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História oral e tradição oral indígena em Roraima Carla Monteiro de Souza* Maria Georgina dos Santos Pinho e Silva** Entre as culturas indígenas, a narração oral (re)passa as experiências vividas no dia a dia, agregando as memórias das várias épocas ao presente. Como prática social, o ato de narrar oralmente ressignifica as tradições por meio do contar as histórias de caráter imemorial e ancestral, enfatizando a dimensão dinâmica das culturas, notadamente quando pensamos nas trocas e encontros culturais entre indígenas e não indígenas. Neste caminho, atuam na construção e explicitação das identidades. Nesta perspectiva, abordamos aspectos da pesquisa realizada na Comunidade São Jorge, junto ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Roraima, intitulada Filigranas de vozes... performance dos narradores e o jogo de significados nas narrativas orais indígenas da Comunidade São Jorge-RR. As histórias míticas e lendárias povoam o múltiplo e plural mundo indígena roraimense. De acordo com o IBGE, Roraima tem a menor população e a menor densidade demográfica do Brasil, mas possui uma das maiores populações indígenas do país. O antigo Território Federal de Roraima, criado em 1943, e transformado em estado em 1988 constitui a fronteira extrema norte do Brasil, confina com os estados do Amazonas e Pará tem uma extensa fronteira internacional: com a República Cooperativista da Guiana (antiga Guiana Inglesa) e a República Bolivariana de Venezuela (BARBOSA, XAUD E SOUZA, 2005, p.11). Nesta tríplice fronteira trilíngue (português, inglês e espanhol) várias línguas indígenas lutam para continuar existindo. Segundo dados do Instituto Sócio Ambiental (ISA), Roraima tem 33 terras indígenas homologadas1, conquistadas a partir da luta dos povos indígenas da região e de suas associações, das quais se destaca o Conselho Indígena de Roraima-CIR. A luta pela valorização das culturas dos grupos indígenas caminha para e passo com as reivindicações pelos seus direitos, como o direito à saúde e à educação. A Comunidade São Jorge integra a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSDS), que foi * Doutora em História pela PUC/RS. Professora do Curso de História e do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Roraima-UFRR. ** Mestre em Letras pela UFRR. Professora da Universidade Estadual de Roraima-UERR. 1 http://www.socioambiental.org/pt-br/o-isa/programas/povos-indigenas-no-brasil. Acesso em 19/08/2013. Dentre elas se destacam em extensão as Terras Indígenas Yanomami, a Wai-Wai, a Waimiri-Atroari, a São Marcos e a Raposa Serra do Sol. reconhecida pela FUNAI, em 1993, demarcada e homologada em 2005 depois de um longo processo que mobilizou vários atores sociais. Localizada na fronteira Brasil/Venezuela/Guiana, a TIRSDS tem 1.743.089 de hectares de área contínua, que equivalem a 7,7% da área do estadual, nos quais vivem cerca de 20 mil indígenas, das etnia Macuxi, Wapixana, Ingaricó, Taurepangue e Patamona (SILVA, 2013, p, 31). Segundo as entrevistas realizadas por Georgina Silva, em 2011, a Comunidade foi formada por indígenas macuxi, por volta de 1915, pelos ancestrais dos narradores que colaboraram na pesquisa, Srs Severino e Dilmo (pai e filho). O Sr Dilmo explica assim a formação da comunidade: Tudo começou quando as famílias saíram da Serra do Panelão em busca de barro para fabricarem seus utensílios domésticos, e encontraram o igarapé do Barro, abundante em argila. Devido a distância entre o Panelão e o local onde pegavam o barro, o Sr. Geraldo Barbosa resolveu mudar-se para o lugar com sua esposa e as outras famílias, onde se instalaram à margem esquerda do rio Surumu. Com a chegada dos fazendeiros no local, Lucinda Barbosa conversou com o esposo e as famílias para se deslocarem para a outra margem do rio, no qual nomearam de mere meren’ pai, que em macuxi significa “cobra grande”. (SILVA, 2013, p. 33) É interessante ressaltar que os fatos relatados assemelham-se à uma das histórias analisadas na pesquisa, intitulada A Comunidade do Barro, que conta a origem mítica das comunidades desta região. Observa-se aqui que a origem lendária se cruza com a origem histórica no momento em que o narrador é instado a definir a si e a seu grupo de pertença O nome da Comunidade relaciona-se à convivência dos indígenas com os padres missionários do Instituto Consolata e à sua influência na região. Segundo os narradores, foi numa roda para contar histórias que o padre contou a história do santo guerreiro, São Jorge, e, segundo o Sr Dilmo, o Chefe e as famílias resolveram mudar o nome da comunidade, por se considerarem eles também grandes guerreiros (SILVA, 2013, p, 34). Na Comunidade apenas o Sr Severino fala e entende fluentemente a língua majoritária, o Macuxi. No momento da pesquisa era composta por dezoito residências, a maioria de adobe e taipa, cobertas de zinco, palha e telha industrial, conta com água encanada e energia elétrica. Cerca de 50% dos moradores vivem da lida na roça (SILVA, 2013, p, 34). Contudo, observamos que a presença destes elementos de modernidade na vida cotidiana da Comunidade não inibe práticas que são importantes social e culturalmente, como o ato de contar as histórias que vieram dos ancestrais, ainda que os narradores relatem em suas entrevistas o desagrado e a preocupação com a falta de interesse dos mais jovens pelas tradições. A riqueza e a energia do imaginário indígena que circula em São Jorge, consubstanciados nas narrativas orais, foram abordados pelo prisma dos estudos de Literatura, baseando-se nos diferentes aspectos que permeiam as narrativas: constituição e condições de produção; conteúdo e características literárias. O estudo das quatro narrativas selecionadas dentre as várias que foram registradas nas entrevistas enfocaram a relação entre linguagem, cultura e identidade. No plano dos estudo literários buscamos as discussões propostas por por Alan Dundes (1996), que defende que os contos indígenas são providos de estruturas, opondo-se aqueles que classificam esses contos como “informes e vazios”, “carentes de unidade e de estrutura”. Esta tese, metodologicamente, fundamenta-se no modelo de unidades êmicas de Pike e no das funções de Propp, segundo os quais Dundes construiu uma proposta para analisar morfologicamente os contos indígenas norte-americanos (SILVA, 2013, p. 65-67). A adoção na pesquisa deste modelo de análise permitiu “a decomposição de um todo nos seus elementos, tentando compreender as relações entre as partes”, expandindo as leituras sobre as narrativas e relacionando-as diretamente à discussão da cultura, das identidades e das práticas sociais (SILVA, 2013, p. 89). Neste mister, a metodologia da história oral foi utilizada na coleta das narrativas propriamente ditas, na coleta de informações e dados sobre a comunidade São Jorge e sobre os narradores, bem como sobre outras questões relevantes sobre as populações indígenas de Roriama. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, buscando os narradores qualificados e legitimado pela Comunidade, pois entre os indígenas o ato contar histórias, de evocar o passado, os ancestrais e as tradições, não é tarefa anônima, requer qualificação, referendo e legitimação do grupo. Neste caso, entendemos que a autoridade e a legitimidade para narrar baseia-se na experiência, entendida como o tempo de estar e de ser no mundo, mas também na trajetória pessoal dos narradores e nos papéis desempenhados na vida comunitária. Contamos com a inestimável colaboração dos o Sr Dilmo, 61 anos, que é pajé mas também atuava como agente de saúde, e o Sr Severino, 97 anos, que é pajé, filho de um dos fundadores da Comunidade e o único que fluente na língua macuxi. Bem diferentes entre si, o primeiro maisexpansivo nos gestos que o segundo, ambos relataram a preocupação sobre o abandono das tradições. As entrevistas geraram registros audiovisuais de cerca de três horas de duração cada. Ressaltamos que a familiaridade, o respeito e a confiança estabelecido entre Georgina Silva a Comunidade São Jorge foram muito importantes para a realização e sucesso do trabalho, pois a pesquisadora atuara na região como professora. Os narradores ouvidos contam as histórias com destreza, fluência e prazer. Articulam a arte de narrar bem com a competência para dar vida a todo um repertório de histórias significativas culturalmente e historicamente para a Comunidade, pois além do conhecimento acumulado, detém experiências pessoais particulares que “são importantes dispositivos para conferir credibilidade ao que está sendo contado” (SILVA, 2013, p. 38). Nas entrevistas realizadas respeitamos a dinâmica narrativa empreendida pelos narradores, fundamentando-nos em Portelli quando diz que “o principal paradoxo da história oral e das memórias é, de fato, que as fontes são pessoas, não documentos”. Os entrevistados, portanto, assumiram o comando da narrativa, pois entendemos que colaborar com não implica ao entrevistdo "reduzir sua própria vida a um conjunto de fatos que possam estar à disposição da filosofia de outros” (1996, p. 60) e, com isso, foi produzido um material inigualável. Por outro lado, contar as histórias articulando-as à trajetória da Comunidade mobilizou e oportunizou aos narradores expressar e refletir sobre as mudanças aceleradas vividas pela Comunidade, e pelos grupos indígenas em geral, na contemporaneidade. Assim o Sr Dilmo diz: “Eu ainda alcancei a época da nossa tradição. A alimentação era só a caça e o beju, e as frutas que também faziam parte da alimentação (…) hoje nós deixamos de nos alimentar bem, pois trocamos o nosso alimento pelo alimento do homem branco (SILVA, 2013, p. 39). Estes comentários pontuam as entrevistas em vários momentos, por isso acreditamos que estas observações não só comprovam algo visível, mas constitui-se como um dos fatores que impulsiona os entrevistados a narrar principalmente por se consideram e serem considerados de fato guardiães da memória coletiva do grupo, responsáveis por salvaguardar e reproduzir a cultura referenciada nas origens ancestrais e imemoriais e no passado histórico da Comunidade. Observamos, pois, que as histórias contadas por Dilmo e Severino e os comentários que as pontuaram articulam “as relações do cotidiano do narrador com seu mundo, desdobram-se em conceitos que definem os indígenas e a Comunidade”, adquirindo assim grande significado para o grupo e para o narradores (SILVA, 2013, p. 40). Nas entrevistas articula-se um passado considerado sólido, que configura a cultura e a identidade, situando-as em um presente que se apresenta acelerado e incerto. Nelas os narradores “passam experiências e injunções que marcam a história de seu povo, de sua cultura e procuram entender as mudanças que passam em suas próprias vidas” (SILVA, 2013, p. 43). Fernandes explica que nas entrevistas manifestam-se “uma sucessão de acontecimentos, próprios e alheios, que são requisitados pela memória do narrador para compor uma autobiografia” (2007, p. 189), tanto a dos narradores e como a do grupo. Na realização das entrevistas constatamos o que aponta Portelli quando, refletindo sobre sua própria prática, diz: “aquilo que se diz sempre é que você antes de ir ao campo, antes de fazer as entrevistas deve saber tudo, deve estudar a cultura e todo o resto”. Contudo o que realmente importa é que estejamos conscientes que as pessoas falam conosco porque sabem que queremos saber coisas que eles sabem, pois o pesquisador “é ignorante”, “um estrangeiro, um viajante”, e é isso, afirma ele, que “dá sentido à narrativa” (2005, p. 45). Conscientes disso, aceitamos a lógica narrativa dos entrevistados. Com a sua boa vontade de nos dizer o que tanto queríamos saber e a seu desejo de se dar a conhecer a nós, a nossa “ignorância” foi sendo “sanada”, de forma, a um só tempo, espontânea e elaborada, livre mas mediada pela nossa curiosidade e pelas questões de pesquisa. Por outro lado nos defrontamos também com a diferença, algo que se revela sempre complicado quando interagimos com comunidades e indivíduos indígenas. Tentar aplainar as diferenças entre nós e eles, estabelecer uma proximidade artificializada para operacionalizar o trabalho de entrevista é um grande equívoco, pois é a diferença, o diverso, o encontro com o outro que nos levou até eles. Nossas ilusões ou pretensões integracionistas caem por terra, quando os próprios entrevistados nos mostram as fronteiras. Nosso trabalho mostrou que os narradores administraram os limites, observá-los, portanto, nos mostrou também como ultrapassá-los. O diálogo e o entendimento, que resultaram em excelentes entrevistas, se estabeleceram na relação entrevistador e entrevistado, mediados em grande parte por recursos narrativos e performáticos e outros elementos que se configuram como “sinais” indicativos, que devem ser avaliados e observados no curso da pesquisa. Consideramos, ainda, que a Comunidade já tinha participado de pesquisas anteriores e já tinha largo contato com a academia, pois a Universidade Estadual de Roraima-UERR mantém cursos de formação superior na região e alguns membros já tinham contato com as atividades do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena, da Universidade Federal de Roraima-UFRR. Não obstante, a elaboração de um bom roteiro e a disponibilidade de recursos técnicos, também foram fundamentais para o sucesso do projeto, assim como o conhecimento mútuo existente entre a entrevistadora (Georgina Silva) e a Comunidade. Esse elementos garantiram que mantivéssemos o rumo da pesquisa administrando também as inevitáveis singularidades, correções de rumo, situações geradas pelo acaso intrínsecas aos encontros humanos. Cada entrevista tomou um ritmo próprio e cada narrativa adquiriu um contorno especial. Contudo, ao buscarmos naqueles registros as narrativas da tradição oral (objetos literários) e também a história e a trajetória sociocultural do grupo nos deparamos com o “vivido” e “concebido”, como aponta Alberti (2004, p. 16). Nas narrativas as histórias tradicionais e a história da Comunidade estão imbricadas nas histórias pessoais dos narradores. O momento de realização das entrevistas, o ato de contar histórias deixou de ser um ato cotidiano e ganhou contorno excepcional, até porque o ouvinte não é o usual. As histórias foram “entremeadas de fragmentos de textos concernentes ao passado que, por sua vez revivem e atualizam os acontecimentos da sociedade”, constituindo o que chamamos de um “mundo possível” (SILVA, 2013, p. 55). Este “mundo possível” que emerge das narrativas expressando uma relação complexa entre o passado imemorial e o presente vivido, entre os espaços míticos e memoráveis e o território ocupado e apropriado pela Comunidade. O vivido e o concebido se expressam na construção da narrativa quando são instauradas explicações sobre realidade, presente e passada e são lembrados elementos da memória coletiva do grupo, a partir da ótica e dos valores de quem narra. As histórias da tradição são contadas como se os narradores as tivessem presenciado, o que nos fez pensar que elas são “histórias cheias de histórias” (SILVA, 2013, p, 58-59), que comunicam saberes e conhecimentos que não poderiam ser apreendidos de outra forma. Por meio da voz dos narradores a tradição se vivifica, se renova, se refaz, se ressignifica, produzindo um sentido ao presente, ou, ainda, uma ilusão de resistência e de perenidade à tradição. Neste sentido, observamos que, diante dos desafios colocados às comunidades indígenas na atualidade, a relação entre oralidade e tradição adquire um sentido político,de luta e de resistência. No entanto, verificamos que não é este o motor que impele a oralidade e, muito menos, a colaboração dos narradores em nossas pesquisas e, neste aspecto, concordamos com Jan Vansina, quando diz que “a oralidade é uma atitude diante da realidade e não a ausência de uma habilidade” (1982, p. 157), ou seja, a oralidade independe da existência da habilidade escrita e de outros recursos, ou ainda de uma necessidade imperiosa ou obrigação. Os narradores contam as histórias porque sempre o fizeram, eles, seus pais e avós, porque tem ouvintes, porque entendem ser esse o seu papel na Comunidade, porém fazendo-o por e com prazer. Observamos que o ato de narrar oralmente se dá de forma quase natural, com a entrega dos narradores. À palavra dita pela voz do Sr Severino e do Sr Dilmo se agregaram pausas, silêncios, gestos, expressões faciais, enfim, a performance do narrador. A palavra dita comunica conteúdos e visões de mundo, o “vivido” e o “concebido”, e ouvindo as narrativas coletadas não conseguimos imaginar “a palavra sem a voz”, esta voz performativa e performática (SILVA, 2013, p. 54) que emana dos narradores. As entrevistas e as narrativas que foram nosso objeto de estudo, foram viabilizadas por esta voz amplificada pela memória e pelo corpo dos narradores. A voz dos narradores fez circular as histórias consideradas importantes para o grupo, internamente como se dá no cotidiano da Comunidade, mas também externamente ao grupo. Acreditamos que cientes também que o conhecimento da história e da tradição da Comunidade pode se constituir como ferramentas políticas nos embates por seus direitos os narradores produziram narrativas nas quais se entremearam as histórias da tradição e outros tantos assuntos passados e presentes. Destacamos que a tradição é tida como a própria história do grupo, instituidora de verdades e de conhecimentos sobre a origem do grupo, sua trajetória histórica, social e cultural, seus nexos identitários e de pertencimento, elementos produtores de formas de coesão social. Na Comunidade São Jorge, por ocasião da pesquisa, um grupo de professores indígenas estava elaborando o histórico da Comunidade, recorrendo a experiência do seu membro mais idoso, o Sr Severino. Isso nos mostrou que “a valorização do conhecimento, a competência comunicativa e os anos de vida fazem com que Severino ocupe um lugar de destaque na Comunidade, legitimando-o como narrador” (SILVA, 2013, p. 56). Em acordo com Alberti, quando defende que não deve haver uma distinção entre tradição oral e história oral (2005, p. 26-27), entendendo as entrevistas como um momento em que o grupo se expande para além dele mesmo. Por outro lado, verificamos que os próprios narradores não fizeram esta distinção: existem as histórias e eles as narram. A distinção, então, é imposta por nós, no escopo da nossa cultura, dos nossos campos disciplinares, das concepções sobre o outro, este que nos interessa estudar. Contrariando a visão de que a tradição é fixa, imóvel, tão recorrente quando os indígenas reivindicam seus direitos, observamos que a força da oralidade como instituidora e perenizadora da tradição está justamente na sua fluidez, flexibilidade e dinâmica. Quando Severino e Dilmo contam as suas histórias, as narrativas resultantes são tão intensas, consistentes e articulada que não há necessidade de maiores explicações sobre os enredos (SILVA, 2013, p. 59). Elas tem sentido para eles e para o grupo e, também, para nós. Mais do que comunicar um enredo, as narrativas da tradição mostraram ter objetivos variados e não excludentes entre si: ensinar, entreter, interditar, proibir, agregar os membros do grupo etc. O conhecimento da cultura, da tradição, das crença e valores socioculturais do grupo consubstanciados na narrativa, garantem que a “versão” contada pelos narradores não seja “falsa”, nem padeça de credibilidade. Os entrevistados, inclusive, nos alertaram sobre a variedade de “versões” que poderíamos encontrar da mesma história. Esta autoridade que emana dos narradores é intrínseca à oralidade. Os narradores, são detentores de conhecimentos e habilidades obtidas por meio da experiência, da vivência e de sua participação nas práticas diárias do grupo. Legitimados e autorizados por mecanismos diversos que guardam peculiaridades em cada comunidade, os narradores imprimem no que contam “o seu estilo pessoal, sua leitura de mundo e as marcas do contexto social”, sem reivindicar qualquer pretensão de autoria. Em São Jorge, os narradores apontaram o caráter imemorial, ancestral e coletivo das histórias, ao fazerem referências aos ascendentes: “Meu pai contava, minha mãe, meu avô (...), os antigos” (SILVA, 2013, p. 60). As histórias existem para serem contadas e recontadas, ainda que as ideias de precisão, de objetividade, de autenticidade e de autoria, tão caras à cultural ocidental, faça parte do cotidiano de boa parte dos grupos indígenas amazônicos e brasileiros. Vimos em São Jorge, que o que importa é que as histórias sejam transmitidas e repassadas de forma duradoura, “transportadas pelas palavras impregnadas de magia e poeticidade”, pelas vozes inspiradas e qualificadas de seus narradores (SILVA, 2013, p 60). Para abrir a discussão, afirmamos que esse trabalho nos colocou diante de um mundo tão próximo e tão distante de nós que vivemos em Roraima, aonde a questão indígena está deveras presente em nosso cotidiano. Sempre contraditória e conflituosa, em alguns momentos ela se acirra, como no recente processo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. No dinamismo e na transitoriedade da contemporaneidade, e ao buscarmos a cultura indígena como objeto de estudo enfocando a oralidade como prática social, verificamos que é por meio da rememoração e do contar histórias, que a memória coletiva institui a memória social, dando as histórias narradas a função de constituir o sentimento de pertencimento e a identidade da Comunidade São Jorge, assim como de outras comunidades roraimenses e amazônidas. As memórias de um passado comum que são compartilhadas por meio das narrativas da tradição, são tributárias das memórias individuais e da experiência dos narradores. As narrativas orais, a par da fluidez e da flexibilidade pertinente a toda forma de comunicação oral, são dotadas de um estrutura narrativa que lhes dá estabilidade, coerência e credibilidade. Constituem-se também por programas narrativos fundamentados nas demandas do presente, as quais se articulam nesta estrutura às referências do passado. Este é o substrato das entrevistas coletadas na pesquisa, o fio que costura os elementos da tradição, da cultura e as situações e condições presentes, ao desejo de uma identidade suficientemente forte e consistente para encarar as lutas e os ataques historicamente impostos aos grupos indígenas. Para terminar, ressaltamos que bom termo alcançado na pesquisa apontou algumas questões que certamente serão observadas em pesquisas futuras: 1) que, como nos diz Portelli, os registros obtidos por meio da história oral "não nos oferecem um esquema de experiências comuns, mas sim um campo de possibilidades compartilhadas, reais ou imaginárias" (1996, p. 52), que devem ser exploradas com criatividade e inovação, mas também com o rigor, a ética e a responsabilidade requeridos pelo trabalho acadêmico; 2) que as nossas pesquisas e os registros que geram não “dão voz” às dezenas de comunidades indígenas de Roraima – pois elas têm voz própria e é isso que vem garantindo as suas conquistas – mas são uma das formas de amplificação desta voz; 3) diante do que nos diz Paul Zumthor, que “o verbo se expande no mundo, que por seu meio foi criado e ao qual dá vida” ( ZUMTHOR, 1993, p. 75), muito ainda há para ser feito, pois abordamos uma parcela ínfima do imenso e rico mundo destas Comunidades. Referências:ALBERTI, Verena. O lugar da história oral: o fascínio do vivido e as possibilidades de pesquisa. In: Ouvir Contar: textos em história oral. Rio de janeiro:Editora FGV, 2004. COSTA E SOUZA, Jorge Manoel. Etnias indígenas das savanas de Roraima: processo histórico de ocupação e manutenção ambiental. In: BARBOSA, R. I.; COSTA E SOUZA, J. M.; XAUD, H. A.M. (orgs.). Savanas de Roraima: etnoecologia, biodiversidade e potencialidades ambientais. Boa Vista: FEMACT, 2005. DUNDES, Alan. Morfologia e estrutura do conto folclórico. São Paulo: Perspectiva, 1996. FERNANDES, Frederico Augusto Garcia. A voz e o sentido: poesia oral em sincronia. São Paulo: UNESP, 2007. FERNANDES, José Guilherme dos Santos. Do Oral ao Escrito: Implicações e Complicações na Transcrição de Narrativas Orais. Outros Tempos. volume 02, p. 156-166. FERNANDES, José Guilherme dos Santos & SANTOS, Salim Jorge Almeida. Para uma analise morfologica de narrativas. In: EDWALD, F. G. Et alli (org.) 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