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Aula I de Clínica com crianças - 2013-1

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Clínica com crianças
aula I
Professora: Eliane de Augustinis
augustinispsi@hotmail.com
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O sujeito dito criança
Significante “criança”– um dito da cultura. Surgiu historicamente por volta do século XVI.
A Europa, após a queda da monarquia via emergir a burguesia no âmbito social e político. Para isso, a criança vinha legitimar essa nova classe.
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 NA IDADE MÉDIA
A infância era um período rápido e logo passavam a participar da vida dos adultos.
Não se tinha consciência das particularidades intelectuais, comportamentais e emocionais das crianças em relação aos adultos.
 
Até os 7 anos não lhes era atribuída uma alma. O infanticídio, portanto, não era crime, era como matar um pequeno animal, triste, mas não criminoso. A Igreja Católica guardou por muitos séculos resquícios desta época, e só aos 7 anos de idade as pessoas eram autorizadas a confessar seus pecados e a fazer a Primeira Comunhão: só então tinham alma.
A partir dos 7 anos se era de uma classe social inferior, entrava no mercado de trabalho, e se fosse de classe superior, no mercado de casamentos arranjados, para garantir as fortunas e os títulos.
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O sentimento da infância
“é a consciência da particularidade infantil, esta particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem” (Ariès, 1978,p.156).
É a partir do século XVI, na Europa,que passa a existir a presença clara, na consciência, do ‘sentimento de infância’, da criança enquanto um outro particular, a ser amado, cuidado, educado, mas sempre um outro com toda a carga agressiva gerada enquanto outro, de acordo com o que Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”. (Carneiro, p.11).
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As patologias do Eu.
No Mal-estar da Civilização, Freud afirma que o apaixonado, por exemplo, sempre afirma que ele e o ser amado são uma só pessoa.
Muitas patologias surgem exatamente pela perda desse limite entre o Eu e o mundo externo. O paranoico, por exemplo, atribui ao mundo externo o que surgiu em seu Eu, mas ele não reconhece. Ele pode dizer “o outro quer me matar” quando na verdade é ele quem tem ódio do outro e quer matá-lo.
Portanto, essa falta de distinção do que pertence ao Eu e o que pertence ao mundo externo, de modo a colocar todo o mal fora de si, é algo que Freud considerou bastante primitivo no desenvolvimento do psiquismo humano. Ele diz que o bebê de peito ainda não separa seu Eu do mundo externo da mesma forma que o nosso exemplo do psicótico acima. O Eu nesse estágio do desenvolvimento se contrapõe a um ‘objeto’, como algo que se acha ‘fora’.
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O ILUMINISMO E A EDUCAÇÃO
A partir do século XVIII – Jean-Jaques Rousseau – autor de “Emílio” (manual para educadores) - representante do iluminismo – acreditava na bondade natural do homem. Para Rousseau, “não há perversidade original no coração humano”. A criança nasce inocente, pura, e tem maneiras de pensar e sentir que são próprias à sua idade. 
A educação visava: 
- o desenvolvimento de suas potencialidade naturais; 
o afastamento da criança dos males sociais;
O infante é desprovido de toda sexualidade e deve ser preservado da sordidez da vida.
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A criança a ser educada
Embora a criança do séc. XVI não tivesse um “lugar social” diferente do adulto, o que ocorreu posteriormente trouxe outras consequências a serem analisadas.
Na primeira metade do século XX, como até hoje, o discurso da civilização alocava a criança como um objeto a ser cuidado, tratado, educado e corrigido. É o advento da burguesia, tanto na Europa quanto, mais tarde no Brasil, que vai ser a influência dominante na elaboração da representação da criança que hoje tomamos como natural.
De lá pra cá, o “sujeito de pouca idade” não é escutado em seus ditos devido aos preconceitos ideológicos criados a respeito das “crianças”
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O sujeito do inconsciente e o desenvolvimentismo em psicanálise
 Ora, o sujeito do inconsciente não tem idade, pois o inconsciente é atemporal. 
Portanto, a psicanálise não é desenvolvimentista nem geneticista embora as fases do desenvolvimento da libido (fase oral, anal, fálica) tenham sido uma armadilha que capturou as duas “herdeiras” de Freud: sua filha Anna e Melanie Klein. Não é o biológico que está em questão, mas essas duas autoras, cuja rivalidade teórica sacudiu os primórdios da psicanálise pós-freudiana, fizeram avançar a psicanálise com crianças calcada nos preconceitos ideológicos e educativos de sua época.
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Avanços na análise de crianças a partir de Anna e Melanie klein
- Anna Freud – reconhece no desenho infantil uma fala legítima de seus pequenos pacientes.
-Melanie Klein – elevou o brincar à dignidade da associação livre freudiana.
Essas pioneiras possuem o grande mérito de deixar que a criança diga e possa ser ouvida naquilo que desenha, do que brinca, o que não se confunde com a linguagem oral.
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O sujeito do inconsciente não tem idade
No Seminário, livro 21, Os não tolos erram (inédito), Lacan delimita o espaço de errância que vai do nascimento do sujeito até sua morte, como aquele que corresponde à efetivação da estrutura do sujeito. 
O infantil para Freud será a relação com as experiências que deixam traços, restos de lembranças de prazer e desprazer vividas pela criança.
O infantil é uma reconstrução em análise, uma realidade psíquica, atravessada pela fantasia e marcada pelo recalque.
O sujeito do inconsciente não tem idade ou , se quisermos, é sempre infantil em sua neurose.
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A criança como objeto no discurso capitalista.
A crítica feita por Lacan ao capitalismo, refere-se a forma discursiva travada com o trabalhador. O discurso capitalista não estabelece mais laço social, e os objetos que antes eram produto do trabalho e negociado entre escravo e mestre, na contemporaneidade os objeto são de puro gozo, ou seja, não são negociados, impostos ao sujeito consumidor como objetos de desejo-sem-desejo, dentre os quais está a criança-objeto.
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A criança na posição de objeto
Reduzida à condição de objeto a ser treinado, educado e adaptado, a criança é alvo ideal das mais diversas práticas segregacionistas. Desde o tráfico de órgãos, passando pelo trabalho escravo, o abandono e o abuso sexual, um leque macabro se abre, sem que as práticas sociais, fruto igualmente do discurso capitalista, possam dele dar conta. Sustentadas em ideologias – quer liberais ou autoritárias – oriundas do mesmo discurso, ao aparentemente combatê-lo reforçam-no.
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O abuso sexual
O abuso sexual é o reverso do discurso que reduz a criança à posição de objeto. Na idade média a troca de carícias e brincadeiras eróticas com crianças fazia parte do cotidiano normal. “Essa prática familiar de associar as crianças às brincadeiras sexuais dos adultos fazia parte do costume da época e não chocava o senso comum” (Ariès, p. 128). 
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O que responde o analista ao sujeito dito criança?
Freud descreverá a criança no segundo dos três ensaios sobre a sexualidade como a criança desejante, aquela que permanecia sem ser nomeada em sua relação com sua sexualidade e desejos, mesmo tendo seu lugar social preservado no século XX. 
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Caso de joão
Dentro dessa lógica, talvez João não possa ser escutado no lugar de sujeito por aqueles com quem convive. 
João tem 7 anos quando é trazido para a análise por seus pais, que estão em vias de se separar. Os pais não conseguem explicitar uma demanda: são prolixos, empolados, pretensiosos e se dizem intelectuais. De passagem, a mãe menciona como um detalhe sem importância, que o casal não faz sexo há três anos. Ao contrário dos pais, João leva para a analista uma demanda: um boneco Cebolinha, que ele diz que é um segredo, um boneco que “fala errado”. “Falar errado” é para ele ir ao play do edifício onde mora. Enquanto seus pais se perdem em infindáveis discussões filosóficas e existenciais sobre a separação que não acontece, João vai em busca de sexo com os meninos mais velhos. João sonha em abordar homens adultos, mas não tem coragem, tem medo. Seu sintoma é um interpretação histérica do desejo do pai, que ele, inconscientemente,
supõe ser um homossexual não assumido. O que João diz nunca foi sequer ouvido por seus pais.
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Caso José
José vai mal na escola. É de lá que provém a demanda ‘ortopédica’, endossada pelos pais, após quatro anos de análise. José tem na época nove anos e se trata em análise desde os cinco. É um paranóico que surtou pela primeira vez quando os pais se separaram. O desempenho escolar deficitário apontado pela escola, é na verdade o resultado de um esforço hercúleo de um sujeito que delira há quatro anos. A escola não ouve o que José diz e os pais, sabendo sem querer saber que o filho é louco, preferem ouvir a escola surda.
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Caso maria
Maria é hiperativa. O pediatra receitou ritalina a um caso típico de TDAH. Maria tem uma mãe obsessiva, controladora, que a vigia e a repreende por tudo. Da mãe, Maria só ouve críticas, nos seus oito anos de idade. O pai se opõe à medicação que tornaria a jovem histérica mais calma, mais obediente. Interpretando, sem saber, o sintoma da filha diz: “De babaca, nesta casa basto eu!” A mãe não ouve, o pediatra não ouve; só o pai sofrendo ouve o que o sintoma de Maria diz.
Marta chega ao final de sete anos de análise, em que não só se libertou dos sintomas que a afligiam, como construiu elaborações profundas sobre a feminilidade e a falta do objeto. Anuncia à analista que não virá mais à análise, mas se retifica: “Volto a procurar você quando for fazer vestibular, para saber se faço Medicina ou Psicologia. Eu vou ser analista, é claro. E minha análise, eu já fiz!” Quem disse a essa criança de doze anos que a condição necessária à formação do analista é, segundo Freud, a análise pessoal? O saber do inconsciente que ela adquiriu ao longo de sua análise?
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É possível uma criança chegar ao fim de uma análise?
Poderíamos argumentar que por Marta não poderia ter chegado ao final de sua análise por não ter chegado à adolescência o que a impediria de ter tido o encontro com o real do sexo. Mas Freud diz que este encontro se chama trauma sexual que Lacan dirá que é o que marca a entrada do sujeito na linguagem. 
Poderíamos argumentar que ela ainda não se confrontou com seu gozo. Mas tanto Freud quanto Lacan dirá que o confronto com o gozo está amarrado à posição do sujeito na cena traumática mítica, primordial.
Então, independente da idade, da fase do desenvolvimento, o que importa é que o sujeito pautado no inconsciente, possa dizer ao analista aquilo que em sua errância, chamada de vida, possa exercer seus desejos.
Houve um tempo em que não se tinha a concepção da infância tal como hoje a entendemos, ou seja, como um ser singular, com uma particularidade que a diferencia do adulto. 
Em História social da criança e da família, Philippe Ariès faz um estudo na Europa, no período compreendido entre a Idade Média e o século XX, para demonstrar como a definição de criança se modificou no decorrer do tempo de acordo com parâmetros ideológicos. Para análise de pinturas, diários, esculturas e vitrais produzidos na Europa no período anterior aos ideais da Revolução Francesa, Ariès forja a expressão “sentimento da infância” para designar “a consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto”. Esse sentimento vai aparecer a partir apenas do século XVI. 
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Na Idade Média, a criança era vista como um pequeno adulto, sem características que a diferenciassem, e desconsiderada como alguém merecedor de cuidados especiais. Isso não significava que as crianças fossem até então desprezadas ou negligenciadas, mas sim que não se tinha consciência de uma série de particularidades intelectuais, comportamentais e emocionais que passaram, então, a ser consideradas como inerentes ou até mesmo naturais às crianças. Ariès comenta, inclusive, que os pintores ocidentais reproduziram crianças vestidas como pequenos adultos, e que somente percebemos se tratar de uma criança devido ao seu tamanho reduzido. Nas sociedades agrárias, a infância era um período rapidamente superado e, tão logo a criança adquiria alguma independência, passava a participar da vida dos adultos e de seus trabalhos, jogos e festas.
Essa indiferença em relação às crianças era uma consequência do perfil demográfico da época. Os pais não se apegavam muito a seus filhos porque poucos sobreviviam. Portanto, a morte de uma criança não era sentida como uma perda irreparável e, muitas vezes, no campo principalmente, elas eram sepultadas no quintal da casa, como hoje se enterra um animal doméstico. Esse hábito, que foi conservado durante muito tempo no País Basco, por exemplo, pode indicar uma sobrevivência de ritos muito antigos ou, provavelmente, algo que aponta essa indiferença em relação às crianças.
Na idade média, a criança relacionava-se muito mais com a comunidade do que com os próprios pais. A aprendizagem e a socialização não eram realizadas pela família ou pela escola, mas por toda a comunidade.
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