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Feiúra, doença, deficiência e algumas páginas jurídicas: “e era de fera a sua fé mirada”.1 Daniela de Freitas Marques Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UFMG. Juíza de Direito da Justiça Militar do Estado de Minas Gerais. RESUMO: A pedra de toque do artigo fundase na comparação entre o Direito e o corpo humano. Qual seria a representação sensível e simbólica do Direito fosse ele tão tangível e tão real como o corpo humano? As páginas jurídicas, em especial, as páginas jurídicopenais são escritas e vivenciadas como se dotadas de conteúdo racional, com os atributos de completitude e coerência. A apreciação do Direto conduz à contrária conclusão: as páginas jurídicas são dotadas de conteúdo emocional, com os atributos de nãocompletitude e incoerência. Entre as cantigas de escárnio e a balada de John Keats: o direito ora é a mulher velha, feia e sandia, ora é “A bela dama sem piedade”. Em licença poética, a dama sem mercê e sem misericórdia é a melhor escolha, a ser superada, porque senão a verdade dos tempos será a última estrofe da balada: “eis porque passo por aqui/ Só em desalento vagando/Embora os cíperos secos desde o lago/E nenhum pássaro cantando.” (KEATS, John. La Belle Dame Sans Merci) PALAVRASCHAVE: Direito – Corpo – Feio –Doença – Deficiência. ABSTRACT: The cornerstone of this paper is the comparison between Law and the human body. What would be the sentient and symbolic representation of Law, if it were as tangible and corporeal as the human body? The writings in Law, and the writings in Penal Law, in particular, are written and experienced as if they were endowed with rational content, with attributes of completeness and coherence. But the appreciation of Law leads to the opposite conclusion: The writings in law are endowed with emotional content, with attributes of incompleteness and incoherence. From the scornful odes and the ballad of John Keats: the law is sometimes the old, ugly and foolish woman, and sometimes “the beautiful, pitiless lady”. With the due poetic permission, the merciless, 1 KEATS, John. La belle dame sans merci. In: GRÜNEWALD, José Lino (Organização e Tradução). Poesia de todos os tempos. Grandes Poetas da Língua Inglesa do Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1988. p.65. 1 pitiless lady is the best choice, yet to be overcome, or else the truth to come as time passes by will be the last strophe in the ballad: “this is the reason why I pass by/ only in discouragement roaming/ though the dry sedges from the lake/ and no bird singing.” (KEATS, John. La Belle Dame Sans Merci) KEY WORDS: Law – Body – Ugly – Ilness – Disability. SUMÁRIO: 1. Caos e cosmos: feiúra e beleza. 2. O corpo doente, algumas buscas pela perfeição e as similitudes com as páginas jurídicas. 3. A “falta” e a “ausência”. 4. Conclusão. 5. Bibliografia.. 1. Caos e cosmos: feiúra e beleza. O caos e o cosmos integram a realidade cotidiana. Ao cosmos e à harmonia sempre estiveram ligados conceitos como beleza, virtude e pureza e, contrariamente, ao caos e à desordem sempre estiveram ligados conceitos como fealdade, vício e impureza. Muito pouco foi escrito sobre o feio – porque o conceito de fealdade é o nãoconceito, o indizível, apontado como “physica curiosa”2, a qual, causadora de risos e escárnio, é freqüentemente utilizada na identificação do feio. A fealdade é corpórea ou espiritual? O corpo feio pode abrigar impoluto e virtuoso espírito ou o corpo belo pode abrigar corrompido e impuro espírito? No romantismo, a feiúra infeliz ou a beleza perversa estiveram presentes na literatura. “(...) É possível permanecer belo e dissoluto, sem envelhecer jamais, mas infeliz porque a própria decadência e feiúra interior são impiedosamente denunciados por um retrato que se corrompe em seu lugar, como acontece com o Dorian Gray, de Wilde. Contudo, a pesquisa do interessante e do individual, ou do grotesco, leva também à imaginação de uma deformidade que arrasta a um destino trágico quem, mesmo nutrindo uma alma delicada, é condenado pelo próprio corpo. Talvez o primeiro “feio infeliz” do romantismo tenha sido o monstro protagonista de Frankestein, de Mary Shelley (1818), seguido depois pelos patéticos abortos da natureza de Hugo, como Quasímodo em NotreDame e Gwynplaine em O homem que ri. Também fazem parte do rol de feios 2 ECO, Umberto (organização). História de Feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007. 2 infelizes os heróis verdianos, como Rigolleto – embora Verdi também tenha posto em cena alguns feios danados, de Lady Macbeth a Iago, e tenha escrito em uma carta que gostaria que este último fosse interpretado como “uma figura bastante magra e longa, lábios finos, olhos pequenos e próximos do nariz como os símios, a fronte alta e fugidia e a parte de trás da cabeça muito desenvolvida”.3 A feiúra, ligada à infelicidade, também é ligada ao mal e ao crime. Lady Macbeth invoca a maldição, ao negar a sua condição feminina, ao dizer que os seus seios não mais produziriam leite e sim fel: mulher que somente deveria dar à luz a varões, imensos o seu amargor e o seu desabrido orgulho. Iago é a essência do mal – falso amigo e manipulador astucioso – quem não cairia em suas artimanhas? Somente alguém com o espírito e a graça de Rosalinda ou a glutonaria e o prazer pela vida de Falstaff. No sistema jurídico, consciente ou inconscientemente, o feio tem sido perseguido, castigado e destruído. Embora se reconheça a fealdade espiritual presente tanto no belo, quanto no feio corpo, a feiúra física tem sido associada ao mal e, conseqüentemente, ao crime. “E, convencido de que existem harmonias sutis entre corpo e alma e de que a virtude embeleza, enquanto o vício enfeia, Johann Kaspar Lavater (Physiognomische Fragmente, 17751778) examinava igualmente as feições de certos personagens históricos.”4 O positivismo criminológico é conhecimento especulativo sobre a feiúra. É bem verdade que “(...) Lombroso não chegava à simplificação de dizer que quem é feio é sempre delinqüente, mas associava estigmas físicos a estigmas morais, como argumentos que se pretendiam científicos.”5 Hoje retornase ao fundamentalismo científico. A genética e os discursos pseudocientíficos têm legitimado o sistema prescritivo punitivo, e, feliz ou infelizmente, os estigmas sobre o feio e o crime permanecem nos contornos autoritários da formação dos sujeitos do aparelho repressor estatal – das polícias, do Ministério Público e do Judiciário.6 Toda pessoa, como dito por Adorno, traz em si certo conteúdo autoritário – o nó górdio, consciente ou inconsciente, dos seus preconceitos, das suas intolerâncias, das suas frustrações e das suas incompreensões. A reprodução dos conteúdos autoritários fazse 3 Ibidem. p. 293. 4 Ibidem. p. 257. 5 Ibidem. p. 261. 6 A relação estabelecida entre o aparelho repressor estatal e o imputado é a relação de euisso – instrumentalizada, na acepção soberba de Martin Buber. A relação eutu – relação humana – é esquecida, obliterada, alijada do pensamento e da prática penais. 3 presente em instituições repressivas e repressoras, como as que cuidam da segurança pública, como as que zelam pela aplicação do direito. O Direito, tal qual ensinado e efetivamente realizado, apresentase distanciado das humanidades, excessivamente dogmático e extremamente empobrecido, quer naretórica, quer na fundamentação. Alijase a pessoa humana e sofisticase o apelo às instituições e às ideologias. As buscas e apreensões pessoais, v.g., têm como destinatários certos o outro não assemelhado, o outro instrumentalizado, o feio – aquela pessoa de má aparência, expressão tão ambígua quanto polissêmica, a qual esconde e oculta discriminações sócioeconômicas e étnicas. A boa aparência presente nas contratações da seara civil, também é determinante nas práticas da seara penal.7 O direito penal, na lembrança do dito de Eugenio Raúl Zaffaroni, ainda é o direito do feio. “O estereótipo do suspeito é um legado cultural antigo, que se incorporou ao imaginário popular e ao aparelho repressor do País. "Já em 1560, havia autores 7 “Para alguns, a discriminação é tão fácil de detectar quanto um desastre ferroviário à luz do dia. Ela é percebida por meio de pistas sutis no modo como os outros são tratados ao nosso redor ou na maneira como nós mesmos somos tratados. A conversa áspera com o atendente da loja, o segurança que aguça sua atenção, o taxista que não pára. Seja pela idade, gênero, raça, deficiência, orientação sexual, seja por qualquer outra identidade estigmatizada, a maioria consegue pensar em, no mínimo, um caso no qual nós ou alguém próximo foi tratado de modo injusto por causa de uma única diferença de condição. (...)” Cf. PAGER, Devah. Medir a discriminação. Tempo soc., São Paulo, v. 18, n. 2, Nov. 2006 . Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S010320702006000200004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 30 Jan. 2009. doi:10.1590/S010320702006000200004. Também se vê que “(...) Os múltiplos preconceitos de gênero, de cor, de classe, etc. têm lugar tipicamente, mas não exclusivamente, nos espaços individuais e coletivos, nas esferas públicas e privadas. Fazemse presentes em imagens, linguagens, nas marcas corporais e psicológicas de homens e de mulheres, nos gestos, nos espaços, singularizandoos e atribuindolhes qualificativos identitários, hierarquias e poderes diferenciais, diversamente valorizados, com lógicas de inclusõesexclusões conseqüentes, porque geralmente associados a situações de apreciaçãodepreciação/desgraça. O preconceito se contrapõe às qualidades de caráter, como lealdade, compromisso, honestidade, propósitos que afirmam valores atemporais e regras éticas. As demandas nos espaços de trabalho, sobretudo em relação às mulheres, por exemplo, exigem juventude, boa aparência (magreza, altura, altivez, cabelos lisos e claros, dentes perfeitos, porte, postura, etc.), além da cor branca. As mulheres não brancas são aceitas na proporção em que tais atributos estejam presentes associados à sensualidade, à exuberância erótica, evidenciado a vulnerabilidade e manipulação dos componentes do preconceito. São demandas fugidias que se contrapõem às qualidades humanas que podem significar experiência acumulada, valores, motivações, homens e mulheres decididos a provar seu valor através do trabalho. Nesse sentido, tanto o trabalho quanto o emprego tornaramse incertos, voláteis, flexíveis e fragmentados. Paradoxalmente, as exigências mais de ordem estética muitas vezes independem da condição sócio econômica. Inexistem o tempo e o espaço necessários à construção de relacionamentos profundos e duradouros que invocam o caráter da pessoa, o que permite compreender por que algo tão fugidio como a imagem da beleza e da aparência é cada vez mais valorizado nos ambientes de trabalho.” BANDEIRA, LOURDES; BATISTA, ANALÍA SORIA. Preconceito e discriminação como expressões de violência. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 10, n. 1, Jan. 2002 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0104026X2002000100007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 30 Jan. 2009. doi: 10.1590/S0104026X2002000100007. 4 relacionando fisionomia com propensão para o crime. Um exemplo consta no Edito de Valério, no qual Muscardi recomenda que ‘na dúvida entre presumíveis culpados, condenese sempre o mais feio’.”8 A fisionomia de bandido ou de marginal ou os estereótipos ligados ao pilantra, ao criminoso autorizam e permitem a discriminação.9 Não por acaso, a primeira impressão na sala de audiências é visual e, exigese do acusado uma postura de humildade e de submissão. Quando ausentes os referidos atributos, o acusado é identificável e tachado como “criminoso”, “marginal”,“diferente”, “elemento” e a pena, ao final aplicada, não é dolorosa ao julgador. A sombra lombrosiana persiste, inconscientemente, no senso comum. Na criminalidade feminina, a bela compleição desperta simpatia, cuidado e solicitude e, dificilmente, a prática do crime é creditada à bela mulher. É significativo – e antigo – o 8Cf LAKATOS, Suzana Cara de suspeito. Na ponta da caneta. Jornal do Advogado..http://www2.oabsp.org.br/asp/jornal/materias.asp? edicao=76&pagina=1803&tds=7&sub=0&sub2=0&pgNovo=67. Data de acesso: 13 Maio 2008. 9 Na Revolta da Chibata, datada de novembro de 1910, a perícia dos marinheiros espantou aqueles que assistiram às manobras. “(...) A exibição de competência e, sobretudo, de elegância nas manobras chocavase com a imagem que se tinha dos marinheiros nacionais: homens rudes, brutos, recrutados na marginália das cidades, quando não entre condenados das casas de detenção. Na avaliação dos oficiais, os marinheiros eram a ralé, a escória da sociedade, eram facínoras que só a chibata podia manter sob controle. João Cândido Felisberto não fugia ao figurino. Um crioulão alto e forte e feio, boca enorme, maças salientes, trinta anos de idade em 1910. Filho de exescravos, pai alcoólatra, entrara para a Marinha em 1895, com 15 anos. Em 1910, ainda era semianalfabeto, lia mas não escrevia. Nos 15 anos de engajamento, fora promovido a cabo, mas por mau comportamento tinha sido rebaixado a marinheiro de primeira classe. Envolverase em lutas corporais com colegas e espancara outros. Em 1909, dera uma chibatada em um grumete que, em represália, o esfaqueara nas costas.” Cf. CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p.17. “(...) Cerca de 100 marinheiros são presos e mandados, nos porões do navio "Satélite" misturados a ladrões, prostitutas e desocupados recolhidos pela polícia para "limpar" a capital para trabalhos forçados na Comissão Rondon, ou simplesmente para serem abandonados na Floresta Amazônica. Na lista de seus nomes, entregue ao comandante do "Satélite", alguns estão marcados por uma cruz vermelha. São os que morrerão fuzilados e, depois, serão jogados ao mar. João Cândido, embora não tenha participado do novo levante, também é preso e enviado para a prisão subterrânea da Ilha das Cobras, na noite de Natal de 1910, com mais 17 companheiros. Os 18 presos foram jogados em uma cela recémlavada com água e cal. A cela ficava em um túnel subterrâneo, do qual era separada por um portão de ferro. Fechavaa ainda grossa porta de madeira, dotada de minúsculo respiradouro. O comandante do Batalhão Naval, capitãodefragata Marques da Rocha, por razões que ninguém sabe ao certo, levou consigo as chaves da cela e foi passar a noite de Natal no Clube Naval, embora residisse na ilha. A falta de ventilação, a poeira da cal, o calor, a sede começaram a sufocar os presos, cujos gritos chamaram a atenção da guarda na madrugada de Natal. Por falta das chaves,o carcereiro não podia entrar na cela. Marques da Rocha só chegou à ilha às oito horas da manhã. Ao serem abertos os dois portões da solitária, só dois presos sobreviviam, João Cândido e o soldado naval João Avelino. O Natal dos demais fora paixão e morte. O médico da Marinha, no entanto, diagnosticou a causa da morte como sendo "insolação". Marques da Rocha foi absolvido em Conselho de Guerra, promovido a capitãode mareguerra e recebido em jantar pelo presidente da República.” A Revolta da Chibata. Disponível em: http://www.cefetsp.br/edu/eso/patricia/revoltachibata.html. Data de acesso em: 12 Jan. 2009. 5 exemplo de Frinéia: a bela hetaira, absolvida por sua beleza, retratada na poesia parnasiana de Olavo Bilac:10 Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia, Comparece ante a austera e rígida assembléia Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira Aquela formosura original, que inspira E dá vida ao genial cinzel de Praxíteles, De Hipérides à voz e à palheta de Apeles. Quando os vinhos, na orgia, os convivas exaltam E das roupas, enfim, livres os corpos saltam, Nenhuma hetera sabe a primorosa taça, Transbordante de Cós, erguer com maior graça, Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio, Mais formoso quadril, nem mais nevado seio. Estremecem no altar, ao contemplála, os deuses, Nua, entre aclamações, nos festivais de Elêusis... Basta um rápido olhar provocante e lascivo: Quem na fronte o sentiu curva a fronte, cativo... Nada iguala o poder de suas mãos pequenas: Basta um gesto, e a seus pés rojase humilde Atenas... Vai ser julgada. Um véu, tornando inda mais bela Sua oculta nudez, mal os encantos vela, Mal a nudez oculta e sensual disfarça. cailhe, espáduas abaixo, a cabeleira esparsa... Quedase a multidão. Erguese Eutias. Fala, E incita o tribunal severo a condenála: "Elêusis profanou! É falsa e dissoluta, Leva ao lar a cizânia e as famílias enluta! 10 BILAC, Olavo. O Julgamento de Frinéia. Disponível em: http://www.biblio.com.br/defaultz.asp? link=http://www.biblio.com.br/conteudo/OlavoBilac/sarcasdefogo.htm. Data de acesso em: 12 Dez. 2008. 6 Dos deuses zomba! É ímpia! é má!" (E o pranto ardente Corre nas faces dela, em fios, lentamente...) "Por onde os passos move a corrupção se espraia, E estendese a discórdia! Heliastes! condenaia!" Vacila o tribunal, ouvindo a voz que o doma... Mas, de pronto, entre a turba Hipérides assoma, Defendelhe a inocência, exclama, exora, pede, Suplica, ordena, exige... O Areópago não cede. "Pois condenaia agora!" E à ré, que treme, a branca Túnica despedaça, e o véu, que a encobre, arranca... Pasmam subitamente os juízes deslumbrados, Leões pelo calmo olhar de um domador curvados: Nua e branca, de pé, patente à luz do dia Todo o corpo ideal, Frinéia aparecia Diante da multidão atônita e surpresa, No triunfo imortal da Carne e da Beleza. 2. O corpo doente, algumas buscas pela perfeição e as similitudes com as páginas jurídicas. O corpo é percebido de forma variada e multifacetada. Por mais que dele se conheça ou dele se aproprie, o corpo, embora anatomicamente conhecido, simbolicamente é incógnito. “Se os primeiros experimentos de dissecação anatômica começaram no século XIV, com Mondino de Liuzzi, foi somente do Renascimento em diante, e sobretudo com o De humani corporis fabrica, de Vesalio, dotado de esplêndidas e enregelantes imagens de seres descorticados, que a arte se voltou para os corpos seccionados nos anfiteatros e que uma exposição de órgãos internos triunfou sob forma hiperrealista nos museus de ceras anatômicas. Aí se reproduzia aquela facies hippocratica que anuncia o trespasse no rosto do moribundo, mas agora o esgar do agonizante excita pintores e escultores, assim como as feições devastadas dos doentes incuráveis.”11 11 ECO, Umberto.op.cit, p. 249. 7 A doença é a face decrépita e ignorada do corpo – caso deformante ou estertorante tanto pior. As representações do corpo doente estão restritas, na atualidade, aos tratados médicos. E o corpo doente, no sistema jurídicopenal, é representado na elaboração incerta e imprecisa sobre as doenças mentais e, no caso de doenças incapacitantes, aos direitos sempre tímidos da Lei de Execução Penal – Lei n.7.210/84. Sempre há o receio da simulação e das falsas aparências – dos atestados e dos exames médicos, eventualmente falsos, juntados ao processo de conhecimento ou ao processo de execução. A infelicidade maior reside, justamente, no esquecimento e nas condições subhumanas daqueles presos cautelarmente ou daqueles submetidos ao cumprimento da pena. O tributo pago ao crime são o corpo e a alma doentes.12 A doença, ao contrário da feiúra, não ocupa posição altaneira nas páginas penais. À exceção das doenças e dos males psiquiátricos, com a velha disputa entre o tratamento e a punição.13 O loucocriminoso, a associação da maldade e da perversidade à loucura, o imenso desconhecimento acerca da estrutura psíquica e mental da pessoa humana são os limites perseguidos pela Medicina e pelo Direito Penal.14 No entanto, alijado e 12 Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere, diz: “O mundo se tornava fascista. Num mundo assim, que futuro nos reservariam? Provavelmente não havia lugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em cárcere, findaríamos num campo de concentração. Nenhuma utilidade representávamos na ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos tristes, inofensivos e desocupados, farrapos vivos, fantasmas prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolhermonos ao hospício ou ter coragem de amarrar uma corda ao pescoço e dar o mergulho decisivo. Essas idéias, repetidas, vexavamme; tanto me embrenhara nelas que me sentia inteiramente perdido.” RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere, v. I, n e IV Rio de Janeiro, José Olympic, 1953. 13 “Lima Barreto foi mandado para o hospício devido ao seu vício: o álcool. Ele foi internado duas vezes, a primeira por ordem policial e a segunda por decisão de seu irmão. Essa relação entre polícia e manicômio é estranhamente íntima. “Logo após o café, fui chamado à presença de um jovem médico, muito simpático, pouco certo de seus podêres para curarme. Fêzme umas perguntas, e senti mesmo que seu desejo era mandarme embora. Disseme mais ou menos isso, ou melhor, as suas palavras foram estas, depois de dizer o que eu tinha tido: – Não há dúvida... Mas o senhor ou você – não me recordo – veio pela polícia, tem que se demorar um pouco”.(p. 178) Esse episódio demonstra que o modo como a autoridade define as normas numa cadeia é muito próxima ao modo como são definidas as normas num hospício, embora suas justificativas sejam bastante distintas: uma cadeia recebe criminosos, pessoas que devem pagar por erros cometidos; um hospício recebe pessoas que não estão em equilíbrio normal e devem ser afastadas do convívio social. Ambos os ambientes têm uma espécie de busca da redenção, de possibilitar a reabilitação dos indivíduos para viver em sociedade.” BATISTA, Eloisy Oliveira. Histórias Esquecidas – um estudo sobre as obras Memórias do Cárcere e Cemitério dos Vivos. Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/h00003.htm. Data de acesso: 15 Jan.2009. 14 “As relações entre a psiquiatria e a Justiça penal têm sido, pelo menos desde o séc. XIX, bastante estreitas. Por um lado, a Justiça não dispunha de meios para dar conta de certo tipo de crime cujas características pareciam fugir completamente à razão. Culpado ou louco, eis a questão ao mesmo tempo deixada em abertopela Justiça criminal e proposta pela psiquiatria nascente. Enquanto a Justiça só pode agir sobre o delito depois de cometido, a psiquiatria parece capaz de prevêlo em função de critérios de periculosidade, definidos cientificamente. 8 esquecido das páginas do direito, o estudo do corpo doente: do constante imperfeito, no corpo que se vê e se apreende pelo olhar do outro. Se o corpo doente é o imperfeito, contrariamente ele também pode simbolizar a busca pela perfeição ou, ao menos, a necessidade de domínio do próprio corpo, como se vê, v.g, na anorexia e na bulimia.15 O inatingível e o ideal marcam os corpos anoréxicos e bulímicos. Limitar a anorexia nervosa exclusivamente à moda é desconhecer a história – ela é tão complexa, quanto difícil de ser estudada, mas está indiscutivelmente ligada ao desejo da perfeição ou do perfeito domínio sobre o corpo. Como se sabe, “(...) há evidências de que a anorexia atual seria um contínuo de um tipo de comportamento inalterado através da história do Ocidente. Behar e Fendrik acreditam que, no passado, mesmo dentro de um contexto sociocultural diferente, principalmente na região européia, a doença sempre foi igual: restrição sistemática do alimento com risco grave da saúde e da própria vida. É possível, então, estabelecer um paralelo entre as anoréxicas atuais e as santas jejuadoras medievais, como já discutimos anteriormente em relação às meninas cloróticas do século XIX. Notase a existência, desde então, de uma polaridade entre a justiça e a medicina, segundo a qual o saber médico tende a estabelecer meios de formalizar a loucura num estatuto cientifico e, por outro lado, a justiça procura determinar o ato criminoso e a sua sentença a partir de um juízo moral. Impossível, pois, declarar alguém ao mesmo tempo culpado e louco; o diagnóstico de loucura, uma vez declarado, não pode ser integrado no Juízo, ele interrompe o processo e retira o poder da Justiça sobre o autor do ato. É nesse ambiente de novas definições que surge a medida de segurança, como proposta de proporcionar ao louco criminoso um destino diferente daquele dado ao criminoso comum. Nesse ínterim, as medidas de segurança têm caráter preventivo e terapêutico, e não punitivo, pois prescrevem tratamento. O cárcere ou o asilo, tal será o destino de uma determinada categoria de indivíduos. Entretanto, na própria fronteira entre as duas instituições, haverá aqueles considerados excessivamente lúcidos para as casas de alienados e insuficientemente responsáveis para a prisão, o que suscita uma questão: se o loucocriminoso não pode ser simplesmente condenado à pena de prisão ou ser internado em manicômio comum, qual seria o local adequado a ele? Uma resposta a essa questão leva à adoção de medidas de segurança que trazem consigo a exigência de diversos estilos arquitetônicos e a existência de aparelhagem interna nos estabelecimentos penais destinados a sua execução.” SANTOS, Mauro Leonardo Salvador Caldeira dos; SOUZA, Fernanda Silva de; SANTOS, Cláudia Verônica Salvador Caldeira dos. As marcas da dupla exclusão: experiências da enfermagem com o psicótico infrator. Texto contexto enferm., Florianópolis, v.15, n.spe, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S010407072006000500009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 Jan. 2009. doi: 10.1590/S010407072006000500009. 15 A escolha da anorexia e da bulimia são apenas ilustrativas e exemplificativas. Sabese que elas são mais complexas que a breve digressão presente no artigo. A proposta do estudo de ambas é mostrar e demonstrar que elas fazem parte de uma visão nãoindividualizada e nãoatribuível somente aos que dela padecem – mas são o símbolo distorcido e infeliz da busca de controle nos vazios do mundo, distantes do “corpo” humano. As pessoas humanas e os seus constructos individuais ou coletivos tentam assimilar as realidades ao corpo – como se, na vida, fosse possível quer o controle do corpo, quer o controle do mundo. 9 O diagnóstico de clorose, ou doença verde, faziase na presença de palidez, fraqueza, cansaço, irritabilidade, constipação, irregularidade menstrual e repulsa à comida, principalmente às carnes, além de um pronunciado emagrecimento. Descrita por Johanes Lange, em 1554, como "doença das virgens", seria causada por uma "febre amorosa" e teria cura, segundo esse autor, com o casamento, o intercurso sexual e a maternidade. Após haver se constituído, no século XIX, em verdadeira epidemia entre as meninas na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, desapareceu completamente após 1920. Loundon, entre outros autores, considera que a clorose e a anorexia nervosa sejam condições análogas de uma mesma psicopatologia. Numa tentativa de explicação do verdadeiro surto de santas anoréxicas na Idade Média, Gamero afirma que, com o advento do Cristianismo, houve uma substituição drástica dos deuses obesos, hedonistas, pelos cristos magros. Foram abandonadas as imagens gordas de divindades ancestrais, bem como o hábito dos grandes banquetes romanos seguidos de vômitos autoinduzidos. Nos primeiros anos da Idade Média, a glutonaria passou a ser sinônimo de impureza, a gula converteuse num dos sete pecados capitais, e a rejeição aos alimentos foi eleita a penitência preferida para alcançar o estado de máxima espiritualidade. A busca da santidade, do puro, exigia privações do corpo. (...) (...) começaram a aparecer santas anoréxicas, como Santa Liduina, que, durante anos, alimentouse só de um pedaço de maçã por dia, e Santa Wilgefortis (do latim Virgo fortis, "virgem forte"), a jovem filha do rei de Portugal, que rejeitava os alimentos oferecidos, fazia jejuns e vomitava o que era obrigada a ingerir, emagrecendo notoriamente e praticamente deixandose morrer de fome. A presença de hirsutismo também é um fato relevante na sua história, ainda que, segundo a lenda, seu corpo tenha se coberto de pêlos e uma barba tenha crescido como resultado de suas orações, em que rogava a Deus que lhe apagasse a beleza. Porém, segundo a literatura, foi na época em que Santa Catarina de Siena viveu que existiu uma verdadeira era da anorexia santa. Fendrik afirma que chegou a tal extremo o hábito de "nunca comer" entre as santas do século XIII, que os registros feitos pelos confessores surpreendem por constituírem verdadeiras histórias clínicas. Ainda sobre o comportamento anoréxico das santas medievais, é da maior importância o trabalho desenvolvido por Rudolf Bell sobre a vida de 250 mulheres santas ou beatas da Igreja Católica, desde o século XIII aos dias atuais, utilizandose de escritos autobiográficos, cartas, testemunhos de confessores e relatos canônicos. Segundo Bell, 10 entre as santas com suposto transtorno alimentar estariam Santa Catarina de Siena, Santa Colomba de Rieti, Santa Catarina de Gênova, Santa Verônica, Santa Maria Madalena de Pazzi e Santa Clara de Assis.” 16 Também a bulimia, ideal e simbolicamente, tem a mesma conotação da anorexia: o domínio do corpo, a fala por meio do corpo, a ordenação do corpo: o grito de controle no universo caótico. A busca da aparência perfeita, religiosa ou esteticamente motivada, devese a múltiplos fatores. O controle do corpo, no incontrolável e imponderável mundo, talvez seja o mais significativo. “Nada do que é humano me é estranho”, dito por Terêncio, faz lembrar que a tentativa de controle do universo caótico é o signo do Direito. O Direito, como uma das mais formidáveis construções humanas de controle de condutas e de comportamentoshumanos, segue a lógica de ordenação da realidade e do universo caótico. Suas prescrições, seus mandamentos e suas ordenações são construídos culturamente, eivados de preconceitos e de limitações, às vezes, de boas intenções. Nas páginas jurídico penais, motivações religiosas, motivações de Estado, motivações intencionadas por bons ou maus propósitos são uma constante. 16 WEINBERG, Cybelle; CORDAS, Táki Athanássios; ALBORNOZ MUNOZ, Patricia. Santa Rosa de Lima: uma santa anoréxica na América Latina?. Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul, Porto Alegre, v. 27, n. 1, Apr. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S010181082005000100006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 03 Feb. 2009. doi: 10.1590/S010181082005000100006. 11 À semelhança do corpo humano, o Direito é um corpo.17 Às vezes saudável, às vezes fraco, às vezes doentio, às vezes ensandecido. Na atualidade, o Direito apresentase como o corpo anoréxico ou o corpo bulímico – ou, ao menos, o Direito Penal assim se apresenta. “O corpo que se mostra é um corpo descorado e fraco; mas para o anoréxico que se vê, a magreza nunca é suficiente e o excesso é latente a sua condição. De acordo com Merleau Ponty (1999), o corposujeito e o corpoobjeto estão justapostos através de uma mesma relação de possibilidade, e esse corposujeito, ao mesmo tempo em que sente, pode também ser sentido. É no cruzamento de possibilidades entre corposujeito e corpoobjeto que essa doença cria um paradoxo entre o corpo real e a imagem do corpo que o indivíduo anoréxico projeta para si na anorexia, a percepção autoreferida de imagem corporal é transbordante e está além dos limites do pequeno corpo anoréxico. Para compreender melhor esse ponto, utilizouse o conceito de imagem corporal de Schilder (1999), que extrapola os aspectos neurológicos, mas relacionase às conexões entre o indivíduo e o mundo ao seu redor. Para o autor, a imagem corporal está além dos limites do corpo físico, as noções de espaço interno e externo na imagem corporal não são as mesmas da física. Segundo Schilder (1999): Entendese por imagem do corpo humano a figuração de nosso corpo formada em nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós. Há sensações que nos são dadas. Vemos partes da superfície do corpo. Temos impressões táteis, térmicas e de 17 A idéia não é nova. “A necessidade de medir é antiga e nos remete à origem das civilizações. Tendo sempre como referência o corpo humano para suas medições, a idéia de medidas sempre esteve ligada, de uma forma ou de outra, ao corpo humano. Nosso sistema de numeração nasceu da observação dos ritmos e pulsações do próprio corpo humano assim como da observação do Universo. O sistema decimal nasceu do cinco, pois é esse o número de dedos das mãos e pelo cálculo com os 10 dedos de ambas as mãos. Na cultura babilônica, havia ainda outro sistema de numeração, que obedecia a uma orientação cósmica, ou seja, o sistema de 12 teve sua origem nos doze signos do zodíaco e daí surgiu o sistema de 60. “Conservamos deles as nossas 12 horas, 60 minutos e 60 segundos, bem como os 360 graus aplicados na divisão da superfície em ângulos.” Em 1789, o Governo Republicano Francês pediu à Academia de Ciências da França que criasse um sistema de medidas baseado numa "constante natural". A comissão incluía, entre outros, Lagrange e Laplace, Assim foi criado o Sistema Métrico Decimal, que foi adotado por outros países, dentre eles, o Brasil. O Sistema Métrico Decimal adotou, inicialmente, três unidades básicas de medida: o metro, o litro e o quilograma. Na França houve dificuldade na implantação do sistema métrico decimal. O imperador Napoleão Bonaparte assinou um decreto tornando obrigatório o ensino do novo sistema nas escolas francesas.” Cf. COELHO, Sônia Regina. Alguns olhares sobre o corpo humano. Dissertação de Mestrado em História da Ciência. 2006. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br. Data de acesso em: 28 Dez. 2008. 12 dor (...) Além disso, existe a experiência imediata de uma unidade corporal. Esta unidade é percebida, porém é mais do que uma percepção. Nós a chamamos de esquema de nosso corpo (...) de modelo postural do corpo. O esquema do corpo é a imagem tridimensional que todos têm de si mesmos. Podemos chamála de imagem corporal (p.7). A imagem do corpo não advém somente de impressões ou sensações táteis, mas relacionase à figurações e representações sobre o corpo. À figuração do corpo estão amarradas imagens que se sustentam sempre numa relação com alguma coisa. Através da imagem, o sujeito armazena uma relação, uma situação, ou seja, a imagem do objeto relacionase à forma como este foi percebido. Tavares (2003) lembra oportunamente como "a imagem mental da aparência de uma refeição poderá fazêla mais ou menos saborosa" (p.33). É exatamente isso que se percebe na anorexia nervosa, o caso de uma imagem corporal autoapreendida que atravessa o próprio corpo e que está além das fronteiras físicas do corpo.”18 O Direito, visto e justificado por si próprio, tem como signo e como condição latente a sua realidade o excesso de normas jurídicas. A atuação, o alcance e os limites do Direito são como o pequeno corpo anoréxico. No entanto, a autoimagem projetada do Direito é transbordante de possibilidades e de enlevos: os que dele participam são os seus “operadores”, ou seja, o primado da razão técnicoinstrumental nos não tão poucos escolhidos para decifrálo; os destinatários das normas jurídicas – nas páginas penais – são os cidadãos, os criminosos ou os delinqüentes, os acusados, os jurisdicionados – são todos, mas não são pessoas; trágica e operística a menção ao “mundo jurídico”, como se a realidade fosse criada e disciplinada pelo jus, cujo objetivo é disciplinála, controlála e regulála. A visão tridimensional do Direito é idêntica ao esquema do corpo: às sensações dadas ao corpo comparamse às realidades existentes, ao mundo que chama e chameja; às figurações e representações sobre o corpo e à projeção das imagens comparamse à percepção do direito e a sua aplicação – aproximada ou distanciada do conteúdo do justo tanto por aqueles que o interpretam, como por aqueles que lhes são destinatários. 18 GIORDANI, Rubia Carla Formighieri. A autoimagem corporal na anorexia nervosa: uma abordagem sociológica. Psicol. Soc., Porto Alegre, v. 18, n. 2, Aug. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S010271822006000200011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 Jan. 2009. doi: 10.1590/S010271822006000200011. 13 Na velha acepção dual do masculino e do feminino,19 o Direito regese pela antiga concepção do predomínio da razão – qualidade varonil. No entanto, a sua aplicação é predominantemente emotiva qualidade feminina. A aplicação das normas jurídicas não é racional, as pessoas agem pelos seus sentimentos e emoções, ainda que justificados e legitimados à luz da razão. O excesso das normas jurídicas, a verborragia de sua retórica, os formalismos e os esquemas de realidade, o funcionamento da Justiça como linha e como fábrica de montagem trazem efeito perverso. Vivese a era das reclamações, das demandas, dos pedidos, da nãoabsorção das pequenas frustrações da vivência humana: o direito se transforma em chicana e em perseguição de todos os fins e de todas as finalidades, à semelhança da peça, “Les Plaideurs”, de Jean Racine. Se a representação do Direitoé a representação do corpo anoréxico, a realidade do Direito é a nãocompletitude, o vazio e a deficiência. 3. A “falta” e a “ausência A deficiência se não é vista como doença, sempre é compreendida como “falta”, “não completitude” ou “ausência”. Compreendêla significa não apenas vêla como falta ou ausência fisicamente apreendida, mas sim construída culturamente.20 19 “ (...) cabe a Cícero a associação da razão com masculinidade e domínio enquanto que emoção é associada com efeminação e suavidade, como o mostra a seguinte passagem: Com efeito, a alma é dividida em duas partes, onde uma é participante da razão, e onde a outra é desprovida. Com efeito, aquilo que prescrevemos, como obedecer a nós mesmos, prescrevemos, como a razão dirige a temeridade. Existe na alma de todos, por natureza, qualquer coisa de negligência, de baixo, humilde, de qualquer sorte que sem dor ou tristeza, se nada de outro não existe, nada será mais feio que o ser humano. Mas se encontra sua disposição dona e rainha de tudo, a razão, que diante faz um esforço para ela mesma e progride bem longe, vindo a virtude tornarse perfeita. Que aquilo que comanda a esta parte da alma que deve obedecer, e devendo ser visto pelo homem naquilo que me concerne, a virtude é para ser praticada. Mas como perguntarás tu? Como um mestre comanda a seu escravo ou como um general ao seu soldado ou como um pai aos seus filhos, assim a parte da alma que eu disse ser leve se comporta mais torpemente se ela se apropria da parte feminina das lamentações e das lágrimas, que ela seja atacada e entravada sob a guarda dos amigos e dos próximos. Com efeito, nos vimos sustentando submeter a baixa das gentes que não rendera nenhum chamado à razão.” Cf. PEREIRA, Daniel Sánchez Pereira. Em nome do amor te peço... com as minhas palavras e com o meu corpo Redescobrindo masculinidades a partir da carta a Filêmon, Ápia e Arquipo. Tese de Doutorado em Teologia. 2006. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br. Data de acesso em: 05 Jan.2009. 20 “ (...) O modelo social da deficiência surge na década de 1960, no Reino Unido, como uma reação às abordagens biomédicas. A idéia básica do modelo social é de que a deficiência não deve ser entendida como um problema individual, mas como uma questão eminentemente social, transferindo a responsabilidade pelas desvantagens dos deficientes das limitações corporais do indivíduo para a incapacidade da sociedade em prever e ajustarse à diversidade (Oliver, 1990). Em torno do modelo social da deficiência surge, na década de 1970, a Upias (The Union of the Phisically Impaired Against Segregation), uma das primeiras organizações de deficientes com objetivos eminentemente políticos, e não apenas assistenciais, como era o caso das instituições para deficientes criadas nos dois séculos anteriores (Upias, 1976). 14 “Por algum tempo se evitou o uso do termo deficiente para se referir às pessoas que experimentavam a deficiência, por se acreditar que se tratava de um termo estigmatizante. Foram buscadas alternativas como pessoa portadora de necessidades especiais, pessoa portadora de deficiência ou o mais recente pessoa com deficiência, todos buscando destacar a importância da pessoa quando feita referência à deficiência. Aqueles com preferência pelo reconhecimento da identidade na deficiência utilizam simplesmente o termo deficiente, seguindo princípios semelhantes aos que levam a O ponto de partida teórico do modelo social é de que a deficiência é uma experiência resultante da interação entre características corporais do indivíduo e as condições da sociedade em que ele vive, isto é, da combinação de limitações impostas pelo corpo com algum tipo de perda ou redução de funcionalidade (“lesão”) a uma organização social pouco sensível à diversidade corporal. Originalmente a Upias propôs uma definição que explicitava o efeito da exclusão na criação da deficiência: “Lesão: ausência parcial ou total de um membro, órgão ou existência de um mecanismo corporal defeituoso; Deficiência: desvantagem ou restrição de atividade provocada pela organização social contemporânea que pouco ou nada considera aqueles que possuem lesões físicas e os exclui das principais atividades da vida social.” (Upias, 1976:34). A ênfase inicial nas limitações físicas foi imediatamente revista e com isso abriuse um grande debate sobre as limitações do vocabulário usado para descrever a deficiência. A intenção era destacar que não havia, necessariamente, uma relação direta. A combinação da existência de uma condição de saúde bem abaixo de um padrão abstrato de normalidade e a persistência dessa condição no tempo permite ao modelo médico diferenciar doença de deficiência. Muitas das doenças são entendidas como situações temporárias. Assim, embora tenham uma condição de saúde inferior à determinada por algum critério de normalidade, pessoas doentes podem não ser consideradas deficientes dentro do modelo médico porque sua redução de capacidades é apenas temporária e não permite definir uma identidade. O caminho inverso também é trilhado para separar deficiência de doença, porém com um argumento um pouco mais sofisticado (Diniz, 1996). Se a deficiência é uma situação irreversível, é perfeitamente possível redefinir o conceito de normalidade de modo a ajustálo à condição permanente das pessoas. A cegueira, por exemplo, passa a ser a condição normal de uma pessoa cega e, portanto, não faz sentido classificála como doente. Neste esquema, uma pessoa que não pode enxergar porque está com uma inflamação ocular grave é uma pessoa doente e uma pessoa permanentemente cega é uma pessoa deficiente. Como o reconhecimento da “sociedade deficiente” é tão ou mais importante para o debate sobre políticas públicas e deficiência que a identificação da “pessoa deficiente”, as preocupações com identidade do modelo social são bem distintas daquelas do modelo médico. Abberley (1987), por exemplo, não insiste na distinção entre deficiência e doença e praticamente ignora a regra de persistência da lesão no tempo para identificar os deficientes, critério tão caro aos formuladores de políticas sociais nos anos 1980, que o utilizaram sistematicamente em contagens de população de vários países do mundo. A lógica do modelo social não reconhece esta distinção, principalmente porque entendem que os ajustes requeridos da sociedade para que ela contemple a diversidade da deficiência independem de quanto tempo uma condição corporal irá se manter. Afinal, se uma pessoa que usa cadeira de rodas enquanto se recuperar de fraturas nas pernas necessita dos mesmos ajustes no sistema de transporte que uma pessoa permanentemente incapacitada de caminhar, por que separálas em grupos diferentes? Ao não reconhecer que os doentes também experimentam a deficiência o modelo médico exclui da atenção das políticas públicas uma grande parcela da população que necessita delas, problema que pode afetar uma parte razoável da população idosa. Não usar da mesma maneira a distinção entre doença e deficiência é um recurso do modelo social para evitar este tipo de exclusão. A conseqüência óbvia da definição do modelo social é de que a pesquisa e as políticas públicas direcionadas à deficiência, não poderiam concentrarse apenas nos aspectos corporais dos indivíduos para identificar a deficiência. Além disso, ao separar a deficiência da lesão, o modelo social abre espaço para mostrar que, a despeito da diversidade das lesões, há um fator que une as diferentes comunidadesde deficientes em torno de um projeto político único: a experiência da exclusão. Segundo Oliver, “todos os deficientes experimentam a deficiência como uma restrição social, não importando se estas restrições ocorrem em conseqüência de ambientes inacessíveis, de noções questionáveis de inteligência e competência social, se da inabilidade da população em geral de utilizar a linguagem de 15 preferência pelo termo negros para fazer referência às pessoas de cor preta ou parda. Afora o cuidado para se evitar o uso de expressões claramente insultantes, parece que a disputa pela terminologia correta dispersa energia que deveria ser aplicada em questões mais substantivas e, por isso, o texto usa várias terminologias conhecidas indiferentemente. As políticas sociais voltadas aos deficientes precisam definir deficiência. Esta não é uma tarefa fácil, uma vez que a busca de critérios essencialmente técnicos e neutros para determinar o que é deficiência não só é ingênua como, geralmente, oculta, sob uma fachada neutra, valores altamente prescritivos quanto à função e objetivos das políticas sociais.”21 Vista pela nãoaceitação do diferente, ou vista pelos olhos da mente ou da cultura: o destino do deficiente, na vida é a infelicidade; no direito, a proteção. Não se percebe que a deficiência não significa infelicidade; nem tampouco que a proteção do sistema jurídico não raro é excludente, limitadora e estigmatizante. A expressão da sexualidade das pessoas falhas de inteligência ou portadoras de alguma doença mental é proibida. A sexualidade não pode ser expressa? O deficiente mental, o portador de Síndrome de Down, ou todos com alguma limitação da capacidade intelectual têm menor condição de expressar a sua sexualidade, de forma autônoma ou válida, mas deveriam ter menor direito de expressála?. O portador de determinadas doenças ou de falhas congênitas não pode escolher, livre e autonomamente, o seu destino e o seu trabalho? O aviltamento a sua dignidade não tem sido levado à proteção jurídica, intensa e de fundo estigmatizante, como, v.g., o caso de MorsangsurOrge?22 Em 2001, a Organização Mundial da Saúde (OMS) revisou o catálogo internacional de classificação da deficiência para adequarse a essa perspectiva (OMSICF, 2001). Nesta revisão, toda e qualquer dificuldade ou limitação corporal, permanente ou temporária, é passível de ser classificada como deficiência. De idosos a mulheres grávidas e crianças com paralisia cerebral, o International Classification of Functioning, Disability and Health (“Classificação Internacional de Funcionamento, Deficiência e Saúde”) propõe um sistema de avaliação da deficiência que relaciona funcionamentos com contextos sociais, mostrando que é possível uma pessoa ter lesões sem ser deficiente (um lesado medular em ambientes sensíveis à cadeira de rodas, por exemplo), assim como é possível alguém ter expectativas de lesões e já ser socialmente considerado como um deficiente (um diagnóstico preditivo de doença genética, por exemplo).” DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo. Envelhecimento e Deficiência. Série Anis 36, Brasília, LetrasLivres, 18, junho, 2004. Disponível em: http://www.anis.org.br/serie/artigos/sa36(medeirosdiniz)idososdeficiência.pdf . Data de acesso em: 03 Fev. 2009. 21 Ibidem. 22 “C.E., Ass., 27 octobre 1995, Commune de MorsangsurOrge (Rec., p. 372) (Assemblée. Req. n° 136727 Mlle Laigneau, rapp. ; M. Frydman, c. du g. ; Mes BaraducBénabent, Bertrand, av.) Requête de la commune de MorsangsurOrge, qui demande au Conseil d'Etat : 1° d'annuler le jugement du 25 février 1992 par lequel le tribunal administratif de Versailles a, à la demande de la société Fun Production et de M. Wackenheim, d'une part, annulé l'arrêté du 25 octobre 1991 par lequel son maire a interdit le spectacle de « lancer de nains » prévu le 25 octobre 1991 à la 16 Não fortuitamente atribuise à velhice o predicado da deficiência, agravada pelo gênero – todas as mulheres hão de ser jovens e atrativas. A limitação da idade, própria do processo dinâmico da vida, atribuise o caráter de falta e de ausência. Os velhos são anormais e as velhas, logo nas primeiras cãs, à semelhança de Pompéia, devem banhar se no leite de cem jumentas na busca infrutífera da eterna juventude. A beleza da mulher sempre foi valorizada e apreciada. O envelhecimento a tornava menos desejável e menos querida – outrora bela mulher, hoje rosto com marcas do tempo. Se feia, a mulher estava quase sempre destinada à “prateleira”, no uso de discothèque de l'Embassy Club, d'autre part, l'a condamnée à verser à ladite société et à M. Wackenheim la somme de 10 000 F en réparation du préjudice résultant dudit arrêté ; 2° de condamner la société Fun Production et M. Wackenheim à lui verser la somme de 10 000 F au titre de l'article 75I de la loi n 91647 du 10 juillet 1991 ; Vu le code des communes et notamment son article L. 1312 ; la Convention européenne de sauvegarde des droits de l'homme et dês libertés fondamentales ; le code des tribunaux administratifs et des cours administratives d'appel ; l'ordonnance n 451708 du 31 juillet 1945, le décret n 53934 du 30 septembre 1953 et la loi n 871127 du 31 décembre 1987 ; Sans qu'il soit besoin d'examiner les autres moyens de la requête : *1* Considérant, qu'aux termes de l'article L. 1312 du code des communes : « La police municipale a pour objet d'assurer le bon ordre, la sûreté, la sécurité et la salubrité publique » ; *2* Cons. qu'il appartient à l'autorité investie du pouvoir de police municipale de prendre toute mesure pour prévenir une atteinte à l'ordre public ; que le respect de la dignité de la personne humaine est une dês composantes de l'ordre public ; que l'autorité investie du pouvoir de police municipale peut, même en l'absence de circonstances locales particulières, interdire une attraction qui porte atteinte au respect de la dignité de la personne humaine ; *3* Cons. que l'attraction de « lancer de nain » consistant à faire lancer um nain par des spectateurs conduit à utiliser comme un projectile une personne affectée d'un handicap physique et présentée comme telle ; que, par son objet même, une telle attraction porte atteinte à la dignité de la personne humaine ; que l'autorité investie du pouvoir de police municipale pouvait, dès lors, l'interdire même en l'absence de circonstances locales particulières et alors même que des mesures de protection avaient été prises pour assurer la sécurité de la personne en cause et que celleci se prêtait librement à cette exhibition, contre rémunération ; *4* Cons. que, pour annuler l'arrêté du 25 octobre 1991 du maire de MorsangsurOrge interdisant le spectacle de « lancer de nains » prévu le même jour dans une discothèque de la ville, le tribunal administratif de Versailles s'est fondé sur le fait qu'à supposer même que le spectacle ait porté atteinte à la dignité de la personne humaine, son interdiction ne pouvait être légalement prononcée en l'absence de circonstances locales particulières ; qu'il résulte de ce qui précède qu'un tel motif est erroné em droit ; *5* Cons. qu'il appartient au Conseil d'Etat saisi par l'effet dévolutif de l'appel, d'examiner les autres moyens invoqués par la société Fun Production et M. Wackenheim tant devant le tribunal administratif que devant le Conseil d'Etat ; *6* Cons. que le respect du principe de la liberté du travail et de celui de la liberté du commerce et de l'industrie ne fait pas obstacle à ce que l'autorité investiedu pouvoir de police municipale interdise une activité même licite si une telle mesure est seule de nature à prévenir ou faire cesser um trouble à l'ordre public ; que tel est le cas en l'espèce, eu égard à la nature de l'attraction en cause ; *7* Cons. que le maire de MorsangsurOrge ayant fondé sa décision sur les dispositions précitées de l'article L. 1312 du code des communes qui justifiaient, à elles seules, une mesure d'interdiction du spectacle, lê moyen tiré de ce que cette décision ne pouvait trouver sa base légale ni dans l'article 3 de la Convention européenne de sauvegarde des droits de l'homme et des libertés fondamentales, ni dans une circulaire du ministre de l'intérieur, du 27 novembre 1991, est inopérant ; *8* Cons. qu'il résulte de tout ce qui précède que c'est à tort que, par le jugement attaqué, le tribunal administratif de Versailles a prononcé l'annulation de l'arrêté du maire de MorsangsurOrge en date du 25 octobre 1991 et a condamné la commune de MorsangsurOrge à verser aux demandeurs la somme de 10 000 F ; que, par voie de conséquence, il y a lieu de rejeter leurs conclusions tendant à l'augmentation du montant de cette indemnité ; 17 expressões de época, ou estava quase sempre destinada a casarse com o primeiro pretendente, fosse ele quem fosse. O humor, voltado às percepções mais profundas da cultura, bem o demonstra: Carlos Estevão, em “O Cruzeiro”, datada a publicação de 1964,23 desenha u’a mulher “feia” e “velha” pedida em casamento e, no afã e na sofreguidão de se ver bela e desejável, ela nega o pretendente – de maneira pouco educada e cortês. Em consulta aos seus “manes”, isto é, ao seu diário, ela vê um passado idealmente projetado – mas o narrador, com fria insensibilidade e crueza, desfaz todas as suas fantasias e as suas ilusões. O passado existe, menos pela realidade, mais pelas lembranças e pela história firmada nos anais quer de um documento particular, quer de um documento público. Cruelmente desiludida, com medo da velhice, da solidão ou da sociedade: a mulher aceita o pedido de casamento. O destino de ambos é a infelicidade. Os diálogos e o diário, sem as ilustrações, são transcritos: “Pretendente (Seu Josias): Do...dona Dolores, a senhora é solteira e eu sou viúvo...Eu, eu queria pedir a senhora em... Pretendida (D. Dolores/Jane): EEU, HEIN, SEU JOSIAS?...Quem gosta de velho é cadeira de balanço e reumatismo! Não se enxerga, não? Sur les conclusions de la société Fun Production et de M. Wackenheim tendant à ce que la commune de MorsangsurOrge soit condamnée à une amende pour recours abusif : *9* Cons. que de telles conclusions ne sont pas recevables ; Sur les conclusions tendant à l'application des dispositions de l'article 75I de la loi du 10 juillet 1991 : *10* Cons. qu'aux termes de l'article 75I de la loi du 10 juillet 1991 : « Dans toutes les instances, le juge condamne la partie tenue aux dépens ou, à défaut, la partie perdante à payer à l'autre partie la somme qu'il détermine, au titre des frais exposés et non compris dans les dépens. Le juge tient compte de l'équité ou de la situation économique de la partie condamnée. Il peut même d'office, pour des raisons tirées de ces mêmes considérations, dire qu'il n'y a pas lieu à cette condamnation » ; *11* Cons., d'une part, que ces dispositions font obstacle à ce que la commune de MorsangsurOrge, qui n'est pas dans la présente instance la partie perdante, soit condamnée à payer à la société Fun Production et M. Wackenheim la somme qu'ils demandent au titre des frais exposés par eux et non compris dans les dépens ; qu'il n'y a pas lieu, dans les circonstances de l'espèce, de faire application de ces dispositions au profit de la commune de MorsangsurOrge et de condamner M. Wackenheim à payer à cette commune la somme de 10 000 F au titre des frais exposés par elle et non compris dans les dépens ; qu'il y a lieu, en revanche, de condamner la société Fun Production à payer à la commune de MorsangsurOrge la somme de 10 000 F au titre des frais exposés par elle et non compris dans les dépens ; ... (annulation du jugement attaqué ; rejet des demandes de la société Fun Production et de M. Wackenheim présentées devant le tribunal administratif de Versailles, ainsi que de l'appel incident de la société Fun Production et de M. Wackenheim ; condamnation de la société Fun Production à payer à la commune de MorsangsurOrge la somme d 10 000 F en application des dispositions de l'article 75I de la loi du 10 juillet 1991 ; rejet des conclusions de la société FunProduction et de M. Wackenheim tendant à l'application de l'article 75I de la loi du 10 juillet 1991).” Disponível em: http://www.georgemlima.xpg.com.br/anao.pdf. Data de acesso em: 13 Jan. 2009. 23 Disponível em: http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/. Data de acesso em: 03 Fev.2009. 18 Narrador (Voz da Consciência): “Jane, sua resposta foi dura demais; é verdade que seu Josias não é nenhum Alain Delon, que é viúvo e que não tem lá grande futuro... Mas, e você? E você, querida Jane, o que justifica esse seu desprezo soberano pelo pobre viúvo? É claro que você se acha parecida com a Cláudia Cardinale, não é? Sei também que se acha inteligentíssima, cultíssima e que, no seu pileque de orgulho, chega a ver até em seu tronco familiar, fulgurações heráldicas, não é? Jane, você está agora diante dum bom espelho, olhe para êle com atenção e com humildade e acate as suas sábias decisões.” “Sim, é isso mesmo...Agora, com um pouco de coragem, vamos ao seu diário, vamos ver o que você escreveu em...” Diário: 15 de Julho – Estávamos sós, e com suas mãos másculas, êle segurava delicadamente o meu braço. (Era um enfermeiro a lhe aplicar a injeção, lembrase, Jane?) 20 de Agosto – Sim, assoviava para mim de dez em dez minutos e só parava quando eu lhe punha as mãos. (Era uma panela de pressão, lembrase, Jane?) 12 de Setembro – Senti que ele não tirava os olhos de mim, de repente falou: a senhorita ainda não pagou a passagem (Era o condutor de bonde, lembrase, Jane?) 16 de Setembro – Com toda a ternura, êle me levou num belo carro até uma casa muito grande e bela. ( Era o ProntoSocorro, lembrase, Jane?) 8 de Outubro – Êle, assim que me viu de pé, levantouse, num pulo e ofereceume o lugar e depois ( Tinha dado cãibra na perna dele, lembrase, Jane?) 12 de Outubro – Aí êle faloume pausadamente: a senhorita é muito boa! Nunca vi moça tão boa! (Era um mendigo e você deralhe uma esmola de vinte pratas, lembrase, Jane?) 18 de Outubro – Recebi uma linda carta com uma (sic) grande coração vermelho desenhado no centro. (Era um ás de copas, lembrase, Jane?) 19 30 de Outubro – Foi lindo, ainda me lembro, eu com véu e grinalda ajoelheime aos pés do padre e... (Era na sua primeira comunhão, lembrase, Jane?) 20 de Novembro – Ele insistia comigo, súplice: diga, diga por favor: I love you! I love you! (Era o seu professor de inglês, lembrase, Jane?) 22 de Novembro Parecia com o Rock Hudson e faloume: A senhorita não quer mesmo assistir êste filme? (E ele vendeulhe um ingresso para uma sessão de beneficência, lembrase, Jane?) 25 de Novembro – Êle sorriu para mim, e, surprêso, não se conteve...A senhorita é a Primavera em pessoa. (Primavera?...Não...ele se referia à prima dele, a Vera Dentuça, lembrase, Jane?) 3 de Dezembro – Ele insistiu tanto, tanto: queria que eu fosse a estrela do filme que êle ia rodar?... (O filme era a filha do Drácula, lembrase, Jane?) Narrador (Voz da Consciência): Ah, mas, agora , vocêestá chorando, Jane? Vamos, pare com essa cachoeirinha de lágrimas.Você apenas se reencontrou. Pense no que lhe disse o seu Josias e seja feliz. Pretendida (D. Dolores/Jane): É que ontem eu estava tão nervosa, seu Josias...Mas depois eu refleti, refleti e a minha resposta é SIM. Pretendente (Seu Josias): Ora...Mas... Dona Ja...Eu posso lhe chamar de Jane, posso? Narrador (Voz da Consciência): Meses depois dessa cena tocante, êles se casaram, e foram, naturalmente, muito infelizes.”24 As limitações de gênero, etárias, sócioculturaiseconômicas não constituem deficiências, mas particularidades que devem, na sua diferença, ser igualmente respeitadas no tratamento jurídico que lhes é dispensado. 24 Disponível em: http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/. Data de acesso em: 03 Fev.2009. 20 Fossem abolidos todos os sistemas prescritivos, todas as normas jurídicas postas, todas as garantias e todos os direitos, caso restasse apenas o princípio da dignidade da pessoa humana – fundada na relação de alteridade – e todas as páginas jurídicas poderiam ser novamente reescritas. Todos são e estão em relações de sujeitos, de eutu:25 eis a essência e o conteúdo do Direito. Em particular, em relação aos idosos, no uso tão grato à linguagem jurídica, o modelo social da deficiência está bem fundeado e amarrado: “(...) o envelhecimento populacional de certo modo evidencia que a deficiência não pertence apenas ao universo do inesperado. A idéia de que a experiência da deficiência faz ou fará parte da vida de uma grande quantidade de pessoas torna a deficiência um tema de pauta não mais limitado aos movimentos de deficientes, mas de todos os movimentos sociais igualitaristas.”26 As vulnerabilidades de hoje são atribuídas aos mais variados grupos: idosos, crianças, mulheres, minorias diversas – étnicas, religiosas ou sexuais. A exceção é ser não vulnerável – o homem branco, heterossexual, em plena juventude, isto é, a pessoa humana representativa e destinatária das normas jurídicas, em especial as de caráter privado, v.g, o contratante, o locador, o locatário, o proprietário, o falido.27 A deficiência é atribuída não somente ao corpo imperfeito ou faltante, mas também aos extremos da vida – uma criança e um idoso são incapazes, em razão da idade – o lumiar e o ocaso da existência. A atribuição de vulnerabilidade ou de fragilidade aos grupos importa – por menos que se queira – em atitude discriminatória nem sempre benéfica. As políticas públicas afirmativas tendem à correção das injustiças e das distorções políticoeconômicas e históricas sofridos pelos grupos vulneráveis ou fragilizados mas representam também afirmação de que os grupos vistos como vulneráveis precisam de “ajuda” para afirmar a sua autonomia e a sua capacidade. Se se quer ajudar ou auxiliar ou amparar alguém, não significa relegar os grupos vulneráveis à recorrente situação de submissão e de domínio? Por outro lado, haverá outro caminho senão procurar minorar as distorções pela atribuição de um plexo de garantias e de direitos aos grupos vulneráveis? Esperarse a igualdade por meio de políticas públicas é perpetuar a desigualdade – mas as políticas públicas correcionais e incidentais são forma de minoração das desigualdades atuais. Tomaso de Lampedusa, em “O Leopardo”, no embate entre a 25 Novamente alusão aos escritos e às idéias de Martin Buber. 26 DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo. Op.cit. 27 A idéia não é original. Em outras leituras de gênero percebese a opção pelo masculino. 21 decadente aristocracia e a nascente burguesia, empresta a sua personagem a fala, citada de memória, algo deve mudar para que tudo continue como está. Também o reconhecimento dos grupos vulneráveis ou fragilizados é sempre problema de autoimputação, de atribuição a si próprio de identidade deteriorada – porque frágil e vulnerável: declararse negro, declararse homossexual, reconhecerse como mulher, declararse idoso. Quem são os negros, os mulatos, os morenos? A idade – critério absoluto – define a senectude? Quantas pessoas acima de 60 (sessenta) anos têm qualidade de vida superior àquelas de 40 (quarenta) anos que labutam na construção civil ou no roçado, ou nas minas e nas carvoarias? No entanto, são idosas perante a majestosa lei. Quantas mulheres têm supremacia financeira e emocional em relação aos homens? No entanto, são tidas como frágeis e dignas de proteção. Vivese a era das vulnerabilidades. É preciso jungirse afetivamente a liberdade à autonomia – criarse sujeitos independentes e autônomos. A vulnerabilidade ou a fragilidade das pessoas não é normativamente criada e elaborada, ao contrário, ela é casuisticamente vista e sentida. Em algum momento, todos são vulneráveis ou frágeis. É necessária a formação de sujeitos autônomos, apesar de medidas paliativas e urgentes serem providenciais. Ilustra Rubem Alves: “O sujeito da educação é o corpo, porque é nele que está a vida. É o corpo que quer aprender para poder viver. É ele que dá as ordens. A inteligência é um instrumento do corpo cuja função é ajudálo a viver. Nietzsche dizia que ela, a inteligência, era "ferramenta" e "brinquedo" do corpo. Nisso se resume o programa educacional do corpo: aprender "ferramentas", aprender "brinquedos". "Ferramentas" são conhecimentos que nos permitem resolver os problemas vitais do diaadia. "Brinquedos" são todas aquelas coisas que, não tendo nenhuma utilidade como ferramentas, dão prazer e alegria à alma. Nessas duas palavras, ferramentas e brinquedos, está o resumo da educação. Ferramentas e brinquedos não são gaiolas. São asas. Ferramentas me permitem voar pelos caminhos do mundo. Brinquedos me permitem voar pelos caminhos da alma. Quem está aprendendo ferramentas e brinquedos está aprendendo liberdade, não fica violento. Fica alegre, 22 vendo as asas crescer... Assim todo professor, ao ensinar, teria de se perguntar: "Isso que vou ensinar, é ferramenta? É brinquedo?" Se não for, é melhor deixar de lado.””28 A especial vulnerabilidade ou fragilidade pode ser atribuída à mulher ocidental? A legislação de proteção às mulheres é uma constante na maioria dos países e, sobretudo, nos casos de violência doméstica e de violência sexual são extremamente úteis. Também nos diversos tipos de assédio – moral e sexual as vítimas recorrentes são mulheres. Às legislações protetoras da mulher também deve ser perguntado: Elas são “ferramentas” para a efetivação e a realização da dignidade humana? Todas as perguntas sobre o conteúdo das normas jurídicas centramse em seu conteúdo perceptível de realização da dignidade da pessoa humana, isto é, na dignidade do outro, do alter. O Direito deve ter um “quê” de brinquedo, ele deve proporcionar alegria e prazer à alma – não à alma individual, mas à alma coletiva – com o caráter de transformação da realidade vigente. No entanto, as páginas jurídicas são escritas em tintas conservadoras e a proclamação de direitos e de garantias somente se realiza após as pressões dos movimentos sociais ou do sangue e do sofrimento de milhares de pessoas. O Direito não se confunde com a lei – as leis não têm o condão de modificar ou de transformar a realidade. A escravidão, no Brasil, v.g., consistiu em realidadevivida e em plexo normativo, conforme narrado por Joaquim Nabuco: “Por honra de Portugal, o mais eminente dos seus jurisconsultos não admitiu que o direito romano na sua parte mais bárbara e atrasada, dominica potestas, pudesse ser ressuscitado por um comércio torpe, como parte integrante do direito pátrio, depois de um tão grande intervalo de tempo como o que separa a escravidão antiga da escravidão dos negros. A sua frase: “servi nigri in Brasilia, et quaesitis aliis dominationibus tolerantur: sed quo jure et titulo me penitus ignorare fateor (Escravos negros são tolerados no Brasil e outros domínios, mas por que direito e com que título, confesso ignorálo completamente.), é a repulsa do traficante pelo jurisconsulto e a demolição legal do edifício inteiro levantado pela pirataria dos antigos assentos. É o vexame da confissão de Melo Freire que dá um vislumbre da dignidade do alvará de 6 de junho de 1755 em que se contém a primeira das promessas solenes feitas à raça negra. Aquele alvará, estatuindo sobre a liberdade dos índios do Brasil, fez esta exceção significativa: “Desta geral disposição excetuo somente os oriundos de pretas escravas, 28 ALVES, Rubem. Gaiolas e Asas. A Casa de Rubem Alves. Disponível em: www.rubemalves.com.br. Data de acesso em: 30 Jan. 2009. 23 os quais serão conservados nos domínios dos seus atuais senhores, enquanto eu não der outra providência sobre esta matéria. A providência assim expressamente prometida nunca foi dada.”29 A Lei Áurea, Lei n.3.353, de 13 de maio de 1888, embora abolindo a escravatura, não trouxe aos antigos escravos melhor vida ou mais dignidade. “Na prática, quando foi assinada, só 5% do povo negro viviam sob regime de escravidão. Os demais tinham conseguido a libertação por meio dos próprios esforços. Podemos dizer, no máximo, que serviu como estratégia para dar à população negra respaldo de libertação jurídica. Não teve como preocupação fixar as comunidades negras na terra e garantir as terras nas quais já viviam, reconhecida pelas próprias leis dos dominantes. Após a promulgação da Lei Áurea surgiu um movimento exigindo que o governo indenizasse os senhores que haviam perdido seus escravos. Rui Barbosa reagiu dizendo: "Se alguém deve ser indenizado, indenizem os escravos!". Tinha plena consciência das injustiças cometidas pela sociedade contra o povo negro.”30 Contraditoriamente, o meio urbano e as vivências e as mentalidades escravistas subsistiram, Bertoleza e a sua infelicidade não foram meras páginas literárias,31 mas a realidade dramatizada dos escravos e dos forros das grandes cidades. “E a questão não seria incompatibilidade de densidades urbanas com sistemas sociais escravistas. Esse foi o tema de vários estudos sobre a escravidão, principalmente nos Estados Unidos, quando se avaliava que o crescimento urbano produziria contradições estruturais com a escravidão. Não foi isso que aconteceu. Lá como cá, surgiriam densas cidades com escravos e mesmo cidades escravistas, dinamizando relações de produção. Destacamse, em várias áreas, os setores de comércio, de abastecimento e de serviços com escravos ao ganho ou escravos de aluguel, sendo comum que senhores permitissem que seus escravos vivessem sobre si, mercadejando (quitandeiras, fruteiras, lavadeiras etc.), transportando cargas e realizando ofícios diversos (alfaiates, barbeiros, marceneiros, pedreiros etc.). Tais atividades econômicas geravam rendas imediatamente entregues aos senhores, descontadas quantias para os escravos se alimentarem e 29 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo : Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento brasileiro da Folha de São Paulo). A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro. Disponível em: <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo. Textobase digitalizado por: Sérgio Simonato Campinas/SP. Data de acesso em: 02 Fev. 2009. 30 OFM, Frei David Santos. Negros: A face real da Lei Áurea. Disponível em: http://www.adital.org.br/asp2/noticia.asp?idioma=PT&secao=15. Data de acesso em: 28 Jan.2008. 31 Cf. AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Ática.1999. 24 proverem sua sobrevivência básica. Não poucos escravos ao ganho moravam separados e longe do controle senhorial, só os encontrando semanalmente para depositar as rendas conseguidas com suas atividades. Alguns historiadores chegaram a sugerir que as quantias repassadas pelos senhores aos escravos ao ganho funcionavam como salário (cf. Silva, 1988; Soares, 1980). Outros exageram nas análises que indicavam a mobilidade desses escravos e a falta de controle sobre as relações de trabalho. Sabese que essas relações foram marcadas por um rígido controle, inclusive das câmaras municipais, que davam autorização para que os escravos trabalhassem ao ganho e cobravam impostos dos senhores (cf. Algranti, 1988). O maior número de escravos nas ruas fez aumentar as formas de controle social nas cidades por meio de posturas municipais, multas e aparato policial. De qualquer maneira, o mercado de trabalho urbano, principalmente o setor de serviços, seria cada vez mais dominado pela população negra. Na segunda metade do século XIX, houve mudanças com a entrada maciça de imigrantes europeus, que vieram tanto para as áreas rurais como para as urbanas. Pelo menos no caso do Rio de Janeiro, as disputas no mercado de trabalho entre negros e imigrantes – como Florestan Fernandes analisaria para São Paulo nas primeiras décadas do século XX – seriam uma realidade desde o último quartel do século XIX.”32 O sistema jurídico é fruto da cultura e da política. As prescrições, os comandos, os mandados não são suficientes caso destinados à realidade distinta da prescrição normativa. As normas jurídicas não mudam a realidade, não despertam a consciência ética, não tornam as pessoas melhores ou aqueles que as fazem cumprir, mais justos. O Direito se vê varonil, racional, jovem, completo e longevo; mas a sua figuração é feminina, emotiva, velha, deficiente e de vida breve. No apelo evidente aos papéis estáticos da feminilidade, da emotividade, da velhice, da deficiência e da brevidade da vida, a oscilação entre a Cantiga de Escárnio e à balada de John Keats são o pêndulo do direito: ou o Direito é a mulher velha, feia e sandia33 ou, “a bela dama sem piedade”. 32 NEGRO, Antonio Luigi; GOMES, Flávio. Além de senzalas e fábricas: uma história social do trabalho. Tempo soc., São Paulo, v. 18, n. 1, June 2006 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S010320702006000100012&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 Jan. 2009. doi: 10.1590/S010320702006000100012. 33 Ai dona fea! Fostesvos queixar Porque vos nunca louv' en meu trobar Mais ora quero fazer un cantar En que vos loarei toda via; E vedes como vos quero loar: Dona fea, velha e sandia! 25 Por que não valerse dos papéis estereotipados do Direito para atribuirlhe os signos verdadeiros da trágica beleza de sua figuração? A figuração feminina, emotiva, velha, deficiente e de vida breve têm muito mais sabedoria – são contas no colo do Senhor – que propriamente a figuração varonil e racional. No olhar feminino e emotivo das páginas jurídicas lidas e vividas, o cuidado e a visão da diferença constituem a pedra de toque da tutela da dignidade e da alteridade das pessoas humanas. O cuidado é a percepção afetiva
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