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Livro_P_Freire_Acao_Cultural_para_a_Liberdade.pdf Biblioteca Digital Paulo Freire Esta obra faz parte do acervo da Biblioteca Cental da UFPB. AÇÃO CULTURAL PARA A LIBERDADE e outros escritos Coleção: O MUNDO, HOJE Vol. 10 Ficha Catalográfica (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ) Freire, Paulo F934a Ação cultural para a liberdade. 5ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1981. 149 p. 21cm (O Mundo, Hoje, v. 10) Bibliografia 1. Alfabetização. 2. Educação de adultos. 3. Educação de adultos – Teoria, métodos etc. I. Títulos. Il. Série. CDD – 374 374.02 379.24 76-0068 CDU – 371.3:374.7+376.76 EDITORA PAZ E TERRA Conselho Editorial: Antonio Candido Celso Furtado Fernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso Paulo Freire AÇÃO CULTURAL PARA A LIBERDADE E OUTROS ESCRITOS 5ª Edição Paz e Terra Copyright Ó Paulo Freire Capa e digramação: Sheila Santos Direitos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA S.A. Rua André Cavalcanti, 86 Fátima – Rio de Janeiro, RJ Tel.: 244-0448 Rua Carijós, 128 Lapa – São Paulo, SP Tel.: 263-9539 1981 ________________ Impresso no Brasil Printed in Brazil Sumário 7 Breve explicação 8 Considerações em torno do ato de estudar 11 A alfabetização de adultos – crítica de sua visão ingênua compreensão de sua visão crítica 20 Os camponenes e seus textos de leitura 26 Ação cultural e reforma agrária 31 O papel do trabalhador social no processo de mudança 35 Ação cultural para a libertação 35 I parte: O processo de alfabetização de adultos como ação cultural para a libertação 53 II parte: Ação cultural e conscientização 71 O processo de alfabetização política – uma introdução 78 Algumas notas sobre humanização e suas implicações pedagógicas 95 O papel educativo das Igrejas na América Latina 104 Prefácio à edição argentina de A black theology of liberation de James Cone 107 Conscientização e libertação: uma conversa com Paulo Freire 116 Algumas notas sobre conscientização Breve explicação Depois de um longo período de hesitação, resolvi, afinal, juntar neste volume alguns dos textos que escrevi entre 1968 e 1974. Textos entre os quais somente uns poucos têm sido mais amplamente divulgados, sobretudo em inglês e espanhol. Tendo sido, com raras exceções, preparados para seminários, a intenção básica ao redigi-los era a de provocar uma discussão em cujo processo se aprofundasse a análise de alguns de seus aspectos principais. Juntamente com Extensão ou Comunicação, publicado no Brasil em 1970, por Paz e Terra, alguns deles talvez aclarem certos possíveis vazios entre Educação como Prática da Liberdade e Pedagogia do Oprimido. Pretendendo preservá-los como os escrevi, não me furtei, contudo, a alterar um ou outro, na forma como no conteúdo. Espero, finalmente, que o fato de estar constantemente voltando a certos núcleos temáticos, não só em trabalhos diferentes, mas também num mesmo texto, não chegue a cansar demasiado o leitor. Esta é, em última análise, a minha maneira de escrever sobre o que penso e de pensar sobre o que faço. PAULO FREIRE Genebra Outono de 1975. Considerações em torno do ato de estudar1 Toda bibliografia deve refletir uma intenção fundamental de quem a elabora: a de atender ou a de despertar o desejo de aprofundar conhecimentos naqueles ou naquelas a quem é proposta. Se falta, nos que a recebem, o ânimo de usá-la, ou se a bibliografia, em si mesma, não é capaz de desafiá-los, se frustra, então, a intenção fundamental referida. A bibliografia se torna um papel inútil, entre outros, perdido nas gavetas das escrivaninhas. Esta intenção fundamental de quem faz a bibliografia lhe exige um triplo respeito: a quem ela se dirige, aos autores citados e a si mesmos. Uma relação bibliográfica não pode ser uma simples cópia de títulos, feita ao acaso, ou por ouvir dizer. Quem a sugere deve saber o que está sugerindo e por que o faz. Quem a recebe, por sua vez, deve ter nela, não uma prescrição dogmática de leituras, mas um desafio. Desafio que se fará mais concreto na medida em que comece a estudar os livros citados e não a lê-los por alto, como se os folheasse, apenas. Estudar é, realmente, um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura critica, sistemática. Exige uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a. Isto é, precisamente, o que a “educação bancária”* não estimula. Pelo contrário, sua tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a indispensável criticidade. Este procedimento ingênuo ao qual o educando é submetido, ao lado de outros fatores, pode explicar as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna puramente mecânica, enquanto, pela imaginação, se deslocam para outras situações. O que se lhes pede, afinal, não é a compreensão do conteúdo, mas sua memorização. Em lugar de ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a memorização do mesmo. Se o estudante consegue fazê-la, terá respondido ao desafio. Numa visão crítica, as coisas se passam diferentemente. O que estuda se sente desafiado pelo texto em sua totalidade e seu objetivo é apropriar-se de sua significação profunda. Esta postura critica, fundamental, indispensável ao ato de estudar, requer de quem a ele se dedica: a) Que assuma o papel de sujeito deste ato. Isto significa que é impossível um estudo sério se o que estuda se. põe em face do texto como se estivesse magnetizado pela palavra do autor, à qual emprestasse uma força mágica. Se se comporta passivamente, “domesticadamente”, procurando 1Escrito em 1968, no Chile, este texto serviu de introdução à relação.bibliográfica que foi proposta aos participantes de um seminário nacional sobre educação e reforma agrária. * Sobre "educação bancária”, ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977, 4ª ed., (N.E.) apenas memorizar as afirmações do autor. Se se deixa “invadir” pelo que afirma o autor. Se se transforma numa “vasilha” que deve ser enchida pelos conteúdos que ele retira do texto para pôr dentro de si mesmo. Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o escreveu. É perceber o condicionamento histórico-sociológico do conhecimento. É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e outras dimensões afins do conhecimento. Estudar é uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de objeto. Desta maneira, não é possível a quem estuda, numa tal perspectiva, alienar-se ao texto, renunciando assim à sua atitude crítica em face dele. A atitude critica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da realidade, da existência. Uma atitude de adentramento com a qual se vá alcançando a razão de ser dos fatos cada vez mais lucidamente. Um texto estará tão melhor estudado quanto, na medida em que dele se tenha uma visão global, a ele se volte, delimitando suas dimensões parciais. O retorno ao livro para esta delimitação aclara a significação de sua globalidade. Ao exercitar o ato de delimitar os núcleos centrais do texto que, em interação, constituem sua unidade, o leitor crítico irá surpreendendo todo um conjunto temático, nem sempre explicitado no índice da obra. A demarcação destes temas deve atender também ao quadro referencial de interesse do sujeito leitor. Assim é que, diante de um livro, este sujeito leitor pode ser despertado por um trecho que lhe provoca uma série de reflexões em torno de uma temática que o preocupa e que não é necessariamente a de que trata o livro em apreço. Suspeitada a possível relação entre o trecho lido e sua preocupação, é o caso, então, de fixar-se na análise do texto, buscando o nexo entre seu conteúdo e o objeto de estudo sobre que se encontra trabalhando. Impõe-se-lhe uma exigência: analisar o conteúdo do trecho em questão, em sua relação com os precedentes e com os que a ele se seguem, evitando, assim, trair o pensamento do autor em sua totalidade. Constatada a relação entre o trecho em estudo e sua preocupação, deve separá -lo de seu conjunto, transcrevendo-o em uma ficha com um título que o identifique com o objeto específico de seu estudo. Nestas circunstâncias, ora pode deter-se, imediatamente, em reflexões a propósito das possibilidades que o trecho lhe oferece, ora pode seguir a leitura geral do texto, fixando outros trechos que lhe possam aportar novas meditações. Em última análise, o estudo sério de um livro como de um artigo de revista implica não somente numa penetração crítica em seu conteúdo básico, mas também numa sensibilidade aguda, numa permanente inquietação intelectual, num estado de predisposição à busca. b) Que o ato de estudar, no fundo, é uma atitude em frente ao mundo. Esta é a razão pela qual o ato de estudar não se reduz à relação leitor-livro, ou leitor- texto. Os livros em verdade refletem o enfrentamento de seus autores com o mundo. Expressam este enfrentamento. E ainda quando os autores fujam da realidade concreta estarão expressando a sua maneira deformada de enfrentá-la. Estudar é também e sobretudo pensar a prática e pensar a prática é a melhor maneira de pensar certo. Desta forma, quem estuda não deve perder nenhuma oportunidade, em suas relações com os outros, com a realidade, para assumir uma postura curiosa. A de quem pergunta, a de quem indaga, a de quem busca. O exercício desta postura curiosa termina por torná-la ágil, do que resulta um aproveitamento maior da curiosidade mesma. Assim é que se impõe o registro constante das observações realizadas durante uma certa prática; durante as simples conversações. O registro das idéias que se têm e pelas quais se é “assaltado”, não raras vezes, quando se caminha só por uma rua. Registros que passam a constituir o que Wright Mills chama de “fichas de idéias”*. Estas idéias e estas observações, devidamente fichadas, passam a constituir desafios que devem ser respondidos por quem as registra. Quase sempre, ao se transformarem na incidência da reflexão dos que as anotam, estas idéias os remetem a leituras de textos com que podem instrumentar-se para seguir em sua reflexão. c) Que o estudo de um tema especifico exige do estudante que se ponha, tanto quanto possível, a par da bibliografia que se refere ao tema ou ao objeto de sua inquietude. d) Que o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja mediação se encontra nos temas de que ele trata. Esta relação dialógica implica na percepção do condicionamento histórico-sociológico e ideológico do autor, nem sempre o mesmo do leitor. e) Que o ato de estudar demanda humildade. Se o que estuda assume realmente uma posição humilde, coerente com a atitude critica, não se sente diminuído se encontra dificuldades, às vezes grandes, para penetrar na significação mais profunda do texto. Humilde e critico, sabe que o texto, na razão mesma em que é um desafio, pode estar mais além de sua capacidade de resposta. Nem sempre o texto se dá facilmente ao leitor. Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a necessidade de melhor instrumentar-se para voltar ao texto em condições de entendê-lo. Não adianta passar a página de um livro se sua compreensão não foi alcançada. Impõe, pelo contrário, a insistência na busca de seu desvelamento. A compreensão de um texto não é algo que se recebe de presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado. Não se mede o estudo pelo numero de páginas lidas numa noite ou pela quantidade de livros lidos num semestre. Estudar não é um ato de consumir idéias, mas de criá-las e recriá-las. * Wright Mills – The Sociological Imagination. A alfabetização de adultos – critica de sua visão ingênua; compreensão de sua visão crítica Santiago, 1968. A concepção, na melhor das hipóteses, ingênua* do analfabetismo o encara ora como uma “erva daninha” – daí a expressão corrente: “erradicação do analfabetismo” –, ora como uma “enfermidade” que passa de um a outro, quase por contágio, ora como uma “chaga” deprimente a ser “curada” e cujos índices, estampados nas estatísticas de organismos internacionais, dizem mal dos níveis de “civilização” de certas sociedades. Mais ainda, o analfabetismo aparece também, nesta visão ingênua ou astuta, como a manifestação da “incapacidade” do povo, de sua “pouca inteligência”, de sua “proverbial preguiça”. Limitada na compreensão do problema, cuja complexidade não capta ou esconde, suas respostas a ele são de caráter mecanicista. A alfabetização, assim, se reduz ao ato mecânico de “depositar” palavras, sílabas e letras nos alfabetizandos. Este “depósito” é suficiente para que os alfabetizandos comecem a “afirmar-se”, uma vez que, em tal visão, se empresta à palavra um sentido mágico. Escrita e lida, a palavra é como se fosse um amuleto, algo justaposto ao homem que não a diz, mas simplesmente a repete. Palavra quase sempre sem relação com o mundo e com as coisas que nomeia. Daí que, para esta concepção distorcida da palavra, a alfabetização se transforme em um ato pelo qual o chamado alfabetizador vai “enchendo” o alfabetizando com suas palavras. A significação mágica emprestada à palavra se alonga noutra ingenuidade: a do messianismo. O analfabeto é um “homem perdido”. É preciso, então, “salvá-lo” e sua “salvação” está em que consinta em ir sendo "enchido” por estas palavras, meros sons milagrosos, que lhe são presenteadas ou impostas pelo alfabetizador que, às vezes, é um agente inconsciente dos responsáveis pela política da campanha. As cartilhas, por boas que sejam, do ponto de vista metodológico ou sociológico, não podem escapar, porém, a uma espécie de "pecado original”, enquanto são o instrumento através do qual se vão “depositando” as palavras do educador, como também seus textos, nos alfabetizandos. E por limitar-lhes o poder de expressão, de criatividade, são instrumentos domesticadores. De modo geral, elaboradas de acordo com a concepção mecanicista e mágico- messiânica da “palavra-depósito”, da “palavra-som”, seu objetivo máximo é realmente fazer uma espécie de “transfusão” na qual a palavra do educador é o * Quando digo “concepção, na melhor das hipóteses, ingênua”, é porque muitos dos que poderiam ser considerados como ingênuos, ao expressá-la, são, na verdade, astutos. Sabem muito bem o que fazem e onde querem ir, quando, em campanhas de alfabetização, “alimentam” os alfabetizandos de “slogans” alienadores, em nome, ainda, da neutralidade da educação. Objetivamente, porém, se identificam ambos – ingênuos e astutos. “sangue salvador” do “analfabeto enfermo". E ainda quando as palavras das cartilhas, os textos com elas elaborados – e isto raras vezes ocorre – coincidem com a realidade existencial dos alfabetizandos, de qualquer maneira, são palavras e textos presenteados, como clic hês, e não criados por aqueles que deve-riam fazê-lo* . Em geral, porém, tanto as palavras quanto os textos das cartilhas nada têm que ver com a experiência existencial dos alfabetizandos. E .quando o têm, se esgota esta relação ao ser expressada de maneira paternalista, do que resulta serem tratados os adultos de uma forma que não ousamos sequer chamar de infantil. Este modo de tratar os adultos analfabetos implícita uma deformada maneira de vê- los – como se eles fossem totalmente diferentes dos demais. Não se lhes reconhece a experiência existencial bem como o acúmulo de conhecimentos que esta experiência lhes deu e continua dando. Como seres passivos e dóceis, pois que assim são vistos e assim são tratados, os alfabetizandos devem ir recebendo aquela “transfusão” alienante da qual, por isto mesmo, não pode resultar nenhuma contribuição ao processo de transformação da realidade. Que significação pode ter para alguém um texto que, além de co-locar uma questão absurda, dá uma resposta não menos absurda: “Ada deu o dedo ao urubu? Duvido, responde o autor da pergunta, Ada deu o dedo à ave”! Em primeiro lugar, não sabemos da existência de nenhum lugar no mundo em que alguém convide o urubu a pousar em seu dedo. Em segundo lugar, ao responder o autor à sua estranha pergunta, duvidando de que Ada tivesse dado seu dedo ao urubu, pois que o deu à ave, afirma que urubu não é ave. Que significação, na verdade, podem ter, para homens e mulheres, camponeses ou urbanos, que passam um dia duro de trabalho ou, mais duro ainda, sem trabalho, textos como estes, que devem ser memorizados: “A asa é da ave”; “Eva viu a uva; “João já sabe ler. Vejam a alegria em sua face. João agora vai conseguir um emprego”! Textos, de modo geral, ilustrados – casinhas simpáticas, acolhedoras, bem decoradas; casais risonhos, de faces delicadas, às vezes ou quase sempre brancos e louros; crianças bem nutridas, bolsinha a tira-colo, dizendo adeus aos papais para ir à escola, depois de um suculento café da manhã... Que podem um trabalhador camponês ou um trabalhador urbano retirar de positivo para seu quefazer no mundo, para compreender, criticamente, a situação concreta de opressão em que se acham, através de um trabalho de alfabetização em que se lhes diz, adocicadamente, que a “asa é da ave” ou que “Eva viu a uva”? Reforçando o “silêncio” em que se acham as massas populares dominadas pela prescrição de uma palavra veiculadora de uma ideologia da acomodação, não pode * Pequenos textos de leitura podem e devem ser elaborados pelos educadores, desde que I) correspondam à realidade concreta dos alfabetizandos; II) sejam usados não na forma tradicional das chamadas "classes de leitura", mas em verdadeiros seminários de textos; Ill) funcionem como elementos motivadores aos alfabetizandos para que comecem eles mesmos a redigir também seus textos. jamais um tal trabalho constituir-se como um instrumento auxiliar da transformação da realidade. Mas, por outro lado, na medida em que, em si mesma, esta alfabetização não tem a força necessária para concretizar pelo menos algumas das ilusões que veicula, como por exemplo a de que o “analfabeto que aprende a ler consegue um emprego”, cedo ou tarde termina por funcionar contra os objetivos amaciadores do próprio sistema, cuja ideologia ela reproduz. Na proporção em que os ex-analfabetos, que foram “treinados” na leitura de textos sem a análise de sua vinculação com o contexto social, já agora lendo, mesmo mecanicamente, procuram o emprego ou o melhor emprego e não os encontram, percebem a falácia daquela afirmação irresponsável. O feitiço, então, mais uma vez, cai sobre o feiticeiro... Para a concepção critica, o analfabetismo nem é uma “chaga”, nem uma “erva daninha” a ser erradicada, nem tampouco uma enfermidade, mas uma das expressões concretas de uma realidade social injusta. Não é um problema estritamente lingüístico nem exclusivamente pedagógico, metodológico, mas político, como a alfabetização através da qual se pretende superá-lo. Proclamar sua neutralidade, ingênua ou astutamente, não afeta em nada a sua politicidade intrínseca. Por esta razão é que, para a concepção critica da alfabetização, não será a partir da mera repetição mecânica de pa-pe-pi-po-pu, la-le-li- lo-lu, que permitem formar pula, pêlo, lá, li, pulo, lapa, lapela, pílula etc. que se desenvolverá nos alfabetizandos a consciência de seus direitos, como sua inserção critica na realidade. Pelo contrário, a alfabetização nesta perspectiva, que não pode ser a das classes dominantes, se instaura como um processo de busca, de criação, em que os alfabetizandos são desafiados a perceber a significação profunda da linguagem e da palavra. Palavra que, na situação concreta em que se encontram, lhes está sendo negada. No fundo, negar a palavra implica em algo mais. Implica em negar o direito de “pronunciar o mundo”* . Por isto, “dizer a palavra” não é repetir uma palavra qualquer. Nisto consiste um dos sofismas da prática reacionária da alfabetização. O aprendizado da leitura e da escrita não pode ser feito como algo paralelo ou quase paralelo à realidade concreta dos alfabetizandos. Aquele aprendizado, por isto mesmo, demanda a compreensão da significação profunda da palavra, a que antes fizemos referência. Mais que escrever e ler que a “asa é da ave”, os alfabetizandos necessitam perceber a necessidade de um outro aprendizado: o de “escrever” a sua vida, o de “ler” a sua realidade, o que não será possível se não tornam a história nas mãos para, fazendo- a, por ela serem feitos e refeitos. Daí que, nesta perspectiva crítica, se faça tão importante desenvolver, nos educandos como no educador, um pensar certo sobre a realidade. E isto não se faz através de blá-blá-blá mas do respeito à unidade entre prática e teoria. * A este propósito, ver Ernani Maria Fiori, Prefácio a Pedagogia do Oprimido, e Paulo Freire, nesse mesmo livro. Ed. Paz e Terra, Rio, 1997, 4ª ed. (N. E.) É necessário, realmente, libertar a teoria,do equívoco de que é comumente vítima, não apenas na América Latina, segundo o qual é identificada com verbalismo, com blá-blá-blá, com perda de tempo. Isto é o que explica expressões tão repetidas entre nós, como: “Se a educação latino- americana não fosse teórica, mas prática, outros seriam seus resultados”, ou “é necessário diminuir as classes teóricas”. Explica também a divisão que se faz entre homens e mulheres teóricos e práticos, tomando-se aqueles e aquelas à margem da ação, enquanto os segundos a realizam. A separação, contudo, deveria ser feita entre teóricos e verbalistas. Neste caso, os primeiros seriam necessariamente práticos também. O que se deve opor à prática não é a teoria, de que é inseparável, mas o blá-blá-blá ou o falso pensar. Assim como não é possível identificar teoria com verbalismo, tampouco o é identificar prática com ativismo. Ao verbalismo falta a ação; ao ativismo, a reflexão crítica sobre a ação. Não é estranho, portanto, que os verbalistas se isolem em suas torres de marfim e considerem desprezíveis os que se dão à ação, enquanto os ativistas considerem os que pensam sobre a ação e para ela, como “intelectuais nocivos”, “teóricos” e “filósofos” que nada fazem senão obstaculizar sua atividade. Para mim, que me situo entre os que não aceitam a separação impossível entre prática e teoria, toda prática educativa implica numa teoria educativa. Por isso é que, ao falar agora de antagônicas concepções da alfabetização de adultos, não poderei deixar de, simultaneamente, fazer referência a aspectos de suas respectivas práticas. A fundamentação teórica da minha prática, por exemplo, se explica ao mesmo tempo nela, não como algo acabado, mas como um movimento dinâmico em que ambas, prática e teoria, se fazem e se re-fazem. Desta forma, muita coisa que hoje ainda me parece válida, não só na prática realizada e realizando-se, mas na interpretação teórica que fiz dela, poderá vir a ser superada amanhã, não só por mim, mas por outros. A condição fundamental para isto, quanto a mim, é que esteja, de um lado, constantemente aberto às criticas que me façam; e outro, que seja capaz de manter sempre viva a curiosidade, disposto sempre a retificar-me, em função dos próprios achados de minhas futuras práticas e da prática dos demais. Quanto aos outros, os que põem em prática a minha prática, que se esforcem por recriá-la, repensando também meu pensamento. E ao fazê-lo, que tenham em mente que nenhuma prática educativa se dá no ar, mas num contexto concreto, histórico, social, cultural, econômico, político, não necessariamente idêntico a outro contexto. A compreensão crítica de minha prática no Brasil, até março de 1964, por exemplo, exige a compreensão daquele contexto. Minha prática, enquanto social, não me pertencia. Daí que não seja possível entender a prática que tive, em toda a sua extensão, sem a inteligência do clima histórico em que se deu. Este esforço, que se exige de mim e dos demais, salienta, mais uma vez, a unidade da prática e da teoria. Mas a compreensão da unidade da prática e da teoria, no domínio da educação, demanda a compreensão, também, da unidade entre a teoria e a prática social que se dá numa sociedade. Assim, a teoria que deve informar a prática geral das classes dominantes, de que a educativa é uma dimensão, não pode ser a mesma que deve dar supor-te às reivindicações das classes dominadas, na sua prática. Daí a impossibilidade de neutralidade da prática educativa como da teoria que a ela corresponde. Uma coisa, pois, é a unidade entre prática e teoria numa educação orientada no sentido da libertação, outra é a mesma unidade numa forma de educação para a “domesticação”. As classes dominantes não têm por que temer, por exemplo, a unidade da prática e da teoria, na capacitação – para falar só nesta – da chamada mão-de-obra qualificada, desde, porém, que nesta unidade, a teoria de que se fale seja a “teoria neutra” de uma “técnica também neutra”. A alfabetização de adultos não pode escapar a esta alternativa. A primeira exigência prática que a concepção crítica da alfabetização se impõe é que as palavras geradoras, com as quais os alfabetizandos começam sua alfabetização como sujeitos do processo, sejam buscadas em seu “universo vocabular mínimo”, que envolve sua temática significativa. Somente a partir da investigação deste universo vocabular mínimo é que o educador pode organizar o programa que, desta forma, vem dos alfabetizandos para a eles voltar, não como dissertação mas como problematização* . Na prática criticada, pelo contrário, o educador, arbitrariamente – pelo menos do ponto de vista sócio-cultural – elege, em sua biblioteca, as palavras geradoras com as quais fabrica sua cartilha à qual, não raro, se reconhece validade ao nível de todo o país. Para a visão crítica, advertida com relação aos níveis da linguagem, entre eles o pragmático, de importância fundamental para a eleição das palavras geradoras, estas não podem ser selecionadas à luz de um critério puramente fonético. Uma palavra pode ter uma força especial em uma área e não tê-la em outra, às vezes dentro de uma mesma cidade. Na linha destas reflexões, observemos algo mais. Enquanto que, na concepção e na prática mecanicista da alfabetização o autor da cartilha elege as palavras, as * A respeito, quer dizer, do ponto de vista da alfabetização, ver Paulo Freire. Educação como Prática da Liberdade, Ed. Paz e Terra, Rio, 1975, 6ª ed. – Do ponto de vista da post-alfabetização – Pedagogia do Oprimido, Ed. Paz e Terra, Rio, 1975, 4ª ed. decompõe na etapa da análise e compõe, na síntese, outras palavras com as sílabas encontradas para, em seguida, com as palavras criadas, redigir textos turno os citados, na prática que defendemos as palavras geradoras – palavras do povo – são postas em situações problemas (codific ações)* , como desafios que exigem resposta dos alfabetizandos. Problematizar a palavra que veio do povo significa problematizar a temática a ela referida, o que envolve necessariamente a análise da realidade, que se vai desvelando com a superação do conhecimento puramente sensível dos fatos pela razão de ser dos mesmos. Assim, e pouco a pouco, os alfabetizandos vão percebendo que o fato de, como seres humanos, falarem, não significa ainda que “dizem sua palavra”. É necessário, na verdade, reconhecer que o analfabetismo não é em si um freio original. Resulta de um freio anterior e passa a tornar-se freio, Ninguém é analfabeto por eleição, mas como conseqüência das condições objetivas em que se encontra. Em certas circunstâncias, “o analfabeto é o homem que não necessita ler* * , em outras, é aquele ou aquela a quem foi negado o direito de ler. Em ambos os casos, não há eleição. O primeiro vive numa cultura cuja comunicação e cuja memória são auditivas, se não em termos totais, em termos preponderantes. Neste caso, a palavra escrita não tem significação. Para que se introduzisse a palavra escrita e, com ela, a alfabetização, em uma realidade como esta, com êxito, seria necessário que, concomitantemente, se operasse uma transformação capaz de mudar qualitativamente a situação. Muitos casos de analfabetismo regressivo terão ai sua explicação. São o resultado de campanhas de alfabetização messiânica ou ingenuamente concebidas para áreas cuja memória é preponderante ou totalmente oral. Vias várias oportunidades em que tenho conversado com camponeses chilenos, sobretudo em áreas em que se experimentaram conflitivamente em defesa da reforma agrária, tenho escutado expressões como estas: “Antes da reforma agrária não precisávamos das letras. Primeiro, porque não pensávamos. Nosso pensamento era o do patrão. Segundo, porque não tínhamos o que fazer com as letras. Agora, a coisa é diferente”. No segundo caso, o analfabeto é aquele ou aquela que, “participando” de uma cultura letrada, não tiveram a oportunidade de alfabetizar-se. Nunca me esqueço da análise feita por um camponês do nordeste brasileiro, no momento em que discutia duas codificações que apresentavam, a primeira, um índio caçando, com seu arco e sua flecha; a segunda, um camponês como ele, caçando também, com uma espingarda. “Entre esses dois caçadores, disse, somente o segundo pode que seja analfabeto. O primeiro, não”. Por quê? lhe perguntei. Rindo um riso de quem se espantava com o meu porquê, respondeu: “Não se pode dizer que o índio é analfabeto porque vive numa cultura que não conhece as letras. Pra ser analfabeto é preciso viver no meio das letras e não conhecer elas”. * A propósito de Codificação ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. * * Álvaro Vieira Pinto, Consciência e Realidade Nacional, ISEB, Rio, 1960. Na verdade, somente na medida em que aos alfabetizandos se problematiza o próprio analfabetismo é que é possível entendê-lo em sua explicação mais profunda. Não será com “Eva viu a uva”, a “Asa é da ave”, com perguntar-lhes se “Ada deu o dedo ao urubu” que se logra tal objetivo. Assim, reinsistamos, enquanto na prática reacionária os alfabetizandos não desenvolvem nem podem desenvolver uma visão lúcida de sua realidade, na prática aqui defendida eles a vão percebendo como uma totalidade. Vão superando, desta forma, o que chamamos visão focalista da realidade, segundo a qual as parcialidades de uma totalidade são vistas não integradas entre si, na composição do todo. Na medida em que os alfabetizandos vão organizando uma forma cada vez mais justa de pensar, através da problematização de seu mundo, da análise crítica de sua prática, irão podendo atuar cada vez mais seguramente no mundo. A alfabetização se faz, então, um quefazer global, que envolve os alfabetizandos em suas relações com o mundo e com os outros. Mas, ao fazer-se este quefazer global, fundado na prática social dos alfabetizandos, contribui para que estes se assumam como seres do quefazer – da práxis. Vale dizer, como seres que, transformando o mundo com seu trabalho, criam o seu mundo. Este mundo, criado pela transformação do mundo que não criaram e que constitui seu domínio, é o mundo da cultura que se alonga no mundo da história. Desta forma, ao perceberem o significado criador e recriador de seu trabalho transformador, descobrem um sentido novo em sua ação, por exemplo, de cortar uma árvore, de dividi-la em pedaços, de tratá-los de acordo com um plano previamente estabelecido e que, ao ser concretizado, dá lugar a algo que já não é a árvore. Percebem, finalmente, que este algo, produto de seu esforço, é um objeto cultural. De descoberta em descoberta, alcançam o fundamental: a) que os freios a seu direito de “dizer sua palavra” estão em relação direta com a não-apropriação por eles dos produtos de seu trabalho. b) que o fato de trabalhar lhes proporciona um certo conhecimento, não importa se são analfabetos. c) que, finalmente, entre os seres humanos não há absolutização da ignorância nem do saber. Ninguém sabe tudo; ninguém ignora tudo. Nas experiências de que participei ontem no Brasil, como nas de que participo hoje no Chile, sempre foram confirmadas estas afirmações. “Agora sei que sou culto”, disse, certa vez, um velho camponês chileno ao discutir, através de codificações, a significação do trabalho. E ao se lhe perguntar porque se sabia culto, respondeu seguro: “Porque trabalho e trabalhando transformo o mundo”. Esta afirmação, muito comum também no Brasil, revela a superação que vão fazendo do conhecimento, ao nível preponderantemente sensível, de sua presença no mundo, pela assunção crítica desta presença, o que implica no reconhecimento de não apenas estarem no mundo, mas com o mundo. Saber que é culto porque trabalha e trabalhando transforma o mundo, mesmo que entre o momento do reconhecimento deste fato e a real transformação da sociedade haja muito ainda o que fazer é algo, porém, que não se compara com a monótona repetição dos ba-be-bi-bo-bu. “Me agrada discutir sobre isto, disse uma mulher, também chilena, apontando para a codificação de uma situação existencial de sua área, porque vivo assim. Mas, continuou, enquanto vivo, não vejo. Agora sim, observo como vivo”. Desafiada por sua própria situação existencial, representada na codificação, a mulher foi capaz, numa espécie de “emersão” de sua forma de existir, de “admirá-la” e percebê-la como até então não o fizera. Ter presentificada à sua consciência sua maneira de existir, descrevê-la, analisá-la, significa, em última análise, desvelar a realidade, mesmo que não signifique, ainda, um engajamento político para a sua transformação. Afirmação similar tivemos oportunidade de ouvir, no ano passado – 1967 – de um homem em Nova York, durante a discussão de uma fotografia de trecho de uma rua das redondezas de seu bairro. Olhando silenciosamente a foto em seus pormenores – latas de lixo, pouca higiene, aspectos típicos de uma área discriminada – disse, de repente: “Vivo aqui. Ando diariamente nessas ruas. Não posso dizer que jamais tivesse visto isto. Agora, porém, percebo que não percebia."* No fundo, aquele homem de Nova York percebia, naquela noite, a sua percepção anterior, cuja deformação ele pôde retificar ao tomar distância de sua realidade, através da representação da mesma. É verdade, também, que nem sempre esta retificação da percepção anterior se dá facilmente. É que a relação entre o sujeito e o objeto é tal que o desvelamento da objetividade afeta igualmente a subjetividade e, às vezes, de forma intensamente dramática e mesmo dolorosa. Em certas circunstâncias, numa espécie de “manha da consciência”, “prefere-se” à aceitação do real, como é, a sua ocultação, ficando-se com o ilusório, que se transforma em real. Na mesma experiência de Nova York, tive oportunidade de constatar igualmente este fato. Discutia-se noutro grupo uma foto-montagem, bastante bem feita, de um trecho da cidade que apresentava diferentes níveis sociais, caracterizados pelos próprios edifícios. O grupo que debatia estava, indubitavelmente, situado num dos últimos escalões. Convidados os participantes a analisar a foto-montagem e a situar sua área entre os diversos níveis, o fizeram, colocando, porém, sua área numa faixa intermediária* *. * Este trabalho é realizado por uma Instituição chamada Full Circle, dirigida por Roberto Fox, um sacerdote cat6lico, atuando ao nível da post-alfabetização. Há algo de similar entre o que realizam seus educadores e o que fizemos no Brasil e tentamos no Chile. Nunca houve, porém, nenhuma influência de nossa parte sobre sua concepção da educação. Conhecemo-nos quando os visitei por sugestão de Ivan Illich. * * Em Pedagogia do Oprimido o autor se refere a outra observação feita na mesma experiência de Nova York. (N.E.) Esta mesma resistência a aceitar o real – uma forma de defesa – tenho encontrado também entre trabalhadores camponeses e trabalhadores urbanos na América Latina. Não têm sido raros no Chile os que, ao lado dos muitos que vão decifrando sua realidade em termos críticos, expressam, no debate em torno de sua nova experiência no “asentamiento”, uma certa nostalgia do antigo patrão. Condicionados pela ideologia dominante, não apenas obliteram sua capacidade de percepção do real, mas também, às vezes, se “entregam”, docilmente, aos mitos daquela ideologia. A alfabetização de adultos, tal qual a entendemos, como a post-alfabetização, tem aí um dos pontos cruciais a enfrentar. “Descubro agora”, disse outro camponês chileno, ao se lhe problematizarem as relações homem-mundo, “que não há homem sem mundo” E, ao perguntar-lhe o educador, em nova problematização: admitindo-se que todos os seres humanos morressem, mas ficassem as árvores, os pássaros, os animais, os mares, os rios, a Cordilheira dos Andes, seria isto mundo? “Não!”, respondeu decidido: “Faltaria quem dissesse: isto é mundo”. Com esta resposta, o filósofo camponês, que a concepção elitista classificaria de “ignorante absoluto”, colocou a questão dialética da subjetividade-objetividade. “Quando éramos ‘inquilinos’”, disse outro camponês, depois de dois meses de participação nas atividades de um "Círculo de Cultura”* num “asentamiento”, “e o patrão nos chamava de ingênuos, dizíamos: obrigado, patrão. Para nós, aquilo era um elogio. Agora, que estamos ficando críticos, sabemos o que queria dizer com ingênuos. Chamava-nos de bobos”. E que é ser crítico? lhe perguntamos. “É pensar certo. É ver a realidade como ela é”, respondeu. Há algo finalmente que gostaria de considerar. É que todas estas reações orais que se vão dando durante as discussões nos Círculos de Cultura, devem ser transformadas em textos que, entregues aos alfabetizandos, passam a ser por eles discutidos. Isto não tem nada que ver, realmente, com a prática criticada, em que os alfabetizandos repetem duas, três vezes, para memorizar, que a “asa é da ave”. Assim, somente a alfabetização que, fundando-se na prática social dos alfabetizandos, associa a aprendizagem da leitura e da escrita, como um ato criador, ao exercício da compreensão critica daquela prática, sem ter, contudo, a ilusão de ser uma alavanca da libertação, oferece uma contribuição a este processo. Dai que não possa ser este um quefazer das classes dominantes. * Sobre "Círculo de Cultura”, ver Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade. (N. E.) Os camponeses e seus textos de leitura1 Santiago-1968 Transformar o mundo através de seu trabalho, “dizer” o mundo, expressá-lo e expressar-se são o próprio dos seres humanos. A educação, qualquer que seja o nível em que se dê, se fará tão mais verdadeira quanto mais estimule o desenvolvimento desta necessidade radical dos seres humanos, a de sua expressividade. É exatamente isto o que não faz a educação que costumo chamar de “bancária”, em que o educador substitui a expressividade pela doação de expressões que o educando deve ir “capitalizando”. Quanto mais eficientemente o faça tanto melhor educando será considerado. Na alfabetização de adultos, como na post-alfabetização, o domínio da linguagem oral e escrita constitui uma das dimensões do processo da expressividade. O aprendizado da leitura e da escrita, por isso mesmo, não terá significado real se se faz através da repetição pura-mente mecânica de sílabas. Este aprendizado só é válido quando, simultaneamente com o domínio do mecanismo da formação vocabular, o educando vai percebendo o profundo sentido da linguagem. Quando vai percebendo a solidariedade que há entre a linguagem-pensamento e realidade, cuja transformação, ao exigir novas formas de compreensão, coloca também a necessidade de novas formas de expressão. Tal é o caso da reforma agrária. Transformada a estrutura do latifúndio, de que resultou a do “asentamiento”, não seria possível deixar de esperar novas formas de expressão e de pensamento-linguagem. Na estrutura do “asentamiento”, palavras e expressões que constituíam constelações culturais e envolviam uma compreensão do mundo, típica da estrutura latifundista, tendem a ir esvaziando-se de sua antiga força*. “Patrão. Sim, patrão. Que posso fazer se sou um camponês. Fale, que nós seguimos. Se o patrão disse, é verdade. Sabe com quem está falando?” etc., são algumas destas palavras e expressões incompatíveis com a estrutura do “asentamiento”, enquanto esta é uma estrutura que se democratiza. Agora bem, se ao lado destas transformações se desenvolve uma educação capaz de ajudar a compreensão crítica da mudança operada – que atingiu igualmente a maneira de trabalhar –, esta educação ajudará também a instauração de um novo pensamento-linguagem. 1 Este texto, como outros que fazem parte deste volume, foi escrito para um seminário realizado por uma das Equipes Centrais que coordenavam trabalhos de alfabetização de adultos em áreas rurais do Chile. * Analisando as mudanças de linguagem, em sociedades em processo de democratização, diz Barbu: "Novas significações são dadas a velhas palavras e novas palavras são cunhadas para designar velhas coisas.” Barbu, Zevedei, “Democracy and Dictatorship” – Their Psychology and Patterns of Life. Routledge and Kegan Paul, Londres, 1956. Basta sublinhar este aspecto das relações entre pensamento-linguagem e estrutura social para que a alfabetização de adultos e a post-alfabetização tenham um significado distinto. Advertidos destas relações, os educadores darão o máximo de atenção à escolha das palavras geradoras, bem como à redação dos textos de leitura. Estes devem levar em conta homens e mulheres em seu contexto em transformação. Não podem ser meras narrações da nova realidade, nem tampouco revestir-se de sentido paternalista. Seu conteúdo, sua forma, sua extensão, sua complexidade crescente devem ser seriamente considerados quando de sua elaboração. Seu objetivo não é fazer a descrição de algo a ser memorizado. Pelo contrário, é problematizar situações. É necessário que os textos sejam em si um desafio e como tal sejam tomados pelos educandos e pelo educador para que, dialogicamente, penetrem em sua compreensão. Daí que jamais devam converter-se em “cantigas de ninar” que, em lugar de despertar a consciência critica, a adormecem. “As classes de leitura”, em lugar de seguirem a rotina normal que as caracteriza, devem ser verdadeiros seminários de leitura. Haverá sempre oportunidade, nestes seminários, para se estabelecerem as relações entre um trecho do texto em discussão e aspectos vários da realidade do “asentamiento”. Uma palavra, uma afirmação contida no texto que se analisa, podem viabilizar a discussão em torno da produção do “asentamiento”, de uma técnica mais adequada às novas condições, a propósito de um problema de saúde, em torno da necessidade de urna permanente formação com que se responda aos novos desafios. Tudo isto implica não apenas numa rigorosa capacitação dos educadores de base, mas também numa permanente avaliação de seu trabalho. Avaliação e não inspeção. Nesta, seriam meros objetos da vigilância da Equipe Central. Naquela, são tão sujeitos quanto a Equipe Central no ato de, tomando distância do trabalho em realização, fazer a sua crítica. Entendida assim, a avaliação não é o ato pelo qual A avalia B. É o ato por meio do qual A e B avaliam juntos uma prática, seu desenvolvimento, os obstáculos encontrados ou os erros e equívocos porventura cometidos. Daí o seu caráter dialógico. “Tomando distância” da ação realizada ou realizando-se, os avaliadores a examinam. Desta forma, muita coisa que antes (durante o tempo da ação) não era percebida, agora aparece de forma destacada diante dos avaliadores. Neste sentido, em lugar de ser um instrumento de fiscalização, a avaliação é a problematização da própria ação. É preciso que os membros da Equipe Central se convençam, humildemente, de que têm muito o que aprender com os educadores que se acham diretamente ligados às bases populares, como estes com as bases. Sem esta humildade, jamais admitirá a Equipe Central qualquer inadequacidade entre sua visão da realidade e esta. Assim, se algo não anda bem, a causa deve estar na incapacidade dos educadores de base, nunca na insuficiência teórica da Equipe Central. Pensando possuir a verdade, decreta a sua infalibilidade. Daí que, em tal hipótese, avaliar seja, para ela, inspecionar. Assim, quanto mais burocrática seja uma Equipe Central, não só do ponto de vista administrativo mas sobretudo mental, tanto mais estreita e inspetora será. Ao contrário, tanto mais seja ela aberta e disponível à criatividade, antidogmática, quanto mais avaliadora, no sentido aqui descrito, será. Além destes textos elaborados pela Equipe Central, se faz absolutamente indispensável o aproveitamento dos redigidos pelos camponeses. A pouco e pouco estes devem ir multiplicando-se, o que não significa dever a Equipe Central parar o seu esforço de redação ou de aproveitamento de um ou outro texto não redigido por ela (por um especialista, por exemplo, no campo da economia rural, da saúde etc.), quando necessário. Neste sentido, os educadores devem aproveitar toda oportunidade para estimular os camponeses a que exponham suas observações, suas dúvidas, suas críticas. Durante a discussão de uma situação problemática – codificação – os educadores devem solicitar aos camponeses que redijam, primeiramente no quadro-negro, depois, numa folha de papel, suas observações – uma simples frase, não importa. Estes dois momentos da redação têm objetivos distintos. O primeiro tem por finalidade propor ao grupo a discussão do conteúdo do texto redigido por um de seus companheiros. Na medida em que a experiência se vá afirmando, é importante que caiba ao autor do texto a coordenação da discussão em torno de sua compreensão. O segundo, no qual o educando redige seu pequeno texto numa folha de papel, tem como fim seu aproveitamento posterior numa espécie de antologia de textos camponeses a ser organizada pela Equipe Central, com a participação de educadores de base e, também, de alguns camponeses. Antologia não somente de textos dos participantes do Centro de Educação de um “asentamiento”, mas dos participantes dos Centros de todos os “asentamientos” de uma zona. Selecionados os textos e classificados em função de sua temática, a Equipe Central redigirá comentários em forma simples, de caráter problematizador, a propósito de cada um. Uma outra maneira de recolher o discurso camponês, convertendo-o em textos de leitura, seria a de gravar as discussões nos Centros de Educação ou Círculos de Cultura. Pensemos, por exemplo, numa área em que haja três ou quatro “asentamientos” e em cada um dos quais existam “n” Círculos de Cultura funcionando ainda na etapa de alfabetização. Como sabemos, a codificação que os camponeses têm diante de si não é uma simples ajuda visual de que o educador se serve para “dar” uma aula melhor. A codificação, pelo contrário, é um objeto de conhecimento que, mediatizando educador e educandos, se dá a seu desvelamento. Representando um aspecto da realidade concreta dos camponeses, a codificação tem escrita em si a palavra geradora a ela referida ou a algum de seus elementos. Ao descodificarem a codificação, com a participação do educador, os camponeses analisam sua realidade e expressam, em seu discurso, os níveis de percepção de si mesmos em suas relações com a objetividade. Revelam os condicionamentos ideológicos a que estiveram submetidos em sua experiência na “cultura do silêncio”, nas estruturas do latifúndio. A prática nos tem demonstrado, a todos os que temos participado de trabalhos como este, a importância e a riqueza do discurso dos alfabetizandos, ao analisar sua realidade representada na codificação. Importância e riqueza, qualquer que seja o ângulo em que as encaremos – seja o da forma, seja o do conteúdo, que envolve a análise lingüística, a qual, por sua vez, se alonga na ideológica e política. A existência deste material abre à Equipe Central uma série de possibilidades que não podem ser desprezadas. As sugestões que farei em torno de tais possibilidades desafiarão, certamente, a Equipe Central a perceber outras que me tenham passado despercebidas. Um primeiro emprego deste material, antes mesmo de transcritos os debates em torno das codificações, poderia ser o da realização de seminários de avaliação em que os educadores de uma área, escutando as gravações, discutiriam entre si, com representantes da Equipe Central, seu procedimento durante o processo da descodificação. Neste momento, no contexto do seminário de avaliação, os educadores estariam tomando distância de sua prática anterior, percebendo, assim, seus acertos e seus equívocos. Na mesma linha destes seminários de avaliação seria fundamental que educadores, trabalhando na área “A”, escutassem as gravações dos debates realizados nos Círculos de Cultura da área “B” e vice-versa. Esforço idêntico poderia ser feito ao nível dos alfabetizandos. Desta forma, camponeses da área “A” escutariam e debateriam as gravações das descodificações realizadas por companheiros da área “B”, em torno das mesmas codificações que eles também haviam descodificado e vice-versa. Um empenho como este ajudaria a alfabetizandos e alfabetizadores a ir superando o que costumo chamar de visão focalista da realidade e ir ganhando a compreensão da totalidade. Parece-me igualmente indispensável que a Equipe Central motive os especialistas – agrônomos, técnicos agrícolas, educadoras domésticas, sanitaristas, cooperativistas, veterinários – envolvidos nas diferentes atividades do “asentamiento”, para que, em seminários também, analisem o discurso dos camponeses em que, repitamos, expressam a forma como se vêem em suas relações com o mundo. É preciso que esses técnicos superem a visão deformada da especialidade, a que transforma a especialização em especialismo, escravizando-os a uma percepção estreita dos problemas. Agrônomos, técnicos agrícolas, sanitaristas, cooperativistas, alfabetizadores, todos nós temos muito o que aprender com os camponeses e se a isto nos recusamos, nada a eles podemos ensinar. Procurar compreender o discurso camponês será um passo decisivo na superação daquela percepção estreita dos problemas a que me referi acima. Outra possibilidade de aproveitamento da gravação das descodificações poderia ser a de, discutindo-as com os próprios camponeses, motivá-los a que fizessem montagens de dramatizações em torno de fatos por eles vividos e por eles narrados em seus debates. A palavra luta, por exemplo, têm suscitado em vários Círculos de Cultura de diferentes “asentamientos”, discussões bem vivas em que os camponeses falam do que significou para eles a conquista de um “fundo”, a luta para obter o direito à terra. São discussões em que contam um pouco de sua história, que não se encontra nos compêndios convencionais. Dramatizar estes fatos é não apenas uma forma de estimular a expressividade dos camponeses mas também de desenvolver a sua consciência política. Por outro lado, no momento em que estas gravações começassem a cobrir todas as áreas de reforma agrária do pais, podemos imaginar o alcance político-pedagógico que o intercâmbio do discurso camponês poderia ter. Este intercâmbio poderia ser estimulado também através do programa radiofônico sob a responsabilidade do “Instituto de Desarrollo Agropecuario” que poderia começar a transmitir alguns dos debates gravados, seguidos por comentários, em linguagem simples, feitos pela Equipe Central. Há algo mais que a análise deste discurso pode proporcionar: o reconhecimento de uma série de preocupações das comunidades camponesas que, em última análise, revelam uma temática a ser tratada interdisciplinarmente e na qual se poderia basear a organização do conteúdo programático para a post -alfabetização. Por que, ao pensar-se no que deve vir depois da alfabetização, se pensa sempre no programa da escola primária, na sua seriação tradicional? É como se a alfabetização dos adultos, mais rápida ou menos rápida, fosse um “tratamento” necessário que se lhes aplicasse para que depois atravessassem a monotonia da escola primária convencional. Uma alfabetização de adultos que rompe com os esquemas tradicionais não pode, por isso mesmo, prolongar-se numa post-alfabetização que a negue. Tão ligada ao esforço de produção quanto a alfabetização, a post-alfabetização nos “asentamientos” há de ser, como aquela, um ato de conhecimento e não de transferência deste. Seu conteúdo programático, partindo da realidade concreta dos camponeses, deve oferecer-lhes a possibilidade de ir superando o conhecimento ao nível preponderantemente “sensível” das coisas e dos fatos pela “razão de ser” dos mesmos. Daí que, apoiada na prática dos camponeses, a post -alfabetização nos “asentamientos” deva oferecer-lhes, em níveis que se vão ampliando, um conhecimento cada vez mais cientifico de seu quefazer e de sua realidade. A análise das descodificações gravadas proporciona a apreensão de temas básicos, capazes de ser desdobrados em unidades de aprendizagem nos mais variados campos. No da agricultura, no da saúde, no da matemática, no da ecologia, no da geografia, no da história, no da economia etc. O importante é que todos estes estudos se façam sempre em função da realidade concreta dos camponeses e de sua prática nela. Finalmente, transcritas as gravações das descodificações, a Equipe Central, assessorada por educadores de base e líderes camponeses, organizaria livros de textos – as antologias camponesas. Livros que poderiam ser acrescidos de um ou outro texto redigido pela equipe, como sugerimos na primeira parte deste trabalho. Da mesma forma como as gravações, os livros seriam intercambiados de área à área. Ao estudar seu próprio texto ou o texto de companheiros de outra área, os camponeses estariam estudando o discurso que brotou da descodificação de uma temática. Ao discutir e não apenas ao ler o discurso anterior, fariam a crítica deste discurso, com um novo, a ser gravado também. O discurso sobre o discurso anterior, que implica no conhecimento do conhecimento anterior, daria lugar a um novo livro, um segundo livro de leitura, cada vez mais rico, mais crítico, mais plural em sua temática. Desta maneira, se estaria tentando um esforço sério no sentido do desenvolvimento da expressividade dos camponeses que se iriam inserindo criticamente na realidade do “asentamiento”. Inserção crítica por meio da qual iriam ganhando mais rapidamente a clara compreensão de que à nova estrutura do “asentamiento” corresponde um novo pensamento-linguagem. Ação cultural e reforma agrária Santiago, 1968. Incidindo sobre a estrutura do latifúndio, transformando-a noutra, transitória, a do “asentamiento”, a reforma agrária exige um permanente pensar crítico em torno da ação transformadora mesma e dos resultados que dela se obtenham. Qualquer postura ingênua em face deste processo, da qual resultem quefazeres igualmente ingênuos, pode conduzir a erros e a equívocos funestos. Um desses equívocos, por,exemplo, pode ser o de reduzir a ação transformadora a um ato mecânico, através do qual a estrutura do latifúndio cederia seu lugar à do “asentamiento”, como quando alguém, mecanicamente, substitui uma cadeira por outra, ou a desloca de um lugar a outro. O equívoco fundamental a que esta visão, na melhor das hipóteses acrítica, pode levar, está em que se pretenda operar no domínio histórico-cultural, especificamente humano, em que se dá a reforma agrária, como quem se comporta no domínio das coisas. Mecanicismo, tecnicismo, economicismo são dimensões de uma mesma percepção acrítica do processo da reforma agrária. Implicam todas elas na minimização dos camponeses, como puros objetos da transformação. Dai que, numa tal perspectiva, de caráter reformista, o importante seja fazer as mudanças para e sobre os camponeses, como objetos, e não com eles, como sujeitos, também, da transformação. Se é indispensável que os camponeses adotem novos procedimentos técnicos para o aumento da produção, então não há outra coisa a fazer senão “estender” a eles as técnicas dos especialistas, com as quais se pretende substituir seus procedimentos empíricos. Desta forma, se esquece de que as técnicas, o saber científico, assim como o procedimento empírico dos camponeses se encontram condicionados histórico- culturalmente. Neste sentido são manifestações culturais tanto as técnicas dos especialistas quanto o comportamento empírico dos camponeses. Subestimar a capacidade criadora e recriadora dos camponeses, desprezar seus conhecimentos, não importa o nível em que se achem tentar “enchê-los” com o que aos técnicos, lhes parece certo, são expressões, em última análise, da ideologia dominante. Não queremos, contudo, com isto dizer que os camponeses devam permanecer no estado em que se encontram com relação a seu enfrentamento com o mundo natural e à sua posição em face da vida política do pais. Queremos afirmar que eles não devem ser considerados como “vasilhas” vazias nas quais se vá depositando o conhecimento dos especialistas, mas, pelo contrário, sujeitos, também, do processo de sua capacitação. Capacitação indispensável ao aumento da produção, cuja necessidade, demasiado óbvia, não necessita ser discutida. O que, porém, não apenas se pode mas se deve discutir, é a forma de compreender e de buscar o aumento da produção. A visão ingênua que, em sua percepção focalista da realidade, economicista, desconhece que não há produção fora das relações homem-mundo, termina por transformar os camponeses em meros instrumentos de produção. Assim, na medida em que despreza o fato de que não há produção fora das relações homem-mundo, não pode perceber sua importância. Daí que não possa compreender e, quando compreende, não dê a devida importância ao fato de que, transformando a realidade natural com seu trabalho, os homens criam o seu mundo. Mundo da cultura e da história que, criado por eles, sobre eles se volta, condicionando-os. Isto é o que explica a cultura como produto, capaz ao mesmo'tempo de condicionar seu criador. O que nos parece dever ficar claro é que o indispensável aumento da produção agrícola não pode ser visto como algo separado do universo cultural em que se dá. Os obstáculos ao aumento da produção, com os quais se defrontam os técnicos no processo da reforma agrária, são, em grande medida, obstáculos de caráter cultural. A resistência dos camponeses a esta ou àquela forma mais eficaz de trabalho, que implicaria numa maior produtividade, é de natureza cultural* . Os camponeses desenvolvem sua maneira de pensar e de visualizar o mundo de acordo com pautas culturais que, obviamente, se encontram marcadas pela ideologia dos grupos dominantes da sociedade global de que fazem parte. Sua maneira de pensar, condicionada por seu atuar ao mesmo tempo em que a este condiciona, de há muito e não de hoje, se vem constituindo, cristalizando. E se muitas destas formas de pensar e de atuar persistem hoje, mesmo em áreas em que os camponeses se experimentam em conflitos na defesa de seus direitos, com mais razão permanecem naquelas em que não tiveram uma tal experiência. Naquelas em que a reforma agrária simplesmente aconteceu. Esta é a razão que explica a manutenção de grande parte das manifestações culturais do latifúndio na estrutura transitória do “asentamiento”. Só um mecanicista terá dificuldades em entender que a supra-estrutura não se transforma automaticamente com a mudança infra-estrutural. A transformação de uma sociedade será, por isto mesmo, tão mais radical quanto seja um processo intra-estrutural que toma, assim, a estrutura como a dialetização entre a infra e a supra-estrutura. Muito da negatividade do que costumamos chamar “cultura do silêncio”, típica das estruturas fechadas como a do latifúndio, penetra, com seus sinais visíveis, na nova estrutura do “asentamiento”. Esta “cultura do silêncio”, gerada nas condições objetivas de uma realidade opressora, não somente condiciona a forma de estar sendo dos camponeses enquanto se acha vigente a infra-estrutura que a cria, mas continua condicionando-os, por largo tempo, ainda quando sua infra-estrutura tenha sido modificada. * A este propósito, ver Paulo Freire, Extensão ou Comunicação?, Ed. Paz e Terra, Rio, 1977, 3ª ed. (N. E.) Se a relação que havia antes entre a estrutura dominadora e as formas de perceber a realidade e de atuar nela está desaparecendo, isto não significa que as negatividades da “cultura do silêncio” hajam perdido sua força condicionante com a instalação do “asentamiento”. Seu poder inibidor permanece, não como reminiscência inconseqüente, mas como algo concreto, interferindo no quefazer novo que a nova estrutura demanda dos camponeses. Para que se esgote este poder inibidor é necessário que as novas relações humanas, características da estrutura recém- instaurada e baseadas numa realidade material diferente, sejam capazes de criar um estilo de vida radicalmente oposto ao anterior. E, ainda assim, a “cultura do silêncio” pode, de vez em quando, em função de certas condições favoráveis, “reativar-se”, reaparecendo em suas manifestações típicas. Só através da “dialética da sobredeterminação”* é possível compreender esta permanência que, na verdade, cria problemas e dificuldades até mesmo às transformações revolucionárias. Somente armados deste instrumento metodológico poderemos entender e explicar as reações de caráter fatalista dos camponeses em face dos desafios que a nova realidade lhes faz. Como também compreender que eles tenham, não raras vezes, no modelo dominador do patrão latifundista, o exemplo que devem seguir. Ou que, já enquanto “assentados”, lhes pareça normal dizer, referindo-se ao antigo patrão, “o verdadeiro patrão mora mais acima”* , não percebendo que, ao considerar o antigo patrão como o verdadeiro, estão questionando a validade mesma de seu estado de “assentados”, na realidade nova do “asentamiento”, em que devem superar a posição anterior de objetos, assumindo a de sujeitos. Ou ainda, que muitos vejam na Corporación de la Reforma Agrária seu novo patrão. Estas reações não podem ser entendidas pelos mecanicistas que, ingenuamente convencidos da transformação automática da supra-estrutura com a mudança da infra, tendem a explicá-las anticientificamente, considerando os camponeses como “preguiçosos e incapazes” e, às vezes também, “ingratos”. Daí que se inclinem a formas de ação vertical, paternalista, em lugar de estimular a tomada de decisão dos camponeses. Desta maneira, reativando a “cultura do silêncio” e mantendo os camponeses no estado de dependência, não contribuem em nada para a superação de sua percepção fatalista em face das situações limites; superação desta percepção fatalista por outra, crítica, capaz de divisar mais além destas situações, o que chamamos de “inédito viável”** . Daí que, frente a estas, fatalistamente, esta modalidade de consciência busque suas razões fora das situações mesmas, encontrando-as quase sempre, no destino ou no castigo divino* * * . A este nível, não é possível, realmente, uma percepção estrutural dos problemas de que resultaria sua inserção critica no processo de transformação. Isto só é possível quando, através de uma permanente mobilização dos camponeses, de sua participação ativa numa prática política, na defesa de seus interesses e na compreensão de que estes não devem ser antagônicos aos de seus companheiros, * Louis Althusser, Pour Marx, François Maspéro, Paris, 1967. * Afirmação feita por um líder camponês, em conversa com o autor, num “asentamiento”. * * Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. * * * “A seca atual é vingança de São Pedro, por seu dia já não ser feriado santo”, disse-nos um líder camponês num dos “asentamientos” trabalhadores urbanos, conseguem superar o estado que Goldman chama de “consciência real” pelo “máximo de consciência possível”.* Imobilizar os camponeses exercendo ainda sobre eles uma prática assistencialista, não pode constituir-se no caminho para tal superação. Por este caminho, os camponeses poderão ser, no máximo, incorporados como objetos ao processo da reforma agrária, jamais a ele incorporados como sujeitos dele. Podem ser incorporados à produção, como instrumentos dela, jamais incorporar-se a ela como sujeitos. Impõe-se, pelo contrário, uma modalidade de ação através da qual, culturalmente, se enfrente a “cultura do silêncio” e se opere a extrojeção de seus mitos. Nesta modalidade de ação, a realidade que mediatiza seus sujeitos se “entrega” à “admiração” destes, constituindo-se como objeto de conhecimento de ambos: educadores-educandos, educandos-educadores. Tudo isto demanda que o “asentamiento”, enquanto uma unidade de produção, seja entendido também como unidade cultural. Desta forma, a capacitação técnica dos camponeses jamais se reduziria à transferência de receitas tecnicistas e se faria uma atividade realmente criadora. Ao capacitar-se em novas técnicas, deveriam discutir a maneira como estiveram sendo, “silenciosamente”, na estrutura opressiva do latinfúndio. Enquanto a forma de ação assistencialista, vertical, manipuladora, envolve, necessariamente, a “invasão cultural”, a que defendemos propõe a “síntese cultural”*. Para que esta se dê é necessário que, desde o momento em que esta ação começa, já seja dialógica. Agrônomos, técnicos agrícolas, alfabetizadores, cooperativistas, sanitaristas devem encontrar-se com os camponeses, dialogicamente, tendo a realidade mesma do “asentamiento” como mediadora. Desta forma, o caráter de agentes da ação, que têm os que tornam a iniciativa desta, deixa de pertencer-lhes, na síntese, em cujo momento os camponeses assumem o papel também de agentes da ação. A ação cultural que se orienta no sentido da síntese tem seu ponto de partida na investigação temática ou dos temas geradores, por meio da qual os camponeses iniciam uma reflexão crítica sobre si mesmos, percebendo-se como estão sendo. Ao apresentar-se aos camponeses, durante a investigação temática, sua realidade objetiva, na qual e com a qual estão, como um problema, através de situações codificadas, refazem sua percepção anterior da realidade. Alcançam, assim, o conhecimento do conhecimento anterior, que os leva ao reconhecimento de erros e equívocos no antigo conhecimento* . Desta forma ampliam * Lucien Goldman, Las Ciencias Humanas y la Filosofia, Edición Nueva Vision, Buenos Aires. * A propósito de “invasão cultural” e “síntese cultural”, ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. (N. E) * Ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. (N. E.) o marco do conhecer, percebendo, em sua “visão de fundo”, dimensões até então não percebidas e que, agora, se lhes apresentam como “percebidos destacados em si”. Este tipo de ação cultural, reinsistamos, só tem sentido quando tenta constituir-se como um momento de teorização da prática social de que participam os camponeses. Se se aliena desta prática, se perde, esvaziada, num puro blá-blá-blá . Finalmente, a ação cultural como a entendemos não pode, de um lado, sobrepor-se à visão do mundo dos camponeses e invadí-los culturalmente; de outro, adaptar-se a ela. Pelo contrário, a tarefa que ela coloca ao educador é a de, partindo daquela visão, tomada como um problema, exercer, com os camponeses, uma volta crítica sobre ela, de que resulte sua inserção, cada vez mais lúcida, na realidade em trans- formação. O papel do trabalhador social no processo de mudança Santiago – 1968 Este encontro do qual participamos é uma oportunidade que as instituições governamentais aqui representadas oferecem a alguns de seus grupos de técnicos para pensar em comum. Pensar em comum em torno de problemas objetivos que envolvem sua atuação em seus vários campos de trabalho. Nossa contribuição se centra na discussão do tema que nos foi proposto: o papel do trabalhador social no processo de mudança. Para fazê-lo, devemos começar por exercer uma reflexão sobre a frase mesma que envolve o nosso tema A vantagem de assim proceder está em que a frase proposta se desvela ante nós em sua compreensão total. O adentramento que façamos neta, desde um ponto de vista crítico, nos possibilitará perceber a interação de seus termos na constituição de um pensamento estruturado, que contém um tema significativo. Este adentramento crítico na frase proposta, que nos leva à apreensão mais profunda de seu significado, supera a percepção ingênua, que sendo simplista, nos deixa sempre na periferia de tudo o que tratamos. Para o ponto de vista crítico que aqui defendemos, a operação de mirar implica noutra – a de ad-mirar. Ad-miramos e ao adentrar-nos no ad-mirado o miramos de dentro e desde dentro, o que nos faz ver. Na ingenuidade, que é uma forma “desarmada” de enfrentamento com a realidade, miramos apenas e, porque não ad-miramos, não podemos mirar o mirado em sua intimidade, o que não nos leva a ver o que foi puramente mirado. Por isto, é necessário que ad-miremos a frase proposta para, mirando-a de dentro, reconhecer que não deve ser tomada como um mero clichê. A frase em discussão não é um rótulo. Ela é, em si, um problema, um desafio. Enquanto apenas miremos a frase, ficando assim na sua periferia, provavelmente não faremos outra coisa, ao falar do tema que ela envolve, senão um discurso de “frases feitas”. A operação referida de adentramento crítico na frase proposta nos possibilita outra operação – a de sua cisão em suas partes constitutivas. Esta cisão da totalidade em suas partes nos permite retornar a ela (totalidade) alcançando desta forma uma compreensão mais vertical de sua significação. Ad-mirar, mirar desde dentro, cindir para voltar a mirar o todo ad-mirado, que são um ir até o todo e um voltar dele até suas partes, são operações que só se dividem pela necessidade que tem o espírito de abstrair para alcançar o concreto. No fundo, são operações que se implicam mutuamente. Ao ad-mirar a frase que envolve um tema desafiador, ao cindi-la em seus elementos, constatamos que o termo papel se acha modificado por uma expressão restritiva, que delimita sua “extensão”: do trabalhador social. Nesta, por outro lado, há um qualificativo: social, que incide sobre a “compreensão” do termo trabalhador. Esta subunidade da estrutura geral – papel do trabalhador social – se liga à segunda – processo de mudança – que representa, segundo a compreensão da frase, “onde” o papel se cumpre, através do conectivo em. Na verdade porém, o papel do trabalhador social não se dá no processo da mudança, como a inteligência puramente gramatical da frase nos sugere. O papel do trabalhador social se desenvolve num domínio mais amplo, no qual a mudança é um dos aspectos. O trabalhador social atua, com outros, na estrutura social. Daí que se nos imponha compreendê-la em sua complexidade. Se não a entendemos como algo que, para ser, tem de estar sendo, não teremos dela uma visão critica. O que, de fato, caracteriza a estrutura social não é a mudança nem a permanência tomadas em si mesmas, mas a “duração” da contradição entre ambas, em que uma delas pode ser preponderante sobre a outra. Na estrutura social, enquanto dialetização entre a infra e a supraestrutura, não há permanência da permanência nem mudança da mudança, mas o empenho de sua preservação em contradição com o esforço por sua transformação. Daí que não possa ser o trabalhador social, como educador que é, um técnico friamente neutro. Silenciar sua opção, escondê-la no emaranhado de suas técnicas ou disfarçá-la com a proclamação de sua neutralidade não significa na verdade ser neutro mas, ao contrário, trabalhar pela preservação do “status quo”. Daí a necessidade que tem de clarificar sua opção, que é política, através de sua prática, também política. Sua opção determina seu papel, como seus métodos de ação. É uma ingenuidade pensar num papel abstrato, num conjunto de métodos e de técnicas neutros para uma ação que se dá em uma realidade que também não é neutra. Assim, se a opção do trabalhador social é reacionária, sua ação e os métodos adotados se orientarão no sentido de frear as transformações. Em lugar de desenvolver um trabalho através do qual a realidade se vá desvelando a ele e aos com quem trabalha, em um esforço crítico comum, se preocupará, pelo contrário, em mitificar a realidade. Em lugar de ter nesta uma situação problemática que o desafia e aos homens com quem deveria estar em comunicação, sua tendência é inclinar-se a soluções de caráter assistencialista. O que o move, em última análise, através de ações e reações, é ajudar a “normalização” da “ordem estabelecida” que serve aos interesses da elite do poder. O trabalhador social que faz esta opção pode, e quase sempre tenta, disfarçá-la, aparentando sua adesão à mudança, ficando, porém, nas meias mudanças, que são uma forma de não mudar, Um dos sinais da opção reacionária do trabalhador social são suas inquietações em face das conseqüências da mudança, seu receio ao novo, seu medo, às vezes impossível de ser escondido, de perder seu “status social”. Daí que, em seus métodos de ação, não haja lugar para a comunicação, para a reflexão critica, para a criatividade, para a colaboração, mas para a manipulação ostensiva ou não. O trabalhador social reacionário não pode realmente interessar-se por que os indivíduos desenvolvam uma percepção critica de sua realidade. Não pode interessar- se por que exercitem uma reflexão, enquanto atuam, sobre a própria percepção que estão tendo da realidade. Não lhe interessa esta volta da percepção sobre a percepção, condicionada pela realidade em que se acham. É que, no momento em que os indivíduos, atuando e refletindo, são capazes de perceber o condicionamento de sua percepção pela estrutura em que se encontram, sua percepção começa a mudar, embora isto não signifique ainda a mudança da estrutura. É algo importante perceber que a rea1idade social é transformável; que feita pelos homens, pelos homens pode ser mudada; que não é algo intocável, um fado, uma sina, diante de que só houvesse um caminho: a acomodação a ela. É algo importante que a percepção ingênua da realidade vá cedendo seu lugar a uma percepção que é capaz de perceber-se; que o fatalismo vá sendo substituído por uma crítica esperança que pode mover os indivíduos a uma cada vez mais concreta ação em favor da mudança radical da sociedade. Ao trabalhador social reacionário nada disto interessa. Poderá dizer-se que a mudança da percepção não é possível antes da mudança da estrutura, na razão mesma do seu condicionamento por esta. Tal afirmação, se tomada de um ponto de vista extremado, pode., nos conduzir a interpretações mecanicistas das relações percepção-realidade. Por outro lado, para evitar qualquer confusão entre nossa posição e uma postura idealista, é necessário que digamos algo mais sobre este processo. A mudança da percepção da realidade pode dar-se “antes” da transformação desta, se não se empresta ao termo antes a significação de dimensão estagnada do tempo, com que lhe pode conotar a consciênc ia ingênua. A significação do antes, aqui, não é do sentido comum. O antes aqui não significa um momento anterior que estivesse separado do outro por uma fronteira rígida. O antes, pelo contrário, faz parte do processo de transformação estrutural. Desta forma, a percepção da realidade, distorcida pela ideologia dominante, pode ser mudada, na medida em que, no “hoje” em que se está verificando o antagonismo entre mudança e permanência, este antagonismo começa a se fazer um desafio. Esta mudança de percepção, que se dá na problematização de uma realidade conflitiva, implica num novo enfrentamento dos indivíduos com sua realidade. Implica numa “apropriação” do contexto, numa inserção nele, num já não ficar “aderido” a ele; num já não estar quase sob o tempo, mas nele. Se este esforço não pode ser desenvolvido pelo trabalhador social reacionário, deve ser uma preocupação constante do que se compromete com a mudança. Daí que seu papel seja diferente e que seus métodos de ação não possam confundir-se com aqueles recém-referidos, característicos
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