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PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente.PDF POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio.pdf Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. Memória, Esquecimento, Silencio• Michael Pollak* ======================================================================== Em sua análise da memória coletiva, Maurice Halbwachs enfatiza a força dos diferentes pontos de referência que estruturam nossa memória e que a inserem na memória da coletividade a que pertencemos.1 Entre eles incluem-se evidentemente os monumentos, esses lugares da memória analisados por Pierre Nora,2 o patrimônio arquitetônico e seu estilo, que nos acompanham por toda a nossa vida, as paisagens, as datas e personagens históricas de cuja importância somos incessantemente relembrados, as tradições e costumes, certas regras de interação, o folclore e a música, e, por que não, as tradições culinárias. Na tradição metodológica durkheimiana, que consiste em tratar fatos sociais como coisas, torna-se possível tomar esses diferentes pontos de referência como indicadores empíricos da memória coletiva de um determinado grupo, uma memória estruturada com suas hierarquias e classificações, uma memória também que, ao definir o que é comum a um grupo e o que, o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras sócio-culturais. Na abordagem durkheimiana, a ênfase é dada à força quase institucional. dessa memória coletiva, à duração, à continuidade e à estabilidade. Assim também Halbwachs, longe de ver nessa memória coletiva uma imposição, uma forma específica de dominação ou violência simbólica,3 acentua as funções positivas desempenhadas pela memória comum, a saber, de reforçar a coesão social, não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo, donde o termo que utiliza, de "comunidade afetiva". Na tradição européia do século XIX, em Halbwachs, inclusive, a nação é a forma mais acabada de um grupo, e a memória nacional, a forma mais completa de uma memória coletiva. Em vários momentos, Maurice Halbwachs insinua não apenas a seletividade de toda memória, mas também um processo de "negociação" para conciliar memória coletiva e memórias individuais: "Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas memórias • Esta tradução é de Dora Rocha Flaksman. * Michael Pollak é pesquisador do Centre National de Recherches Scientifiques - CNRS, ligado ao Institut d'Histoire du Temps Present e ao Groupe de Sociologie Politique et Morale. Estuda as relações entre política e ciências sociais e desenvolve atualmente uma pesquisa sobre os sobreviventes dos campos de concentração e sobre a Aids. 1 M. Halbwachs, La mémoire collective, Paris, PUF, 1968. 2 P. Nora, Les lieux de mémoire, Paris, Gallimard, 1985. 3 Para o conceito de violência simbólica, ver P. Bourdieu, Le sens pratique, Paris, Minuit, 1980, p. 224. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum."4 Esse reconhecimento do caráter potencialmente problemático de uma memória coletiva já anuncia a inversão de perspectiva que marca os trabalhos atuais sobre esse fenômeno. Numa perspectiva construtivista, não se trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas, mas de analisar como os fatos sociais se tornam coisas, como e por quem eles são solidificados e dotados de duração e estabilidade. Aplicada à memória coletiva, essa abordagem irá se interessar portanto pelos processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das memórias. Ao privilegiar a analise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à "Memória oficial", no caso a memória nacional. Num primeiro momento, essa abordagem faz da empatia com os grupos dominados estudados uma regra metodológica5 e reabilita a periferia e a marginalidade. Ao contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional. Por outro lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados.6 A memória entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes. A memória em disputa Essa predileção atual dos pesquisadores pelos conflitos e disputas em detrimento dos fatores de continuidade e de estabilidade deve ser relacionada com as verdadeiras batalhas da memória a que assistimos, e que assumiram uma amplitude particular nesses últimos quinze anos na Europa. Tomemos, a título de ilustração, o papel desempenhado pela reescrita da história em dois momentos fortes da destalinização, o primeiro deles após o XX Congresso do PC da União Soviética, quando Nikita Kruschev denunciou pela primeira vez os crimes estalinistas. Essa reviravolta da visão da história, indissociavelmente ligada à da linha política, traduziu-se na destruição progressiva dos signos e símbolos que lembravam Stalin na União Soviética e nos países satélites, e, finalmente na retirada dos despojos de Stalin do mausoléu da Praça Vermelha. Essa primeira etapa da destalinização, conduzida de maneira discreta dentro do aparelho, gerou transbordamentos e manifestações (das quais a mais importante foi a revolta húngara) que se apropriaram da destruição das estátuas de Stalin e a integraram em uma estratégia de independência e de autonomia. Embora tivesse arranhado o mito histórico dominante do "Stalin pai dos pobres", essa primeira destalinização não conseguiu realmente se impor, e com o fim da era kruschevista cessaram também as tentações de revisão da memória coletiva. Essa preocupação reemergiu cerca de trinta anos mais tarde no quadro da glasnost e da perestroika. Aí também o movimento foi lançado pela nova direção do partido ligada a Gorbachev. Mas, ao contrário dos anos 1950, essa nova abertura logo gerou um movimento intelectual com a reabilitação de alguns dissidentes atuais e, 4 M. Halbwachs, op. cit., p. 12. 5 M. Pollak, "Pour un inventaire", Cahiers de l'IHTP, n. 4 (Questions à l'histoire orale), Paris, 1987, p. 17. 6 G. Herberich-Marx, F. Raphael, "Les incorporés de force alsaciens. Déni, convocation et provocation de la mémoire". Vingtième Siècle, 2, 1985, p. 83. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. de maneira póstuma, de dirigentes que nos anos 1930 e 1940 haviam sido vítimas do terror estalinista. Esse sopro de liberdade de crítica despertou traumatismos profundamente ancorados que ganharam forma num movimento popular que se organiza em torno do projeto de construção de um monumento à memória das vítimas do estalinismo.7 Esse fenômeno, mesmo que possa "objetivamente" desempenhar o papel de um reforço à corrente reformadora contra a ortodoxia que continua a ocupar importantes posições no partido e no Estado, não pode porém ser reduzido a este aspecto. Ele consiste muito mais na irrupção de ressentimentos acumulados no tempo e de uma memória da dominação e de sofrimentos que jamais puderam se exprimir publicamente. Essa memória "proibida" e portanto "clandestina" ocupa toda a cena cultural, o setor editorial, os meios de comunicação, o cinema e a pintura, comprovando, caso seja necessário, o fosso que separa de fato a sociedade civil e a ideologia oficial de um partido e de um Estado que pretende a dominação hegemônica. Uma vez rompido o tabu, uma vez que as memórias subterrâneas conseguem invadir o espaço público, reivindicações múltiplas e dificilmente previsíveis se acoplam a essa disputa da memória, no caso, as reivindicações das diferentes nacionalidades. Este exemplo mostra a necessidade, para os dirigentes, de associar uma profunda mudança política a uma revisão (auto)crítica do passado. Ele remete igualmente aos riscos inerentes a essa revisão, na medida em que os dominantes não podem jamais controlar perfeitamente até onde levarão as reivindicações que se formam ao mesmo tempo em que caem os tabus conservados pela memória oficial anterior. Este exemplo mostra também a sobrevivência durante dezenas de anos, de lembranças traumatizantes, lembranças que esperam o momento propício para serem expressas. A despeito da importante doutrinação ideológica, essas lembranças durante tanto tempo confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e não através de publicações, permanecem vivas. O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas. Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, a clivagem entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas, assim como a significação do silêncio sobre o passado, não remete forçosamente à oposição entre Estado dominador e sociedade civil. Encontramos com mais freqüência esse problema nas relações entre grupos minoritários e sociedade englobante. O exemplo seguinte, completamente diferente, é o dos sobreviventes dos campos de concentração que, após serem libertados, retornaram à Alemanha ou à Áustria. Seu silêncio sobre o passado está ligado em primeiro lugar à necessidade de encontrar um modus vivendi com aqueles que, de perto ou de longe, ao menos sob a forma de consentimento tácito, assistiram à sua deportação. Não provocar o sentimento de culpa da maioria torna-se então um reflexo de proteção da minoria judia. Contudo, essa atitude é ainda reforçada pelo sentimento de culpa que as próprias vítimas podem ter, oculto no fundo de si mesmas. É sabido que a administração nazista conseguiu impor à comunidade judia uma parte importante da gestão administrativa de sua política anti-semita, como a preparação das listas dos futuros deportados ou até mesmo a gestão de certos locais de trânsito ou a organização do abastecimento nos comboios. Os representantes da comunidade judia deixaram-se levar a negociar com as autoridades nazistas, esperando primeiro poder alterar a política oficial, mais tarde "limitar as perdas", para finalmente 7 H. Carrère d'Encausse, Le malheur russe, Paris, Fayard, 1988. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. chegar a uma situação na qual se havia esboroado até mesmo a esperança de poder negociar um melhor tratamento para os últimos empregados da comunidade. Esta situação, que se repetiu em todas as cidades - onde havia comunidades judaicas importantes, ilustra particularmente bem o encolhimento progressivo daquilo que é negociável, e também a diferença ínfima que às vezes separa a defesa do grupo e sua resistência da colaboração e do comprometimento. Seria tão espantoso assim que um historiador do nazismo tão eminente como Walter Laqueur tenha escolhido o gênero do romance para dar conta dessa situação inextricável?8 Em face dessa lembrança traumatizante, o silêncio parece se impor a todos aqueles que querem evitar culpar as vítimas. E algumas vítimas, que compartilham essa mesma lembrança "comprometedora", preferem, elas também, guardar silêncio. Em lugar de se arriscar a um mal-entendido sobre uma questão tão grave, ou até mesmo de reforçar a consciência tranqüila e a propensão ao esquecimento dos antigos carrascos, não seria melhor se abster de falar? Poucos períodos históricos foram tão estudados como o nazismo, incluindo-se aí sua política anti-semita e a exterminação dos judeus. Entretanto, a despeito da abundante literatura e do lugar concedido a esse período nos meios de comunicação, freqüentemente ele permanece um tabu nas histórias individuais na Alemanha e na Áustria, nas conversas familiares e, mais ainda, nas biografias dos personagens públicos.9 Assim como as razões de um tal silêncio são compreensíveis no caso de antigos nazistas ou dos milhões de simpatizantes do regime, elas são difíceis de deslindar no caso das vítimas. Nesse caso, o silêncio tem razões bastante complexas. Para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de mais nada encontrar uma escuta. Em seu retomo, os deportados encontraram efetivamente essa escuta, mas rapidamente o investimento de todas as energias na reconstrução do pós-guerra exauriu a vontade de ouvir a mensagem culpabilizante dos horrores dos campos. A deportação evoca necessariamente sentimentos ambivalentes, até mesmo de culpa, e isso também nos países vencedores onde, como na França, a indiferença e a colaboração marcaram a vida cotidiana ao menos tanto quanto a resistência. Não vemos, desde 1945, desaparecerem das comemorações oficiais os antigos deportados de roupa listrada, que despertam também o sentimento de culpa e que, com exceção dos deportados políticos, se integram mal em um desfile de ex-combatentes? "1945 organiza o esquecimento da deportação, os deportados chegam quando as ideologias já estão colocadas, quando a batalha pela memória já começou, a cena política já está atulhada: eles são demais."10 A essas razões políticas do silêncio acrescentam-se aquelas, pessoais, que consistem em querer poupar os filhos de crescer na lembrança das feridas dos pais. Quarenta anos depois convergem razões políticas e familiares que concorrem para romper esse silêncio: no momento em que as testemunhas oculares sabem que vão desaparecer em breve, elas querem inscrever suas lembranças contra o esquecimento. E seus filhos, eles também, querem saber, donde a proliferação atual de testemunhos e de publicações de jovens intelectuais judeus que fazem "da pesquisa de suas origens a origem de sua 8 W. Laqueur, Jahre aul Abruf, Stuttgart, WDV, 1983. 9 Entre todos os exemplos desse fenômeno de esquecimentos sucessivos e de reescritas da história biográfica, um dos últimos, o do presidente austríaco Kurt Waldheim, é particularmente expressivo. 10 G. Namer, La commémortion en France, 1944-1982, Paris, Papyros, 1983, p. 157 e seg.; M. Pollak e N. Heinich, "Le témoignage", Actes de la recherche en sciences sociales, 62/63, 1986, p. 3 e seg. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. pesquisa".11 Nesse meio tempo, foram as associações de deportados que, mal ou bem, conservaram e transmitiram essa memória. Um último exemplo mostra até que ponto uma situação ambígua e passível de gerar mal-entendidos pode, ela também, levar ao silêncio antes de produzir o ressentimento que está na origem das reivindicações e contestações inesperadas. Trata-se dos recrutados a força alsacianos, estudados por Freddy Raphael.12 Após o fracasso de uma política de recrutamento voluntário acionada no início da Segunda Guerra Mundial pelo exército alemão na Alsácia anexada, o recrutamento forçado foi decidido por decretos de 25 e 29 de agosto de 1942. De outubro de 1942 a novembro de 1944, 130.000 alsacianos e lorenos foram incorporados a diferentes formações do exército alemão. Ocorreram atos de revolta, de resistência e de desobediência, bem como um número significativo de deserções. A despeito desses indícios do caráter coercitivo dessa participação na guerra ao lado dos nazistas, colocou-se a questão, depois da guerra, do grau de colaboração e comprometimento desses homens. Feitos prisioneiros de guerra no front oriental pelo Exército Vermelho, muitos deles morreram ou regressaram apenas em meados dos anos 1950. Trata-se, por definição, de uma experiência dificilmente dizível no contexto do mito de uma nação de resistentes, tão rico de sentido nas primeiras décadas do pós-guerra. A partir daí, Freddy Raphael distingue três grandes etapas: à memória envergonhada de uma geração perdida seguiu-se a das associações de desertores, evadidos e recrutados a forca que lutam pelo reconhecimento de uma situação valorizadora das vítimas e dos "Malgré nous", sublinhando sua atitude de recusa e de resistência passiva. Mas hoje, essa memória canalizada e esterilizada se revolta e se afirma a partir de um sentimento de absurdo e de abandono. Ela se considera mal compreendida e vilipendiada e se engaja num combate contestatório e militante.13 A memória subterrânea dos recrutados a força alsacianos toma a dianteira e se crige então contra aqueles que tentaram forjar um mito, a fim de eliminar o estigma da vergonha: "A organização das lembranças se articula igualmente com a vontade de denunciar aqueles aos quais se atribui a maior responsabilidade pelas afrontas sofridas... Parece, no entanto, que a culpabilidade alemã como fator de reorganização das lembranças intervém relativamente pouco; em todo caso, sua incidência é significativamente reduzida em comparação com a denúncia da barbárie russa, bem como da covardia e da indiferença francesas."14 No momento do retorno do reprimido, não é o autor do "crime" (a Alemanha) que ocupa o primeiro lugar entre os acusados, mas aqueles que, ao forjar uma memória oficial, conduziram as vítimas da história ao silêncio e à renegação de si mesmas. Esse mecanismo é comum a muitas populações fronteiriças da Europa que, em lugar de poderem agir sobre sua história, freqüentemente se submeteram a ela de bom ou mau grado: "Meu avô francês foi feito prisioneiro pelos prussianos em 1870; meu pai alemão foi feito prisioneiro pelos franceses em 1918; eu, francês, fui feito prisioneiro pelos alemães em junho de 1940, e depois, recrutado a força pela Wehrmacht em 1943, fui feito prisioneiro pelos russos em 1945. Veja o senhor que nós temos um sentido da história muito particular. Estamos sempre do 11 N. Lapierre, Le silence de la memóire. A la recherche des Juifs de Plock, Paris, Plon, 1989, p. 28. 12 G. Herberich-Marx, F. Raphael, op. cit. 13 Idem ib., p. 83 e 93. 14 Idem ib., p. 94. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. lado errado da história, sistematicamente: sempre acabamos as guerras com o uniforme do prisioneiro, o nosso único uniforme permanente."15 A função do "não-dito" À primeira vista, os três exemplos expostos acima não têm nada em comum: a irrupção de uma memória subterrânea favorecida, quando não suscitada, por uma política de reformas que coloca em crise o aparelho do partido e do Estado; o silêncio dos deportados, vítimas por excelência, fora de suas redes de sociabilidade, mostrando as dificuldades de integrar suas lembranças na memória coletiva da nação; os recrutados a força alsacianos, remetendo à revolta da figura do "mal-amado" e do "incompreendido", que visa superar seu sentimento de exclusão e restabelecer o que considera ser a verdade e a justiça. Mas esses exemplos têm em comum o fato de testemunharem a vivacidade das lembranças individuais e de grupos durante dezenas de anos, e até mesmo séculos.16 Opondo-se à mais legítima das memórias coletivas, a memória nacional, essas lembranças são transmitidas no quadro familiar, em associações, em redes de sociabilidade afetiva e/ou política. Essas lembranças proibidas (caso dos crimes estalinistas), indizíveis (caso dos deportados) ou vergonhosas (caso dos recrutados à força) são zelosamente guardadas em estruturas de comunicação informais e passam despercebidas pela sociedade englobante. Por conseguinte, existem nas lembranças de uns e de outros zonas de sombra, silêncios, "não-ditos". As fronteiras desses silêncios e "não-ditos" com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento.17 Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos. No plano coletivo, esses processos não são tão diferentes dos mecanismos psíquicos ressaltados por Claude Olievenstein: "A linguagem e apenas a vigia da angústia... Mas a linguagem se condena a ser impotente porque organiza o distanciamento daquilo que não pode ser posto à distância. É aí que intervém, com todo o poder, o discurso interior, o compromisso do não-dito entre aquilo que o sujeito se confessa a si mesmo e aquilo que ele pode transmitir ao exterior."18 A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor. Distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis às memórias marginalizadas é de saída reconhecer a que ponto o presente colore o passado. Conforme as circunstâncias, ocorre a emergência de certas lembranças, a ênfase é dada a um ou outro aspecto. Sobretudo a lembrança de guerras ou de grandes convulsões internas remete sempre ao presente, deformando e reinterpretando o passado. Assim também, há uma permanente interação entre o vivido e o 15 Memórias de um mineiro loreno colhidas por Jean Hurtel, citadas em G. Herberich-Marx, F. Raphael, op. cit. 16 Ver Ph. Joutard, Ces voix qui nous viennent du passé, Paris, Hachette, 1983. 17 C. Olievenstein, Les non-dits de l'émotion, Paris, Odile Jacob, 1988. 18 Idem ib., p. 57. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. aprendido, o vivido e o transmitido. E essas constatações se aplicam a toda forma de memória, individual e coletiva, familiar, nacional e de pequenos grupos.19 O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para invadir o espaço público e passar do "não-dito" à contestação e à reivindicação; o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também de sua organização. Para que emeria nos discursos políticos um fundo comum de referências que possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é indispensável para superar a simples "montagem" ideológica, por definição precária e frágil. O enquadramento da memória Estudar as memórias coletivas fortemente constituídas, como a memória nacional, implica preliminarmente a análise de sua função. A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis. Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum, em que se inclui o território (no caso de Estados), eis as duas funções essenciais da memória comum. Isso significa fornecer um quadro de referências e de pontos de referência. É portanto absolutamente adequado falar, como faz Henry Rousso, em memória enquadrada, um termo mais específico do que memória coletiva.20 Quem diz "enquadrada" diz "trabalho de enquadramento".21 Todo trabalho de enquadramento de uma memória de grupo tem limites, pois ela não pode ser construída arbitrariamente. Esse trabalho deve satisfazer a certas exigências de justificação.22 Recusar levar a sério o imperativo de justificação sobre o qual repousa a possibilidade de coordenação das condutas humanas significa admitir o reino da injustiça e da violência. À luz de tudo o que foi dito acima sobre as memórias subterrâneas, pode-se colocar a questão das condições de possibilidade e de duração de uma memória imposta sem a preocupação com esse imperativo de justificação. Nesse caso, esse imperativo pode se impor após adiamentos mais ou menos longos. Ainda que quase sempre acreditem que "o tempo trabalha a seu favor" e que "o esquecimento e o perdão se instalam com o tempo", os dominantes freqüentemente são levados a reconhecer, demasiado tarde e com pesar, que o intervalo pode contribuir para reforçar a amargura, o ressentimento e o ódio dos dominados, que se exprimem então com os gritos da contraviolência. 19 D. Veillon, "La Seconde Guerre Mondiale à travers les sources orales", Cahiers de l'IHTP, n. 4 (Questions à l'histoire orale), 1987, p. 53 e seg. 20 H. Rousso, "Vichy, le grand fossé", Vingtième Siècle, 5, 1985, p. 73. 21 O trabalho político é sem dúvida a expressão mais visível desse trabalho de enquadramento da memória: P. Bourdieu, "La représentation politique", Actes de la recherche en sciences sociales, 36/37, 1981, p. 3 e seg. 22 L. Boltanski, Les économies de la grandeur, Paris, PUF, 1987, p. 14 e seg. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem-número de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro. Mas, assim como a exigência de justificação discutida acima limita a falsificação pura e simples do passado na sua reconstrução política, o trabalho permanente de reinterpretação do passado é contido por uma exigência de credibilidade que depende da coerência dos discursos sucessivos. Toda organização política, por exemplo - sindicato, partido etc. -, veicula seu próprio passado e a imagem que ela forjou para si mesma. Ela não pode mudar de direção e de imagem brutalmente a não ser sob risco de tensões difíceis de dominar, de cisões e mesmo de seu desaparecimento, se os aderentes não puderem mais se reconhecer na nova imagem, nas novas interpretações de seu passado individual e no de sua organização. O que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual e do grupo. Temos exemplos disso por ocasião de congressos de partidos em que ocorrem reorientações que produzem rachas, mas também por ocasião de uma volta reflexiva sobre o passado nacional,23 como a passagem, na França, de uma memória idealizante, que exagera o papel da Resistência, a uma visão mais realista que reconhece a importância da colaboração.24 Esse trabalho de enquadramento da memória tem seus atores profissionalizados, profissionais da história das diferentes organizações de que são membros, clubes e células de reflexão. Esse papel existe também, embora de maneira menos claramente definida, nas associações de deportados ou de ex-combatentes. Pode-se perceber isso quando se aborda, no contexto de uma pesquisa de história oral, os responsáveis por tais associações. Em minha pesquisa sobre as sobreviventes do campo de Auschwitz-Birkenau, uma das responsáveis pela associação me disse, antes de me pôr em contato com algumas de suas companheiras: "O senhor deve compreender que nós nos consideramos um pouco como as guardiãs da verdade." Esse trabalho de controle da imagem da associação implica uma oposição forte entre o "subjetivo" e o "objetivo", entre a reconstrução de fatos e as reações e sentimentos pessoais. A escolha das testemunhas feita pelas responsáveis pela associação é percebida como tanto mais importante quanto a inevitável diversidade dos testemunhos corre sempre o risco de ser percebida como prova da inautenticidade de todos os fatos relatados. Dentro da preocupação com a imagem que a associação passa de si mesma e da historia que é sua razão de ser, ou seja, a memória de seus deportados, é preciso portanto escolher testemunhas sóbrias e confiáveis aos olhos dos dirigentes, e evitar que "mitômanos que nós também temos" tomem publicamente a palavra.25 Se o controle da memória se estende aqui à escolha de testemunhas autorizadas, ele é efetuado nas organizações mais formais pelo acesso dos pesquisadores aos arquivos e pelo emprego de "historiadores da casa". Além de uma produção de discursos organizados em torno de acontecimentos e de grandes personagens, os rastros desse trabalho de enquadramento são os objetos materiais: monumentos, 23 D. Veillon, op. cit. 24 H. Rousso, Le syndrome de Vichy, Paris, Le Seuil, 1987. 25 M. Pollak e N. Heinich, "Le témoignage", Actes de la recherche en sciences sociales, 62/63, 1986, p. 13. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. museus, bibliotecas etc.26 A memória é assim guardada e solidificada nas pedras: as pirâmides, os vestígios arqueológicos, as catedrais da Idade Média, os grandes teatros, as óperas da época burguesa do século XIX e, atualmente, os edifícios dos grandes bancos. Quando vemos esses pontos de referência de uma época longínqua, freqüentemente os integramos em nossos próprios sentimentos de filiação e de origem, de modo que certos elementos são progressivamente integrados num fundo cultural comum a toda a humanidade. Nesse sentido, não podemos nós todos dizer que descendemos dos gregos e dos romanos, dos egípcios, em suma, de todas as culturas que, mesmo tendo desaparecido, estão de alguma forma à disposição de todos nós? O que aliás não impede que aqueles que vivem nos locais dessas heranças extraiam disso um orgulho especial. Nas lembranças mais próximas, aquelas de que guardamos recordações pessoais, os pontos de referência geralmente apresentados nas discussões são, como mostrou Dominique Veillon, de ordem sensorial: o barulho, os cheiros, as cores. Em relação ao desembarque da Normandia e à libertação da França, os habitantes de Caen ou de Saint-Lô, situadas no centro das batalhas, não atribuem um lugar central em suas recordações à data do acontecimento, lembrada em inúmeras publicações e comemorações - o 6 de junho de 1944 -, e sim aos roncos dos aviões, explosões, barulho de vidros quebrados, gritos de terror, choro de crianças. Assim também com os cheiros: dos explosivos, de enxofre, de fósforo, de poeira ou de queimado, registrados com precisão.27 Ainda que seja tecnicamente difícil ou impossível captar todas essas lembranças em objetos de memória confeccionados hoje, o filme é o melhor suporte para fazê-lo: donde seu papel crescente na formação e reorganização, e portanto no enquadramento da memória. Ele se dirige não apenas às capacidades cognitivas, mas capta as emoções. Basta pensar no impacto do filme Holocausto, que, apesar de todas as suas fraquezas, permitiu captar a atenção e as emoções, suscitar questões e assim forçar uma melhor compreensão desse acontecimento trágico em programas de ensino e pesquisa e, indiretamente, na memória coletiva. A obra monumental de Lanzinann, Shoah, sob todos os aspectos fora de comparação com o filme de grande público Holocausto, quer impedir o esquecimento pelo testemunho do insustentável. O filme-testemunho e documentário tornou-se um instrumento poderoso para os rearranjos sucessivos da memória coletiva e, através da televisão, da memória nacional. Assim, os filmes Le chagrin et la pitié e depois Français si' vous saviez desempenharam um papel-chave na mudança de apreciação do período de Vichy por parte da opinião pública francesa, donde as controvérsias que esses filmes suscitaram e sua proibição na televisão durante longos anos.28 Vê-se que as memórias coletivas impostas e defendidas por um trabalho especializado de enquadramento, sem serem o único fator aglutinador, são certamente um ingrediente importante para a perenidade do tecido social e das estruturas institucionais de uma sociedade. Assim, o denominador comum de todas essas memórias, mas também as tensões entre elas, intervêm na definição do consenso social e dos conflitos num determinado momento conjuntural. Mas nenhum grupo social, nenhuma instituição, por mais estáveis e sólidos que possam parecer, têm sua perenidade assegurada. Sua memória, contudo, pode sobreviver a seu desaparecimento, assumindo em geral a forma de um mito que, por não poder se ancorar na realidade política do 26 G. Namer, Mémoire et société, Paris, Méridiens/Klincksiek, 1987, analisa essa função aplicada às bibliotecas, e F. Raphael e G. Herberich-Marx analisam os museus nessa mesma perspectiva: "Le musée, provocation de la mémoire", Ethnologie française, 17, 1, 1987, p. 87 e seg. 27 D. Veillon, op. cit. 28 A análise desses exemplos encontra-se em H. Rousso, op. cit. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. momento, alimenta-se de referências culturais, literárias ou religiosas. O passado longínquo pode então se tornar promessa de futuro e, às vezes, desafio lançado à ordem estabelecida. Observou-se a existência numa sociedade de memórias coletivas tão numerosas quanto as unidades que compõem a sociedade. Quando elas se integram bem na memória nacional dominante, sua coexistência não coloca problemas, ao contrário das memórias subterrâneas discutidas acima. Fora dos momentos de crise, estas últimas são difíceis de localizar e exigem que se recorra ao instrumento da história oral. Indivíduos e certos grupos podem teimar em venerar justamente aquilo que os enquadradores de uma memória coletiva em um nível mais global se esforçam por minimizar ou eliminar. Se a análise do trabalho de enquadramento de seus agentes e seus traços materiais é uma chave para estudar, de cima para baixo, como as memórias coletivas são construídas, desconstruídas e reconstruídas, o procedimento inverso, aquele que, com os instrumentos da história oral, parte das memórias individuais, faz aparecerem os limites desse trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um trabalho psicológico do indivíduo que tende a controlar as feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças pessoais. O mal do passado Tais dificuldades e contradições são particularmente marcadas em países que atravessaram guerras civis num passado próximo, como a Espanha, a Áustria ou a Grécia. Um outro exemplo muito ilustrativo são as discussões na Alemanha sobre o fim da Segunda Guerra Mundial. Foi uma libertação ou uma guerra perdida, ou as duas coisas ao mesmo tempo? Como organizar a comemoração de um acontecimento que provoca tantos sentimentos ambivalentes, perpassando não apenas todas as organizações políticas, mas muitas vezes um mesmo indivíduo? Do lado oposto, a vontade de esquecer os traumatismos do passado freqüentemente surge em resposta à comemoração de acontecimentos dilaceradores. Uma análise de conteúdo de cerca de quarenta relatos autobiográficos de mulheres sobreviventes do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, publicados em francês, inglês e alemão, e completados por entrevistas, revela em muitos casos o desejo, simultâneo ao regresso do campo, de testemunhar e esquecer para poder retomar uma vida "normal".29 Muitas vezes também o silêncio das vítimas internadas oficialmente nos campos por motivos outros que não "políticos" reflete uma necessidade de fazer boa figura diante das representações dominantes que valorizam as vítimas da perseguição política mais que as outras. Assim, o fato de ter sido condenada por "vergonha racial", delito que, segundo a legislação de 1935, proibia as relações sexuais entre "arianos" e "judeus", constituiu um dos maiores obstáculos que uma das mulheres entrevistadas sentia para falar de si mesma.30 Uma pesquisa de história oral feita na Alemanha junto aos sobreviventes homossexuais dos campos comprova tragicamente o silêncio coletivo daqueles que, depois da guerra, muitas vezes temeram. que a revelação das razões de seu internamento pudesse provocar denúncia, perda de emprego ou revogação de um contrato de locação.31 Compreende-se por que certas vítimas da máquina de repressão do Estado-SS - os criminosos, as prostitutas, os "associais", os 29 M. Pollak e N. Heinich, op. cit. 30 G. Botz, M. Pollak, "Sui-vivre dans un camp de concentration", Actes de la recherche en sciences sociales, 41, 1982, p. 3 e seg. 31 R. Lautmann, Der Zwang zur Tugend, Frankfurt, Suhrkamp, 1984, p, 156 e seg. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. vagabundos, os ciganos e os homossexuais - tenham sido conscienciosamente evitadas na maioria das "memórias enquadradas" e não tenham praticamente tido voz na historiografia. Pelo fato de a repressão de que são objeto ser aceita há muito tempo, a história oficial evitou também durante muito tempo submeter a intensificação assassina de sua repressão sob o nazismo a uma análise científica. Assim como uma "memória enquadrada", uma história de vida colhida por meio da entrevista oral, esse resumo condensado de uma história social individual, é também suscetível de ser apresentada de inúmeras maneiras em função do contexto no qual é relatada. Mas assim como no caso de uma memória coletiva, essas variações de uma história de vida são limitadas. Tanto no nível individual como no nível do grupo, tudo se passa como se coerência e continuidade fossem comumente admitidas como os sinais distintivos de uma memória crível e de um sentido de identidade assegurados.32 Em todas as entrevistas sucessivas - no caso de histórias de vida de longa duração - em que a mesma pessoa volta várias vezes a um número restrito de acontecimentos (seja por sua própria iniciativa, seja provocada pelo entrevistador), esse fenômeno pode ser constatado até na entonação. A despeito de variações importantes, encontra-se um núcleo resistente, um fio condutor, uma espécie de leit-motiva em cada história de vida. Essas características de todas as histórias de vida sugerem que estas últimas devem ser consideradas como instrumentos de reconstrução da identidade, e não apenas como relatos factuais. Por definição reconstrução a posteriori, a historia de vida ordena acontecimentos que balizaram uma existência. Além disso, ao contarmos nossa vida, em geral tentamos estabelecer Lima certa coerência por meio de laços lógicos entre acontecimentoschaves (que aparecem então de uma forma cada vez mais solidificada e estereotipada), e de uma continuidade, resultante da ordenação cronológica. Através desse trabalho de reconstrução de si mesmo o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas relações com os outros. Pode-se imaginar, para aqueles e aquelas cuja vida foi marcada por múltiplas rupturas e traumatismos, a dificuldade colocada por esse trabalho de construção de uma coerência e de uma continuidade de sua própria história. Assim como as memórias coletivas e a ordem social que elas contribuem para constituir, a memória individual resulta da gestão de um equilíbrio precário, de um sem-número de contradições e de tensões. Encontramos traços disso em nossa pesquisa sobre as mulheres sobreviventes do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, sobretudo entre aquelas para as quais a inexistência de um engajamento político impossibilitou conferir um sentido mais geral ao sofrimento individual. Assim, as dificuldades e bloqueios que eventualmente, surgiram ao longo de uma entrevista só raramente resultavam de brancos da memória ou de esquecimentos, mas de uma reflexão sobre a própria utilidade de falar e transmitir SCLI passado. Na ausência de toda possibilidade de se fazer compreender, o silêncio sobre si próprio - diferente do esquecimento - pode mesmo ser uma condição necessária (presumida ou real) para a manutenção da comunicação com o meio-am6i ente, como no caso de uma sobrevivente judia que escolheu permanecer na Alemanha. Uma entrevista feita com uma deportada residente em Berlim mostrou que um passado que permanece mudo é muitas vezes menos o produto do esquecimento do que de um trabalho de gestão da memória segundo as possibilidades de comunicação. Durante toda a entrevista, a significação das palavras "alemã" e "judia" se alterou em função das situações que apareciam no relato. Ao utilizar esses termos, essa mulher ora se integrava, ora se excluía do grupo e das características por eles designados. Da mesma forma, o desenrolar dessa entrevista revelou que 32 M. Pollak, "Encadrement et silence: le travail de la mémoire", Pénélope, 12, 1985, p. 37. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. ela havia organizado toda a sua vida social em Berlim não em torno da possibilidade de poder falar de sua experiência no campo, mas de uma maneira capaz de lhe proporcionar um sentimento de segurança, ou seja, de ser compreendida sem ter que falar sobre isso.33 Esse exemplo sugere que mesmo no nível individual o trabalho da memória é indissociável da organização social da vida. Para certas vítimas de uma forma limite da classificação social, aquela que quis reduzi-las à condição de "sub-homens", o silêncio, além da acomodação ao meio social, poderia representar também uma recusa em deixar que a experiência do campo, uma situação limite da experiência humana, fosse integrada em uma forma qualquer de "memória enquadrada" que, por princípio, não escapa ao trabalho de definição de fronteiras sociais. É como se esse sofrimento extremo exigisse uma ancoragem numa memória muito geral, a da humanidade, uma memória que não dispõe nem de porta-voz nem de pessoal de enquadramento adequado. 33 M. Pollak, "La gestion de l'indicible", Actes de la recherche en sciences sociales, 62/63, 1986, p. 30 e seg. MENEZES, Ulpiano Bezerra. A História, cativa da memória.pdf BOM MEHY, José Carlos Sebe. Manual de história oral.pdf ALBERTI, Verena. Ouvir contar.pdf JOUTARD, Philippe. História oral, balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos.PDF Capítulo 5 História oral: balan~o da metodologia produ~éio nos últimos 25 anos* e da Philippe Joutard** oprópriotítulodenossotemamostraclaramenteo espírito queanimaos setetrabalhosquemeforamapresentadose o relatórioque os sintetiza:naose tratade urnasériede pesquisaspontuaisde história oral, masde um balanc;osistemáticoque,a partirde diversostrabalhos individuaisou pesquisascoletivas,procuramostrara evoluc;aode urna prática,tantono quediz respeitoaosmétodosquantoao conteúdoe ao papelda históriaoralno conjuntoda historiografiacontemporanea.Para garantirao debatecertaunidade,envieiaosparticipantesurnabrevenota indicativa,maissoba formade quest6esquede afirmac;6es. Quadro do debate Parti de urna constatac;aobem conhecida:afora a história afri- cana, que desde os primórdios se serviu de fontes orais, a história se constituiucientificamente,desdeo séculoXVII, a partir da crítica da tra- dic;aooral e, mais genericamente,do testemunho.Assim, a reintroduc;ao * Joutard, Philippe. L'histoire orale: bilan d'un quart de siecle de réflexion méthodologique et de travaux. In: XVllIe Congres Intemational des SciencesHistoriques, Montréal, 1995. Actes... Montréal, Comité International des Sciences HistOriques, 1995. p. 205-18. *', Academia de Toulouse, Fran~a. 44 Usos & ABUSOS DA HISTÓRIA ORAL HISTÓRlA ORAL BAIAN~O DA METODOIOGIA E DA PRODU~AO NOS ÚLTIMOS 25 ANOS 45 da fonte oral na segundametadedo séculoXX em paísesde antigatra- di<;:aoescritanao foi bem recebidapeloshistoriadores,salvo talveznos Es- tados Unidos, precursornessa matéria. Os adeptosda história oral nao raro ficam a margemda história académica,constituindogruposparticu- lares com suas próprias institui<;:oes,sociedades,revistase seminários. Primeira questao:é grandeessamarginalizac;:ao?E, quandohou- veum reconhecimentoda históriaoral, n:anteveela sua originalidade?A própria expressaohistória oral cria problemas,particularmentena Franc;:a, na medidaem que há um confrontopermanenteentre o escritoe o oral, donde alguns preferirem a expressaoarquivos orais. Esse debate ainda tem algum sentido? A segundasérie de questoesdizia respeitoa contribuic;:aoda his- tória oral nos últimos 25 anos, tanto no que se refere aos temasabor- dadosquantoaos períodosfocalizados.Nessesentido,pergunto-meacerca dos vínculos entre as duas correntesque desdeo início dividiram a his- tória oral, urna próximadas ciénciaspolíticas,voltadapara as elites e os notáveis,outra interessadanas "populac;:oessemhistória",situadana fron- teira da antropologia.Além disso, coloca-sea questaodas relac;:6esentre a históriaoral e as disciplinasafins que tambémse utilizam da pesquisa oral,comoa sociologiae a lingüística. . A última questaoera acercados novosproblemaseventualmente suscitadospela utilizac;:aoda fonte oral. Os setetrabalhosresponderam,cadaqual a sua maneira,a todas essasquest6es,a maioria (cinco) a partir de um espac;:ogeográficode- terminado.David K. Dunaway evocaa experiéncianorte-americana,mas, ao fazer tambémurna reflexaosobreo caráterinterdisciplinarda história oral, acabase ocupandode todo o mundo ocidental.Dora Schwarzstein trata da AméricaLatina, Pietro Clemente,da Itália, MercedesVilanova,da Espanha,e TadahideHirokawa, do Japao. O trabalhode FabienneRegard é mais temático,mastambémse insereno espac;:o,pois trata dos vínculos entre a abordagemoral e a históriajudaica na diáspora.A última dis- sertac;:ao,de Jean-PierreWallot, abordaum problemametodológico,a ar- quivísticae a história oral. De minha parte, apresentareioportunamente exemplosfrancesesa partir de um esclarecimentosobreHistoriay Fuente Oral (Joutard, 1995). Utilizarei tambémesta revista,que é um excelente observatório,remetendo-mea ela mais adiante,bem como algumasrefe- rénciascomplementares,nem que sejapara suprir as lacunasnormalmente existentesnessetipo de mesa-redonda. De fato, é fácil verificar as omissoes,como no caso da situac;ao inglesa,alema ou da Europa setentrional.O que mais lamento,porém, é a desisténciade historiadores,um russo e outro africano.Esperoque no decorrer do debate essas lacunaspossam ser parcialmentepreenchidas. Mesmo assim,o conjuntoé rico o suficientepara permitir um verdadeiro balanc;oe responderao título desteseminário.Vé-seclaramenteque a his- tória oral reflete ao mesmotempo o clima cultural e a historiografiade cada um dos países em questao,obedecendoa urna lógica própria que transcendeem muito as fronteiras. Urna cronologia significativa Grac;:asa essestrabalhosé possívelestabelecerurna cronologia significativaque configuraurna geografiacontrastada,fácil de reconstituir. Assim é que Dunawaypodejá contarquatrogerac;oesde historiadoresnos EstadosUnidos, enquantoexisteapenasurna em atividadeno Japao, onde a históriaoral acabade ser reconhecida(Hirokawa).Mas, com a ajuda de nossossete autores,sejamosmais precisos. A primeiragerac;:aosurgiu nos EstadosUnidos nos anos 50 e seu intento era modesto:coligir materialpara os historiadoresfuturos; seria um instrumentopara os biógrafosvindouros. Ela está decididamentedo lado das ciénciaspolíticase se ocupa somentedos notáveis.Esse é tam- bém o trabalhoque fazem,semreflexaometodológica,os correspondentes departamentaisdo Comitéde Históriada II GuerraMundial junto aos che- fes da Resisténcia.No México, desde 1956, os arquivossonoros do Ins- tituto Nacional de Antropologia registramas recordac;oesdos chefesda revoluc;aomexicana(Scharwzstein).Já na Itália, sociólogoscomo Ferraotti e antropólogoscomo De Martino ou Bosio, próximosdos partidosde es- querda,utilizam a pesquisaoral para reconstituira cultura popular (Cle- mente). Eles sao os precursoresda segundaforma de história oral que surgecom a segundagerac;aode historiadoresorais em fins dos anos60. De fato, essa nova gerac;aodesenvolveuurna nova concepc;ao muito mais ambiciosa:nao mais se trata apenasde urna simples fonte complementardo materialescrito,e sim "de urna outra história",afim da antropologia,que dá voz aos "pavossem história",iletrados,que valoriza os vencidos,os marginaise as diversasminorias,operários,negros,mu- lheres.Essahistória se pretendemilitantee se achaa margemdo mundo universitário(ou é por este rejeitada).É praticadapor nao-profissionais, feministas,educadores,sindicalistas(Dunaway).Surgidaem meio ao clima 46 Usos & ABUSOS DA HISTORIA ORAL HISTORIA ORAL BAlAN<;O DA METODOlOGIA E DA PRODU<;AO NOS ÚLTIMOS 25 ANOS 4/ dos movimentosde 1968, pregao nao-conformismosistemático,inclusive em rela<;:aoas estruturastradicionaisdos partidos de esquerda;em sua versaomais radical, é urna históriaalternativa,nao apenasem rela<;:aoa história academica,mas tambémem rela<;:aoa todas as constru<;:oeshis- toriográficasbaseadasno escrito.Assim, na Itália ela se desenvolvenos meiosque contestama esquerdacomunista,privilegiandoa expressaodas bases,em rela<;:aoa máquinado partido. Identifica-seprofundamentecom a chamadapesquisaterritorial,ligada as comunasou as províncias.Enfim, baseia-seimplicitamentena idéia de que se chegaa "verdadedo povo" gra<;:asao testemunhooral. Nessemesmopaís, dois outrossetoresligados entre si apresentamnotáveldesenvolvimento:a escolae os institutosde históriada Resistencia,sendoos membrosdestaúltimaentrevistadospelos professorese seus alunos (Clemente).Essa forma de história difunde-se ainda mais na Inglaterra,sobretudocom Paul Thompson,mas tambémna AméricaLatina, na Argentina,com um institutoprivado,influenciadopela Universidadede Colúmbia, que retornao espírito da primeira forma de história oral, realizandoentrevistascom sindicalistase dirigentesperonis- tas (Scharwzstein).Na Fran<;:a,assimcomo na Espanha,há muito que a pesquisacom as fontes orais vem sendo realizadapor urnaspoucaspes- soasisoladamente.MercedesVilanovatrabalhousozinhade 1969 a 1975, quando entao alguns colegasvieramjuntar-se a ela na Universidadede Barcelona.Em meadosdos anos 70, porém,dois encontrosinternacionais marcarama primeiraafirma<;:aode urna corrente.Em 1975,no XN Con- gresso Internacionalde CienciasHistóricasde San Francisco,realizou-se urna mesa-redondaintitulada A História Oral como urna Nova Metodolo- gia para a PesquisaHistórica,que muito impressionouos congressistas.No ano seguinteorganizou-seem Bolonha o que foi consideradoo primeiro colóquio internacionalde história oral, significativamenteintitulado An- tropologiae História: Fontes Orais. A portir de 7975, o progresso do história orol como meio de estudaras classespopulares.Paralelamente,porém, ("(>111'- <;:ou-sea criticar a ingenuidadedo espontaneísmoe os excessosdo I(I(;¡ lismo, enquantoem 1981 surgiu a revista Fonti Orali, que durou al,- 1987, reunindo antropólogosinteressadosnas tradi<;:oespopularese hi, toriadorescontemporáneos(Clemente). Na Fran<;:a,1975 foi tambémo ano em que surgiramdois gran- des projetoscoletivos:em Paris, os arquivosorais da PrevidenciaSocial, sob a dire<;:aode DominiqueAron-Schnappere Daniele Hanet; em Aix, a pesquisasobre os etnotextos,reunindo historiadores,lingÜistase etnólo- gos. Quatro anos depois criou-se a Associa<;:aoFrancesade Arquivos So- noros, e em 1980 realizou-seo primeiro encontrofrancesde pesquisado- res orais sob a égidedo Institutode Históriado TempoPresente(Joutard, 1983:114-48). Na AméricaLatina observa-seo mesmodesenvolvimentonas duas áreas de história política e antropologia.Em 1975 criou-se na Funda<;:ao GetulioVargaso primeiroprogramade históriaoral destinadoa colherde- poimentosdos líderes políticos desde 1920. Em Costa Rica, de 1976 a 1978, a Escola de Planejamentoe Promo<;:aoSocial da UniversidadeNa- cional organizouo primeiro concursonacional de autobiografiasde cam- poneses. Cinco anos depois, lan<;:ouum projeto ainda mais ambicioso: tentar escrevera história do país desdea épocapré-colombiana,fazendo o POYOnarrar a sua própria história. No Equador,na Bolívia e na Nica- rágua, realizaram-sena mesmaépocapesquisasorais sobreo mundocam- pones, no quadro da' campanha de alfabetiza<;:ao.Na Argentina, o restabelecimentoda democraciaem 1983 levou a multiplica<;:aodos pro- jetos orais (Schwarzstein). Até 1985, a história oral espanholaestevelimitada ao grupo de Barcelona,que foi o único a apresentartrabalhosno V Colóquio Inter- nacional de Barcelona,organizadoprecisamentepor MercedesVilanova para, entre outros motivos,incentivarseuscolegasespanhóisa utilizarem a fonte oral. Nao restadúvidaque o eventocumpriuseu objetivo,mesmo nao tendo sido o único responsávelpelo intensodesenvolvimentoda his- tória oral espanholadepois de 1985. Na Universidadede Mallorca, Joan Miralles organizaraem 1984 um colóquiosobreo tema;no ano seguinte, Carmen Nieto promoveuum seminário sobre as fontes orais na grande universidademadrilenhada Complutensee tres anos depoispassoua rea- lizar encontrosbianuais. Em quatro ou cinco anos, a Espanharecuperou seu atraso com urna série de projetosem Valen<;:a,Santiagode Compos- Essesdois encontrospodemser consideradoso ponto de partida da terceiraetapaou da terceiragera<;:ao,quando,segundoDunaway,após as experienciasindividuaisse constituemverdadeirosgrupos.Surgiu assim na Itália um projetohistoriográficode história oral, gra<;:asa iniciativade historiadoresturinesesde diversosperíodos,por ocasiaode urnaexposi<;:ao organizadapela comunade Turim sobre o mundo operárioentre as duas guerras,na qual se lan<;:ouum verdadeiromanifestosobrea históriaoral 48 Usos & ABUSOS DA HISTORIA ORAL HISTORIA ORAL, BAlAN~O DA METODOlOGIA E DA PRODU~AO NOS ULTIMOS 25 ANOS 49 tela, Oviedo,Canárias,Málaga, Navarrae Andaluzia,nao sendoestaurna lista exaustiva(Vilanova). No Japao, somenteem 1986 a Sociedadede Ciencia Histórica organizou o primeiro simpósio de história oral; os debatesteóricos e historiográficosdestacaramas possibilidadesda história oral, em parti- cular na história da última guerra, e deram ensejo,dois anos depois, a duas publicac;oes.Vale lembrar,todavia, que 15 anos antes promovera- se urna grande campanhade autobiografiasescritas,intitulada "Minha história", na qual iria inspirar-se mais tarde a história oral japonesa. Cumprecitar tambéma série de depoimentossobrea II Guerra Mundial colhidos por sociedadeslocais, focalizando a batalha de Okinawa ou de Midway (Hirokawa). O caso da história oral judaica evidentementeé específico,pois transcendeas historiografiasnacionais.Mas mereceatenc;aoespecialpela ligac;aoprivilegiadaentre memóriaoral e tradic;ao,enfatizadano início da dissertac;aode FabienneRegardem sua dimensaoreligiosae festiva,mas tambémhistórica,com as diversasdiásporas.Tal ligac;aoganhaainda mais forc;acom o drama da Shoa, que torna ainda mais necessárioo deverda memória,nao apenascomo deverde rememorar,mastambémcomodever de transmitirurnaexperienciaindizível, a fim de impedirque se percaes- se acontecimentoúnico. Portantonao admira que as autobiografiase as pesquisasde históriaoral sejamtao numerosase relativamenteprecoces, isto é, desdeos anos 70, mas com urna anterioridadeque nao causasur- presa a obras anglófonas,americanasou britanicas.O tema prioritaria- menteabordadoé a memóriado exílio e a lembranc;ados lugaresantigos Shtetl ou, mais recentemente,do norte da África. Os relatosde mulheres divididas entre a tradic;aoe a modernidade,no caso da emigrac;ao,pro- piciamurnafonteprivilegiada.Os depoimentossobrea Shoa aparecemde- pois de 1980 nos países anglo-saxonicose quatro ou cinco anos mais tarde na Franc;a. Os anos 80 se caracterizaramtambémpela multiplicac;aodos co- lóquios internacionais,que permitirama criac;aode urna verdadeiraco- munidade de história oral. Depois de Bolonha, tivemos Colchesterem 1978, Amsterdamem 1980, Aix-en-Provenceem 1982, Barcelona em 1985, Oxford em 1987, eventosem que foram apresentadasvárias deze- nas de trabalhos,com a participac;aode um númerocada vez maior de países.Assim, em 1987, a participac;aolatino-americanafoi particularmen- te notável. Foi tambéma época em que, as vezes antesdas universidades, museuse arquivossentirama necessidadede associar-sea programasde história oral ou mesmopromove-los.No caso dos primeiros, o material oral é o meio de acrescentarurna dimensaoviva a apresentac;aode ob- jetos (Dunaway).Assim, a Maison de la Villette em Paris e o Museu do Delfim em Grenobleiniciarampesquisasnessaárea.Em 1988,o Congres- so Internacionalde Arquivos ocupou-sedas novas formasde suporte,en- tre as quais os arquivosorais. Na Franc;ae depoisna ltália, a pesquisaoral tornou-seum meio pedagógicoeficaz para motivaros alunos de história, levando-osa tomar conscienciadas relac;oesque o passadomantémcom o presente.O tra- balho feito pelos alunos com seus avós apresentouresultadosnao raro surpreendentes,fornecendourna documentac;aobastanteoriginal sobre a II Guerra Mundial ou a emigrac;aoe que dificilmenteseria obtida por um pesquisadorexterno (Joutard, G., 1981; Voldman, 1992:148-50). Foi, enfim, um período de reflexoesepistemológicase metodo- lógicas, no qual se contestoua idéia ingenua de que a entrevistaper- mitia atingir diretamentea realidade, havendo inclusive urna profissio- nalizac;aomaior no tocanteaos projetos de pesquisaoral e a sua utili- zac;ao(Dunaway).Etapa indispensável,porquantoa difusao do gravador resulta muitasvezesem operac;oesmal preparadasque comprometem os resultadosda história oral, fornecendoargumentosaos seus detratores (Wallot). Corolário natural do dinamismo do grupo de Barcelona, que MercedesVilanovadesdeo inicio incentivou,foi o lanc;amento,no final da década,em 1989,da revistaHistoriay FuenteOral, que lago se tornou o ponto de referencianao só para os eswdos de história oral espanhola, mas tambémpara a comunidadeinternacionalde história oral. Existiram e ainda existem várias revistasnacionaisou mesmoregionaisnos Estados Unidos, no Canadá,na Gra-Bretanhae na Itália que periodicamentedi- vulgamo que se passafora de seu território,publicandoregularmenteau- tores estrangeiros- citemos, por exemplo, a revista Oral History, da Sociedadede História Oral Inglesa,fundadapor Paul Thompson,ou o in- teressantíssimoInternationalJournal of Oral History de Ronald Grele, que publicou muitosartigosde referenciasobrehistóriaoral - , mas nenhu- ma outra publicac;aose mostroutao sistematicamenteabertaao resto do mundo, tanto nos númerostemáticosquantonas resenhassistemáticasde trabalhosestrangeirosou nos artigoshistoriográficos.Bastaver que o pri- 50 Usos & ABUSOS DA HISTÓRIA ORAL HISTÓRIA ORAL BAlAN¡;:O DA METODOLOGIA E DA PRODU<;:ÁO NOS ÚLTIMOS 25 ANOS 51 meiro númeroapresentavatres autoresfranceses,dois mexicanos,um ita- liano, um belga, um cubano e somentedois historiadoresde Barcelona. Nos dois númerosde 1994 (11 e 12), intituladosIdentidady Memoria e Fronteras,dos 26 artigos, apenasdois eram escritospor espanhóis,divi- dindo-seos demaisentre nove nacionalidadesdiferentes,desde británica (cinco), grega e mexicana (um artigo cada), passandopor argentinae brasileira (tres), até sueca, italiana, holandesae norte-americana(dois). Mesmono númerotemáticoespanholdedicadoa Andaluzia (n. 8, 1992), havia duas participa<;oesfrancesas,as conc1usoesdo seminárioem home- nagema Fran<;oisBédarida,dois artigoslatino-americanose um alemao. Nao creio que haja tamanhaaberturanas revistashistóricasem geral, so- mando-setodasas especialidades.Logo, nao é por acasoque muitos dos trabalhosque servirama elabora<;aodesterelatório tenhamtido o privi- légio de ser nela publicados (n. 14). SegundoDavid Dunaway,a atual décadade 90 marcao advento da quarta gera<;ao,nascidanos anos 60, que vive "naturalmente"em um mundo de some de oralidade,influenciadanos EstadosUnidos pelos mo- vimentoscríticospós-modernistas,o que se traduzna valoriza<;aoda sub- jetividade, conseqüenciaou mesmo,para algtins, finalidade da história oral. Mas a quedado muro de Berlim e o restabelecimentoda democracia no Lesteeuropeutambémpropiciarama pesquisaoral as condi<;oesde li- berdadenecessáriase novos camposde estudosobreo período stalinista e a resistenciaao stalinismo(El pesode la historia:1989.Historiay Fuen- te (5), 1989;Brossatet alii, 1990). Mas paralelamenteao desenvolvimen- to da históriaoral no Lesteeuropeu,assiste-setambémao surgimentode urna históriaoral no Magreb. Esta é igualmentea épocaem que o filme de video, cadavez mais difundido, permitea multiplica<;aode videogra- masque complementamou mesmosubstituemos fonogramas.Muitos pro- gramasde televisaodedicadosa históriado séculoxx utilizam a pesquisa oral. Universidadese escolassecundáriastambémsubstituíramo gravador pela cámarade vídeo (Joutard, 1995). Atualmente,o cineasta Spielberg pretendeestenderao resto do mundoo seu grandeprojetode registroau- diovisual de depoimentosda Shoah (Regard). Feita essa exposi<;aocronológica, que permitiu urna primeira apresenta<;aodos trabalhos,podemosresponderde maneiramais precisa a algumas das questoes suscitadas pelo desenvolvimentoda história oral. Algumas res postas Primeiramentecabe notar que o vínculo entre a história oral e a atualidadeé ainda mais forte do que no caso da história geral. Nao é de surpeendera estreitarela<;aoentre o restabelecimentoe o desenvol- vimentoda democraciae o progresso da históriaoral, nao só na América Latina, por exemplo,mas tambémna Espanha(Schwarzstein;Vilanova). Jamais será esquecidoo quanto a história oral deve aos acontecimentos de maio de 1968 ou a contesta<;aodo partido comunistana ltália (Cle- mente).No Japao, foi o dramada bombaat6mica(Hirokawa).Nao se po- de negligenciaro contextotécnico:a utiliza<;aodo gravadorpela segunda gera<;aode historiadoresorais, o desenvolvimentode novos suportesde informa<;oescom a evolu<;aodos arquivistas(Wallot) ou a quartagera<;ao (Dunaway). Desdeos seus primórdiosa históriaoral é dupla, como atestaa maioria das historiografias,conformeobserveino início. Existe urna his- tória oral política, que apareceuprimeiro, na qual a entrevistaserve de complementoa documentosescritosjá coligidos,e que pesquisaos atores principais.Mais tarde desenvolveu-seurna históriaoral antropológicavol- tada para temasque se achampresentesnas diversasexperienciasnacio- nais. Sem estaremcombinados,os autoresretomamos mesmosassuntos: o mundo do trabalho,os fen6menosmigratórios,a problemáticados ge- neros, a constrw;:aodas identidades(Schwarzstein;Regard;Vilanova; Cle- mente). A julgar pela maioria dos trabalhos,existe um predomínio da segundatendencia,que conferiua históriaoral todaa sua dimensaoe sua riqueza metodológica.Aliás, bastaexaminaros programasde diversosen- contros internacionaispara confirmar esse fato. A história oral antropo- lógicainclusive influencioude váriosmodosa primeiratendencia,fazendo com que a históriapolítica nao mais se contentasse em interrogaros ato- res principais,passandoa interessar-sepelosexecutantesou mesmoas tes- temunhas.A históriapolíticanao é maisunicamenteurnahistóriada elite, mesmoquandopermanecepredominante,como no Japao (Hirokawa). Os temas escolhidosrefletem igualmenteessa abordagemglobal e antropo- lógica, privilegiandoassima guerra da Espanha,a Resistenciana Fran<;a ou na Itália, os camposde extermina<;ao.O exemplomais significativoé o semináriopromovidoem 1989 pelos Arquivos Históricosde Salamanca sobre A Mulher na Guerra Civil Espanhola- Análise Histórica e Fontes Orais (Vilanova). 52 Usos & ABUSOS DA HISTÓRIA ORAL HISTÓRIA ORAL, BAlAN~O DA METODOlOGIA E DA PRODU~AO NOS UlTIMOS 25 ANOS 53 A breveapresenta~ao mostrou-nos a diversidade de situa~6es.A no~ao de marginalidade da história oral comporta nuan~as, e isso desde os seus primórdios: ela nao existe verdadeiramente nos Estados Unidos, nem nos projetos da América Latina influenciados pela historiografia nor- te-americana e tampouco, de modo mais geral, na tendencia ligada as ciencias políticas (Schwarzstein). Isso é perfeitamente compreensível, con- siderando o conteúdo e os personagens em questao, a clássica história po- lítica concernente as elites; nao se sai dos domínios há muito explorados pelos historiadores: a única novidade é a utiliza~ao da fonte, mas nos Es- tados Unidos, ponto de partida dessa história oral, a proximidade entre jornalismo, ciencias políticas e história ultracontemporanea facilita a acei- ta~ao do depoimento oral. Já a história oral ligada aantropologia, que dá voz aos excluídos e trata de temas da vida cotidiana, nao surpreende a história academica somente por sua fonte, mas também por seu objeto e suas problemáticas. A essas restri~6esjuntam-se as da arquivologia clás- sica, baseada na conserva~ao de documentos oficiais "produzidos espon- taneamente e nao com o objetivo de informar", tendo o arquivista, nesse aspecto, um papel passivo, adiferen~a do pesquisador oral que cria o do- cumento (Wallot). Muitos historiadores orais, em vez de deplorarem a incompre- ensao, vangloriam-se dessa marginalidade, vendo nela a garantia da cria- ~ao de urna verdadeira "história alternativa" democrática, urna história que dá voz aos "vencidos", para usar o termo de um dos pioneiro.s da his- tória oral italiana, Nuto Revelli. Tal é o caso, por exemplo, na Gra-Bre- tanha e na Itália, onde o testemunho oral das classes populares tem "um valor imediato de verdade e de verdade alternativa", em oposi~ao e contra a visao das classes dominantes. Trata-se portanto de urna verdadeira a~ao política, nao raro o sucedaneo da a~ao tradicional que rejeita qualquer preocupa~ao disciplinar e academica identificada ao poder das classes do- minantes (Clemente). Nessa ótica, os dominados nao sao apenas os ope- rários, mas também as mulheres e toda sorte de minorias. Mesmo que du- rante alguns anos os historiadores profissionais, desejosos de renovar sua disciplina, e os militantes da marginalidade tenham coexistido nos grandes encontros de história oral de natureza ambígua, meio congresso científico, meio assembléia militante, no final nao poderia haver senao mal-enten- dido. No início dos anos 80, historiadores italianos, corno Luisa Passerini, porém bastante engajados, passaram a criticar o "espontaneísmo", o "ba- sismo" e o "localismo". Depois, insistiram em que a especificidade da pes- quisa "concerne amemória corno produtora de representa~6ese revela- dora das mentalidades" (Clemente), despertando em muitos historiadores um interesse mais geral. Reconhecimento da fonte oral A progressiva aceita~aoda história oral pela história universitária nos últimos 25 anos está ligada ao aumento considerável das curiosidades do historiador. Assim, na América Latina, nao se pode separar o progresso da história oral da influencia da escola francesa dos Annales, que ambi- cionava urna história total (Schwarzstein). Citarei apenas tres exemplos, os mais significativos. O crescente interesse pela história das mulheres - do qual aliás é testemunha este congresso internacional - desempenhou im- portante papel, quer se trate da vida cotidiana, do trabalho operário ou doméstico, da militancia ou, mais profundamente, de sua identidade ou de sua vida afetiva. Desse ponto de vista, nao resta dúvida que a história oral teve um papel pioneiro desde os anos 70 - bem antes de a história geral ter-se debru~ado sobre o terna - com o ensaio de Sherna Gluck in- titulado What's so specialabout women:women'soral history (1977) e o primeiro simpósio de história oral das mulheres (1983) (Dunaway). Na Itália, o avan~o da história oral também está estreitamente ligado a"ótica de genero"(Clemente).Na Fran~a,urna das primeiras mesas-redondasde história oral, organizadapor DanieleVoldman,foi dedicadaasmulheres (1982). A bibliografiasobreo ternaé das mais abundantese nao pára de aumentar(Clemente;Regard;Vilanova).Paracitarapenasum exemplo,o último número de Historiay FuenteOral publicouum índicede seus12 primeirosnúmeros:no índicetemático,o assuntoocupaa segundaposi- ~ao,com 22 ocorrencias,logo após a metodologia.Cabe destacartambém a importantecontribui~aoprestadapor váriasuniversitáriasao desenvol- vimento da história oral (e nao somenteda história das mulheres).Eu- genia Meyer, no México, Willa K. Baum, nos EstadosUnidos, Luisa Pas- serini, na Itália, MercedesVilanova,na Espanha,e poderíamoscitar mui- tas outras: nos encontros internacionaisde história oral, a presen~a femininaé bem maior do que em outros congressoshistóricos.Em Siena, a participa~aofeminina foi superiora 60%. Outroternafamiliara história oral tornou-setambémurna das atuaisáreasde pesquisada historiografiageral: os fenomenosmigratórios, corno atestaigualmenteo programado congressorealizadoem Montreal. Nao admira que seja esta urna das principaisvertentesda historiografia 54 Usos & ABUSOS DA HISTORIA ORAL HISTORIA ORAL BAlAN<;O DA METODOlOGIA E DA PRODU<;AO NOS ÚLTIMOS 25 ANOS 55 judaica, devidonao só a destruÍi;:aodas comunidadesasquenazesdo Leste europeu,mas tambémao exodo dos judeus sefarditasdo Magreb após a descoloniza<;aoe a guerra da Argélia (Regard). Muitas pesquisasorais francesasescolheramtambémesse tema,quer se tratedos italianosde an- tes da guerra ou dos magrebinosda época atual (Joutard, 1995). A históriaoral reencontroufinalmentea históriageral em torno da Memória:acasoserá precisolembrara enormeinfluenciaque há urna décadaexercena historiografiafrancesao projetode Pierre Nora, Leslieux de mémoire(Os lugaresda memória),expressaohoje consagrada?Porém muitos outrossinais tambémdao prova dessemesmointeressena Itália e na Espanha,sem falar da historiografiajudaica, na qual o papel da me- mória é fundamentaldesdeos temposbíblicos,masque ganhouforte im- pulso com o dever de transmissaoda Shoa (Regard). Ora, se existem múltiplos vestígiosda memória, das inscri<;oesem pedra, o testemunho oral é o documentomais adaptadopor sua ambivalencia.Os defeitosque lhe atribuem,as distor<;oesou os esquecimentostornam-seurna for<;ae urna matériahistórica.Mas a memória é tambémconstitutivada identi- dade pessoale coletiva, tema caro a etnologiamas que interessaigual- mente aos historiadoresorais: no índice de Historia y Fonte Oral, ele ocupaa terceiraposi<;ao,com 20 ocorrencias.Foi essetema que inspirou toda a metodologiade Aix baseadanos etnotextos(Bouvieret alii, 198O). Seu estudo exprimepois perfeitamenteo tipo de história antropológica praticadopela maioria dos adeptosda história oral que nao-deliberada- mentese veem assim as voltas com as preocupa<;oesmais atuais. O fenómenoda memóriaage de outra maneira na integra<;aoda históriaoral a históriageral, atravésdas comemora<;oesque no ensejodo cinqüentenárioresultaramem inúmeraspesquisas:percebe-seaí a impor- tancia da fonte oral, quer se trate de história militar, de resistenciain- terna ou de acontecimentosainda mais dramáticos,a bomba atómicano Japao e a solu<;aofinal no contextoeuropeu (Hirokawa;Regard;Joutard, 1995). testemunhar.Essa abordagemcontextualsuprimeas obje<;oesaos arquivos provocadose torna os arquivistasparceirosativosdos projetosde história oral, nao só para a conserva<;aode documentos,mas tambémpara sua cria<;ao,na maioria dos países,quer eles promovamou apóiemprojetos, quer pesquisempor si mesmos,por exemplo,junto aos criadoresde do- cumentos,no momentodo registro,para compreendercomo o acervofoi constituído,os pontos fortes e as omissoes,ou para precisamentecom- pletar um acervo (Wallot); na Itália, um levantamentodos institutosde conserva<;aode fontesorais sob a égide do Ministério do PatrimónioCul- tural mostraos vínculosentre os Arquivos do Estadoe os centrosde pes- quisasterritoriais,independentementeda Universidade(Clemente).Já em Barcelona,foi o departamentode história contemporaneaque criou urna se<;aode documentosorais nos Arquivos da Cidade (Vilanova).Em 1985 e 1986, os arquivistasfrancesesorganizaramurna parte de seu congresso anual sobre a fonte oral; em 1990, um conservadordos Arquivos Nacio- nais, Chantal Tourtier-Bonazzi,publicou um manual (Le témoignageoral aux archives,de la col/ectea la communication)prefaciadopelo diretor ge- ral dos Arquivos da Fran<;a,Jean Favier.Nos Arquivos Nacionais,inaugu- rou-se há vários anos um fichário centralde arquivosorais, e os servi<;os históricosda Marinha e da For<;aAérea tambémconstituíramum acervo de depoimentoscujo catálogoé por eles publicado (Joutard, 1995). A utiliza<;aoda fonte oral está pois largamentedifundida no mundo universitário,havendocertamente diferen<;asconformeo país. Na Europa, a Espanha,tardiamente"conquistada",me pareceser o país onde o problemafoi mais bem resolvido,a julgar pelo grandenúmerode cen- tros interessadose de projetosdesenvolvidos(Vilanova).Paradoxalmente, no sentido inverso,é num dos paísesmais precoces,a Itália, que a uni- versidadepermanecemais indiferente,senao mais hostil (Clemente).A Fran<;aestá numa situa<;aointermediária.Ainda há urna forte resistencia aqui e ali, masos centrosde atividadesao bem menosnumerososdo que no país vizinho do outro lado dos Pireneus(Joutard, 1995). No Lesteeu- ropeu os projetos se multiplicam,assim como na América Latina, onde grandes institui<;oesuniversitáriaspromovem pesquisasorais (Schwarz- stein). No Japao, as restri<;oesa história oral na verdadeescondemurna oposi<;aoa história mais contemporanea(Hirokawa). A meu ver nao de- vemosnos preocupardemaiscom as derradeirase persistentesresistencias de colegasuniversitárioscuja obstina<;aopode somenteprivá-los de do- cumentos insubstituíveise comprometerseus trabalhos.Já nao é mais Os arquivistasseguiramesse movimento,quando nao o antece- deram, pois o espectroda clientela dos arquivospassoua incluir outras disciplinasdas cienciashumanas,bem como geneticistas,jornalistas, mi- litantesdiversos.A profissaode arquivistaevoluiu muito na segundame- tade do séculoXX; ele se tornou mais ativo, cabendo-lhenao só selecio- nar mas tambémcompletare preencheras lacunas, e a principal refe- rencia nao é mais o documentoe sim a atividadehumana que cumpre 56 usos & ABUSOS DA HIST6RIA ORAL HIST6RIA ORAL BALAN~O DA METODOlOGIA E DA PRODU~AO NOS ÚLTIMOS 25 ANOS 57 História au fantes arais? dizer inexata. Mas pode-sevoltar atrás e paradoxalmentenao levar em considerac;:aourna história?Assim,contantoque retornemosa definic;:aode Jean-Pierre Wallot e sublinhemosseus limites, podemosmantera expres- sao porque ela é simplese tem a antiguidadea seu favor. Tal definic;:aonao deve satisfazeraos militantesda oralidade- que nao sao poucos- da AméricaLatina, entre outros, mas tambémda Itália, para quem a história oral continua sendo urna maneira radical- mentenova,para nao dizer revolucionária,de fazer história "do ponto de vista da baseda sociedade,dos excluídos".Nessaótica, o próprio fato de intervir e interpretar,como se faz num trabalho histórico académico,é considerado"sacrilégio".A história consistesimplesmentena reproduc;:ao do discursodos excluídos,o que equivalea "desprofissionalizar"o traba- lho disciplinar,pois nao há mais necessidadede ter urna formac;:aoespe- cífica. Qualquer intermediárioseria urna traic;:ao,qualquer alusao a mé- todos críticos, urna assunc;:aode poder ilegítima (Schwarzstein). Nao é certoque essasduas tendénciasbem definidas,claramente manifestadasainda por ocasiaodo último congressointernacionalde Nova York, possamprosseguiro diálogo por muito tempo,já que sua lógica e seus objetivossao tao diferentes.A defesado "subjetivismo",que segundo Dunaway é tao caro a quarta gerac;:aode historiadoresorais, pode mo- mentaneamentemanter as aparéncias,mas o subjetivismotem seus limi- tes. É bemverdadeque todo historiadorlúcido sabeperfeitamenteaté que ponto ele mesmose projeta em qualquerpesquisahistórica, fato que o historiadororal percebeainda mais claramente:a qualidadeda entrevista dependetambémdo envolvimentodo entrevistador,e estenao raro obtém melhoresresultadosquandoleva em conta sua própria subjetividade.Po- rém reconhecertal subjetividadenao significaabandonartodas as regras e rejeitar urna abordagemcientífica,isto é, a confrontac;:aodas fontes,o trabalhocrítico, a adoc;:aode urna perspectiva.Pode-semesmodizer, sem paradoxo,que o fato de reconhecersua subjetividadeé a primeira ma- nifestac;:aode espírito crítico. Todos os textosaqui apresentados,que refletem trajetórias,sen- sibilidades,históriaspessoaise nacionaismuito diferentes,ligam-sea pri- meira tendénciae apresentamconvergénciasbastanteanimadoraspara o desenvolvimentoda históriaoral. Estabelecemum eixo principal de refle- xao em torno do necessárioconfrontoentre os historiadorese os etnó- logos e, de modo mais geral, os especialistasdas outras ciénciassociais. tempode procurarconvencé-los.Contentemo-nosem lembrara conclusao de Jean-Pierre Wallot ao dirigir-se a seus colegas:"Quando a vida e os princípiosse defrontam,a vida quasesempreacabapor impor-se.Embora a históriaoral seja relativamentenova
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