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Ética – introdução

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1 
Texto: Ética – introdução 
Peter Singer 
 
«O que é a ética? A própria palavra é por vezes usada para referir o conjunto de 
regras, princípios ou modos de pensar que orientam, ou pretendem ter autoridade para 
orientar, as acções de um grupo particular; e por vezes designa o estudo sistemático 
do raciocínio sobre o modo como devemos agir. No primeiro destes sentidos, 
podemos questionar a ética sexual do povo das Ilhas Trobriand, ou falar do modo 
como a ética médica na Holanda acabou por aceitar a eutanásia voluntária. No 
segundo sentido, ‘ética’ é o nome de um campo de estudos, e muitas vezes de uma 
temática ensinada nos departamentos de filosofia das universidades. Normalmente, o 
contexto torna claro qual o sentido em que a palavra deve ser entendida [ ...] . 
Alguns autores usam o termo ‘moral’ para o primeiro sentido, descritivo, em que eu 
uso o termo ‘ética’. Falam da moral dos ilhéus de Trobriand quando querem descrever 
o que esses ilhéus consideram certo [ right] ou errado [ wrong] . Reservam a 
expressão ‘ética’ (ou, por vezes, ‘filosofia moral’) para o campo de estudos ou temática 
ensinada nos departamentos de filosofia. Eu não adaptei este uso. Tanto ‘ética’ como 
‘moral’ têm as suas raízes em palavras que significam ‘costumes’, sendo a primeira 
derivada do termo grego ‘ethos’ e a segunda do termo latino ‘mores’, uma palavra 
ainda usada por vezes para descrever os costumes de um povo. ‘Moral’ traz hoje 
consigo uma particular, e por vezes desapropriada, ressonância. Ela sugere um 
severo conjunto de deveres que requere que subordinemos os nossos desejos 
naturais - e os nossos desejos sexuais têm aqui um relevo particular - de maneira a 
obedecer à lei moral. O fracasso em cumprir o nosso dever traz consigo um pesado 
sentimento de culpa. Muitas vezes, a moral é considerada como tendo uma base 
religiosa. Estas conotações de ‘moral’ são mais características de uma concepção 
particular da ética, a que está ligada à tradição judaico-cristã, que uma característica 
inerente a qualquer sistema moral. 
A ética não tem uma conexão necessária com qualquer religião em particular, nem 
com a religião em geral. [ ...] [ A] ética existe em todas as sociedades humanas, e 
talvez até entre os nossos parentes mais chegados não-humanos. Não temos 
necessidade de postular deuses que nos transmitem mandamentos, pois podemos 
considerar a ética como um fenômeno natural que surge no decurso da evolução de 
mamíferos de vida longa, sociais e inteligentes, que possuem a capacidade de se 
reconhecer entre si e de recordar o comportamento anterior dos outros. [ ...] 
Se admitirmos que Darwin tinha razão quando afirmou que a ética humana se 
desenvolveu a partir dos instintos sociais que herdamos dos nossos antepassados 
 
2 
não-humanos, podemos pôr de lado a hipótese de uma origem divina para a ética. 
Surgem então outras questões. Se virmos a ética como parte da nossa herança 
humana comum, então podemos esperar que haja universais éticos, princípios que, de 
alguma forma, estejam presentes em todas as sociedades humanas. Esta expectativa 
contrasta profundamente com a opinião predominante no séc. XIX e princípios do séc. 
XX, quando uma torrente de dados antropológicos provenientes de todo o mundo 
transmitiu a impressão dominante de uma interminável diversidade ética. Embora seja 
óbvio que sociedades distintas apresentam pontos de vista éticos diferentes em 
relação a muitos aspectos, é agora claro que, em alguns pontos importantes, quase 
todas as sociedades estão de acordo. Claro que isto não significa que devamos 
aceitar como correctos os pontos de vista éticos em que as sociedades estão de 
acordo. Até muito recentemente, um dos pontos em que virtualmente todas as 
sociedades estavam de acordo era que uma mulher casada deve obedecer ao seu 
marido; e, se recuarmos ainda mais no tempo, podemos encontrar muitos ‘universais 
éticos’ igualmente questionáveis. O facto de uma prática ser universal não faz com 
que essa prática seja correcta ou com que deva ser o mais possível desencorajada, ou 
até mesmo proibida. Mas, assim como a compreensão da origem da ética nos ajuda a 
perceber a natureza do fenômeno com que estamos a lidar, assim também a nossa 
compreensão é aumentada pelo conhecimento dos graus de diversidade e 
uniformidade dos sistemas éticos entre diferentes sociedades - e mesmo entre as 
sociedades humanas e as dos outros animais sociais, especialmente as dos que estão 
mais próximos de nós, os chimpanzés. 
[ ...] Fomos sempre relutantes em reconhecer similaridades entre o nosso próprio 
comportamento e o dos animais não-humanos. Afirmávamos que éramos os únicos 
animais que usavam instrumentos até se descobrir que outros animais também os 
usam. Depois, fizemos uma afirmação semelhante acerca da linguagem, apenas para 
virmos a descobrir que os grandes símios podem aprender a comunicar conosco 
através de linguagem gestual. Mas, dir-se-á, seguramente que a ética, pelo menos, 
continua a ser um fenômeno puramente humano. Basta lembrarmo-nos da concepção 
kantiana do dever, baseada na nossa capacidade de seres racionais para 
compreender a lei moral. Em que será que a interacção existente num grupo de 
chimpanzés se assemelha a isso? Comparar o comportamento instintivo ou habitual 
dos chimpanzés com os conscienciosamente escolhidos padrões éticos dos seres 
humanos é, dir-se-á, degradar e insultar a nossa própria espécie. 
Que há um imenso abismo entre o tipo de ética descrito por Kant [1724-1804] e aquele 
que é revelado pelo comportamento do chimpanzé intelectualmente mais dotado, isso 
é inegável; mas da existência desse abismo não se segue que não tenhamos nada a 
 
3 
aprender acerca do nosso próprio comportamento observando o dos chimpanzés. As 
idéias de Kant são estranhas não só para os chimpanzés, como para a maior parte 
das comunidades humanas. Os sistemas filosóficos éticos são elaborações altamente 
sofisticadas de conceitos mais comuns que, por sua vez, evoluíram a partir do 
comportamento social pré-humano. Saber mais acerca das bases pré-humanas da 
ética será, seguramente, uma ajuda para compreender e ter acesso aos sistemas 
éticos que se desenvolveram a partir dessas bases; e as melhores pistas para 
sabermos mais ou menos como terá sido a ética pré-humana virão das observações 
daqueles animais com os quais partilhamos antepassados comuns relativamente 
próximos. 
Kant e os seus seguidores poderão replicar a tudo isto que, uma vez que a lei moral é 
baseada na razão, quaisquer paralelismos aparentes entre a nossa ética e a dos 
animais não-humanos é uma coincidência meramente superficial. O comportamento 
dos animais tem tanto a ver com a ética quanto uma teia de aranha com uma obra de 
arte. Mas, neste ponto, a tradição filosófica começa a divergir. Kant representa apenas 
um dos lados no debate acerca do papel que a razão pode desempenhar na nossa 
vida prática e nas nossas decisões éticas. Se, por exemplo, aceitarmos a tese de 
David Hume [1711-1776] de que a base da ética deve ser encontrada nas nossas 
emoções ou, como ele lhes chama, paixões, então a razão torna-se muito menos 
significativa na ética, e os paralelismos entre a nossa ética e a dos animais não-
humanos tornam-se, em correspondência, mais próximos. Deste modo, negar a 
possibilidade de uma ‘ética dos primatas’ por causa do papel desempenhado pela 
razão é assumir que é Kant, e não Hume, quem está correcto acerca deste ponto. Ora, 
esta pode muito bem ser uma suposição errada. 
O debate entre Hume e Kant acerca do papel da razão na ética enquadra a temática 
[ ...] que nos leva ao coração da mais fundamental das questões que podem ser 
levantadas acerca da natureza da ética: saber se a ética é objectiva ou subjectiva. 
Têm sido usados diferentes termos para tratar esta questão, mas por detrás disso jaz 
sempre a divisão entre, por um lado, os que sustentam que, de algum modo, há uma 
resposta verdadeira, correcta ou mais justificada para a questão ‘O que devo fazer’, 
independentementede quem faz a pergunta; e, por outro, os que sustentam que, se 
diferentes indivíduos ou diferentes sociedades estão em desacordo em relação a 
problemas éticos, então é porque não existe um padrão por meio do qual seja possível 
julgar uma resposta como sendo melhor do que outra. 
Os filósofos nem sempre viram que este debate entre objectivistas éticos e 
subjectivistas éticos é, no fundo, uma questão acerca do papel que a razão 
desempenha na ética. A asserção kantiana de que a lei moral é uma lei da razão 
 
4 
baseava-se na sua metafísica particular. Ele via a natureza humana como 
eternamente dividida. Por um lado, temos o nosso eu [ self] natural ou físico, enredado 
no mundo dos desejos. Por outro, temos o nosso eu intelectual ou espiritual, o qual 
participa do mundo da razão de que deriva a lei moral. Aqueles filósofos que querem 
defender a objectividade da ética, mas não aceitam o sistema filosófico de Kant, 
precisam mostrar que pode haver outra maneira de conhecer o que é objectivamente 
correcto. Durante muito tempo, alguns defensores da objectividade ética 
argumentaram que os nossos juízos éticos derivavam de uma compreensão intelectual 
imediata de uma verdade evidente por si mesma. Deste modo, pensavam, podemos 
conhecer intuitivamente que uma acção é correcta, de uma forma parecida como 
sabemos, sem termos de pensar nisso, que um mais um é igual a dois. Por outro lado, 
os que argumentavam que a ética é subjectiva afirmavam - como Hume - que a ética 
se baseia no sentimento ou na emoção, e não em nada de objectivo ou presente 
algures [ out there] no universo. 
Mas será que podemos conhecer alguma coisa através da intuição [ consciência 
imediata da verdade ou falsidade de uma dada proposição] ? Os defensores do 
intuicionismo ético argumentaram que havia aqui um paralelismo com o modo como 
conhecemos, ou podemos imediatamente compreender, as verdades básicas da 
matemática: por exemplo, a de que um mais um é igual a dois. Este argumento sofreu 
um grande abalo quando foi mostrado que a evidência [self-evidence] das verdades 
básicas da matemática pode ser explicada de uma maneira diferente e mais 
parcimoniosa, vendo a matemática como um sistema de tautologias, cujos elementos 
básicos são verdadeiros em virtude do significado dos termos usados. Deste ponto de 
vista, agora largamente, se não mesmo universalmente, aceite, não se requer 
nenhuma intuição especial para estabelecer que um mais um é igual a dois - trata-se 
de uma verdade lógica, a qual é verdadeira em virtude do significado que atribuímos 
aos números inteiros ‘um’ e ‘dois’, assim como a ‘mais’ e ‘igual’.Assim, a idéia de que 
a intuição nos fornece algum tipo substantivo de conhecimento do que é certo e errado 
perde a sua única analogia. 
Mas pode dar-se o caso de que a intuição ética, de um modo excepcional em relação 
a outras formas de intuição, seja uma fonte de conhecimento genuíno. No entanto, há 
outro e mais sério problema que se levanta à defesa da objectividade da ética por esta 
via. O problema reside no facto de que os juízos éticos são supostos levarem à acção. 
Porque se conhecer o que é correcto não implicar a tendência para nos motivar a fazer 
o que é correcto, então parece que a ética perde a sua razão de ser. A ética seria 
então um sistema de conduta, algo como hoje é a etiqueta para a maior parte das 
pessoas. Eu posso saber que não é delicado começar a comer antes de todos os 
 
5 
outros convidados terem sido servidos, mas se não me importar com o que os outros 
consideram ser boas maneiras, e preferir a minha comida bem quentinha, então não 
tenho nenhuma razão para esperar. Os que defendem que os juízos éticos são um 
tipo especial de intuição não pretendem relegar a ética para o estatuto da etiqueta. 
Pretendem dizer que, se eu souber que alguma coisa é errada, tenho uma razão para 
não a fazer, quer me preocupe ou não com a ética. Sendo assim, têm de mostrar que 
o conhecimento obtido através da intuição nos dá uma razão que nos pode motivar a 
fazer o que vemos ser correcto. 
Todavia, há algo de obscuro acerca de como pode, por si só, qualquer tipo de 
conhecimento motivar-nos necessariamente a agir. Claro que se alguém me disser 
que há um formigueiro no sítio onde estou prestes a sentar-me, isso habitualmente dá-
me uma boa razão para escolher outro local para o meu piquenique. Podemos 
pressupor que nenhuma pessoa normal prefere ser mordida por formigas, e assim 
esta informação fornece a qualquer pessoa normal uma razão para agir; mas só 
funciona como uma razão porque é relevante para as nossas preferências. Se, depois 
de ter considerado cuidadosamente todas as consequências, decidir que, apesar de 
tudo, prefiro ser mordido a sentar-me noutro lugar, o conhecimento da localização das 
formigas deixa de ser uma razão para eu alterar os meus planos. 
Kant referiu-se aos imperativos dependentes dos desejos dos indivíduos como sendo 
‘imperativos hipotéticos’. ‘Se não quiseres ser mordido senta-te noutro sítio’ é um 
exemplo de um imperativo hipotético. A discussão entre Hume e Kant pode então ser 
enquadrada pela pergunta acerca de se todos os imperativos serão hipotéticos. 
Haverá alguns imperativos que sejam, como Kant os chamou, ‘categóricos’ - isto é, 
imperativos válidos para todos os seres racionais, independentemente dos seus 
desejos? Kant pensava que se a ética não é uma ilusão deve haver imperativos 
categóricos - pois não será verdade que a moralidade nos diz que devemos fazer o 
que está certo, independentemente dos nossos desejos? Para os intuicionistas 
conseguirem mostrar que obtemos conhecimento de verdades éticas objectivas 
através da intuição, têm de mostrar que esse conhecimento dá origem a imperativos 
categóricos. Eis porque a questão crucial entre os intuicionistas e os seus oponentes 
subjectivistas acaba por ser a mesma que entre Hume e Kant: haverá razões 
objectivas para a acção, independentes dos nossos desejos? 
A este respeito, os dois séculos que passaram depois de Hume e Kant não resolveram 
a disputa entre estas duas posições básicas que eles estabeleceram. [ ...] No entanto, 
embora a disputa não tenha sido resolvida, entendemos agora os problemas melhor 
que anteriormente, e até há alguns sinais de convergência. Os objectivistas já não 
procuram estranhos factos morais conhecidos unicamente através da intuição, mas 
 
6 
tentam antes estabelecer as razões para agir que aceitaríamos se raciocinássemos 
sob certas condições ideais - por exemplo, se estivéssemos completamente 
informados, não influenciados pelos nossos interesses, e pudéssemos imaginar como 
seria estar na posição de todos os outros que fossem afectados pela nossa acção. Os 
subjectivistas já raramente mantêm que a ética é inteiramente uma questão de 
sentimentos ou desejos; reconhecendo a necessidade de conceder um espaço para o 
desacordo e para a argumentação racional acerca da ética. Assim, embora continuem 
a defender o ponto de vista de que os nossos juízos éticos se baseiam nos nossos 
desejos, não defendem que qualquer desejo pode formar essa base. Pelo contrário, 
concedem que, para serem considerados éticos, os desejos devem passar por uma 
filtragem que exclua aqueles que não satisfaçam determinadas condições de 
imparcialidade e razoabilidade. Por conseguinte, o debate actual ganhou outra 
precisão, nomeadamente a respeito do tipo de limites que devemos estabelecer para 
os desejos que podem ser considerados éticos, e da possibilidade desses limites nos 
permitirem chegar - em princípio, se não na prática - a um acordo acerca do que 
devemos fazer.» 
SINGER, Peter (ed.), Ethics, "Introduction", Oxford University Press, 1994, pp. 4-10 
(tradução minha). 
 
http://www.odialetico.hpg.ig.com.br/Iniciantes/intretic.htm acessado em 24/07/2004

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