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Feiúra, doença, deficiência e algumas páginas jurídicas

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Feiúra, doença, deficiência e algumas páginas jurídicas: “e era de fera a sua fé  
mirada”.1
Daniela de Freitas Marques
Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UFMG. Juíza 
de Direito da Justiça Militar do Estado de Minas Gerais.
RESUMO: A pedra de toque do artigo funda­se na comparação entre o  Direito  e o 
corpo humano. Qual seria a representação sensível e simbólica do Direito fosse ele tão 
tangível e tão real como o corpo humano? As páginas jurídicas, em especial, as páginas 
jurídico­penais são escritas e vivenciadas como se dotadas de conteúdo racional, com os 
atributos   de   completitude   e   coerência.  A   apreciação   do  Direto   conduz   à   contrária 
conclusão: as páginas jurídicas são dotadas de conteúdo emocional, com os atributos de 
não­completitude e incoerência. Entre as cantigas de escárnio e a balada de John Keats: 
o direito ora é a mulher velha, feia e sandia, ora é “A bela dama sem piedade”. Em 
licença   poética,   a   dama   sem  mercê   e   sem  misericórdia   é   a  melhor   escolha,   a   ser 
superada,  porque senão a verdade dos   tempos  será  a  última  estrofe da  balada:  “eis  
porque passo por aqui/  Só  em desalento vagando/Embora os cíperos secos desde o  
lago/E nenhum pássaro cantando.” (KEATS, John. La Belle Dame Sans Merci)
PALAVRAS­CHAVE: Direito – Corpo – Feio –Doença – Deficiência.
ABSTRACT: The cornerstone of this paper is the comparison between Law and the 
human body. What would be the sentient and symbolic representation of Law, if it were 
as tangible and corporeal as the human body? The writings in Law, and the writings in 
Penal Law,  in particular,  are written and experienced as if  they were endowed with 
rational content, with attributes of completeness and coherence. But the appreciation of 
Law leads to the opposite conclusion: The writings in law are endowed with emotional 
content, with attributes of incompleteness and incoherence. From the scornful odes and 
the ballad of John Keats: the law is sometimes the old, ugly and foolish woman, and 
sometimes “the beautiful, pitiless lady”. With the due poetic permission, the merciless, 
1 KEATS, John.  La belle dame sans merci.  In: GRÜNEWALD, José  Lino (Organização e Tradução). 
Poesia de todos os tempos.  Grandes Poetas da Língua Inglesa do Século XIX. Rio de Janeiro: Nova 
Fronteira,1988. p.65.
1
pitiless lady is the best choice, yet to be overcome, or else the truth to come as time 
passes by will be the last strophe in the ballad: “this is the reason why I pass by/  only  
in discouragement roaming/ though the dry sedges from the lake/ and no bird singing.” 
(KEATS, John. La Belle Dame Sans Merci)
KEY WORDS: Law – Body – Ugly – Ilness – Disability.
SUMÁRIO: 1. Caos e cosmos: feiúra e beleza. 2. O corpo doente, algumas buscas pela 
perfeição e as similitudes com as páginas jurídicas. 3. A “falta” e a “ausência”. 4.  
Conclusão. 5. Bibliografia..
1. Caos e cosmos: feiúra e beleza.
O caos e o cosmos integram a realidade cotidiana.  Ao cosmos e à harmonia sempre 
estiveram ligados conceitos como beleza, virtude e pureza e, contrariamente, ao caos e à 
desordem sempre estiveram ligados conceitos como fealdade, vício e impureza.
Muito pouco foi escrito sobre o feio – porque o conceito de fealdade é o não­conceito, o 
indizível, apontado como “physica curiosa”2, a qual, causadora de risos e escárnio, é 
freqüentemente utilizada na identificação do feio.
A fealdade é  corpórea ou espiritual?  O corpo feio pode abrigar  impoluto e virtuoso 
espírito ou o corpo belo pode abrigar corrompido e impuro espírito?
No romantismo, a feiúra infeliz ou a beleza perversa estiveram presentes na literatura. 
“(...) É possível permanecer belo e dissoluto, sem envelhecer jamais, mas infeliz porque 
a própria decadência e feiúra interior são impiedosamente denunciados por um retrato 
que se corrompe em seu lugar, como acontece com o Dorian Gray, de Wilde. Contudo, a 
pesquisa do interessante e do individual, ou do grotesco, leva também à imaginação de 
uma deformidade que arrasta a um destino trágico quem, mesmo nutrindo uma alma 
delicada,   é   condenado   pelo   próprio   corpo.   Talvez   o   primeiro   “feio   infeliz”   do 
romantismo tenha sido o monstro protagonista de Frankestein, de Mary Shelley (1818), 
seguido  depois  pelos  patéticos   abortos  da  natureza  de  Hugo,   como Quasímodo em 
Notre­Dame e Gwynplaine em O homem que ri. Também fazem parte do rol de feios 
2 ECO, Umberto (organização). História de Feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 
2007.
2
infelizes os heróis verdianos, como Rigolleto – embora Verdi também tenha posto em 
cena alguns feios danados, de Lady Macbeth a Iago, e tenha escrito em uma carta que 
gostaria que este último fosse interpretado como “uma figura bastante magra e longa, 
lábios finos, olhos pequenos e próximos do nariz como os símios, a fronte alta e fugidia 
e a parte de trás da cabeça muito desenvolvida”.3 
A feiúra,   ligada  à   infelicidade,   também é   ligada  ao mal  e  ao crime.  Lady Macbeth 
invoca a maldição, ao negar a sua condição feminina, ao dizer que os seus seios não 
mais  produziriam   leite   e   sim  fel:  mulher   que   somente  deveria   dar  à   luz   a  varões, 
imensos o seu amargor e o seu desabrido orgulho. Iago é a essência do mal – falso 
amigo e manipulador astucioso – quem não cairia em suas artimanhas? Somente alguém 
com o espírito e a graça de Rosalinda ou a glutonaria e o prazer pela vida de Falstaff.
No   sistema   jurídico,   consciente   ou   inconscientemente,   o   feio   tem   sido  perseguido, 
castigado e destruído. Embora se reconheça a fealdade espiritual presente tanto no belo, 
quanto no feio corpo, a feiúra física tem sido associada ao mal e, conseqüentemente, ao 
crime. “E, convencido de que existem harmonias sutis entre corpo e alma e de que a 
virtude embeleza,  enquanto o vício enfeia, Johann Kaspar Lavater (Physiognomische 
Fragmente,   1775­1778)   examinava   igualmente   as   feições   de   certos   personagens 
históricos.”4 
O   positivismo   criminológico   é   conhecimento   especulativo   sobre   a   feiúra.  É   bem 
verdade que “(...) Lombroso não chegava à simplificação de dizer que quem é feio é 
sempre   delinqüente,   mas   associava   estigmas   físicos   a   estigmas   morais,   como 
argumentos   que   se   pretendiam   científicos.”5  Hoje   retorna­se   ao   fundamentalismo 
científico.   A   genética   e   os   discursos   pseudocientíficos   têm   legitimado   o   sistema 
prescritivo   punitivo,   e,   feliz   ou   infelizmente,   os   estigmas   sobre   o   feio   e   o   crime 
permanecem nos contornos autoritários da formação dos sujeitos do aparelho repressor 
estatal – das polícias, do Ministério Público e do Judiciário.6 
Toda pessoa, como dito por Adorno, traz em si certo conteúdo autoritário – o nó górdio, 
consciente   ou   inconsciente,   dos   seus  preconceitos,   das   suas   intolerâncias,   das   suas 
frustrações e das suas incompreensões. A reprodução dos conteúdos autoritários faz­se 
3 Ibidem. p. 293.
4  Ibidem. p. 257.
5  Ibidem. p. 261.
6  A   relação   estabelecida   entre   o   aparelho   repressor   estatal   e   o   imputado   é   a   relação   de  eu­isso  – 
instrumentalizada, na acepção soberba de Martin Buber. A relação eu­tu – relação humana – é esquecida, 
obliterada, alijada do pensamento e da prática penais.
3
presente em instituições repressivas e repressoras, como as que cuidam da segurança 
pública, como as que zelam pela aplicação do direito. 
O  Direito,   tal   qual   ensinado   e   efetivamente   realizado,   apresenta­se   distanciado  das 
humanidades,   excessivamente   dogmático   e   extremamente   empobrecido,   quer   naretórica,  quer na fundamentação.  Alija­se a pessoa humana e sofistica­se o apelo às 
instituições e às ideologias.
As  buscas   e   apreensões   pessoais,  v.g.,   têm como  destinatários   certos   o  outro   não 
assemelhado,   o  outro   instrumentalizado,   o   feio   –   aquela   pessoa   de  má   aparência, 
expressão   tão  ambígua  quanto  polissêmica,   a  qual   esconde  e  oculta  discriminações 
sócio­econômicas e étnicas. A boa aparência presente nas contratações da seara civil, 
também é determinante nas práticas da seara penal.7
O direito penal, na lembrança do dito de Eugenio Raúl Zaffaroni, ainda é o direito do 
feio.  “O estereótipo  do suspeito  é  um  legado cultural  antigo,  que  se  incorporou ao 
imaginário   popular   e   ao   aparelho   repressor   do   País.   "Já   em   1560,   havia   autores 
7 “Para alguns, a discriminação é tão fácil de detectar quanto um desastre ferroviário à luz do dia. Ela é 
percebida por meio de pistas sutis no modo como os outros são tratados ao nosso redor ou na maneira 
como nós mesmos somos tratados. A conversa áspera com o atendente da loja, o segurança que aguça sua 
atenção, o taxista que não pára.  Seja pela idade, gênero, raça,  deficiência,  orientação sexual,  seja por 
qualquer outra identidade estigmatizada, a maioria consegue pensar em, no mínimo, um caso no qual nós 
ou alguém próximo foi tratado de modo injusto por causa de uma única diferença de condição. (...)” Cf. 
PAGER, Devah. Medir a discriminação. Tempo soc.,  São Paulo,  v. 18,  n. 2, Nov.  2006 .   Disponível 
em:<http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0103­20702006000200004&lng=en&nrm=iso>.   Acesso   em:   30   Jan.   2009. 
doi:10.1590/S0103­20702006000200004.
Também   se   vê   que   “(...)   Os  múltiplos   preconceitos   de   gênero,   de   cor,   de   classe,   etc.   têm   lugar 
tipicamente, mas não exclusivamente, nos espaços individuais e coletivos, nas esferas públicas e privadas. 
Fazem­se   presentes   em   imagens,   linguagens,   nas  marcas   corporais   e   psicológicas   de   homens   e   de 
mulheres,   nos   gestos,   nos   espaços,   singularizando­os   e   atribuindo­lhes   qualificativos   identitários, 
hierarquias   e   poderes   diferenciais,   diversamente   valorizados,   com   lógicas   de   inclusões­exclusões 
conseqüentes, porque geralmente associados a situações de apreciação­depreciação/desgraça. 
O   preconceito   se   contrapõe   às   qualidades   de   caráter,   como   lealdade,   compromisso,   honestidade, 
propósitos   que   afirmam  valores   atemporais   e   regras  éticas.  As   demandas   nos   espaços   de   trabalho, 
sobretudo  em  relação  às  mulheres,  por   exemplo,  exigem  juventude,  boa   aparência   (magreza,  altura, 
altivez, cabelos lisos e claros, dentes perfeitos, porte, postura, etc.), além da cor branca. As mulheres não­
brancas são aceitas na proporção em que tais atributos estejam presentes associados à  sensualidade, à 
exuberância erótica, evidenciado a vulnerabilidade e manipulação dos componentes do preconceito. 
São demandas   fugidias  que  se contrapõem às  qualidades  humanas  que  podem significar  experiência 
acumulada, valores, motivações, homens e mulheres decididos a provar seu valor através do trabalho. 
Nesse sentido, tanto o trabalho quanto o emprego tornaram­se incertos, voláteis, flexíveis e fragmentados. 
Paradoxalmente,  as  exigências  mais  de  ordem estética  muitas  vezes   independem da  condição sócio­
econômica.   Inexistem o  tempo e  o  espaço  necessários  à  construção  de  relacionamentos  profundos  e 
duradouros que invocam o caráter da pessoa, o que permite compreender por que algo tão fugidio como a 
imagem da beleza e da aparência é cada vez mais valorizado nos ambientes de trabalho.” BANDEIRA, 
LOURDES; BATISTA, ANALÍA SORIA. Preconceito e discriminação como expressões de violência. 
Rev.   Estud.   Fem.,   Florianópolis,   v.   10,   n.   1, Jan.   2002   .   Disponível   em: 
<http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0104­026X2002000100007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 30  Jan.  2009. doi: 
10.1590/S0104­026X2002000100007.
4
relacionando fisionomia com propensão para o crime. Um exemplo consta no Edito de 
Valério,   no   qual  Muscardi   recomenda   que   ‘na   dúvida   entre   presumíveis   culpados, 
condene­se sempre o mais feio’.”8 
A  fisionomia  de bandido  ou de  marginal  ou os  estereótipos   ligados  ao  pilantra,  ao 
criminoso autorizam e permitem a discriminação.9 Não por acaso, a primeira impressão 
na sala de audiências é visual e, exige­se do acusado uma postura de humildade e de 
submissão. Quando ausentes os referidos atributos, o acusado é identificável e tachado 
como “criminoso”, “marginal”,“diferente”, “elemento” e a pena, ao final aplicada, não é 
dolorosa   ao   julgador.  A   sombra   lombrosiana   persiste,   inconscientemente,   no   senso 
comum.
Na criminalidade feminina, a bela compleição desperta simpatia, cuidado e solicitude e, 
dificilmente, a prática do crime é creditada à bela mulher. É significativo – e antigo – o 
8Cf   LAKATOS,   Suzana   Cara   de   suspeito.   Na   ponta   da   caneta.  Jornal   do 
Advogado..http://www2.oabsp.org.br/asp/jornal/materias.asp?
edicao=76&pagina=1803&tds=7&sub=0&sub2=0&pgNovo=67. Data de acesso: 13 Maio 2008.
9 Na Revolta da Chibata, datada de novembro de 1910, a perícia dos marinheiros espantou aqueles que 
assistiram   às  manobras.   “(...)  A   exibição  de   competência   e,   sobretudo,   de   elegância   nas  manobras 
chocava­se com a imagem que se tinha dos marinheiros nacionais: homens rudes, brutos, recrutados na 
marginália das cidades, quando não entre condenados das casas de detenção. Na avaliação dos oficiais, os 
marinheiros  eram a  ralé,  a  escória  da  sociedade,  eram facínoras  que  só   a  chibata  podia  manter  sob 
controle.
João Cândido Felisberto não fugia ao figurino. Um crioulão alto e forte e feio,  boca enorme, maças 
salientes, trinta anos de idade em 1910. Filho de ex­escravos, pai alcoólatra, entrara para a Marinha em 
1895,   com   15   anos.   Em   1910,   ainda   era   semi­analfabeto,   lia  mas   não   escrevia.  Nos   15   anos   de 
engajamento, fora promovido a cabo, mas por mau comportamento tinha sido rebaixado a marinheiro de 
primeira classe. Envolvera­se em lutas corporais com colegas e espancara outros. Em 1909, dera uma 
chibatada em um grumete que, em represália, o esfaqueara nas costas.” Cf. CARVALHO,  José Murilo 
de. Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p.17.
“(...) Cerca de 100 marinheiros são presos e mandados, nos porões do navio "Satélite" ­ misturados a 
ladrões, prostitutas e desocupados recolhidos pela polícia para "limpar" a capital ­ para trabalhos forçados 
na Comissão Rondon, ou simplesmente para serem abandonados na Floresta Amazônica. Na lista de seus 
nomes, entregue ao comandante do "Satélite", alguns estão marcados por uma cruz vermelha. São os que 
morrerão fuzilados e, depois, serão jogados ao mar. 
João Cândido, embora não tenha participado do novo levante, também é preso e enviado para a prisão 
subterrânea da Ilha das Cobras, na noite de Natal de 1910, com mais 17 companheiros. Os 18 presos 
foram jogados em uma cela recém­lavada com água e cal. A cela ficava em um túnel subterrâneo, do qual 
era separada por um portão de ferro.  Fechava­a ainda grossa porta de madeira,  dotada de minúsculo 
respiradouro. O comandante do Batalhão Naval, capitão­de­fragata Marques da Rocha, por razões que 
ninguém sabe ao certo, levou consigo as chaves da cela e foi passar a noite de Natal no Clube Naval, 
embora residisse na ilha. 
A  falta  de  ventilação,  a  poeira  da  cal,  o  calor,   a  sede  começaram a   sufocar  os  presos,  cujos  gritos 
chamaram a atenção da guarda na madrugada de Natal. Por falta das chaves,o carcereiro não podia entrar 
na cela. Marques da Rocha só chegou à ilha às oito horas da manhã. Ao serem abertos os dois portões da 
solitária, só dois presos sobreviviam, João Cândido e o soldado naval João Avelino. O Natal dos demais 
fora paixão e morte.
O médico da Marinha, no entanto, diagnosticou a causa da morte como sendo "insolação". Marques da 
Rocha foi absolvido em Conselho de Guerra, promovido a capitão­de mar­e­guerra e recebido em jantar 
pelo   presidente   da   República.”  A   Revolta   da   Chibata.   Disponível   em: 
http://www.cefetsp.br/edu/eso/patricia/revoltachibata.html. Data de acesso em: 12 Jan. 2009.
5
exemplo   de   Frinéia:   a   bela   hetaira,   absolvida   por   sua   beleza,   retratada   na   poesia 
parnasiana de Olavo Bilac:10
Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia,
Comparece ante a austera e rígida assembléia
Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira
Aquela formosura original, que inspira
E dá vida ao genial cinzel de Praxíteles,
De Hipérides à voz e à palheta de Apeles.
Quando os vinhos, na orgia, os convivas exaltam
E das roupas, enfim, livres os corpos saltam,
Nenhuma hetera sabe a primorosa taça,
Transbordante de Cós, erguer com maior graça,
Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio,
Mais formoso quadril, nem mais nevado seio.
Estremecem no altar, ao contemplá­la, os deuses,
Nua, entre aclamações, nos festivais de Elêusis...
Basta um rápido olhar provocante e lascivo:
Quem na fronte o sentiu curva a fronte, cativo...
Nada iguala o poder de suas mãos pequenas:
Basta um gesto, ­ e a seus pés roja­se humilde Atenas...
Vai ser julgada. Um véu, tornando inda mais bela
Sua oculta nudez, mal os encantos vela,
Mal a nudez oculta e sensual disfarça.
cai­lhe, espáduas abaixo, a cabeleira esparsa...
Queda­se a multidão. Ergue­se Eutias. Fala,
E incita o tribunal severo a condená­la:
"Elêusis profanou! É falsa e dissoluta, 
Leva ao lar a cizânia e as famílias enluta! 
10  BILAC,  Olavo.  O  Julgamento   de  Frinéia.  Disponível   em:  http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?
link=http://www.biblio.com.br/conteudo/OlavoBilac/sarcasdefogo.htm. Data de acesso em: 12 Dez. 2008.
6
Dos deuses zomba! É ímpia! é má!" (E o pranto ardente
Corre nas faces dela, em fios, lentamente...) 
"Por onde os passos move a corrupção se espraia, 
E estende­se a discórdia! Heliastes! condenai­a!"
Vacila o tribunal, ouvindo a voz que o doma...
Mas, de pronto, entre a turba Hipérides assoma,
Defende­lhe a inocência, exclama, exora, pede,
Suplica, ordena, exige... O Areópago não cede.
"Pois condenai­a agora!" E à ré, que treme, a branca
Túnica despedaça, e o véu, que a encobre, arranca...
Pasmam subitamente os juízes deslumbrados,
­ Leões pelo calmo olhar de um domador curvados:
Nua e branca, de pé, patente à luz do dia
Todo o corpo ideal, Frinéia aparecia
Diante da multidão atônita e surpresa,
No triunfo imortal da Carne e da Beleza.
2. O corpo doente,  algumas buscas pela perfeição e as similitudes com as páginas  
jurídicas.
O corpo é percebido de forma variada e multifacetada. Por mais que dele se conheça ou 
dele   se   aproprie,   o   corpo,   embora   anatomicamente   conhecido,   simbolicamente   é 
incógnito.
“Se os primeiros  experimentos  de dissecação anatômica começaram no século XIV, 
com Mondino de Liuzzi, foi somente do Renascimento em diante, e sobretudo com o 
De humani corporis fabrica, de Vesalio, dotado de esplêndidas e enregelantes imagens 
de seres descorticados, que a arte se voltou para os corpos seccionados nos anfiteatros e 
que uma exposição de órgãos internos triunfou sob forma hiper­realista nos museus de 
ceras anatômicas. Aí se reproduzia aquela  facies hippocratica que anuncia o trespasse 
no rosto do moribundo, mas agora o esgar do agonizante excita pintores e escultores, 
assim como as feições devastadas dos doentes incuráveis.”11 
11 ECO, Umberto.op.cit, p. 249.
7
A doença é a face decrépita e ignorada do corpo – caso deformante ou estertorante tanto 
pior.  As   representações  do   corpo  doente   estão   restritas,  na   atualidade,   aos   tratados 
médicos.  E o corpo doente,  no sistema  jurídico­penal,  é   representado na elaboração 
incerta e imprecisa sobre as doenças mentais e, no caso de doenças incapacitantes, aos 
direitos sempre tímidos da Lei de Execução Penal – Lei n.7.210/84. Sempre há o receio 
da   simulação   e   das   falsas   aparências   –   dos   atestados   e   dos   exames   médicos, 
eventualmente   falsos,   juntados   ao   processo   de   conhecimento   ou   ao   processo   de 
execução.
A infelicidade maior reside, justamente, no esquecimento e nas condições sub­humanas 
daqueles  presos  cautelarmente  ou  daqueles   submetidos  ao  cumprimento  da  pena.  O 
tributo pago ao crime são o corpo e a alma doentes.12
A doença,  ao contrário da feiúra, não ocupa posição altaneira nas páginas penais. À 
exceção das doenças e dos males psiquiátricos, com a velha disputa entre o tratamento e 
a punição.13 O louco­criminoso, a associação da maldade e da perversidade à loucura, o 
imenso desconhecimento acerca da estrutura psíquica e mental da pessoa humana são os 
limites   perseguidos   pela   Medicina   e   pelo   Direito   Penal.14  No   entanto,   alijado   e 
12 Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere, diz: “O mundo se tornava fascista. Num mundo assim, 
que futuro nos reservariam? Provavelmente não havia lugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamos de 
cárcere em cárcere,  findaríamos num campo de concentração. Nenhuma utilidade representávamos na 
ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos tristes, inofensivos e desocupados, farrapos vivos, fantasmas 
prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolhermo­nos ao hospício ou ter coragem de amarrar uma corda 
ao pescoço e dar o mergulho decisivo. Essas idéias, repetidas, vexavam­me; tanto me embrenhara nelas 
que me sentia inteiramente perdido.” RAMOS, Graciliano.  Memórias do cárcere,  v. I,  n e IV Rio de 
Janeiro, José Olympic, 1953.
13 “Lima Barreto foi mandado para o hospício devido ao seu vício: o álcool. Ele foi internado duas vezes, 
a  primeira  por   ordem  policial   e   a   segunda   por  decisão  de   seu   irmão.  Essa   relação   entre   polícia   e 
manicômio é estranhamente íntima.
“Logo após o café, fui chamado à presença de um jovem médico, muito simpático, pouco certo de seus  
podêres para curar­me. Fêz­me umas perguntas, e senti mesmo que seu desejo era mandar­me embora.  
Disse­me mais ou menos isso, ou melhor, as suas palavras foram estas, depois de dizer o que eu tinha  
tido:
      – Não há dúvida... Mas o senhor ou você – não me recordo – veio pela polícia, tem que se demorar  
um pouco”.(p. 178) 
Esse episódio demonstra que o modo como a autoridade define as normas numa cadeia é muito próxima 
ao modo como são definidas as normas num hospício, embora suas justificativas sejam bastante distintas: 
uma cadeia recebe criminosos, pessoas que devem pagar por erros cometidos; um hospício recebe pessoas 
que não estão em equilíbrio normal e devem ser afastadas do convívio social. Ambos os ambientes têm 
uma espécie de busca da redenção, de possibilitar a reabilitação dos indivíduos para viver em sociedade.” 
BATISTA, Eloisy Oliveira.  Histórias Esquecidas  – um estudo sobre as obras Memórias do Cárcere e 
Cemitério   dos   Vivos.   Disponível   em: 
http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/h00003.htm. Data de acesso: 15 Jan.2009.
14  “As relações entre a psiquiatria e a Justiça penal têm sido, pelo menos desde o séc. XIX, bastante 
estreitas.  Por um lado, a Justiça não dispunha de meios para  dar  conta de certo   tipo de crime cujas 
características pareciam fugir completamente à razão. Culpado ou louco, eis a questão ao mesmo tempo 
deixada em abertopela Justiça criminal e proposta pela psiquiatria nascente. Enquanto a Justiça só pode 
agir sobre o delito depois de cometido, a psiquiatria parece capaz de prevê­lo em função de critérios de 
periculosidade, definidos cientificamente.
8
esquecido das páginas do direito, o estudo do corpo doente: do constante imperfeito, no 
corpo que se vê e se apreende pelo olhar do outro.
Se o corpo doente é o imperfeito, contrariamente ele também pode simbolizar a busca 
pela perfeição ou, ao menos, a necessidade de domínio do próprio corpo, como se vê, 
v.g, na anorexia e na bulimia.15
O inatingível e o ideal marcam os corpos anoréxicos e bulímicos. Limitar a anorexia 
nervosa exclusivamente à moda é desconhecer a história – ela é tão complexa, quanto 
difícil de ser estudada, mas está indiscutivelmente ligada ao desejo da perfeição ou do 
perfeito domínio sobre o corpo.
Como se sabe, “(...) há evidências de que a anorexia atual seria um contínuo de um tipo 
de   comportamento   inalterado   através   da   história   do   Ocidente.   Behar   e   Fendrik 
acreditam   que,   no   passado,  mesmo   dentro   de   um   contexto   sociocultural   diferente, 
principalmente na região européia, a doença sempre foi igual: restrição sistemática do 
alimento com risco grave da saúde e da própria vida.
É   possível,   então,   estabelecer   um   paralelo   entre   as   anoréxicas   atuais   e   as   santas 
jejuadoras   medievais,   como   já   discutimos   anteriormente   em   relação   às   meninas 
cloróticas do século XIX.
Nota­se a existência, desde então, de uma polaridade entre a justiça e a medicina, segundo a qual o saber 
médico tende a estabelecer meios de formalizar a loucura num estatuto cientifico e, por outro lado, a 
justiça procura determinar o ato criminoso e a sua sentença a partir de um juízo moral. 
Impossível, pois, declarar alguém ao mesmo tempo culpado e louco; o diagnóstico de loucura, uma vez 
declarado, não pode ser integrado no Juízo, ele interrompe o processo e retira o poder da Justiça sobre o 
autor do ato.
É nesse ambiente de novas definições que surge a medida de segurança, como proposta de proporcionar 
ao louco criminoso um destino diferente daquele dado ao criminoso comum. Nesse ínterim, as medidas 
de segurança têm caráter preventivo e terapêutico, e não punitivo, pois prescrevem tratamento. 
O cárcere ou o asilo, tal será o destino de uma determinada categoria de indivíduos. Entretanto, na própria 
fronteira entre as duas instituições, haverá aqueles considerados excessivamente lúcidos para as casas de 
alienados e insuficientemente responsáveis para a prisão, o que suscita uma questão: se o louco­criminoso 
não pode ser simplesmente condenado à pena de prisão ou ser internado em manicômio comum, qual 
seria o local adequado a ele? Uma resposta a essa questão leva à adoção de medidas de segurança que 
trazem consigo a exigência de diversos estilos arquitetônicos e a existência de aparelhagem interna nos 
estabelecimentos penais destinados a sua execução.” SANTOS, Mauro Leonardo Salvador Caldeira dos; 
SOUZA, Fernanda Silva de; SANTOS, Cláudia Verônica Salvador Caldeira dos. As marcas da dupla 
exclusão: experiências da enfermagem com o psicótico infrator. Texto contexto ­ enferm.,  Florianópolis, 
v.15,   n.spe,   2006.   Disponível   em:   <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0104­07072006000500009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 Jan. 2009. doi: 
10.1590/S0104­07072006000500009.
15   A escolha da anorexia e da bulimia são apenas ilustrativas e exemplificativas. Sabe­se que elas são 
mais complexas que a breve digressão presente no artigo. A proposta do estudo de ambas é mostrar e 
demonstrar que elas fazem parte de uma visão não­individualizada e não­atribuível somente aos que dela 
padecem – mas são o símbolo distorcido e infeliz da busca de controle nos vazios do mundo, distantes do 
“corpo” humano. As pessoas humanas e os seus constructos individuais ou coletivos tentam assimilar as 
realidades ao corpo – como se,  na vida, fosse possível quer o controle do corpo, quer o controle do 
mundo.
9
O diagnóstico de clorose, ou doença verde, fazia­se na presença de palidez, fraqueza, 
cansaço,   irritabilidade,   constipação,   irregularidade   menstrual   e   repulsa   à   comida, 
principalmente   às   carnes,   além   de   um   pronunciado   emagrecimento.   Descrita   por 
Johanes Lange,  em 1554, como "doença das virgens", seria causada por uma "febre 
amorosa" e teria cura, segundo esse autor, com o casamento, o intercurso sexual e a 
maternidade. Após haver se constituído, no século XIX, em verdadeira epidemia entre 
as meninas na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, desapareceu completamente 
após 1920. Loundon, entre outros autores, considera que a clorose e a anorexia nervosa 
sejam condições análogas de uma mesma psicopatologia.
Numa tentativa de explicação do verdadeiro surto de santas anoréxicas na Idade Média, 
Gamero afirma que, com o advento do Cristianismo, houve uma substituição drástica 
dos deuses obesos, hedonistas, pelos cristos magros. Foram abandonadas as imagens 
gordas de divindades ancestrais, bem como o hábito dos grandes banquetes romanos 
seguidos de vômitos auto­induzidos. Nos primeiros anos da Idade Média, a glutonaria 
passou a ser sinônimo de impureza, a gula converteu­se num dos sete pecados capitais, 
e a rejeição aos alimentos foi eleita a penitência preferida para alcançar o estado de 
máxima espiritualidade. A busca da santidade, do puro, exigia privações do corpo. (...) 
(...) começaram a aparecer santas anoréxicas, como Santa Liduina, que, durante anos, 
alimentou­se só de um pedaço de maçã por dia, e Santa Wilgefortis (do latim  Virgo 
fortis,   "virgem forte"),  a   jovem filha  do rei  de  Portugal,  que  rejeitava  os  alimentos 
oferecidos,   fazia   jejuns   e   vomitava   o   que   era   obrigada   a   ingerir,   emagrecendo 
notoriamente  e praticamente  deixando­se morrer  de fome.  A presença de hirsutismo 
também é um fato relevante na sua história, ainda que, segundo a lenda, seu corpo tenha 
se coberto de pêlos e uma barba tenha crescido como resultado de suas orações, em que 
rogava a Deus que lhe apagasse a beleza.
Porém, segundo a literatura, foi na época em que Santa Catarina de Siena viveu que 
existiu uma verdadeira era da anorexia santa. Fendrik afirma que chegou a tal extremo o 
hábito de "nunca comer" entre as santas do século XIII, que os registros feitos pelos 
confessores surpreendem por constituírem verdadeiras histórias clínicas.
Ainda sobre o comportamento anoréxico das santas medievais, é da maior importância o 
trabalho desenvolvido por Rudolf Bell sobre a vida de 250 mulheres santas ou beatas da 
Igreja   Católica,   desde   o   século   XIII   aos   dias   atuais,   utilizando­se   de   escritos 
autobiográficos, cartas, testemunhos de confessores e relatos canônicos. Segundo Bell, 
10
entre  as   santas  com suposto   transtorno  alimentar  estariam Santa  Catarina  de  Siena, 
Santa  Colomba   de  Rieti,   Santa  Catarina   de  Gênova,   Santa  Verônica,   Santa  Maria 
Madalena de Pazzi e Santa Clara de Assis.” 16
Também a bulimia,   ideal e simbolicamente,   tem a mesma conotação da anorexia:  o 
domínio do corpo, a fala por meio do corpo, a ordenação do corpo: o grito de controle 
no universo caótico.
A busca da aparência perfeita, religiosa ou esteticamente motivada, deve­se a múltiplos 
fatores. O controle do corpo, no incontrolável e imponderável mundo, talvez seja o mais 
significativo.
“Nada do que é humano me é estranho”, dito por Terêncio, faz lembrar que a tentativa 
de controle do universo caótico é o signo do Direito. O Direito, como uma das mais 
formidáveis   construções   humanas   de   controle   de   condutas   e   de   comportamentoshumanos,   segue   a   lógica   de   ordenação   da   realidade   e   do   universo   caótico.   Suas 
prescrições, seus mandamentos e suas ordenações são construídos culturamente, eivados 
de  preconceitos  e  de  limitações,  às  vezes,  de  boas   intenções.  Nas  páginas   jurídico­
penais,  motivações   religiosas,  motivações   de  Estado,  motivações   intencionadas   por 
bons ou maus propósitos são uma constante. 
16 WEINBERG, Cybelle; CORDAS, Táki Athanássios; ALBORNOZ MUNOZ, Patricia. Santa Rosa de 
Lima: uma santa anoréxica na América Latina?. Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul,   Porto Alegre,   v. 27,   n. 
1, Apr.   2005.     Disponível   em:   <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0101­81082005000100006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 03  Feb.  2009. doi: 
10.1590/S0101­81082005000100006.
11
À semelhança do corpo humano, o Direito é um corpo.17 Às vezes saudável, às vezes 
fraco,  às vezes  doentio,  às vezes  ensandecido.  Na atualidade,  o Direito  apresenta­se 
como o corpo anoréxico ou o corpo bulímico – ou, ao menos, o Direito Penal assim se 
apresenta.
“O corpo que se mostra é um corpo descorado e fraco; mas para o anoréxico que se vê, 
a magreza nunca é  suficiente  e o excesso é   latente  a sua condição.  De acordo com 
Merleau Ponty (1999), o corpo­sujeito e o corpo­objeto estão justapostos através de uma 
mesma relação de possibilidade, e esse corpo­sujeito, ao mesmo tempo em que sente, 
pode   também ser   sentido.  É   no  cruzamento  de  possibilidades   entre   corpo­sujeito   e 
corpo­objeto que essa doença cria um paradoxo entre o corpo real e a imagem do corpo 
que o indivíduo anoréxico  projeta  para si  na anorexia,  a  percepção auto­referida  de 
imagem corporal é transbordante e está além dos limites do pequeno corpo anoréxico. 
Para compreender  melhor  esse ponto,  utilizou­se o conceito  de  imagem corporal  de 
Schilder (1999), que extrapola os aspectos neurológicos, mas relaciona­se às conexões 
entre o indivíduo e o mundo ao seu redor. Para o autor, a imagem corporal está além dos 
limites do corpo físico, as noções de espaço interno e externo na imagem corporal não 
são as mesmas da física. Segundo Schilder (1999):
Entende­se por imagem do corpo humano a figuração de nosso corpo formada em nossa 
mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós. Há sensações que nos 
são dadas. Vemos partes da superfície do corpo. Temos impressões táteis, térmicas e de 
17 A idéia não é nova. 
“A necessidade de medir é antiga e nos remete à origem das civilizações. Tendo sempre como referência 
o corpo humano para suas medições, a idéia de medidas sempre esteve ligada, de uma forma ou de outra, 
ao corpo humano.
Nosso sistema de numeração nasceu da observação dos ritmos e pulsações do próprio corpo humano 
assim como da observação do Universo.
O sistema decimal nasceu do cinco, pois é esse o número de dedos das mãos e pelo cálculo com os 10 
dedos de ambas as mãos. Na cultura babilônica, havia ainda outro sistema de numeração, que obedecia a 
uma orientação cósmica, ou seja, o sistema de 12 teve sua origem nos doze signos do zodíaco e daí surgiu 
o sistema de 60. “Conservamos deles as nossas 12 horas, 60 minutos e 60 segundos, bem como os 360 
graus aplicados na divisão da superfície em ângulos.” 
Em 1789, o Governo Republicano Francês  pediu à  Academia de Ciências  da França que criasse  um 
sistema de medidas baseado numa "constante natural".
A comissão incluía, entre outros, Lagrange e Laplace, Assim foi criado o Sistema Métrico Decimal, que 
foi adotado por outros países, dentre eles, o Brasil. 
O Sistema Métrico Decimal adotou, inicialmente, três unidades básicas de medida: o metro, o litro e o 
quilograma.  Na  França  houve dificuldade  na   implantação  do  sistema métrico  decimal.  O  imperador 
Napoleão  Bonaparte  assinou  um decreto   tornando  obrigatório  o  ensino do novo sistema nas  escolas 
francesas.”
Cf.  COELHO,  Sônia  Regina.  Alguns   olhares   sobre   o   corpo   humano.  Dissertação  de  Mestrado   em 
História da Ciência.  2006. Disponível em:  www.dominiopublico.gov.br.  Data de acesso em: 28 Dez. 
2008.
12
dor   (...)  Além disso,   existe   a   experiência   imediata   de   uma   unidade   corporal.   Esta 
unidade é percebida, porém é mais do que uma percepção. Nós a chamamos de esquema 
de nosso corpo (...)  de modelo postural do corpo. O esquema do corpo é  a imagem 
tridimensional  que todos têm de si mesmos.  Podemos chamá­la de imagem corporal 
(p.7).
A   imagem   do   corpo   não   advém  somente   de   impressões   ou   sensações   táteis,  mas 
relaciona­se à figurações e representações sobre o corpo. À figuração do corpo estão 
amarradas imagens que se sustentam sempre numa relação com alguma coisa. Através 
da imagem, o sujeito armazena uma relação, uma situação, ou seja, a imagem do objeto 
relaciona­se à  forma como este foi percebido. Tavares (2003) lembra oportunamente 
como "a imagem mental da aparência de uma refeição poderá fazê­la mais ou menos 
saborosa" (p.33). É exatamente isso que se percebe na anorexia nervosa, o caso de uma 
imagem corporal auto­apreendida que atravessa o próprio corpo e que está  além das 
fronteiras físicas do corpo.”18
O Direito, visto e justificado por si próprio, tem como signo e como condição latente a 
sua realidade o excesso de normas jurídicas. 
A atuação, o alcance e os limites do Direito são como o pequeno corpo anoréxico. No 
entanto,  a  auto­imagem projetada  do Direito  é   transbordante  de  possibilidades  e  de 
enlevos: os que dele participam são os seus “operadores”, ou seja, o primado da razão 
técnico­instrumental nos não tão poucos escolhidos para decifrá­lo; os destinatários das 
normas   jurídicas   –   nas   páginas   penais   –   são   os   cidadãos,   os   criminosos   ou   os 
delinqüentes, os acusados, os jurisdicionados – são todos, mas não são pessoas; trágica 
e   operística   a  menção   ao  “mundo   jurídico”,   como   se   a   realidade   fosse   criada   e 
disciplinada pelo jus, cujo objetivo é discipliná­la, controlá­la e regulá­la.
A visão tridimensional do Direito é idêntica ao esquema do corpo: às sensações dadas 
ao corpo comparam­se às realidades existentes,  ao mundo que chama e chameja;  às 
figurações e representações sobre o corpo e à  projeção das  imagens comparam­se à 
percepção do direito e a sua aplicação – aproximada ou distanciada do conteúdo do 
justo ­ tanto por aqueles que o interpretam, como por aqueles que lhes são destinatários.
18 GIORDANI, Rubia Carla Formighieri. A auto­imagem corporal na anorexia nervosa: uma abordagem 
sociológica.  Psicol.   Soc.,   Porto   Alegre,   v.   18,   n.   2, Aug.   2006.   Disponível   em: 
<http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0102­71822006000200011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15  Jan.  2009. doi: 
10.1590/S0102­71822006000200011.
13
Na velha  acepção dual  do masculino  e do feminino,19  o  Direito   rege­se pela  antiga 
concepção do predomínio da razão – qualidade varonil. No entanto, a sua aplicação é 
predominantemente emotiva ­ qualidade feminina. A aplicação das normas jurídicas não 
é racional, as pessoas agem pelos seus sentimentos e emoções, ainda que justificados e 
legitimados à luz da razão.
O excesso das  normas  jurídicas,  a  verborragia  de sua retórica,  os  formalismos  e  os 
esquemas de realidade,  o funcionamento da Justiça ­  como linha e como fábrica de 
montagem ­ trazem efeito perverso. Vive­se a era das reclamações, das demandas, dos 
pedidos, da não­absorção das pequenas frustrações da vivência humana:  o direito se 
transforma em chicana e em perseguição de todos os fins e de todas as finalidades, à 
semelhança da peça, “Les Plaideurs”, de Jean Racine.
Se a  representação do Direitoé  a representação do corpo anoréxico,  a  realidade  do 
Direito é a não­completitude, o vazio e a deficiência.
3. A “falta” e a “ausência
A deficiência se não é vista como doença, sempre é compreendida como “falta”, “não­
completitude” ou “ausência”. Compreendê­la significa não apenas vê­la como falta ou 
ausência fisicamente apreendida, mas sim construída culturamente.20 
19  “ (...) cabe a Cícero a associação da  razão  com  masculinidade  e  domínio  enquanto que  emoção  é 
associada com efeminação e suavidade, como o mostra a seguinte passagem:
Com efeito, a alma é  dividida em duas partes, onde uma é  participante da   razão, e onde a outra é  
desprovida. Com efeito, aquilo que prescrevemos, como obedecer a nós mesmos, prescrevemos, como a  
razão dirige a temeridade. Existe na alma de todos, por natureza, qualquer coisa de negligência, de  
baixo, humilde, de qualquer sorte que sem dor ou tristeza, se nada de outro não existe, nada será mais  
feio que o ser humano. Mas se encontra sua disposição dona e rainha de tudo, a razão, que diante faz um
esforço  para  ela  mesma  e  progride  bem  longe,  vindo  a   virtude   tornar­se  perfeita.  Que  aquilo  que 
comanda a esta parte da alma que deve obedecer,  e devendo ser visto pelo homem naquilo que me  
concerne, a virtude é para ser praticada. Mas como perguntarás tu? Como um mestre comanda a seu  
escravo ou como um general ao seu soldado ou como um pai aos seus filhos, assim a parte da alma que  
eu disse ser leve se comporta mais torpemente se ela se apropria da parte feminina das lamentações e  
das lágrimas, que ela seja atacada e entravada sob a guarda dos amigos e dos próximos. Com efeito, nos  
vimos sustentando submeter a baixa das gentes que não rendera nenhum chamado à razão.” Cf.
PEREIRA, Daniel Sánchez Pereira. Em nome do amor te peço... com as minhas palavras e com o meu  
corpo  ­ Redescobrindo masculinidades a partir da carta a Filêmon, Ápia e Arquipo. Tese de Doutorado 
em Teologia. 2006. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br. Data de acesso em: 05 Jan.2009.
20 “ (...) O modelo social da deficiência surge na década de 1960, no Reino Unido, como uma reação às 
abordagens biomédicas. A idéia básica do modelo social é de que a deficiência não deve ser entendida 
como   um   problema   individual,   mas   como   uma   questão   eminentemente   social,   transferindo   a 
responsabilidade   pelas   desvantagens   dos   deficientes   das   limitações   corporais   do   indivíduo   para   a 
incapacidade  da sociedade em prever  e ajustar­se à  diversidade (Oliver,  1990).  Em torno do modelo 
social da deficiência surge, na década de 1970, a Upias (The Union of the Phisically Impaired Against 
Segregation), uma das primeiras organizações de deficientes com objetivos eminentemente políticos, e 
não apenas  assistenciais,   como era  o  caso  das   instituições  para  deficientes  criadas  nos  dois   séculos 
anteriores (Upias, 1976). 
14
“Por algum tempo se evitou o uso do termo  deficiente  para se referir às pessoas que 
experimentavam   a   deficiência,   por   se   acreditar   que   se   tratava   de   um   termo 
estigmatizante.  Foram buscadas alternativas como  pessoa portadora de necessidades 
especiais,  pessoa portadora de deficiência  ou o mais recente  pessoa com deficiência, 
todos buscando destacar a importância da pessoa quando feita referência à deficiência. 
Aqueles  com preferência  pelo  reconhecimento  da   identidade  na  deficiência  utilizam 
simplesmente  o   termo  deficiente,   seguindo  princípios   semelhantes   aos  que   levam a 
O ponto de partida teórico do modelo social  é  de que a deficiência  é  uma experiência  resultante da 
interação entre características corporais do indivíduo e as condições da sociedade em que ele vive, isto é, 
da combinação de limitações impostas pelo corpo com algum tipo de perda ou redução de funcionalidade 
(“lesão”) a uma organização social pouco sensível à diversidade corporal. Originalmente a Upias propôs 
uma definição que explicitava o efeito da exclusão na criação da deficiência: “Lesão: ausência parcial ou 
total   de   um   membro,   órgão   ou   existência   de   um   mecanismo   corporal   defeituoso;   Deficiência: 
desvantagem ou restrição de atividade provocada pela organização social contemporânea que pouco ou 
nada considera aqueles que possuem lesões físicas e os exclui das principais atividades da vida social.” 
(Upias, 1976:3­4). 
A ênfase inicial nas limitações físicas foi imediatamente revista e com isso abriu­se um grande debate 
sobre as limitações do vocabulário usado para descrever a deficiência. A intenção era destacar que não 
havia, necessariamente, uma relação direta.
A combinação da existência de uma condição de saúde bem abaixo de um padrão abstrato de normalidade 
e a persistência dessa condição no tempo permite ao modelo médico diferenciar  doença de deficiência. 
Muitas das doenças são entendidas como situações temporárias. Assim, embora tenham uma condição de 
saúde   inferior   à   determinada   por   algum   critério   de   normalidade,   pessoas   doentes   podem   não   ser 
consideradas   deficientes   dentro   do   modelo   médico   porque   sua   redução   de   capacidades   é   apenas 
temporária  e não permite definir uma identidade. O caminho inverso também é   trilhado para separar 
deficiência   de   doença,   porém  com   um   argumento   um   pouco  mais   sofisticado   (Diniz,   1996).   Se   a 
deficiência é uma situação irreversível, é perfeitamente possível redefinir o conceito de normalidade de 
modo a ajustá­lo à condição permanente das pessoas. A cegueira, por exemplo, passa a ser a condição 
normal de uma pessoa cega e, portanto, não faz sentido classificá­la como doente. Neste esquema, uma 
pessoa que não pode enxergar porque está com uma inflamação ocular grave é uma pessoa doente e uma 
pessoa permanentemente cega é uma pessoa deficiente. 
Como o reconhecimento da “sociedade deficiente” é tão ou mais importante para o debate sobre políticas 
públicas e deficiência que a identificação da “pessoa deficiente”,  as preocupações com identidade do 
modelo social são bem distintas daquelas do modelo médico. Abberley (1987), por exemplo, não insiste 
na distinção entre deficiência e doença e praticamente ignora a regra de persistência da lesão no tempo 
para identificar os deficientes, critério tão caro aos formuladores de políticas sociais nos anos 1980, que o 
utilizaram sistematicamente em contagens de população de vários países do mundo. A lógica do modelo 
social   não   reconhece   esta   distinção,   principalmente   porque   entendem  que   os   ajustes   requeridos   da 
sociedade   para   que   ela   contemple   a   diversidade   da   deficiência   independem  de   quanto   tempo   uma 
condição corporal irá se manter. Afinal, se uma pessoa que usa cadeira de rodas enquanto se recuperar de 
fraturas   nas   pernas   necessita   dos   mesmos   ajustes   no   sistema   de   transporte   que   uma   pessoa 
permanentemente incapacitada de caminhar, por que separá­las em grupos diferentes? Ao não reconhecer 
que os doentes também experimentam a deficiência o modelo médico exclui da atenção das políticas 
públicas  uma grande parcela  da população que necessita  delas,  problema que pode afetar  uma parte 
razoável da população idosa. Não usar da mesma maneira a distinção entre doença e deficiência é um 
recurso do modelo social para evitar este tipo de exclusão. 
A   conseqüência  óbvia   da   definição   do  modelo   social   é   de   que   a   pesquisa   e   as   políticas   públicas 
direcionadas à deficiência, não poderiam concentrar­se apenas nos aspectos corporais dos indivíduos para 
identificar a deficiência. Além disso, ao separar a deficiência da lesão, o modelo social abre espaço para 
mostrar que, a despeito da diversidade das lesões, há  um fator que une as diferentes comunidadesde 
deficientes em torno de um projeto político único: a experiência da exclusão. Segundo Oliver, “todos os 
deficientes experimentam a deficiência como uma restrição social,  não importando se estas restrições 
ocorrem   em   conseqüência   de   ambientes   inacessíveis,   de   noções   questionáveis   de   inteligência   e 
competência social, se da inabilidade da população em geral de utilizar a linguagem de
15
preferência pelo termo  negros  para fazer referência às pessoas de cor preta ou parda. 
Afora o cuidado para se evitar o uso de expressões claramente insultantes, parece que a 
disputa pela terminologia correta dispersa energia que deveria ser aplicada em questões 
mais   substantivas   e,   por   isso,   o   texto   usa   várias   terminologias   conhecidas 
indiferentemente. 
As políticas  sociais  voltadas aos deficientes  precisam definir  deficiência.  Esta não é 
uma tarefa fácil,  uma vez que a busca de critérios essencialmente técnicos e neutros 
para determinar o que é deficiência não só é ingênua como, geralmente, oculta, sob uma 
fachada neutra, valores altamente prescritivos quanto à função e objetivos das políticas 
sociais.”21 
Vista pela não­aceitação do diferente, ou vista pelos olhos da mente ou da cultura: o 
destino do deficiente, na vida é a infelicidade; no direito, a proteção. Não se percebe que 
a   deficiência   não   significa   infelicidade;   nem   tampouco   que   a   proteção   do   sistema 
jurídico não raro é excludente, limitadora e estigmatizante. 
A expressão da sexualidade das pessoas falhas de inteligência ou portadoras de alguma 
doença mental é proibida. A sexualidade não pode ser expressa? O deficiente mental, o 
portador   de   Síndrome   de   Down,   ou   todos   com   alguma   limitação   da   capacidade 
intelectual têm menor condição de expressar a sua sexualidade, de forma autônoma ou 
válida,  mas deveriam ter menor  direito  de expressá­la?. O portador de determinadas 
doenças   ou  de   falhas   congênitas   não  pode  escolher,   livre   e   autonomamente,  o   seu 
destino e o seu trabalho? O aviltamento a sua dignidade não tem sido levado à proteção 
jurídica, intensa e de fundo estigmatizante, como, v.g., o caso de Morsang­sur­Orge?22
Em 2001, a Organização Mundial da Saúde (OMS) revisou o catálogo internacional de classificação da 
deficiência   para   adequar­se   a   essa   perspectiva   (OMS­ICF,   2001).   Nesta   revisão,   toda   e   qualquer 
dificuldade   ou   limitação   corporal,   permanente   ou   temporária,   é   passível   de   ser   classificada   como 
deficiência.   De   idosos   a   mulheres   grávidas   e   crianças   com   paralisia   cerebral,   o   International 
Classification  of  Functioning,  Disability  and  Health   (“Classificação   Internacional  de  Funcionamento, 
Deficiência e Saúde”) propõe um sistema de avaliação da deficiência que relaciona funcionamentos com 
contextos sociais, mostrando que é possível uma pessoa ter lesões sem ser deficiente (um lesado medular 
em ambientes sensíveis à cadeira de rodas, por exemplo), assim como é possível alguém ter expectativas 
de  lesões e  já  ser  socialmente considerado como um deficiente  (um diagnóstico preditivo de doença 
genética,  por exemplo).”  DINIZ, Débora;  MEDEIROS, Marcelo.  Envelhecimento e Deficiência.  Série 
Anis   36,   Brasília,   LetrasLivres,   1­8,   junho,   2004.   Disponível   em: 
http://www.anis.org.br/serie/artigos/sa36(medeirosdiniz)idososdeficiência.pdf   .  Data   de   acesso   em:   03 
Fev. 2009.
21 Ibidem.
22 “C.E., Ass., 27 octobre 1995, Commune de Morsang­sur­Orge  (Rec., p. 372) (Assemblée. ­ Req. n° 
136727 ­ Mlle Laigneau, rapp. ; M. Frydman, c. du g. ; Mes Baraduc­Bénabent, Bertrand, av.) Requête de 
la commune de Morsang­sur­Orge, qui demande au Conseil d'Etat :
1°  d'annuler   le  jugement du 25 février  1992 par   lequel  le   tribunal administratif  de Versailles  a,  à   la 
demande de la société Fun Production et de M. Wackenheim, d'une part, annulé l'arrêté du 25 octobre 
1991 par lequel son maire a interdit le spectacle de « lancer de nains » prévu le 25 octobre 1991 à la 
16
Não fortuitamente atribui­se à velhice o predicado da deficiência, agravada pelo gênero 
– todas as mulheres hão de ser jovens e atrativas.  A limitação da idade,  própria do 
processo dinâmico da vida, atribui­se o caráter de falta e de ausência. Os velhos são 
anormais e as velhas, logo nas primeiras cãs, à semelhança de Pompéia, devem banhar­
se no leite de cem jumentas na busca infrutífera da eterna juventude. 
A beleza  da mulher  sempre foi  valorizada e  apreciada.  O envelhecimento  a  tornava 
menos desejável  e  menos querida – outrora bela  mulher,  hoje  rosto com marcas  do 
tempo.  Se   feia,   a  mulher   estava  quase   sempre  destinada  à   “prateleira”,   no  uso  de 
discothèque de l'Embassy Club, d'autre part, l'a condamnée à verser à ladite société et à M. Wackenheim 
la somme de 10 000 F en réparation du préjudice résultant dudit arrêté ;
2° de condamner la société Fun Production et M. Wackenheim à lui verser la somme de 10 000 F au titre 
de l'article 75­I de la loi n 91­647 du 10 juillet 1991 ;
Vu le code des communes et notamment son article L. 131­2 ; la Convention européenne de sauvegarde 
des droits de l'homme et dês libertés fondamentales ; le code des tribunaux administratifs et des cours 
administratives d'appel ; l'ordonnance n 45­1708 du 31 juillet 1945, le décret n 53­934 du 30 septembre 
1953 et la loi n 87­1127 du 31 décembre 1987 ;
Sans qu'il soit besoin d'examiner les autres moyens de la requête :
*1* Considérant, qu'aux termes de l'article L. 131­2 du code des communes : « La police municipale a 
pour objet d'assurer le bon ordre, la sûreté, la sécurité et la salubrité publique » ;
*2* Cons. qu'il appartient à l'autorité investie du pouvoir de police municipale de prendre toute mesure 
pour prévenir une atteinte à l'ordre public ; que le respect de la dignité de la personne humaine est une dês 
composantes de l'ordre public ; que l'autorité investie du pouvoir de police municipale peut, même en 
l'absence de circonstances locales particulières,  interdire une attraction qui porte atteinte au respect de la 
dignité de la personne humaine ;
*3*  Cons. que l'attraction de « lancer de nain » consistant à faire lancer um nain par des spectateurs 
conduit à utiliser comme un projectile une personne affectée d'un handicap physique et présentée comme 
telle ; que,
par son objet même, une telle attraction porte atteinte à la dignité de la personne humaine ; que l'autorité  
investie du pouvoir de police municipale pouvait, dès lors, l'interdire même en l'absence de circonstances 
locales  particulières  et  alors  même que des  mesures  de protection  avaient  été  prises  pour assurer   la 
sécurité de la personne en cause et que celle­ci se prêtait librement à cette exhibition, contre rémunération 
;
*4*  Cons. que, pour annuler l'arrêté  du 25 octobre 1991 du maire de Morsang­sur­Orge interdisant le 
spectacle  de  «   lancer  de  nains  »  prévu   le  même  jour  dans  une  discothèque  de   la  ville,   le   tribunal 
administratif de Versailles s'est fondé sur le fait qu'à supposer même que le spectacle ait porté atteinte à la 
dignité de la personne humaine, son interdiction ne pouvait être légalement prononcée en l'absence de 
circonstances locales particulières ; qu'il résulte de ce qui précède qu'un tel motif est erroné em droit ;
*5*  Cons. qu'il  appartient  au Conseil d'Etat saisi par l'effet  dévolutif de l'appel, d'examiner les autres 
moyens invoqués par la société Fun Production et M. Wackenheim tant devant le tribunal administratif 
que devant le Conseil d'Etat ;
*6* Cons. que le respect du principe de la liberté du travail et de celui de la liberté du commerce et de 
l'industrie ne fait pas obstacle à ce que l'autorité investiedu pouvoir de police municipale interdise une 
activité même licite si une telle mesure est seule de nature à prévenir ou faire cesser um trouble à l'ordre 
public ; que tel est le cas en l'espèce, eu égard à la nature de l'attraction en cause ;
*7*  Cons. que le maire de Morsang­sur­Orge ayant fondé sa décision sur les dispositions précitées de 
l'article L. 131­2 du code des communes qui  justifiaient,  à  elles seules,  une mesure d'interdiction du 
spectacle, lê moyen tiré de ce que cette décision ne pouvait trouver sa base légale ni dans l'article 3 de la 
Convention européenne de sauvegarde des droits de l'homme et des libertés fondamentales, ni dans une 
circulaire du ministre de l'intérieur, du 27 novembre 1991, est inopérant ;
*8*  Cons. qu'il résulte de tout ce qui précède que c'est à tort que, par le jugement attaqué, le tribunal 
administratif de Versailles a prononcé l'annulation de l'arrêté du maire de Morsang­sur­Orge en date du 
25 octobre 1991 et a condamné la commune de Morsang­sur­Orge à verser aux demandeurs la somme de 
10 000 F ; que, par voie de conséquence, il y a lieu de rejeter leurs conclusions tendant à l'augmentation 
du montant de cette indemnité ;
17
expressões  de  época,  ou  estava  quase   sempre  destinada  a   casar­se   com o  primeiro 
pretendente, fosse ele quem fosse. O humor, voltado às percepções mais profundas da 
cultura, bem o demonstra: Carlos Estevão, em “O Cruzeiro”, datada a publicação de 
1964,23  desenha  u’a  mulher   “feia”   e   “velha”  pedida   em casamento   e,   no   afã   e   na 
sofreguidão de se ver  bela  e  desejável,  ela  nega o pretendente  – de maneira  pouco 
educada  e  cortês.  Em consulta   aos   seus  “manes”,   isto  é,   ao  seu  diário,   ela  vê  um 
passado   idealmente  projetado  –  mas  o  narrador,   com  fria   insensibilidade   e   crueza, 
desfaz todas as suas fantasias e as suas ilusões. O passado existe, menos pela realidade, 
mais   pelas   lembranças   e   pela   história   firmada   nos   anais   quer   de   um   documento 
particular,   quer   de   um   documento   público.   Cruelmente   desiludida,   com  medo   da 
velhice, da solidão ou da sociedade: a mulher aceita o pedido de casamento. O destino 
de ambos é a infelicidade. Os diálogos e o diário, sem as ilustrações, são transcritos:
“Pretendente (Seu Josias): Do...dona Dolores, a senhora é solteira e eu sou viúvo...Eu, 
eu queria pedir a senhora em...
Pretendida (D. Dolores/Jane):  EEU, HEIN, SEU JOSIAS?...Quem gosta de velho é 
cadeira de balanço e reumatismo! Não se enxerga, não?
Sur les conclusions de la société Fun Production et de M. Wackenheim tendant à ce que la commune de 
Morsang­sur­Orge soit condamnée à une amende pour recours abusif :
*9* Cons. que de telles conclusions ne sont pas recevables ;
Sur les conclusions tendant à l'application des dispositions de l'article 75­I de la loi du 10 juillet 1991 :
*10* Cons. qu'aux termes de l'article 75­I de la loi du 10 juillet 1991 : « Dans toutes les instances, le juge 
condamne la partie tenue aux dépens ou, à défaut, la partie perdante à payer à l'autre partie la somme qu'il
détermine, au titre des frais exposés et non compris dans les dépens. Le juge tient compte de l'équité ou 
de la situation économique de la partie condamnée. Il peut même d'office, pour des raisons tirées de ces 
mêmes
considérations, dire qu'il n'y a pas lieu à cette condamnation » ;
*11* Cons., d'une part, que ces dispositions font obstacle à ce que la commune de Morsang­sur­Orge, qui 
n'est pas dans la présente instance la partie perdante, soit condamnée à payer à la société Fun Production 
et M. Wackenheim la somme qu'ils demandent au titre des frais exposés par eux et non compris dans les 
dépens ; qu'il n'y a pas lieu, dans les circonstances de l'espèce, de faire application de ces dispositions au 
profit de la commune de Morsang­sur­Orge et de condamner M. Wackenheim à payer à cette commune la 
somme de 10 000 F au titre des frais exposés par elle et non compris dans les dépens ; qu'il y a lieu, en 
revanche, de condamner la société Fun Production à payer à la commune de Morsangsur­Orge la somme 
de 10 000 F au titre des frais exposés par elle et non compris dans les dépens ; ... (annulation du jugement 
attaqué ; rejet des
demandes de la société Fun Production et de M. Wackenheim présentées devant le tribunal administratif 
de  Versailles,   ainsi   que   de   l'appel   incident   de   la   société   Fun   Production   et   de  M.  Wackenheim   ; 
condamnation de la société Fun Production à payer à la commune de Morsang­sur­Orge la somme d 10 
000 F en application des dispositions de l'article 75­I de la loi du 10 juillet 1991 ; rejet des conclusions de 
la société Fun­Production et de M. Wackenheim tendant à l'application de l'article 75­I de la loi du 10 
juillet 1991).” Disponível em:  http://www.georgemlima.xpg.com.br/anao.pdf. Data de acesso em: 13 Jan. 
2009.
23 Disponível em: http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/. Data de acesso em: 03 Fev.2009.
18
Narrador (Voz da Consciência):  “Jane, sua resposta foi dura demais; é verdade que  
seu Josias não é nenhum Alain Delon, que é viúvo e que não tem lá grande futuro...  
Mas, e você? E você, querida Jane, o que justifica esse seu desprezo soberano pelo 
pobre viúvo? É claro que você se acha parecida com a Cláudia Cardinale, não é? Sei  
também que se acha  inteligentíssima,  cultíssima e que,  no  seu pileque  de  orgulho,  
chega a ver até em seu tronco familiar, fulgurações heráldicas, não é? Jane, você está  
agora diante dum bom espelho, olhe para êle com atenção e com humildade e acate as  
suas sábias decisões.”
“Sim, é isso mesmo...Agora, com um pouco de coragem, vamos ao seu diário, vamos  
ver o que você escreveu em...”
Diário:  15   de   Julho   –   Estávamos   sós,   e   com   suas  mãos  másculas,   êle   segurava 
delicadamente o meu braço. (Era um enfermeiro a lhe aplicar a injeção, lembra­se,  
Jane?)
20 de Agosto – Sim, assoviava para mim de dez em dez minutos e só parava quando eu 
lhe punha as mãos. (Era uma panela de pressão, lembra­se, Jane?)
12 de Setembro – Senti que ele não tirava os olhos de mim, de repente falou: a senhorita 
ainda não pagou a passagem (Era o condutor de bonde, lembra­se, Jane?)
16 de Setembro – Com toda a ternura, êle me levou num belo carro até uma casa muito 
grande e bela. ( Era o Pronto­Socorro, lembra­se, Jane?)
8 de Outubro – Êle, assim que me viu de pé, levantou­se, num pulo e ofereceu­me o 
lugar e depois ( Tinha dado cãibra na perna dele, lembra­se, Jane?)
12 de Outubro – Aí  êle falou­me pausadamente:  a senhorita é  muito boa! Nunca vi 
moça tão boa! (Era um mendigo e você dera­lhe uma esmola de vinte pratas, lembra­se,  
Jane?)
18  de  Outubro  –  Recebi  uma   linda   carta   com uma   (sic)  grande   coração  vermelho 
desenhado no centro. (Era um ás de copas, lembra­se, Jane?)
19
30 de Outubro – Foi lindo, ainda me lembro, eu com véu e grinalda ajoelhei­me aos pés 
do padre e... (Era na sua primeira comunhão, lembra­se, Jane?)
20 de Novembro – Ele insistia comigo, súplice: diga, diga por favor: I love you! I love 
you! (Era o seu professor de inglês, lembra­se, Jane?)
22 de  Novembro  ­  Parecia  com o  Rock Hudson e   falou­me:  A senhorita  não quer 
mesmo   assistir   êste   filme?   (E   ele   vendeu­lhe   um   ingresso   para   uma   sessão   de  
beneficência, lembra­se, Jane?)
25 de Novembro – Êle sorriu para mim, e, surprêso, não se conteve...A senhorita é a 
Primavera em pessoa. (Primavera?...Não...ele se referia à prima dele, a Vera Dentuça,  
lembra­se, Jane?)
3 de Dezembro – Ele insistiu tanto, tanto: queria que eu fosse a estrela do filme que êle 
ia rodar?... (O filme era a filha do Drácula, lembra­se, Jane?)
Narrador (Voz da Consciência): Ah, mas, agora , vocêestá chorando, Jane? Vamos,  
pare com essa cachoeirinha de lágrimas.Você apenas se reencontrou. Pense no que lhe  
disse o seu Josias e seja feliz.
Pretendida (D.  Dolores/Jane):  É  que ontem eu estava  tão nervosa,  seu Josias...Mas 
depois eu refleti, refleti e a minha resposta é SIM.
Pretendente (Seu Josias): Ora...Mas... Dona Ja...Eu posso lhe chamar de Jane, posso?
Narrador (Voz da Consciência): Meses depois dessa cena tocante, êles se casaram, e  
foram, naturalmente, muito infelizes.”24
As   limitações   de   gênero,   etárias,   sócio­culturais­econômicas   não   constituem 
deficiências,   mas   particularidades   que   devem,   na   sua   diferença,   ser   igualmente 
respeitadas no tratamento jurídico que lhes é dispensado.
24 Disponível em: http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/. Data de acesso em: 03 Fev.2009.
20
Fossem abolidos todos os sistemas prescritivos, todas as normas jurídicas postas, todas 
as garantias e todos os direitos, caso restasse apenas o princípio da dignidade da pessoa 
humana – fundada na relação de alteridade – e todas as páginas jurídicas poderiam ser 
novamente   reescritas.  Todos   são  e   estão   em  relações  de   sujeitos,  de  eu­tu:25  eis  a  
essência e o conteúdo do Direito.
Em particular, em relação aos idosos, no uso tão grato à linguagem jurídica, o modelo 
social   da   deficiência   está   bem   fundeado   e   amarrado:  “(...)   o   envelhecimento 
populacional de certo modo evidencia que a deficiência não pertence apenas ao universo 
do inesperado. A idéia de que a experiência da deficiência faz ou fará parte da vida de 
uma grande quantidade  de  pessoas   torna  a  deficiência  um  tema de pauta  não mais 
limitado   aos   movimentos   de   deficientes,   mas   de   todos   os   movimentos   sociais 
igualitaristas.”26 
As vulnerabilidades de hoje são atribuídas aos mais variados grupos: idosos, crianças, 
mulheres,  minorias  diversas  –  étnicas,   religiosas  ou   sexuais.  A exceção  é   ser  não­
vulnerável  –  o  homem branco,  heterossexual,   em plena   juventude,   isto  é,   a  pessoa 
humana representativa e destinatária  das normas jurídicas,  em especial  as de caráter 
privado, v.g, o contratante, o locador, o locatário, o proprietário, o falido.27
A deficiência é atribuída não somente ao corpo imperfeito ou faltante, mas também aos 
extremos da vida – uma criança e um idoso são incapazes, em razão da idade – o lumiar 
e o ocaso da existência. A atribuição de vulnerabilidade ou de fragilidade aos grupos 
importa – por menos que se queira – em atitude discriminatória nem sempre benéfica. 
As  políticas  públicas   afirmativas   tendem à   correção  das   injustiças   e  das  distorções 
político­econômicas e históricas sofridos pelos grupos vulneráveis ou fragilizados ­ mas 
representam também afirmação de que os grupos vistos como vulneráveis precisam de 
“ajuda” para afirmar a sua autonomia e a sua capacidade.
Se   se   quer   ajudar   ou   auxiliar   ou   amparar   alguém,  não   significa   relegar   os   grupos 
vulneráveis à recorrente situação de submissão e de domínio? Por outro lado, haverá 
outro caminho senão procurar minorar as distorções pela  atribuição de um plexo de 
garantias e de direitos aos grupos vulneráveis?
Esperar­se a igualdade por meio de políticas públicas é perpetuar a desigualdade – mas 
as   políticas   públicas   correcionais   e   incidentais   são   forma   de   minoração   das 
desigualdades  atuais.  Tomaso de Lampedusa,  em “O Leopardo”,  no embate  entre  a 
25 Novamente alusão aos escritos e às idéias de Martin Buber.
26 DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo. Op.cit.
27 A idéia não é original. Em outras leituras de gênero percebe­se a opção pelo masculino.
21
decadente aristocracia e a nascente burguesia, empresta a sua personagem a fala, citada 
de memória, algo deve mudar para que tudo continue como está.
Também o reconhecimento dos grupos vulneráveis ou fragilizados é sempre problema 
de autoimputação, de atribuição a si próprio de identidade deteriorada – porque frágil  
e vulnerável: declarar­se negro, declarar­se homossexual, reconhecer­se como mulher, 
declarar­se  idoso.  Quem são os negros,  os mulatos,  os morenos? A idade – critério 
absoluto   –   define   a   senectude?  Quantas   pessoas   acima   de   60   (sessenta)   anos   têm 
qualidade de vida superior àquelas de 40 (quarenta) anos que labutam na construção 
civil ou no roçado, ou nas minas e nas carvoarias? No entanto, são idosas perante a 
majestosa lei. Quantas mulheres têm supremacia financeira e emocional em relação aos 
homens? No entanto, são tidas como frágeis e dignas de proteção.
Vive­se   a   era   das   vulnerabilidades.  É   preciso   jungir­se  afetivamente  a   liberdade   à 
autonomia   –   criar­se   sujeitos   independentes   e   autônomos.  A   vulnerabilidade   ou   a 
fragilidade das pessoas não é normativamente criada e elaborada,  ao contrário, ela é 
casuisticamente vista e sentida. Em algum momento, todos são vulneráveis ou frágeis. 
É necessária a formação de sujeitos autônomos, apesar de medidas paliativas e urgentes 
serem providenciais.
Ilustra Rubem Alves:
“O sujeito da educação é o corpo, porque é nele que está a vida. É o corpo que quer 
aprender para poder viver. É ele que dá as ordens. A inteligência é um instrumento do 
corpo   cuja   função   é   ajudá­lo   a   viver.  Nietzsche   dizia   que   ela,   a   inteligência,   era 
"ferramenta"   e   "brinquedo"  do  corpo.  Nisso   se   resume o  programa  educacional  do 
corpo: aprender "ferramentas", aprender "brinquedos". 
"Ferramentas" são conhecimentos que nos permitem resolver os problemas vitais  do 
dia­a­dia.   "Brinquedos"   são   todas   aquelas   coisas  que,  não   tendo  nenhuma utilidade 
como ferramentas, dão prazer e alegria à alma.
Nessas   duas   palavras,   ferramentas   e   brinquedos,   está   o   resumo   da   educação. 
Ferramentas e brinquedos não são gaiolas. São asas. Ferramentas me permitem voar 
pelos caminhos do mundo.
Brinquedos   me   permitem   voar   pelos   caminhos   da   alma.   Quem   está   aprendendo 
ferramentas  e  brinquedos  está   aprendendo   liberdade,  não   fica  violento.  Fica  alegre, 
22
vendo as asas crescer... Assim todo professor, ao ensinar, teria de se perguntar: "Isso 
que vou ensinar, é ferramenta? É brinquedo?" Se não for, é melhor deixar de lado.””28 
A especial  vulnerabilidade  ou   fragilidade  pode ser  atribuída  à  mulher  ocidental?  A 
legislação de proteção às mulheres é uma constante na maioria dos países e, sobretudo, 
nos   casos   de   violência   doméstica   e   de   violência   sexual   são   extremamente   úteis. 
Também nos diversos   tipos  de assédio – moral  e  sexual  as  vítimas  recorrentes   são 
mulheres. Às legislações protetoras da mulher também deve ser perguntado: Elas são 
“ferramentas”   para   a   efetivação   e   a   realização   da   dignidade   humana?   Todas   as 
perguntas   sobre   o   conteúdo   das   normas   jurídicas   centram­se   em   seu   conteúdo 
perceptível de realização da dignidade da pessoa humana, isto é, na dignidade do outro,  
do alter.
O Direito deve ter um “quê” de brinquedo, ele deve proporcionar alegria e prazer à alma 
– não à  alma individual,  mas à  alma coletiva – com o caráter  de  transformação da 
realidade vigente. No entanto, as páginas jurídicas são escritas em tintas conservadoras 
e  a  proclamação de direitos  e  de garantias  somente se  realiza  após  as  pressões dos 
movimentos sociais ou do sangue e do sofrimento de milhares de pessoas. O Direito não 
se confunde com a lei – as leis não têm o condão de modificar ou de transformar a 
realidade.  A   escravidão,   no  Brasil,  v.g.,   consistiu   em   realidadevivida   e   em  plexo 
normativo,  conforme narrado por  Joaquim Nabuco:  “Por  honra de Portugal,  o  mais 
eminente dos seus jurisconsultos não admitiu que o direito romano na sua parte mais 
bárbara e atrasada, dominica potestas, pudesse ser ressuscitado por um comércio torpe, 
como parte integrante do direito pátrio, depois de um tão grande intervalo de tempo 
como o que separa a escravidão antiga da escravidão dos negros. A sua frase: “servi  
nigri in Brasilia, et quaesitis aliis dominationibus tolerantur: sed quo jure et titulo me  
penitus ignorare fateor (Escravos negros são tolerados no Brasil e outros domínios,  
mas por que direito e com que título, confesso ignorá­lo completamente.), é a repulsa do 
traficante   pelo   jurisconsulto   e   a   demolição   legal   do   edifício   inteiro   levantado  pela 
pirataria  dos antigos  assentos.  É  o vexame da confissão de Melo Freire  que dá  um 
vislumbre da dignidade do alvará de 6 de junho de 1755 em que se contém a primeira 
das promessas solenes feitas à raça negra.
Aquele   alvará,   estatuindo   sobre   a   liberdade  dos   índios  do  Brasil,   fez   esta   exceção 
significativa: “Desta geral disposição excetuo somente os oriundos de pretas escravas, 
28 ALVES, Rubem. Gaiolas e Asas. A Casa de Rubem Alves. Disponível em: www.rubemalves.com.br. 
Data de acesso em: 30 Jan. 2009.
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os quais serão conservados nos domínios dos seus atuais senhores, enquanto eu não der 
outra providência sobre esta matéria.  A providência  assim expressamente prometida 
nunca foi dada.”29
A Lei Áurea, Lei n.3.353, de 13 de maio de 1888, embora abolindo a escravatura, não 
trouxe aos antigos escravos melhor vida ou mais dignidade.  “Na prática, quando foi 
assinada, só 5% do povo negro viviam sob regime de escravidão. Os demais tinham 
conseguido a libertação por meio dos próprios esforços. Podemos dizer, no máximo, 
que serviu como estratégia para dar à população negra respaldo de libertação jurídica. 
Não teve como preocupação fixar as comunidades negras na terra e garantir as terras 
nas quais já viviam, reconhecida pelas próprias leis dos dominantes. 
Após   a  promulgação  da  Lei  Áurea   surgiu  um movimento   exigindo  que  o  governo 
indenizasse os senhores que haviam perdido seus escravos. Rui Barbosa reagiu dizendo: 
"Se alguém deve ser indenizado, indenizem os escravos!". Tinha plena consciência das 
injustiças cometidas pela sociedade contra o povo negro.”30
Contraditoriamente,   o   meio   urbano   e   as   vivências   e   as   mentalidades   escravistas 
subsistiram, Bertoleza e a sua infelicidade não foram meras páginas literárias,31 mas a 
realidade dramatizada dos escravos e dos forros das grandes cidades.
“E a questão não seria incompatibilidade de densidades urbanas com sistemas sociais 
escravistas. Esse foi o tema de vários estudos sobre a escravidão, principalmente nos 
Estados Unidos, quando se avaliava que o crescimento urbano produziria contradições 
estruturais com a escravidão. Não foi isso que aconteceu. Lá como cá, surgiriam densas 
cidades com escravos e mesmo cidades escravistas, dinamizando relações de produção. 
Destacam­se, em várias áreas, os setores de comércio, de abastecimento e de serviços 
com   escravos  ao   ganho  ou   escravos  de   aluguel,   sendo   comum   que   senhores 
permitissem que seus escravos vivessem sobre si, mercadejando (quitandeiras, fruteiras, 
lavadeiras etc.), transportando cargas e realizando ofícios diversos (alfaiates, barbeiros, 
marceneiros, pedreiros etc.). Tais atividades econômicas geravam rendas imediatamente 
entregues   aos   senhores,   descontadas   quantias   para   os   escravos   se   alimentarem   e 
29 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo : Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento 
brasileiro   da   Folha   de   São   Paulo).   A   Biblioteca   Virtual   do   Estudante   Brasileiro.   Disponível   em: 
<http://www.bibvirt.futuro.usp.br>A   Escola   do   Futuro   da   Universidade   de   São   Paulo.  Texto­base 
digitalizado por: Sérgio Simonato ­ Campinas/SP. Data de acesso em: 02 Fev. 2009.
30 OFM, Frei David  Santos. Negros: A face real da Lei Áurea. Disponível em: 
http://www.adital.org.br/asp2/noticia.asp?idioma=PT&secao=15. Data de acesso em: 28 Jan.2008.
31  Cf. AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Ática.1999.
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proverem sua sobrevivência básica. Não poucos escravos ao ganho moravam separados 
e longe do controle senhorial, só os encontrando semanalmente para depositar as rendas 
conseguidas   com   suas   atividades.  Alguns   historiadores   chegaram   a   sugerir   que   as 
quantias repassadas pelos senhores aos escravos  ao ganho  funcionavam como salário 
(cf.   Silva,   1988;   Soares,   1980).   Outros   exageram   nas   análises   que   indicavam   a 
mobilidade desses escravos e a falta de controle sobre as relações de trabalho. Sabe­se 
que   essas   relações   foram  marcadas   por   um   rígido   controle,   inclusive   das   câmaras 
municipais,  que  davam autorização  para   que  os   escravos   trabalhassem  ao  ganho  e 
cobravam impostos dos senhores (cf. Algranti, 1988). O maior número de escravos nas 
ruas   fez   aumentar   as   formas   de   controle   social   nas   cidades   por  meio   de   posturas 
municipais,  multas  e   aparato  policial.  De qualquer  maneira,  o  mercado  de   trabalho 
urbano,   principalmente   o   setor   de   serviços,   seria   cada   vez   mais   dominado   pela 
população negra. Na segunda metade do século XIX, houve mudanças com a entrada 
maciça de  imigrantes  europeus,  que vieram tanto para as áreas  rurais  como para as 
urbanas. Pelo menos no caso do Rio de Janeiro, as disputas no mercado de trabalho 
entre negros e imigrantes – como Florestan Fernandes analisaria para São Paulo nas 
primeiras  décadas  do século XX – seriam uma realidade  desde o último quartel  do 
século XIX.”32
O sistema jurídico é   fruto da cultura e da política.  As prescrições, os comandos,  os 
mandados   não   são   suficientes   caso   destinados   à   realidade   distinta   da   prescrição 
normativa. As normas jurídicas não mudam a realidade, não despertam a consciência 
ética, não tornam as pessoas melhores ou aqueles que as fazem cumprir, mais justos.
O Direito se vê varonil, racional, jovem, completo e longevo; mas a sua figuração é 
feminina,  emotiva,  velha,  deficiente  e  de vida  breve.  No apelo  evidente  aos  papéis  
estáticos da feminilidade, da emotividade, da velhice, da deficiência e da brevidade da 
vida, a oscilação entre a Cantiga de Escárnio e à balada de John Keats são o pêndulo do 
direito: ou o Direito é a mulher velha, feia e sandia33 ou, “a bela dama sem piedade”.
32 NEGRO, Antonio Luigi; GOMES, Flávio. Além de senzalas e fábricas: uma história social do trabalho. 
Tempo soc.,   São Paulo,   v. 18,   n. 1, June   2006 .     Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0103­20702006000100012&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22  Jan.  2009. doi: 
10.1590/S0103­20702006000100012.
33 Ai dona fea! Fostes­vos queixar
Porque vos nunca louv' en meu trobar
Mais ora quero fazer un cantar
En que vos loarei toda via;
E vedes como vos quero loar:
Dona fea, velha e sandia!
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Por que não valer­se dos papéis estereotipados do Direito para atribuir­lhe os signos 
verdadeiros da trágica beleza de sua figuração? A figuração feminina, emotiva, velha, 
deficiente e de vida breve têm muito mais sabedoria – são contas no colo do Senhor – 
que propriamente a figuração varonil e racional.
No olhar feminino e emotivo das páginas jurídicas lidas e vividas, o cuidado e a visão 
da diferença constituem a pedra de toque da tutela da dignidade e da alteridade das 
pessoas humanas. O cuidado é a percepção afetiva

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