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As catilinárias I e II

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ORAÇÃO I DE M. T. CÍCERO CONTRA L. CATILINA
Esta oração, pronunciada no dia 8 de novembro do ano 63 c C, é talvez a mais conhecida entre as orações de Cícero.
Cícero investe violentamente contra Catilina, que teve a ousadia de apresentar-se no Senado, embora todos saibam que um exército de revolucionários o espera na Etrúria, chefiado por Mânlio. Catilina mereceria a morte; porém Cícero não pede ao Senado que o processe. Roma pode ter a certeza que ele, Cícero, com a sua solêrcia, garantirá a liberdade do povo romano. Catilina, porém, deixe a cidade. Roma não quer mais saber dele, pois as suas culpas e torpezas são bem conhecidas. Deixe a cidade e, se quer, se junte aos seus companheiros, bem dignos dele, que o esperam para marchar contra Roma. Cícero não o teme, pois, com a ajuda deJúpiter Stator, o exterminará e, com ele a todos os inimigos da República.
Exórdio.
ATÉ quando, Catilina, abusarás de nossa paciência? quanto zombará de nós ainda esse teu atrevimento? onde vai dar tua desenfreada insolência? É possível que nenhum abalo te façam nem as sentinelas noturnas do Palatino, nem as vigias da cidade, nem o temor do povo, nem a uniformidade de todos os bens, nem este seguríssimo lugar do Senado, nem a presença e semblante dos que aqui estão? Não pressentes manifestos teus conselhos? não vês a todos inteirados da tua já reprimida conjuração? Julgas que algum de nós ignora o que obraste na noite próxima e na antecedente, onde estiveste, a quem convocaste, que resolução tomaste?
Oh tempos! oh costumes! Percebe estas coisas o Senado, o cônsul as vê, e ainda assim vive semelhante homem! Que digo, vive? antes vem ao Senado, é participante do conselho público, assinala e designa com os olhos, para a morte, a cada um de nós. E nós, homens de valor, nos parece ter satisfeito à República, evitando as suas armas e a sua insolência. Muito tempo há, Catilina, que tu devias ser morto por ordem de cônsul, e cair sobre ti a ruína que há tanto maquinas contra todos nós.
Porventura o insigne P. Cipião, Pontífice Máximo, não matou a Tibério Graco, por deteriorar um pouco o estado da República? e nós devemos sofrer a Catilina, que com mortes e incêndios quer assolar o mundo? Passo em silêncio aqueles antiquíssimos exemplos, de quando C. Servílio Ahala matou com sua própria mão a Spúrio Melo, que procurava introduzir novidade. Houve antigamente na República esta fortaleza de reprimirem homens de valor com os mais severos castigos seja ao cidadão pernicioso que ao cruelíssimo inimigo. Temos contra ti, Catilina, decreto do Senado veemente e severo; não falta conselho à República; nós, abertamento o digo, nós somos os que faltamos.
Poderes dos cônsules.
2. Decretou antigamente o Senado que Lúcio Opímio atendesse a que a República não recebesse algum detrimento; não se meteu uma só noite em meio que não fossem mortos C. Graco, de pai avô e antepassados nobilíssimos, e M. Fúlvio, consular, com seus filhos. Com semelhante decreto do Senado se entregou a República aos cônsules Caio Mário e Lúcio Valério; porventura tardou a República um só dia com a morte e suplício a Lúcio Saturnino, tribuno do povo, e a Caio Servílio, pretor? Mas nós há já vinte dias que consentimos se embotem os fios desta autoridade; temos o mesmo decreto do Senado, metido nas tábuas, como espada na bainha; segundo esta deliberação do Senado, Catilina, devias logo ser morto. Mas vives, e vives não para ceder, mas para te confirmar no teu atrevimento. Desejo, Padres Conscritos, ser clemente para convosco; desejo não ser cobarde em tamanhos perigos da República, mas a mim mesmo me condeno de inerte e culpado.
Há tropas na Itália contra a República, assentadas na garganta da Etrúria; cresce cada dia o número dos inimigos, mas o seu capataz e general o estamos vendo dentro de nossos muros, maquinando sempre a ruína da República. Se agora te mandasse prender, se te mandasse matar, mais receio que todos os bons dissessem que o fizera tarde, de que alguém que obrara cruelmente. Mas por certa causa não estou ainda resoluto a executar o que há muito devia ter feito. Matar-te-hei finalmente então, quando ninguém houver tão malvado, tão perdido, tão teu semelhante, que não confesse que isto se obrou com razão.
Enquanto houver quem se atreva a defe?i-der-te, viverás, e viverás como agora vives, cercado de muitas minhas fortes guardas, para que não te possa levantar contra a República; também os olhos e ouvidos de muitos, sem tu o sentires, te espreitarão, e guardarão como até agora o fizeram.
Planos da conspiração.
3. Portanto, Catilina, que podes mais esperar, se nem a noite com as suas trevas pode encobrir teus iníques congressos, nem a casa mais retirada conter com suas paredes a voz da tua conjuração? Se tudo se faz manifesto, se tudo sai a público? Crê-me o que te digo: muda de projeto, esquece-te de mortandades e incêndios; por qualquer parte te haveremos às mãos. Todos teus desígnios são para nós mais claros que a luz, o que bem é reconheças comigo. Não te lembras do que eu disse no Senado em 21 de Outubro, que Mânlio, ministro e sócio das tuas maldades, havia de estar armado em certo dia, o qual dia havia de ser o 26 de Outubro? Escapou-me, pois, Catilina, não só uma coisa tão horrível, mas nem ainda o dia? Eu mesmo disse que tu deputaras o dia 28 de Outubro para mortandade dos nobres; e então foi quando muitas das pessoas principais da cidade fugiram de Roma, não tanto por se salvarem, como por atalharem teus intentos. Poderás porventura negar-me que naquele próprio dia, por estares rodeado de minhas guardas e das minhas diligências, te não pudeste mover contra a República, quando, retirando-se os mais disseste que te contentavas com a minha morte? E quando esperavas tomar a Preneste por assalto de noite ao primeiro de Novembro, não achaste aquela colónia municionada por minha ordem, e com meus presídios, guardar e sentinelas? Nada obras, nada maquinas, nada cogitas que eu não só não ouça, mas veja e penetre claramente.
Catilina tentou matar Cícero.
4. Recorda-te enfim comigo desta última noite, e conhecerás que com maior cuidado velo eu para o bem da República do que tu para a sua destruição. Digo, pois, que foste na primeira noite pelos Falcá-rios para casa de Marco Leca (hei-de falar claro) onde concorreram muitos sócios da mesma loucura e perversidade; atrever-te-ás porventura a negá-lo? porque te calas? se ò negares convencer-te-ei; pois aqui estou vendo no Senado alguns que estiveram contigo. Deuses imortais! onde estamos? que República temos? em que cidade vivemos? Aqui, aqui, Padres Conscritos, entre nós, neste gravíssimo e santíssimo Conselho do Mundo, estão os que meditam a minha ruína, a de todos nós, a desta cidade e do universo. Eu cônsul, os estou vendo, e lhes peço parecer; e a quem com ferro devia acabar, nem siquer molesto com a voz. Estiveste pois, Catilina, naquela noite em casa de Leca; repartiste as regiões da Itália, determinaste para onde querias que cada um fosse, elegeste os que deixarias em Roma e os que levarias contigo; designaste os bairros da cidade para os incêndios, afirmaste que brevemente sairias de Roma, disseste que ainda demorarias um pouco, por estar eu ainda em vida; achaste dois cavaleiros romanos que te livraram deste cuidado, e te prometeram que pouco antes de amanhecer me matariam em meu mesmo leito. Tudo isto soube eu, apenas acabado o vosso congresso; fortifiquei e municionei minha casa com maiores guardas; não recebi os que pela manhã mandaste a saudar-me, vindo os mesmos, que eu tinha predito a pessoas de muito crédito que haviam de vir buscar-me naquele tempo.
Catilina deve sair da cidade.
5. Sendo tudo isto assim, Catilina, prossegue o que principiaste, vai-te enfim da cidade, abertas estão as portas, anda; há muito tempo te desejam por general aqueles teus acampamentos de Mânlio; leva contigo todos os teus, ou ao menos muitos deles, limpa esta cidade; já não podemos viver mais contigo, nem eu o posso sofrer, tolerar, consentir. Infinitas graças devo dar aos deuses imortais, e a esse mesmoJúpiter Stator, antiquíssimo protector desta cidade, de ter tantas vezes escapado a esta tão horrível torpe e prejudicial peste da República. Não convém que por causa de um homem perigue muitas vezes a República. Enquanto me armaste traições, Catilina, sendo eu cônsul designado, não me defendi com guardas públicas, mas com diligências particulares; quando nos próximos comícios consulares me quiseste matar, reprimi teus perversos intentos com o socorro dos amigos e soldados, sem tumulto algum; enfim todas as vezes que me acometeste, pessoalmente te resisti, posto que visse andar a minha ruína emparelhada com grande calamidade da República; agora já acometeste abertamente toda a República, os tempos dos deuses eternos, as casas de Roma, as vidas dos cidadãos, e em uma palavra, tocas a arruinar e destruir toda a [tália. Mas como não me resolvo ainda a pôr emobra o principal e próprio deste Império, executarei o que é de menor severidade e para o bem público mais proveitoso, pois se te mandar matar, ficará na República o demais esquadrão de conjurados. Se saíres (como te persuado há muito), ficará a República limpa desta enorme sentina de teus sócios. E duvida porventura, Catilina, mandando eu fazer o que já executavas de tua livre vontade? Manda o cônsul sair da cidade o inimigo. Perguntas-me se porventura para o desterro? não te mando; mas se me consultas, aconselho-te.
Os bons romanos odeiam Catilina.
6. Que coisa há ainda nesta cidade que te possa dar gosto, pois ninguém há que não te tema? fora desta conjuração de gente estragada, ninguém há que não te aborreça. Que nodóa de torpeza doméstica se não tem lançado na tua vida? que infâmia em matérias particulares se não tem amontoado sobre aqueles labéus? que lascívia de olhos, que atrocidade de mãos, que perversidade deixou jamais de haver em todo teu corpo? que mancebo houve, a quem não enredasses com atrativos viciosos, e a quem não conduzisses ou para insolências com armas, ou para dissoluções com incentivos? E que é o que há pouco obraste, quado com a morte da tua primeira mulher despojaste a casa para novas bodas? não acumulaste sobre esse delito outra incrível maldade? o que eu passo em claro, e de boa mente sofro se cale, para que não conste que existiu nesta cidade, ou se deixou sem castigo tão enorme crime. Passo em silêncio a perdição dos teus bens, que sabes te está iminente nos próximos Idos. Não falo no tocante às particulares ignomínias de teus vícios, nem na tua doméstica penúria e miséria, mas no que pertence ao governo da República, e à vida e proveito de todos nós. Pode porventura, Catilina, agradar-te a luz desta cidade, ou este ar que respiramos, sabendo que nenhum dos circunstantes ignora que no último de Dezembro, sendo cônsules Lépido e Fúlvio, estiveste armado no comício do povo? que ordenaste uma esquadra para matares os cônsules e pessoas principais da cidade? que não foi razão alguma ou temor que tivesses, mas a fortuna da República a que conteve a tua protérvia e desaforo? Mas deixo já isto que nem é ignorado, nem há muito cometido. Quantas vezes estando eu já eleito, quantas, sendo já cônsul, me quiseste matar? a quantos golpes, atirados de modo que pareciam ine-/ vitáveis, escapei eu, como lá dizem, com um pequeno desvio do corpo? Nada fazes, nada consegues, nada maquinas, que eu logo não saiba; e nem por isso cessas de levar por diante teus projectos e intentos. Quantas vezes te arrancaram já essa faca das mãos? quantas te caiu por acaso e escorregou? e ainda assim não podes estar muito tempo sem ela; na verdade, não sei a que sacrifícios a consagraste e dedicaste, que: julgas preciso cravá-la no corpo do cônsul. ,
A cidade exige a expulsão de Catilina.
7. E que vida é ao presente essa tua? falarei ra contigo, não como agastado com a ira que devo, mas movido da compaixão que não mereces. Há pouco chegaste ao Senado; em um tão grande congresso, qual de teus amigos e parentes te saudou? não havendo memória que tal jamais sucedesse a ninguém, esperas que te afrontem de palavra, sendo já condenado pelo gravíssimo juizo desta tacidurnidade? Que foi isto que assim que chegaste se evacuaram estas ordens de assentos? que vem a ser que assim que te sentaste, todos os consulares, que designaste para a morte, deixaram devoluta e nua esta parte de assentos? Enfim de que ânimo julgas levar isto? Por certo que se os meus servos me temessem da sorte que a ti temem os teus patrícios, abandonaria sem demora a própria casa; e tu ainda te não resolves a deixar a cidade? Se eu me visse tão gravemente suspeito e ofendido de meus cidadãos, antes quereria carecer da sua presença, que sofrer que com tão maus olhos me vissem todos. E tu, conhecendo pelo próprio remorso de teus delitos esta justa e geral indignação, que há tanto mereces, ainda duvidas retirar-te da vista e presença daqueles que te não podem suportar nem ver? Se teus pais se temessem de ti e te aborrecessem, e os não pudesse sem nenhum modo aplacar, creio te retirararias de seus olhos para outra parte; pois, agora que a pátria, mãe comum de todos nós, te aborrece e teme, não julgando de ti outra coisa senão que meditas o seu parricidio, porque não respeitarás a sua autoridade, seguirás o seu juizo, temerás o seu poder? Ela é a que, como falando contigo, te diz desta sorte: Muitos anos há que não houve maldade que não viesse de ti, nenhum delito sem ti; em ti só não se castigou a morte de muitos cidadãos, as opressões e roubos de nossos aliados. Não só tiveste poder de infrigir as leis e as causas, mas de as abolir. Ainda que tudo isto não se devia tolerar, ainda assim o sofri como pude; mas o estar eu toda em temor unicamente por teu respeito, o temer-se a Catilina com qualquer rumos que haja, o nâo se poder tomar conselho algum contra mim, que não dependa da tua protérvia, não se deve levar à paciência. Portanto, vai-te já daqui, livra-me deste temor, se bem fundado para não estar oprimida, se vão para deixar de temer.
O Senado e Catilina.
8. Se, como disse, a pátria te disesse estas coisas, não mereceria conseguir sua pretensão, ainda que a não pudesse conseguir com força? Por que motivo tu próprio te foste entregar à prisão? Com que fim disseste que, por evitar suspeitas, querias morar em casa de Marco Lépido, do qual não sendo recebido, te atreveste a vir também comigo e pedir-me te recolhesse em minha casa? E recebendo de mim por resposta que em nenhum modo podia estar seguro contigo dentro das mesmas paredes, havendo grande risco ainda dentro dos mesmos muros, buscaste a Quinto Metelo, pretor, do qual repudiado, passaste para casa do teu companheiro, o excelente varão Marco Marcelo, a quem avaliaste de suma diligência para te guardar, de suma sagacidade para vigiar e de sumo valor para te vingar. Mas quão longe deve estar do cárcere e prisão quem se julga a si mesmo digno dela? Sendo isto assim, Catilina, não podendo aqui viver com ânimo socegado, duvidas ir-te para alguma terra e entregar à fugida uma vida salvada de muitos castigos justos e merecidos? Já que assim — dizes tu — propõe isso ao Senado. E se esta ordem resolver que vás para o desterro, prometes obedecer-lhe? Não proporia tal, por desdizer de meus costumes, mas ainda assim o farei, para que saibas o que eles julgam de ti. Sai já de Roma, Catilina, livra de temor a República; se esperas por este preceito, parte já para o desterro. Pois que, Catilina, que atendes? que consideras no silêncio dos circunstantes? Sofrem, calam-se; para que esperas que falem com autoridade aqueles que bem te dão a conhecer a sua vontade calando? Se eu dissesse semelhantes coisas a este óptimo mancebo Públio Séxtio, ou ao meritíssimo Marco Marcelo já o Senado a mim cônsul me faria violência, e com razão me poria as mãos; mas quanto a ti, Catilina, quando se acomodam, aprovam; quando sofrem, determinam; quando calam, clamam; nem só estes, cuja autoridade amas e vidas desprezas, mas também aqueles honradíssimos cavaleiros romanos e os outros cidadãos de valor que rodeiam o Senado, cujo concurso pouco há que pudeste ver, conhecersua vontade, e ouvir suas palavras, cujas mãos e armas há muito que mal posso conter, que vão sobre ti, fácil me é persuadi-los te acompanhem até as portas, como a quem deixa o que há muito deseja destruir.
Cícero prevê os ódios contra si.
9. Mas para que falo eu? para que te contenhas? para que te emendes? para que cuides em fugir? para que tragas ao pensamento algum desterro? Oxalá te metessem tal na cabeça os deuses imortais! Ainda que vejo que, se aterrado com estas minhas vozes, te resolveres a desterrar-te, quanta tempestade de ódio mio virá sobre mim por causa da fresca memoria das tuas maldades, se não for agora, ao menos para o futuro; mas eu o estimo muito, contanto que a calamidade seja particular e fique salva a República do perigo. Mas não há que pretender te façam abalo teus vícios, que te amedrontem os castigos das leis, que cedas às calamidades da República; nem tu és sujeito de qualidade a quem o pejo desvia da lorpeza, dos perigos o temor, ou da insolência a razão. Portanto, como já disse repetidas vezes, vai-te daqui; e se, como dizes, porque sou teu inimigo me queres exasperar, caminha direito para o desterro; grande tempestade de censuras e malquerenças tenho que sofrer, se por mandado do cônsul fores desterrado; mas eu os sofrerei. Porém se não queres concorrer para o meu crédito e glória, sai com essa enorme quadrilha de perversos; parte para Mânlio, subleva cidadãos perversos, separa-te dos bons, peleja contra a pátria, regozija-te com essa ímpia quadrilha, de modo que não pareça te desterro para os estranhos, mas que os teus te convidam à sua companhia. Maspara que te convido eu, sabendo que já mandaste os homens que te esperam armados na Praça Aurélia; labendo que com Mânlio tens aprazado dia certo; e que remeteste adiante aquela águia de prata a que levantaste altar em tua casa, a qual creio te há-de ser funesta a ti e a todos os teus. Como poderás agora, indo a essas mortandades, carecer muito tempo daquela a quem costumavas venerar, de cujos altares passaste muitas vezes essa ímpia mão direita para homicídios de cidadãos?
Catilina que vá junto dos seus amigos.
10. Irás enfim algum dia para onde há muito te arrebata essa desenfreada e louca ambição, o oue te não dá pena, mas gosto excessivo; pois para esse desvario te gerou a natureza, adestrou a vontade e guardou a fortuna; nunca tu desejaste não digo já ócio, mas nem ainda guerra, senão iníqua, agrega" do um exercito de gente perdida e desesperada de toda a fortuna e esperança. Que alegria não será ali a tua? quão escessivo o prazer? com que júbilo não folgarás loucamente, quando nessa tua aluvião de gente não vires um só homem de bem? Para semelhante modo de vida se encaminharam aqueles teus laboriosos exercícios, que se contam, de jazeres para executar e manter adultérios e abominações; velar não só para armar traições ao sono dos maridos, mas também aos cabedais dos ociosos. Terás onde ostentar aquele teu ilustre sofrimento de fome, frio e penúria de tudo, com que brevemente te verás consumido. Tanto como isto aproveitei, quando te exclui do consulado, para que antes perseguisse a Repúblicadesterrado, do que a vexasse cônsul, e para que o que iniquamente empreendeste mais se chamasse latrocínio do que guerra.
Cícero não teme o ódio ou os perigos e cuida da salvação da pátria.
11. Agora, Padres Conscritos, para desterrar c repelir de mim uma quasi justa queixa da pátria, concedei toda a atenção ao que vos vou dizer, e o imprimi bem em vossos ânimos e memória. Se a pá-tria, pois, (que amo mais do que a vida) se toda a Itália e toda a República me dissessem: Que fazes, Marco Túlio? consentes se vá embora aquele que sabes ser inimigo, aquele que vês há-de-ser o general de uma iminente guerra, a quem sabes o esperam por seucapitão os arraiais inimigos, o autor desta protér-via, o príncipe dos conjurados, o sublevador dos servos, o arruinador das cidades, parecendo deste modo não que o lançaste fora da cidade, mas que o mandaste vir contra ela? Por que não o mandaras antes prender, matar e punir com o último suplício? Que é que te impede? Porventura o costume dos maiores? Não sucedeu poucas vezes castigarem os particulares COm pena de morte a cidadões perversos. Porventura as leis que estabelecem o castigo de cidadões roma-nos? Nunca nesta cidade lograram foro de cidadãos os que se rebelaram contra a República. Temes acaso o ódio da posteridade? Notável agradecimento dás ao povo romano, pois não sendo conhecido senão pelos teus predicados pessoais, sem nenhuma recomendação de antepassados, te elevou tão velozmente por todos os graus de honra ao supremo governo, se por atenção a ódio ou temor de algum perigo fazes pouco caso do bem dos teus concidadãos. E se algum temor tens de ódio, não é mais para temer que aborreçam a cobardia e protervia, do que a severidade e valor? Porventura quando a guerra assolar a Itália, quando as cidades forem vexadas, e arderem os edifícios, parece-te que não arderas tu então no incêndio do ódio?
Os motivos pelos quais Cícero não reputa acertada a condenação à morte de Catilina.
12. A estas justíssimas razões da República e daqueles cidadãos que sentem o mesmo, responderei eu em poucas palavras. Se eu, Padres Conscritos, tivesse por mais acertado condenar à morte a Catilina, não concedera a este gladiador uma só hora de vida. Porque se os outros heróis e nobilíssimos cidadãos se não contaminaram, mas honraram com o sangue de Saturnino, dos Gracos e de Flaco, por certo não teria eu de recear que, morto este parricida de cidadãos me resultassem daqui ódios para a posteridade; e ainda que os visse iminentes sobre mim, sempre assentei reputar por glória malquerenças resultadas de obras de valor. Contudo, há alguns nesta ordem que ou não vêem o que está para vir, ou se o vêem, dissimulam; os quais fomentaram as esperanças de Catilina com brandas sentenças; e, não dando crédito à conjuração, a arreigaram à nascença; cuja autoridade, seguindo outros muitos não só perversos, mas ignorantes, diriam se eu o castigasse, que obrara com tirania e despotismo. Agora porém entendo que quando ele chegar aos arraiais de Mânlio, para onde caminha, não haverá ninguém tão insensato que não conheça estar feita a conjuração, ninguém tão ímprobo que o não confesse. Mas morrendo ele só, creio que só por um pouco se poderá reprimir esta ruína da República, e não acabar inteiramente. Se der consigo daqui fora, levando de companhia os seus e, agredando de toda parte os desgarrados, os levar para o mesmo lugar, extinguir-se-á não só esta enorme peste da República, mas a mesma semente e geração de todos os perversos.
Peroração. Invocação a Júpiter.
13. Muito tempo há, Padres Conscritos, que andamos metidos nestes perigos de conjurações e traições; mas não sei por que causa os frutos de todas as maldades e insolências brotaram em tempo do meu consulado. Se porém de tão grande corrupção for morto só este, entendo que só por um pouco tempo íicaremos livres de cuidado e temor, e durará o pe-rigo e ficará reconcentrado nas veias e entranhas da Kepública. Assim como os enfermos de doença grave, que padecem frio e febre, bebendo água fria, ao princípio parecem ficar aliviados, mas depois se sentem muito mais aflitos, assim esta enfermidade da República, se a aliviarmos com o castigo deste, ficando vivos os mais, se agravará com maior veemência. Portanto, Padres Conscritos, retirem-se os perversos, separem-se dos bons, juntem-se a uma parte; enfim, como já disse muitas vezes, dividam-se de nós com o muro; cessem de armar traições ao cônsul em sua casa, de cercar a morada do pretor de Roma, de rondar com armas o Senado, de juntar feixes e archotes para abrasar esta corte, enfim traga cada um escrito no rosto o que sente da República. Eu vos prometo, Padres Conscritos, que tanta será em mim a diligência, tanta em vós a autoridade, tanto nos cavaleiros romanos o valor, tanta em todos os bons a concórdia, que com a retirada de Catilina tudo vejais manifesto, ilustrado, suprimido, vingado. Com estes prognósticos e sumo proveitoda República parte já Catilina, com essa tua pestilencial quadrilha de protervos, que se agregaram com todo o gênero de maldades e parricidios para essa ímpia e execranda guerra. Então, Júpiter Stator, que aqui foste colocado por Rómulo com os mesmos auspícios com que fundou esta cidade, e a que com verdade chamamos Stator desta corte e Império, o apartarás e a seus sócios de teus altares e templos, dos edifícios da cidade e seus mu-muros, das vidas e bens dos cidadãos, e a todos os inimigos dos bons, a todos os adversários da pátria, a todos os ladrões da Itália, juntos entre sí com o vínculo de seus delitos e abominável sociedade, vivos e mortos os castigarás com eternos suplícios.
 
Tradução do Padre Antônio Joaquim. Fonte: Atena Editora, 1938.
ORAÇÃO II DE M. T. CÍCERO CONTRA L. CATILINA
Pronunciada no dia 9 de novembro, isto é somente um dia depois da primeira, numa assembléia popular, é a segunda catilinária uma das mais perfeitas, do ponto de vista estético, entre as orações de Cicero. Catilina, amedrontado pela acusação do cônsul, resolveu deixar a cidade e juntar-se a Mânlio, Esta fuga é uma confissão de culpa, e como tal Cícero a interpreta e comenta. Defende-se de duas acusa ções que lhe podem ser imputadas: a de excessiva indulgência, por ter deixado fugir a Catilina, e a deexcessiva severidade por ter constrangido ao exílio um cidadão romano, sem ter as provas da sua culpa.
Descreve, depois, Cícero as categorias de cidadãos que estão do lado dos conjurados. Contra essa gente, contra esses degenerados não há dúvida nenhuma queos homens de bem que defendem a liberdade, terão vitória certa e esmagadora.
Exórdio. Cícero felicita-se pela fuga de Catilina.
ENFIM romanos, lançado tenho fora, despedido e seguido na saída, com minhas palavras, a Lúcio Catilina, que insolentemente se enfurecia, respirando atrocidades e maquinando perfidamente a ruína da pátria. Já alfim se foi, retirou, escapou e arremessou daqui fora; já aquele monstro e abismo de maldade não forjará perdição alguma contra estes muros, dentre deles. Vencido temos por certo a este único general da guerra civil; já não andará entre nós aquele punhal; já não o temeremos no campo, nem no foro, nem no Senado, nem enfim dentro de nossas domésticas paredes. Excluído ficou do seu posto, quando foi lançado da cidade; já faremos justa guerra com o inimigo, sem que ninguém o impida. Deita-tamos sem dúvida a perder o homem e o vencemos gloriosamente, quando de ocultas traições o lançamos em um manifesto latrocínio. E se não levou a espada ensanguentada, como queria, se saiu, ficando nós vivos, se lhe arrancámos as armas das mãos, se deixou salvos os cidadões e em pé a cidade, com que tristeza vos não parece ficaria êle aflito e acabrunhado? Agora derribado está, romanos, e vendo-se destruído e rechaçado, certamente volve muitas vezes os olhos a esta cidade, chorando de não a ter podido tragar; e ela me parece estar-se alegrando de ter vomitado e lançado fora esta horrenda peste.
Catilina saiu da cidade. Os seus amigos, porém, ficaram em Roma.
2. Porém se alguém há de tal génio (qual convinha que todos tivessem) que disto mesmo, de que a minha oração se alegra e triunfa, me acuse fortemente, por não ter antes prendido do que lançado fora tão capital inimigo, não é esta culpa minha mas dos tempos. Muito há que convinha ter morto e castigado a Catilina com grandíssimo suplício, segundo de mim Ò requeria o costume dos maiores, a severidade deste Império e a República. Mas quantos julgais haveria que não dariam crédito ao que eu denunciasse? quantos néscios vos parece se não haviam a capacitar? quantos o defendariam? quantos com maldade lhe dariam favor? Se dando cabo dele entendesse ficáveis livres de perigo, muito há que eu tivera morto a Catilina, não só com risco de ódios, mas da própria vida; porém como via que nem todos tínheis ainda isto por certo, e que se o punisse de morte, como merecia, oprimido com inimizade, não poderia eu per-seguir a seus sócios, reduzi o negócio a estes termos, de poderdes pelejar quando vísseis claramente o inimigo; cujo inimigo podereis conhecer quanto eu o julgo digno de temor, de sentir que saia da cidade pouco acompanhado. Oxalá que êle levasse consigo todas as suas tropa. Levou-me a Tongilo que êle começou a amar desde a meninice; a Publício e Mu-nácio, que carregados de dívidas que contraíram por glutões, nenhum medo podiam meter à República. E que casta de homens deixou êle? não são os mais endividados, sem poder, sem nobreza?
Os armados de Catilina não devem ser temidos.
3. Portanto, com estas legiões gaulesas, e com estas levas de soldados que Quinto Metelo fez no capo Piceno e Galicano, e com estas tropas que agregamos cada dia, em sumo desprezo tenho aquele exér-vito amontoado de velhos estropiados, camponeses licenciosos e rústicos estragados; daqueles, que antes quiseram não comparecer em juizo do que deixar de seguir aquele exército; aos quais se eu lhes mostrar, não digo o poder do nosso exército, mas o édito do pretor, ficarão aterrados. Antes eu quisera que tivesse levado consigo a estes que vejo andar vagando pela praça, estar junto à cúria e vir ao Senado; que reluzem com unguentos e brilham com galas; os quais, se aqui ficaram estais certos que não deveis temer tanto aquele exército como a estes que o desampararam. E ainda estes se devem temer mais, por uma razão particular, qual é pressentirem que eu sei o que meditam, e nem assim se moverem. Sei a quem foi cometida a Apúlia, a quem coube a Etrúria, a quem o campo Piceno, a quem o Galicano, quem requereu para si as traições domésticas de mortandades e incêndios desta cidade; sabem que todas as deliberações da noite antecedente me foram noticiadas; manifestei-as ontem no Senado; fugiu o mesmo Catilina; estes que esperam? muito se enganam se esperam que dure sempre a minha brandura.
Felicidade da República pela fuga de Catilina.
4. Tenho conseguido o que desejava, isto é, que todos vós conhecêsseis estar formada a conjurarão contra a República, salvo se há quem se persuada que os semelhantes de Catilina não sentem como Catilina. Já não tem lugar a brandura, a mesma ma-téria está clamando por severidade; uma coisa lhe concedo ainda: saiam, retirem-se, não consintam que 0 infeliz Catilina se consuma com saudades suas; mostrar-lhes-ei o caminho; tomou pela estrada Auré-lia; se quiserem apressar-se, o alcançarão de tarde. Oh afortunada República, em lançar fora esta sentina da cidade. Por certo que com esta só retirada de Catilina me parece ficou aliviada e contente a Repú-clica. E que maldade ou crime se pode fingir nem escogitar que não concebesse? Que venéfico, que briguento, que ladrão, que assassino, que parricida, que falsificador de testamentos, que onzeneiro, que lascivo, que dissoluto, que adúltero, que meretriz, estragador da mocidade, que vicioso, que perdido é possível achar em toda a Itália que não confesse ter vivido com Catilina familiarissimamente? Que homicídio se fez nestes anos sem ele? Houve sujeito algum que fosse de tanto tropeço à mocidade, como ele? ora amava a um com suma torpeza, ora servia ao amor de outros abominavelmente; a estes prometia o fruto da sua desonestidade, àqueles a morte de seus pais, não só compelindo-os, mas ajudando-os. E com que presteza não juntou da cidade e dos campos uma aluvião de gente perdida? Não houve, não digo já em Roma, mas em canto algum da Itália, homem acabrunhado de dívidas, a quem não convocasse para esta inaudita e atroz conspiração.
Os inimigos da pátria serão punidos.
5. E para que conheçais os seus diversos exercícios em várias classes de matérias, não há gladiador distinto por seu atrevimento que não confesse ter sido amigo de Catilina; nenhum comediante leviano e depravado que não diga fora seu companheiro. Contudo, a um sujeito assim acostumado a adultérios e maldades, e a sofrer fome, sede e vigílias, o aclamavam eles por valeroso, quando empregava os subsídios e os instrumentos da virtude na luxúria e na ousadia. Se estes seus sócios o seguirem, se dacidade sairem infames aluviões de homens desesperados, que felizes nós, que afortunada a República, que ilustre e nobre será o meu consulado! Não são já medianas as dissoluções destes homens, nem humanos e toleráveis os seus atrevimentos; nada cogitam senão mortes, incêndios, roubos. Estragaram seu patrimônio, consumiram em comezainas seus bens, há muito que a fazenda e há pouco o crédito lhes começou a faltar; permanece porém a luxúria que possuíam em abundância. Se no vinho e jogo buscassem somente glutonerias e meretrizes, nada deles se podia esperar, contudo se deviam sofrer; mas quem levará em paciência que homens cobardes armem traições a varões fortíssimos, os estultos aos mui prudentes, os glutões aos sóbrios, os sonolentos aos vigilantes; os quais pondo-se à mesa em banquetes, abraçados com mulheres impudicas, lânguidos com o vinho, oprimidos de fastos, coroados de flores, untados de pomadas, debilitados com adultérios, arrotam em seus falares mortandades de bons e incêndios da cidade? A estes creio estar iminente alguma fatalidade, e próximo, ou que certamente se lhe vem chegando, o cas-tigo devido à sua protervia, maldade, insolência e desonestidade; e se o meu consulado o puder arrancar, pois os não pode sarar, se propagará a República não por pouco tempo, mas por muitos séculos. Não há nação alguma a que ao presente temamos; não há rei que possa fazer guerra ao povo romano; todas as coi sas externas estão em sossego por terra e por mar, pelo valor de um só homem; a guerra doméstica é a que persiste, dentro estão as traições, dentro está o peri-go, dentro o inimigo; com a luxúria, com a loucura, com a insolência temos de pelejar. Desta guerra, romanos, me declaro por general; sobre mim tomo a raivade homens perdidos; o que de algum modo se pode curar, o curarei; o que se houver de cortar, não consentirei se difunda em prejuízo da cidade. Portanto, ou saiam ou se aquietem; e se persistem na cidade com a mesma tenção, bem podem esperar o que merecem.
Catilina foi juntar-se a Mânlio.
6. Mas ainda há, romanos, alguns que dizem que Catilina fora por mim desterrado; os que semelhante coisa dizem, os desterraria eu, se o pudesse conseguir com minhas palavras. Não pôde aquele timorato e modestíssimo homem sofrer a voz do cônsul, que o mandara ir para o desterro; obedeceu, foi. Ontem, romanos, depois que por pouco não me mataram em minha casa, convoquei o Senado para o templo de Júpiter Scator, onde relatei o sucedido aos Padres Conscritos; concorrendo ali Catilina que senador houve que o nomeasse? quem o saudou? quem enfim deixou de olhar para ele, como para um cidadão perdido, ou, para melhor dizer, um execrando inimigo? Além disto, os principais daquela ordem deixaram vaga e nua aquela parte dos assentos, onde ele se chegou. Então eu, aquele cônsul rigoroso que com palavras desterra os cidadãos, perguntei a Catilina se na sua assembléia nocturna estivera ou não na Casa de Marco Leca; e, como aquele atrevidíssimo homem, convencido da sua própria consciência, se calasse, manifestou o demais: disse-lhe o que obrara naquela noite, onde estivera, que determinara, como estava delineada toda a forma da guerra. Hesitando ele e parando, lhe perguntei porque duvidava ir para onde havia tanto tinha determinado; sabendo eu ter ele enviado adiante armas, machados, feixes, trombetas, estandartes e aquela águia de prata a que fez altar em sua casa. Impeli para o desterro aquele que via ter já principiado a guerra? Mas julgo que este Mãnlio (o centurião que assentou arraiais no campo de Fésulas) em seu nome publicou a guerra ao povo romano; que aqueles arraiais não esperam agora a Catilina por seu general; e que ele, desterrado, caminhará, segundo dizem, para Marselha, e não para aqueles arraiais?
Cícero é disposto a tudo sofrer para que a República se salve.
7. Infeliz sorte é a de quem administra e conserva a República. Se agora Catilina, embaraçado e atónito com minhas resoluções, trabalhos e perigos, e repentinamente aterrado, mudar de parecer, desamparar os seus, se deixar do projeto de fazer guerra, e deste caminho que levava para atrocidades e pelejas voltar os passos para a fugida e o desterro, não se há de dizer que eu o despojei de armas insolentes, nem que fora atónito e aterrado com minhas diligências, nem repelido de suas esperanças e pretensões, mas que, sem ser condenado e inocente, o desterra o cônsul com a violência e ameaças; e ainda haverá quem, fazendo-o ele assim, o não tenha por perverso, mas digno de compaixão, e a mim não por cônsul diligentíssimo, mas cruelissimo tirano. Muito estimo, romanos, experimentar a borrasca desse ódio sem causa e injusto, contanto que vós fiqueis livres do perigo desta horrível e execranda guerra. Diga-se embora que eu o lancei, contanto que vá para o desterro; mas credê-me que não há de ir. Nunca eu, romanos, por me livrar de malquerenças, chegarei a pedir aos deuses imortais que ouçais que Catilina vem capitaneando exército inimigo e discorre armado pela campanha, mas ainda assim dentro de três dias o ouvireis. Muito mais temo que em algum tempo se irem, pelo não ter antes lançado por força, do que de o ter despedido; mas se há sujeitos que, tendo-se ele ido, dizem que fora lançado, se fosse morto que diriam? ainda que os que dizem que Catilina fora para Marselha, não tanto se queixam disto como o receiem. Nenhum destes é tão compassivo que não queira antes que ele vá para Mânlio, do que para Marselha. Mas se o que ele obra o não considerasse primeiro, por certo que antes quereria ser morto no roubo do que viver desterrado; agora porém, que nada lhe tem sucedido fora da sua vontade e pensamento, excepto o sair de Roma, ficando nós vivos, antes desejamos que vá para o desterro do que nos queixemos disso.
As classes de cidadãos nocivos à República.
8. Mas para que falo tanto tempo de um inimigo, e tal inimigo que confessa que o é, e a quem não temo, porque um muro está no meio, como sempre desejei? Destes que ficam em Roma, que estão conosco, não dizemos nada? Na verdade, sendo possível, eu os não desejo tanto castigar como sarar e reconciliar com a República; nem sei porque não possa ser, se me quiserem ouvir. Expor-vos-ei pois, romanos, os gêneros de homens de que se formam estes esquadrões; e depois aplicarei a cada um o remédio que puder, com meu conselho e oração. Os primeiros são aqueles que, tendo grandes dívidas, têm ainda maiores cabedais, de cujo amor prendidos se não querem soltar. A classe desses homens é muito honrada, pois são ricos; mas a sua vontade e causa desaforada. Tu com campos, tu com propriedade de casas, tu com dinheiro, tu com família, tu adornado e abondante de tudo e duvidas cortar pelas tuas posses e recobrar o Crédito? Que é o que esperas? a guerra? para que? julgas que na assolação geral de tudo há-de ser privilegiados os teus bens? Esperas novas tábuas? Enganam-se os que as esperam de Catilina. Por benefício meu saíram a público novas tábuas, mas para se venderem os bens em almoeda; nem estes que têm posses se podem de algum outro modo livrar das dí v idas; e se já se tivesse resolvidos a fazê-lo e não qui sessem pagar as usuras com o fruto dos seus prédios, teríamos agora mais ricos e melhores cidadãos. Mas parece-me que estes homens se não devem temer, porque, ou se podem apartar desta opinião ou se persis tem nela, mais me parece que farão súplicas à Re publicar, do que tomarão armas contra ela.
Segunda e terceira classes de cidadãos nocivos.
9. Outro gênero é o daqueles que, carregados de dividas, esperam contudo, e querem mandar e governar, crendo que, perturbada a República, conseguirão as honras que não podem obter com ela sossegada. Aos quais me parece se deva intimar isto unicamente, como a todos os mais, a saber, que tirem o sentido de poder obter o que pretendem; primeiramente, porque eu sou o que velo, presido e governo a República. Além disto, porque há ânimos grandes nas pessoas de probidade, grande concórdia, grande multidão, grandes tropas de soldadesca; enfim, porque os deuses imortais presentes hão-dedar auxílio a este invicto povo, nobilíssimo Império e formosíssima cidade, contra tão enorme maldade. E no caso que cheguem a conseguir o que desejam com a maior insolência, porventura esperam nas cinzas da cidade o sangue dos cidadõos, seus cônsules, ditadores ou ainda reis, conforme o deseja seu ânimo perverso e malvado? Não vêem que, se conseguirem o que desejam, forçosamente o hão-de conceder a algum foragido ou gladiador?
O terceiro gênero é de idade já avançada, mas robusta com o exercício; a cujo gênero pertence o mesmo Mânlio, a quem sucede agora Catilina. São estes homens daquelas colónias que Sila constituiu em Fésulas, as quais entendo serem todas de optimus cidadãos e varões fortíssimos; mas estes são camponeses que com dinheiros inesperados e repentinos se ostentam com grande pompa; estes são os que ao mesmo tempo edificam como afortunados, se gloriam com prédios, liteiras, numerosas famílias, aparatosos banquetes, encravando-se em dívidas, de sorte que se quiseram se ver livres delas, têm de ressuscitar a
Sila da sepultura; os quais foram também os que meteram a alguns rústicos pobres e necessitados em esperança daquelas rapinas. A uns e outros ponho do mesmo gênero de ladrões e roubadores; e os aconselho que cessem de seus furores e tirem o pensamento de banimentos e ditaduras. Tão escaldada está esta cidade do que lhe sucedeu naqueles tempos, que me parece não só os homens, mas nem ainda os brutos sofrerão tal coisa.
Quarta e quinta classes de cidadãos nocivos.
10. 0 quarto gênero é na verdade vário, mesclado e turbulento: estes há muito se vêem oprimidos de modo que nunca levantaram a cabeça; dos quais uns por inércia, outros por má administração de bens, e outros também por gastos, perigam por dívidas an-tigas; e, cansados de citações, condenações e pinho-ras, se diz passaram muitos da cidade e dos campos para aqueles arraiais. A estes não tenho eu tanto por soldados valerosos como negadores brandos. Se estes homens não podem subsistir, caiam, mas de sorte que não só a cidade, mas nem ainda os seus vizinhos pró ximos o sintam; não entendo por que causa, não podendo viver com decoro, querem morrer com infâmia; ou por que razão se capacitam será menor a sua dor morrendo acompanhados do que sós.
O quinto gênero é de parricidas, brigões e de-mais facinorosos; os quais eu não separo de Catilina,se não podem arrancar dele; morram embora na quadrilha já que são tantos que não cabem no cárcere. O último gênero de homens é não só no número, mas da mesma geração e vida própria de Catilina, da sua escolha e ainda da sua amizade e afeto; estes são os que vedes de cabelo penteado, polidos, sem barba ou bem barbados, com túnicas de mangas e talares, vestidos de véu e não de togas; cuja industriosa vida e laborioso desvelo todo se manifesta nas ceias das madrugadas. Nestes rebanhos andam todos os jogadores, todos os adúlteros, todos os impuros e desonestos; estes meninos não lépidos e delicados não só aprendem a amar e ser amados, a cantar e dançar, mas também a esgrimir punhais e ministrar venenos; se estes não sairem e perecerem, ainda que Catilina pereça, sabei que haverá na República este seminário de Catilina. Mas que pretendem estes infelizes? Porventura hão-de levar consigo as suas mulherzinhas para os arraiais? como poderão estar sem elas, principalmente nestas compridas noites? Como poderão aturar o Apenino e aquelas saraivas e neves? salvo se julgam sofrerão mais facilmente o inverno, por terem aprendido a dançar nús nos banquetes? Que temerosíssima guerra, quando Catilina se achar com esta coorte de lascivos!
Os virtuosos combatem contra os nocivos.
11. Aparelhai agora, romanos, contra tão ilustres tropas de Catilina os vossos presídios e os vossos exércitos; oponde primeiramente àquele estropiado e consomido gladiador os vossos cônsules e generais; e contra aquela esquadra de arrogantes e fracos naufragrantes levai a flor e valentia de toda a Itália; as cidades das colónias e municípios competirão com as rústicas aluviões de Catilina. Quanto às demais tropas, adornos e presídios vossos, eu me não atrevo a compará-los com a penúria e miséria daquele ladrão. Porém, se deixadas estas coisas de que abundamos, ele necessita de Senado, de cavaleiros romanos, de cidade, de erário, de tributos, de toda a Itália e de todas as províncias, e das nações estrangeiras; se deixadas, digo, estas coisas, quisermos que contendam entre sí as mesmas causas litigantes, daqui mesmo poderemos conhecer quão prostrados eles estejam. Desta parte peleja o rubor, daquela a dissolução; daqui a piedade, dali a protervia; daqui a lialdade, dali a perfídia; daqui a constância, dali a insolência; daqui a honestidade, dali a torpeza; daqui a continência, dali a luxúria; daqui enfim a justiça, a temperança, a fortaleza, a prudência e todas as virtudes pelejam com a iniquidade, com a lascívia, com a cobardia, com a temeridade e com todos os vícios; e por último a abundância com a pobreza, a recta razão com a sem-razão, o bom juízo com a demência, e a boa esperança com a desesperação de todas as coisas. Em semelhante contenda a batalha, ainda que faltem as diligências dos homens, porventura os mesmos deuses imortais não darão favor para que estas preclaríssimas virtudes vençam a tantos e tão enormes vícios?
Defendam, os romanos, as suas casas.
12. Sendo isto, assim, romanos, defendei, como já vos disse as vossas casas com guardas e vigias; quanto a mim, tenho dado as ordens e providências precisas sobre a segurança da cidade, sem incômodo vosso nem tumulto algum. Todos os das colónias e municípios, certificados por mim desta invasão nocturna de Catilina, facilmente defenderão suas cidades e contornos. Os gladiadores, de que agregou o maior esquadrão, que entende ser seguríssimo, posto que estejam de melhor ânimo que parte dos patrícios, contudo serão reprimidos pelo nosso poder. Quinto Metelo, a quem eu, antevendo isto, mandei diante para o campo Piceno e Galicano, ou dará cabo do homem ou atalhará todos seus movimentos e pretensões; do mais que se deve determinar, obviar e executar darei logo parte ao Senado, que já vedes convocar-se. Quanto aos que ficaram em Roma e nela foram deixados por Catilina, certamente para ruína da cidade e de todos vós, posto que sejam inimigos, como nasceram cidadãos, os quero uma e outra vez admoestar. Se a alguém parece frouxa a minha mansidão até agora, saiba que só esperou se fizesse público o que estava encoberto; quanto ao mais, não me posso esquecer de ser esta a minha pátria, ser eu cônsul destes seus habitadores, e que com eles hei-de viver, ou por eles morrer. As portas estão sem guardas, não há traidor algum pelo caminho; se alguém quiser sair, pode atender por si; o que na cidade se amotinar, de quem eu souber não só ação, mas princípio algum dela, ou intento contra a pátria, experimentará haver nesta cidade cônsules vigilantes, excelentes magistrados, um integérrimo Senado, armas e cárceres que nossos maiores quiseram servissem para castigar delitos manifestos e atrozes.
Peroração.
13. Tudo isto, romanos, se executará de sorte que, sendo eu o único capitão e general togado, se apaziguarão as mais relevantes coisas sem o menor reboliço, os maiores perigos, e a guerra intestina e doméstica mais cruel, de que há memória, sem o menor tumulto; o que ordenarei em forma, romanos, que quanto puder ser, ninguém, ainda protervo, pagará nesta cidade a pena do seu delito. Mas se a força de um manifesto atrevimento e o iminente perigo da pátria me necessitarem a sair desta brandura, executarei o que parece apenas se podia desejar em tão enorme e atraiçoada guerra; a saber que nenhum dos bons pereça, e com o castigo de poucos possais ficar salvos. Isto, romanos, vos não prometo fiado na minha prudência e conselhos humanos, mas em muitas e indubitáveis insinuações dos deuses imortais, pelos quais guiado, entrei nesta esperança e projecto. Eles gão os que não de longe, como costumavam dantes, nem de inimigos externos e remotos, mas aqui presen tes, com o seu poder e auxílio,defendem os templos e casas de Roma. Rogai-os, romanos, e venerai-os como deveis, para que vencidas todas as forças inimigas por terra e por mar, defendam aquela cidade que quiseram fosse a mais formosa, florescente e podero sa, da execranda perversidade de cidadãos perdidos.
 
Tradução do Padre Antônio Joaquim. Fonte: Atena Editora, 1938.

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