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Questões de Direito Penal

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Não constitui exagero afirmar que a descriminalização do aborto constitui um dos temas mais controversos da atualidade. Trata-se, aliás, de uma discussão marcada por posturas de intolerância, cujos maiores expoentes, em geral, são os grupos religiosos, em especial a Igreja Católica ("pró-vida"), de um lado, e o movimento feminista ("pró-escolha"), de outro. Dentre esses pólos, pode-se identificar inúmeras posições intermediárias, que admitem determinadas exceções ao seu posicionamento moral geral. Assim, não espanta a possibilidade de um católico praticante admitir o aborto em situações em que a gravidez coloca em risco a vida da gestante, ou de uma feminista condenar a eliminação da vida intra-uterina por uma jovem que, simplesmente, não quer ficar com uma aparência de "gorda", ou tem medo de não retomar a mesma forma física.
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Como se vê, a questão moral que envolve a proibição ou a legalização do aborto se apresenta como um problema intrincado, de difícil solução, gerando as mais diversas opiniões, que pululam dentro de um amplo espectro que se inicia com a vedação completa da prática e termina com a autorização plena da conduta.
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A obra Domínio da Vida, de Ronald Dworkin, fornece uma leitura ousada da moralidade do aborto. Em linhas gerais, o autor sustenta, inicialmente, que centrar a discussão na existência ou não de direitos por parte do feto não passa de uma falácia. Afinal, somente existem direitos onde há interesses; ocorre que interesses somente passam a existir a partir do advento de vida mental, algo que, no caso do nascituro, se inicia somente no terceiro mês de gravidez[1]. Mais que isso, Dworkin aduz, com propriedade, que a Constituição norte-americana não atribuiu ao feto a condição de pessoa,[2] enquanto titular de direitos e deveres. Com efeito, o exercício de um direito fundamental por parte de uma pessoa constitucional somente pode ser limitado se tal relativização tiver por fundamento a preservação de um direito de outra pessoa constitucional. Caso contrário, haverá arbitrariedade. Ademais, somente a Constituição pode definir quais são os entes dotados de personalidade (ex: pessoas jurídicas), sob pena de se incorrer no referido abuso.
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Na realidade, para Ronald Dworkin, a verdadeira celeuma que envolve o aborto não é a titularidade de direitos do feto. Aliás, segundo o autor, nem mesmo vários dos partidários desse discurso realmente acreditam nele[3]. A Igreja Católica, por exemplo, que atualmente pauta sua atuação "pró-vida" no argumento dos direitos do nascituro, mudou recentemente seu posicionamento, que durante séculos foi calcado na santidade da vida humana. E esse seria, na visão de Dowrkin, o verdadeiro elemento central de toda a discussão.
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O argumento de Dworkin seria confirmado pela existência de uma enorme gama de posições intermediárias, que se localizam entre a proibição e a legalização totais. Afinal, aquele que acredita que o feto possui direitos, como uma criança não nascida, nunca poderia sustentar a prerrogativa de abortar de uma mulher vítima de estupro; posição essa que, ao contrário, é extremamente comum.
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A discussão em torno do aborto giraria, portanto, em torno da sua moralidade, e não dos direitos do feto. O juízo de valor envolvendo a santidade da vida humana, a maneira de se respeitar esse caráter sacro, a forma de se suceder no conflito entre esse e outros importantes valores constitucionalmente tutelados, como a intimidade e a autonomia, dentro do contexto de um individualismo ético[4] que permeia o Estado Democrático de Direito, é que, em última instância, pesam na decisão de uma pessoa sobre a condenação ou a anuência com a prática abortiva. Trata-se, destarte, de uma questão moral complexa, da qual o Estado deve se manter afastado. A propósito, esse foi o entendimento acatado pela Suprema Corte Americana no polêmico caso Roe vs. Wade, em que esse Tribunal reconheceu que a Constituição dos Estados Unidos da América consagra à mulher, ainda que não expressamente, o direito de abortar.
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Dito isso, note-se que Dworkin foca sua abordagem nos campos da moral, da política criminal e do direito constitucional, pois examina a decisão de um Estado sobre a criminalização de uma conduta, bem como a existência de autorização constitucional para a previsão em legislação infraconstitucional de uma proibição, mormente via tipo penal, de determinados comportamentos.
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Todavia, o presente artigo não buscará analisar esses problemas, já suficientemente e satisfatoriamente analisados por Dworkin, mas sim, tomar tais conclusões com ponto de partida para questionar a tipicidade do aborto. Dentro dessa proposta, suponha-se que um estado norte-americano, capaz de legislar sobre matéria penal, preveja como crime o auto-aborto. Uma gestante (de menos de 3 meses) que, em um caso concreto, age em seu próprio corpo, provocando o aborto, cometeria um delito, sendo passível de punição por parte do Estado? Essa é a pergunta que, ainda que de forma sucinta, devido à própria natureza deste trabalho, se almejará responder.
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Pois bem, o conceito de tipicidade em Direito Penal há muito se desvencilhou da concepção finalista clássica, segundo a qual uma conduta será considerada típica se presentes, no caso concreto, todos os seus elementos abstratamente previstos em lei. De acordo com Eugenio Zaffaroni[5], referência sobre o tema, a tipicidade legal exige mais que a tipicidade formal, à qual os clássicos se prendiam. Necessário também, para que um comportamento seja considerado como típico, a presença da chamada tipicidade conglobante, representada pela antinormatividade e pela presença de lesão ou perigo a um bem juridicamente tutelado.
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Antinormatividade é o agir contrário à lei, de forma que uma conduta fomentada pelo ordenamento jurídico nunca poderá ser considerada típica por aquele mesmo sistema. Interessa a este estudo, contudo, o segundo elemento mencionado, qual seja a necessidade de lesão ou a ameaça de lesão a um bem juridicamente tutelado. Isso significa que uma conduta, por mais que se adeque formalmente ao modelo legal, somente será considerada típica caso venha, concretamente, a colocar em risco o bem jurídico tutelado pela norma. Caso contrário, deverá ser reconhecida a atipicidade da conduta. Trata-se do conhecido princípio da insignificância, já reconhecido pacificamente pela jurisprudência pátria[6].
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Como se vê, a defesa do bem jurídico constitui elemento central do conceito de tipicidade (vários autores, inclusive, sustentam que a função do Direito Penal é a defesa dos bens jurídicos[7]). Mais que isso, não apenas a ausência de perigo a um bem jurídico, mas a inexistência do próprio bem jurídico também conduz à atipicidade da conduta perpetrada pelo agente. Onde não há bem jurídico não existe lesão ou ameaça a ser tutelada pela norma penal. É exatamente esse o fundamento que permite concluir pela atipicidade da conduta da gestante que provoca aborto em si mesma. Afinal, em não havendo qualquer bem jurídico na hipótese, inexiste a necessidade de tutela penal.
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Explicando melhor. A doutrina tradicional conceitua bem jurídico como um interesse protegido pela norma penal[8]. Ora, enquanto o feto não possui vida mental, o que, de acordo com a medicina, não ocorre até o terceiro mês de gestação, não existe qualquer interesse passível de ser defendido mediante a cominação de uma pena. Logo, inexistindo interesse, urge concluir pela ausência de bem jurídico tutelável pela norma penal, razão pela qual a conduta da gestante que pratica auto-aborto não lesa ou ameaça qualquer bem jurídico. Por essa razão, e adotando o conceito de tipicidade penal, mais amplo que a simples tipicidade formal da teoria clássica do delito, conclui-se pela atipicidade da conduta da gestante que comete aborto, por mais que haja a sua previsão legal.
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Contudo, algumas fortes objeções poderiam ser elaboradas contra essa construção.
Isso porque o conceito de bem jurídico tradicionalmente adotado pela doutrina já se encontra superado por outras concepções mais atuais, que buscam sua base na Constituição; e não apenas em interesses, mas também em valores. Ademais, o próprio Dworkin afirma que a determinação do momento em que se inicia a vida mental é objeto de controvérsias na literatura médica, razão pela qual seria temerário construir um entendimento sobre uma base ainda carente de pacificação. Por fim, seria igualmente desaconselhável calcar um posicionamento na questão da existência ou não de interesses por parte do feto quando, na verdade, Dworkin, por várias oportunidades, assevera não ser esse o elemento capaz de conduzir à solução dos problemas por ele propostos, sob pena de configuração de uma resposta intrinsecamente paradoxal ao problema proposto.
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Nenhuma dessas críticas, no entanto, seria capaz de alterar a atipicidade da conduta sob exame. Afinal, em primeiro lugar, ainda que se tome por ponto de partida um conceito mais atual de bem jurídico, a conclusão supra exposta não se altera. Segundo a moderna lição de Luiz Régis Prado, "a caracterização do injusto material advém da proeminência outorgada à liberdade pessoal e à dignidade do homem na Carta Magna, o que importa que sua privação só pode ocorrer quando se tratar de ataques a bens de análoga dignidade; dotados de relevância ou compatíveis com o dizer constitucional"·. Isso significa, em outras palavras, que sendo a liberdade do homem, que pode ser cerceada quando do cometimento de um crime, um direito constitucional, a sua relativização somente é justificável como forma de proteger outro bem ou direito de natureza igualmente constitucional. Bem jurídico seria, portanto, o bem ou direito constitucionalmente protegido. Ocorre que, conforme sustenta Dworkin, não existe uma proteção constitucional ao feto, que não é uma pessoa constitucional. Por essa razão, o aborto não violaria qualquer bem jurídico, sendo a conduta, por conseguinte, atípica.
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A partir desse entendimento, dissipa-se também a crítica referente à construção de uma teoria com base em uma concepção controversa (vida mental), pois o centro é deslocado para um conceito mais sólido (pessoa constitucional), afastando, da mesma forma, o inconveniente de se construir um posicionamento a partir de uma conclusão tida como de menor importância por Ronald Dworkin. Assim, a conclusão não se altera: o auto-aborto, na situação proposta, é conduta atípica.

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