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16 • C I Ê N C I A H O J E • vol . 3 3 • nº 19 3 M I C R O B I O L O G I A A LINGUAGEM Ao contrário do que se pensava há alguns anos, bactérias são seres complexos e capazes de se comunicar e agir coordenadamente. Há poucas décadas, cientistas descobriram que diversas espécies de bactérias produzem moléculas, chamadas de auto-indutores, com as quais se comunicam entre si e com outros tipos de células. Esse sistema de comunicação, denominado quorum sensing, é também utilizado para regular algumas características bacterianas, desde as ligadas à sobrevivência até as determinantes de patogenicidade (capacidade de causar doença). Cientistas já imaginam a possibilidade de interferir nesse processo de comunicação e regulação e, dessa forma, manipular a expressão de genes bacterianos, o que, além de ampliar a compreensão do comportamento das bactérias, permitiria desenvolver terapias e medicamentos contra inúmeras doenças. Luis Caetano Martha Antunes Departamento de Microbiologia, Universidade de Iowa (Estados Unidos) luiscaetano-antunes@uiowa.edu 16 • C I Ê N C I A H O J E • vol . 3 3 • nº 19 3 M I C R O B I O L O G I A A bactéria Pseudomonas aeruginosa utiliza mecanismos de quorum sensing para só expressar fatores de virulência quando sua população no hospedeiro (o homem, por exemplo) atinge determinada densidade A bactéria Pseudomonas aeruginosa utiliza mecanismos de quorum sensing para só expressar fatores de virulência quando sua população no hospedeiro (o homem, por exemplo) atinge determinada densidade A LINGUAGEM maio de 2003 • C I Ê N C I A H O J E • 17 M I C R O B I O L O G I A DAS BACTÉRIAS Até o final dos anos 60 acreditava-se que as bactérias não passa- vam de células individuais, que apenas buscavam nutrientes e se multiplicavam. Nas últimas déca- das, porém, diversos estudos mostraram que esses microrganismos podem se comunicar, tanto entre si quanto com células eucarióticas (as que têm nú- cleo definido), como as do corpo humano. Verificou- se ainda que, além de emitir e receber sinais, bac- térias também os empregam para agir em grupo e em benefício próprio com certa eficácia. Esse fenômeno surpreendente foi descoberto em bactérias luminescentes que vivem em órgãos lumi- nosos e intestinos de lulas, peixes e outros animais marinhos. Nos anos 50, cientistas notaram que a água do mar de praticamente qualquer parte da Terra continha bactérias que, quando cultivadas, tinham a capacidade de emitir luz. O fenômeno chamou a atenção de diversos grupos de pesquisa na época e levou ao surgimento de mais uma área da bioquími- ca, o estudo da bioluminescência. Após anos de estudo no campo, pesquisadores notaram, no início dos anos 70, não só que essas bactérias eram capazes de produzir luz, mas tam- bém que isso só ocorria após um número grande de bactérias ter se acumulado em determinado ambien- te. Em situações onde poucas bactérias eram encon- tradas, nenhuma luz era detectada. De acordo com essa observação estava o achado de que essas bacté- rias, da espécie Vibrio fischeri, produziam luz no interior dos órgãos luminosos da espécie de lula Euprymna scolopes (figura 1), onde altas concentra- ções celulares podem ocorrer, mas não o faziam quando se encontravam livres na água do mar, onde não atingiam concentrações elevadas. Esse fenômeno é um exemplo de relação simbiótica onde as duas partes se beneficiam e um mecanismo de sobrevivência importante para ambas as espécies. As águas habitadas por esses organismos são geral- mente rasas e, à noite, a Lua é a única fonte de luz disponível. Por isso, os predadores podem detectar com facilidade as sombras de suas presas (a lula, no caso) se movimentando à frente da luz da Lua. No entanto, a produção de luz no órgão luminoso da lula mascara sua sombra, diante da luz da Lua, o que confunde seus predadores, evitando que seja atacada. Ajudando seu hospedeiro a sobreviver, as bactérias luminescentes garantem abrigo e um ambiente farto em nutrientes. Já quando estão dispersas no mar, a produção de luz seria um gasto desnecessário de energia, pois não traria qualquer vantagem. Quando essas bactérias dispersas na água encon- tram algum volume de matéria orgânica em decom- posição (um peixe morto, por exemplo), depositam- se sobre sua superfície e se multiplicam, logo alcan- çando uma densidade que aciona a emissão de luz. Com isso, elas atraem peixes ou outros animais, que, ao comerem o material orgânico, também as inge- rem, dando a elas mais uma vez um lugar cômodo para viver e reiniciando o ciclo. O fenômeno da regulação da produção de luz em bactérias marinhas representa um exemplo de como a evolução agiu de maneira a produzir relações simbióticas extremamente estáveis entre as mais diversas espécies de organismos. A identificação desse fenômeno trouxe inúmeras perguntas, tornan- do necessário investigar como tal comunicação ocor- re, que características bacterianas são reguladas por Figura 1. O fenômeno da produção de luminescência dependente da densidade populacional da bactéria Vibrio fischeri foi descoberto em estudos com a lula Euprymna scolopes maio de 2003 • C I Ê N C I A H O J E • 17 M I C R O B I O L O G I A � DAS BACTÉRIAS FO TO KEYSTO N E prypi_000 Realce prypi_000 Realce 18 • C I Ê N C I A H O J E • vol . 3 3 • nº 19 3 M I C R O B I O L O G I A esse sistema e qual é objetivo desse mecanismo, entre outros pontos, na tentativa de se esclarecer melhor sua importância biológica. DESCOBERTA A LINGUAGEM DAS BACTÉRIAS Depois de muitos anos de estudos, as respostas para algumas das perguntas referentes à regulação gênica dependente de densidade populacional começaram a surgir. Mostrou-se que a comunicação intercelular bacteriana é realizada através da produção e libera- ção no meio externo de pequenas moléculas, cha- madas de ‘auto-indutores’ e, em 1994, esse fenôme- no recebeu o nome de quorum sensing (do inglês, ‘sentir o quorum’). Esse termo foi cunhado porque a ativação do fenômeno depende de uma densidade populacional (quorum) elevada. Quando as bactérias estão presentes em pequena quantidade em um ambiente, a concentração de auto-indutores é muito baixa para ser detectada. Entretanto, assim que um número maior de células é alcançado, essa concentração atinge um certo ‘li- mite’, fazendo com que as bactérias ali presentes ‘sintam’ essas moléculas (figura 2) e ativem ou re- primam genes específicos. Essa alteração de com- portamento de acordo com a densidade populacio- nal faz com que os genes expressos em uma situação de baixa concentração celular sejam diferentes dos que serão expressos quando for alcançado um nú- mero maior de indivíduos, de acordo com o interes- se fisiológico da bactéria em cada um desses mo- mentos. Muitas moléculas diferentes já foram descritas como auto-indutores. Alguns dos principais exem- plos são (i) as acil-homoserina-lactonas (AHLs), mo- léculas também chamadas de ‘auto-indutor 1’ (figura 3); (ii) moléculas agrupadas sob o nome de ‘auto- indutor 2’, de estrutura em geral ainda desconheci- da, sabendo-se apenas que não são AHLs; e (iii) pequenos peptídios (pequenos pedaços de proteínas) modificados. O sistema de sinalização através de auto-indutores baseia-se na ligação dessas moléculas, quando em concentrações elevadas, a moléculas sensoras pre- sentes na superfície ou no interior das bactérias. Essas moléculas sensoras, chamadas em geral de ‘proteínas R’, atuam como reguladores transcricionais, ou seja, regulam a expressão de genes específicos, direta ou indiretamente.Cada uma dessas proteínas R responde a um auto-indutor específico e em geral só é bem ativada quando estimulada por essa molé- cula (figura 4). Auto-indutores inespecíficos, embo- ra capazes de se ligar às proteínas R, não provocam ativação ou provocam uma ativação mais fraca. CONTROLE DA EXPRESSÃO DE DIVERSOS GENES Sabe-se hoje, após muitas pesquisas, que diversas outras características das bactérias, além da produ- ção de luz, são controladas por sistemas de quorum sensing. Isso inclui desde as características relacio- nadas com a defesa desses microrganismos (como a própria luminescência), até as essencialmente ofen- sivas ao hospedeiro (como a liberação de toxinas e enzimas capazes de provocar doenças). Podem ser citadas, entre as características regula- das por quorum sensing, a expressão de enzimas e antibióticos em Erwinia carotovora, a produção de pigmento em Chromobacterium violaceum e de luminescência em Vibrio harveyi e Vibrio fischeri, a produção de fatores de virulência (agressão ao hospe- deiro) em Pseudomonas aeruginosa, a competência (capacidade de receber DNA de outras bactérias) em Bacillus subtilis, a conjugação (transferência de genes entre duas bactérias através de contato) em Agrobac- terium tumefaciens e Enterococcus faecalis, e a ex- pressão de toxinas em Staphylococcus aureus. Uma bactéria na qual o papel do quorum sensing na regulação de genes é bastante compreendido é a P. aeruginosa. Embora essa bactéria tenha um grande número de fatores de virulência, muitos não são expressos constantemente, sendo sua expres- são dependente da densidade celular. Essa espécie bacteriana apresenta dois sistemas principais de Figura 2. Princípio de funcionamento do quorum sensing: se há poucas bactérias em um ambiente (A), a concentração de auto-indutores, muito baixa, não é detectada, mas assim que a densidade populacional aumenta (B), essa concentração atinge um certo ‘limite’ e tais moléculas são ‘sentidas’ pelas bactérias presentes prypi_000 Realce prypi_000 Realce prypi_000 Realce prypi_000 Realce prypi_000 Realce prypi_000 Realce prypi_000 Realce maio de 2003 • C I Ê N C I A H O J E • 1 9 M I C R O B I O L O G I A quorum sensing, cada um deles composto por dois genes principais que codificam uma enzima respon- sável pela síntese do auto-indutor (no caso uma AHL) e uma proteína R, que responde ao auto-indutor. Os complexos formados por auto-indutores e pro- teínas R desses dois sistemas controlam a expressão de genes necessários para a produção de enzimas, toxinas e produtos metabólicos secundários, como pigmentos. Além dessas características, os sistemas de quorum sensing presentes em P. aeruginosa regulam a for- mação de biofilmes, um tipo de comunidade organi- zada de bactérias mais resistente ao sistema imuno- lógico e a antibióticos. Muitas das características citadas, além de outras, são extremamente impor- tantes para a patogenicidade desse microrganismo. IMPORTÂNCIA BIOLÓGICA DO QUORUM SENSING Tem sido demonstrado que a presença de sistemas de regulação temporal de genes em bactérias gera mui- tas vantagens para esses microrganismos. Sistemas de quorum sensing parecem regular a expressão de dois grupos principais de moléculas microbianas: moléculas de superfície e moléculas extracelulares. Graças a esse sistema de regulação gênica, nos estágios iniciais de uma infecção bacteriana, são expressas preferencialmente as moléculas de super- fície, responsáveis pelo importante processo de ade- são e menos sensíveis à detecção pelo sistema imune (por não se espalharem pelo organismo). Nesse mes- mo momento, as moléculas extracelulares, mais im- portantes em etapas posteriores da infecção e mais facilmente detectadas pelo sistema imune (já que se espalham no corpo através da corrente sangüí- nea) são pouco expressas. Após o aumento do número de bactérias no processo infeccioso e, conseqüente- mente, o acúmulo de auto-indutores, o sistema de quorum sensing é acionado e a expressão de molé- culas de superfície é diminuída e as moléculas ex- tracelulares são preferencialmente expressas. As- sim, tem sido postulado que os sistemas de quorum sensing teriam como objetivo evitar a expressão pre- matura de fatores de virulência em bactérias. Sabe-se hoje que, para que um processo infeccioso seja detectado pelo sistema imunológico, é necessá- ria a presença no organismo de um número razoável de bactérias e de seus produtos. Além disso, quanto mais cedo um processo infeccioso é detectado, mais fácil e rápida será sua eliminação. Dessa forma, bactérias capazes de controlar sua expressão gênica e evitar a expressão precoce de seus fatores de viru- lência poderiam adiar o reconhecimento do processo infeccioso até que um número maior de bactérias esteja presente no organismo e, dessa forma, possa vencer a batalha com o sistema imune. Basicamente, a principal vantagem do uso de sistemas de quorum sensing por bactérias na regulação gênica seria a expressão de cada grupo de genes no momento mais benéfico para tais microrganismos. � Figura 3. Estrutura geral de uma molécula de acil-homoserina-lactona (AHL) – o radical ‘X’ pode ser oxigênio (O) ou enxofre (S) e o radical ‘R’ é uma cadeia acil lateral Figura 4. No quorum sensing, os auto-indutores, quando em concentração elevada, ligam-se a moléculas sensoras das bactérias (chamadas em geral de ‘proteínas R’), que atuam como reguladores da expressão de genes específicos prypi_000 Realce 20 • C I Ê N C I A H O J E • vol . 3 3 • nº 19 3 M I C R O B I O L O G I A ALVOS ATRAENTES PARA NOVAS TERAPIAS A descoberta de que diversos microrganismos utili- zam quorum sensing para controlar sua virulência revelou um alvo atraente para o desenvolvimento de novas terapias antimicrobianas. Além disso, esse campo de estudo abre enormes possibilidades de manejo de diferentes características microbianas em benefício do homem. O uso de sistemas de quorum sensing como alvo para terapia antibacteriana poderia ocorrer de diver- sas formas. Uma delas consistiria em bloquear a comunicação bacteriana através de auto-indutores, com o objetivo de impedir que as bactérias expres- sem seus fatores de virulência tornando-se, conse- qüentemente, inofensivas. Isso poderia ser obtido de diferentes formas, como (1) utilizando auto-indutores inespecíficos, que se ligariam à proteína R mas não a ativariam, e portanto impediriam a ligação de tais proteínas aos auto-indutores específicos; e (2) inter- rompendo as reações biológicas de síntese de auto- indutores através do uso de análogos de precursores dessas moléculas (figura 5). Essa intervenção em mecanismos bacterianos de quorum sensing poderia levar à descoberta de novas drogas capazes de combater microrganismos que têm demonstrado resistência aos antibióticos conhe- cidos. Parece ainda possível que o bloqueio desse sistema de comunicação celular seja usado para impedir a formação de biofilmes bacterianos, tor- nando as bactérias mais sensíveis a drogas e ao próprio sistema imunológico humano. Além de sua importância clínica, a utilização de intervenções nos sistemas de quorum sensing para o controle de microrganismos também seria de gran- de valia na agricultura. Muitas bactérias associadas a plantas apresentam sistemas de quorum sensing como parte de seus estilos de vida, sejam eles sim- bióticos ou patogênicos. Tem sido demonstrado que a introdução de genes responsáveis pela síntese de auto-indutores em plantas seria uma maneira efi- caz de estimular bactérias associadas a esses vege- tais a produzir antibióticos ou fixar nitrogênio. Tais atividadesevitariam que essas plantas fossem ata- cadas por bactérias patogênicas, e promoveriam seu crescimento através da fixação de nitrogênio, fenômeno biológico tão importante. Os auto-indutores produzidos por plantas pode- riam também ativar os sistemas de quorum sensing de bactérias causadoras de doenças. Com isso, se- ria estimulada a produção precoce de fatores de vi- rulência por essas bactérias, permitindo que o siste- ma de defesa das plantas reconheça e elimine mais facilmente a infecção. Outra possibilidade de uso do quorum sensing na agricultura seria a introdução de genes codificadores de enzimas que degradam auto- indutores em plantas, protegendo-as de infecções causadas por patógenos como E. carotovora. Sistemas de quorum sensing já foram identifica- dos em mais de 30 espécies de bactérias e, ao que tudo indica, o número de bactérias que utilizam tal fenô- meno para regular seus genes é provavelmente muito maior do que o conhecido hoje. Além disso, seres que há pouco nos pareciam tão simples e inferiores têm se mostrado mais complexos e sofisticados à medida que surgem resultados de novas pesquisas. Embora a descoberta da capacidade bacteriana de se comunicar e agir de modo coordenado seja incon- testável, também parece claro que os dados obtidos a respeito do assunto, até hoje, representam apenas uma parcela mínima de tudo o que ainda está por ser descoberto. Dessa forma, o estudo do quorum sensing representa não só uma possibilidade magnífica para o conhecimento mais aprofundado de organismos com os quais convivemos – de modo amistoso ou competitivo – durante toda a nossa vida, mas também uma chance promissora para o controle de doenças infecciosas que representam um grande risco à saúde e ao bem-estar humanos. � Figura 5. Os cientistas pensam em bloquear a comunicação das bactérias para que não expressem fatores de virulência, o que poderia ser obtido usando auto-indutores inespecíficos, que se uniriam à proteína R mas não a ativariam, evitando sua ligação a auto- indutores específicos (A), ou interrompendo as reações biológicas de síntese de auto-indutores através do uso de análogos de precursores dessas moléculas (B) Sugestões para leitura FUQUA, C. & GREENBERG, E. P. ‘Cell-to-cell communication in Escherichia coli and Salmonella typhimurium: they may be talking, but who’s listening?’, in Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 95, p. 6571, 1998. HARDMAN, A. M.; STEWART, G. S. A. B. & WILLIAMS, P. ‘Quorum sensing and the cell-cell communication dependent regulation of gene expression in pathogenic and non-pathogenic bacteria’, in Antonnie van Leeuwenhoek, v. 74, p. 199, 1998. HASTINGS, J. W. & GREENBERG, E. P. ‘Quorum sensing: the explanation of a curious phenomenon reveals a common characteristic of bacteria’, in Journal of Bacteriology, v. 181, p. 2667, 1999. KIEVIT, T. R. & IGLEWSKI, B. H. ‘Bacterial quorum sensing in pathogenic relationships’, in Infection and Immunity, v. 68, p. 4839, 2000.
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