de Nicolai Gogol, Boris Eikhenbaum evidencia a oposição entre os personagens como elemento fundamental do texto. A trama se passa na Rússia czarista, e tem como personagem principal Akáki Akákievitch Bachmátchkin, um funcionário público que necessita comprar um capote (agasalho reforçado para uso em baixas temperaturas). Como tem pouco dinheiro, faz economias até conseguir mandar confeccionar o agasalho, mas só o utiliza por apenas um dia, pois é assaltado. Sem a ajuda das autoridades, acaba debilitado e falece.
A narrativa, a partir de então, elabora-se numa atmosfera fantástica e apresenta o personagem como um fantasma que vaga pela cidade em busca de seu capote. Akáki, já fantasma, vinga-se ao assustar um importante funcionário público que lhe havia negado ajuda, e rouba-lhe o agasalho. O personagem se destaca por qualidades pouco comuns ao seu cargo de funcionário público, e é nesse ponto que ele se opõe aos demais personagens da narrativa. Akáki é dedicado ao trabalho e conforma-se com o baixo rendimento, o que o faz ser estigmatizado por seus colegas. Akáki sente mágoa, fome, medo, desespero e impotência diante da própria vida.
O estranhamento é apresentado ao leitor pelo próprio narrador do texto: 
Mas quem poderia imaginar que não dissemos tudo a respeito de Akáki Akákievitch, condenado a tornar-se famoso alguns tempos depois da morte, como recompensa de uma vida que passou ignorada? Sucedeu efetivamente isso, e a nossa pobre história tem uma abrupta conclusão. Começou a difundir-se por são Petersburgo o rumor de que na ponte de Kaliukine, nas ruas vizinhas e nos bairros a que ela conduzia aparecia de noite um fantasma, com aspecto de funcionário público, que procurava um capote roubado e tirava capotes de todos os ombros, sem diferençar classes ou profissões:
Boris Eikhenbaum realiza uma análise de O Capote na qual destaca também a figura do narrador em oposição ao personagem central. O narrador da história é irônico, ao contrário de Akáki. Segundo Eikhenbaum, através do narrador “transfere-se o centro de gravidade da trama, reduzido então ao mínimo, para os procedimentos de narração direta”. 
Outra interessante análise a ser realizada na obra O Capote, seguindo a instrução dos formalistas russos, é o contraste entre personagens, em que se destacam: a) Akáki x a pessoa importante; b) Akáki, vivo x Akáki fantasma.  Na primeira oposição, temos a diferença social determinada pela condição financeira de cada personagem; na segunda, um “duplo” que elabora o personagem principal em seu contraespelho, visto ser Akáki vivo tímido, conformado, ironizado pelos colegas, e Akáki fantasma, corajoso, ousado e ávido por fazer justiça.
A fim de consolidar nosso conhecimento acerca da análise de narrativas de acordo com a orientação dos formalistas russos, destacamos uma análise de um fragmento da obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, realizada pelo professor Roberto Acízelo, na qual destaca outra característica do método formal, o desvio. Eis o fragmento utilizado:
“O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus, - um soldado descansava. Descansava... havia três meses. Morrera no assalto de 18 de julho”.
Segundo o professor Acízelo, o desvio, no fragmento acima, é provocado por um fato léxico, ou seja, de vocabulário, mais especificamente quanto ao uso do verso “descansar”, combinado com um fato sintático, determinado pela pontuação. “O primeiro parágrafo termina com a palavra ‘descansava’, que em princípio nada tem de especial. Mas algo especial se prepara, quando o parágrafo subsequente se inicia com a mesma palavra ‘descansava’, à qual se segue a suspensão momentânea da frase, pelo emprego das reticências, concluindo-se o período com o segmento ‘havia três meses’. Assim, antecipa-se o verdadeiro sentido daquele ‘descansava’ inicial, finalmente revelado pela palavra que abre o último parágrafo: ‘morrera’”. 
Com relação ao fato sintático, Roberto Acízelo esclarece que o uso das reticências é incomum, pois, ao invés de encerrarem a frase, “operam um corte no meio dela, criando rápido suspense logo desfeito pela precipitação de seu segmento terminal”. Tratam-se, ambos os desvios, de uma proposta autoral organizada, que foge ao comum da linguagem e constituem a literariedade (literaturnost) do texto. 
Finalizando as análises de estruturas narrativas, não se poderia deixar de evidenciar uma análise formalista dos aspectos morfológico, fonológico e semântico do texto que, muitas vezes, se completam para a melhor compreensão da proposta autoral. Para tanto, destacamos o conto “A Terceira Margem do Rio” , de João Guimarães Rosa.
“Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — ‘Cê vai, ocê fique, você nunca volte!’ Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. 
O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — ‘Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?’ Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa”. (ROSA, João Guimarães. A Terceira Margem do Rio. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988).
O conto organiza-se por construções frasais incomuns, marcadas tanto pela oralidade, o que se define pelo léxico utilizado, quanto pelo uso de recursos sintáticos variados.  Forma-se, então, a literariedade do texto. O texto apresenta desvios fonológicos que definem a sua oralidade, especialmente no tocante à repetição de preposições e advérbios. O fragmento selecionado é o único, em todo o texto, que apresenta discurso direto livre, representado pelas falas da mulher e do filho, e é nesse trecho que se destaca um desvio morfológico marcado pela substituição do pronome “você” por “ocê”.
Entretanto, são os desvios semânticos que enriquecem o conto de Guimarães Rosa. Destacamos os seguintes exemplos:- sem alegria nem cuidado: a oposição entre os dois
substantivos estabelece um espaço intermediário em que o personagem “pai” se mantém alheio à própria família, voltado apenas para o seu projeto de partir na canoa;- decidiu um adeus para a gente: o uso do verbo, neste caso, desestabiliza o leitor, que entende ser este um ato definitivo;- Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida: “esbravejar” x “alva de pálida” indicam o que se esperava como reação da mulher abandonada pelo marido e como a surpresa e a dor limitaram sua atitude diante da decisão inesperada do personagem “pai”;
- E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.: neste caso, destaca-se tanto a comparação entre a canoa e o jacaré, dando conta ao leitor da realidade espacial dos personagens, quanto a aparente redundância da construção “comprida longa”, o que pode ser compreendido como a lentidão do movimento da canoa sobre o rio e a ação do sol, provocando uma sombra extremamente longa sobre as águas.
O formalismo russo considera a literariedade igualmente na poesia e na prosa, cabendo ao investigador elaborar uma análise linguística que realce as características imanentes do texto literário. 
Morfologia do Conto Maravilhoso –V.Propp
A palavra “morfologia” tem como significado estrito “o estudo das formas”. Inicialmente aplicado à botânica, esse estudo foi aplicado à ciência literária e constitui a base do pensamento do Formalismo Russo. Da mesma forma que o botânico estudava cada parte de uma planta e a relação desta parte com as outras partes da mesma planta, descrevendo sua textura, os formalistas estudaram partes do texto literário isoladamente e, após, sua relação com os outros componentes do mesmo texto.
Vladimir Propp aplicou esse método ao estudo do folclore russo, especificamente aos contos de magia, a fim de comprovar a sua estreita relação com a literatura.  Preocupava-se o autor com o fato de que a maior parte dos estudos sobre os contos apresentava uma tendência a compreender a sua gênese e não em descrever o próprio conto. Estudar o conto e descrevê-lo morfologicamente resultaria na compreensão do objeto de análise, caminho necessário a um estudo eficaz dessa produção espontânea e popular, mas inegavelmente rica e valiosa para a formação e identidade cultural de um povo.
Propp opôs-se às tradicionais classificações estabelecidas para os contos populares. Por exemplo, não aceitava a divisão dos contos em: 1. contos miraculosos; 2. contos de costumes; 3. contos sobre animais. A dúvida suscitada pelo morfologista era se não seria possível que um conto sobre animais, por exemplo, não pudesse ser também miraculoso, ou seja, no decorrer do conto, não poderia haver uma permutabilidade dos elementos? 
Mais um problema levantado por Propp em relação às classificações tradicionais é a inserção de elementos de outras culturas nos tradicionais contos russos. Uma visão ocidental da mesma história alteraria substancialmente a proposta inicial de um conto que tivesse origem na cultura do Oriente. 
Outras diversas classificações são questionadas por Propp e, por esse motivo, o morfologista apresentou um estudo dos contos maravilhosos que fosse fundamentado em sua estrutura. Vladimir Propp defende sua pesquisa: “O estudo de todos os aspectos do conto maravilhoso é a condição absolutamente indispensável para seu estudo histórico. O estudo das leis formais pressupõe o estudo das leis históricas”. 
“Se não soubermos decompor um conto maravilhoso em suas partes constituintes, não poderemos estabelecer nenhuma comparação exata. E se não soubermos comparar como poderemos projetar uma luz, por exemplo, sobre as relações indoegípcias, ou sobre as relações da fábula grega com a fábula indiana etc.? Se não soubermos comparar os contos maravilhosos entre si, como estudar os laços existentes entre o conto e a religião, como comparar os contos e os mitos? 
Finalmente, assim como todos os rios vão para o mar, todos os problemas do estudo dos contos maravilhosos devem conduzir no final à solução desse problema essencial até hoje não resolvido, o da semelhança entre os contos do mundo inteiro”. (PROPP, Vladimir Iakovlevich. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984. p. 15)
Continua...

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