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Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 1 Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade Observatório da Justiça Brasileira 2 Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/ Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade/ Profa. Dra. Marlise Matos et al - Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2010/2011. 128 p. ISBN: 978-85-62707-26-1 CDD: 340.11 Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 3 CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS AMÉRICA LATINA OBSERVATÓRIO DA JUSTIÇA BRASILEIRA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Acesso ao direito e à justiça brasileiros na perspectiva de gênero/sexualidade, raça/etnia: entre o Estado e a comunidade Instituição proponente: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Autora Profa. Dra. Marlise Matos et al (NEPEM/CIFG/DCP/UFMG) Belo Horizonte Setembro de 2011 Observatório da Justiça Brasileira 4 Observatório da Justiça Brasileira Leonardo Avritzer Coordenador Geral Observatório da Justiça Brasileira Criado em fevereiro de 2010, o Observatório da Justiça Brasileira (OJB) integra o Centro de Estudo Sociais América Latina (CES-AL), com sede no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (DCP-UFMG), tendo também como parceiro o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. O Observatório da Justiça Brasileira desenvolveu nesta sua primeira etapa1, cinco pesquisas: I) Para uma nova cartografia da justiça no Brasil, desenvolvido pelo DCP-UFMG; II) Controle de constitucionalidade e judicialização: o STF frente à sociedade e aos Poderes, desenvolvido pela Sociedade Brasileira de Direito Público; III) Judicialização e equilíbrio de poderes no Brasil: eficácia e efetividade do direito à saúde, desenvolvido pela PUC/RS; IV) Acesso ao direito e à justiça: entre o Estado e a comunidade, desenvolvido pelo DCP- UFMG; e V) Judicialização do direito à saúde: o caso do Distrito Federal, desenvolvido pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. A proposta do Observatório da Justiça Brasileira, que, por ora, se concretiza neste conjunto de relatórios é desenvolver análises sobre o sistema de justiça brasileiro, visando a orientar o Ministério da Justiça através da Secretaria de Reforma do Judiciário em suas políticas públicas e reformas normativas, bem como apresentar sugestões para o aperfeiçoamento do sistema de justiça nacional. Assumindo o pressuposto de que por mais imperfeito que seja nosso sistema jurídico não podemos ignorar os avanços institucionais adquiridos ao longo dos anos, colocamo-nos o desafio de aportar conhecimentos e propor reformas no aprimoramento deste. 1 Todos eles financiados pela Secretaria de Reforma do Judiciário. Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 5 Expediente Instituição Proponente Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Coordenadora Profa. Dra. Marlise Matos (NEPEM/CIFG/DCP/UFMG) Pesquisadoras/es Ana Carolina Ogando - (Doutoranda DCP) André Drumond (Doutorando DCP) Breno Cypriano - (Doutorando DCP) Walter Loschi - (Doutorando DCP) Mariana Prandini Fraga Assis - (Doutoranda NSSR, NY) Marjorie Marona - (Doutoranda DCP) Bolsistas Andréa Regina Marques Reis - (Graduação Psicologia, PUC Minas) Clara Cazarini Trotta - (Graduação Ciências Sociais, UFMG) Clarissa Tavares de Oliveira Endo - (Graduação Ciências Sociais, UFMG) Liliane da Conceição Rosa da Silva - (Graduação Ciências Sociais, UFMG) Lucas Chaves Winter - (Graduação Direito, UFMG) Michele Cristina de Assis Dutra - (Graduação Ciências Sociais, UFMG) Thiago Coacci Rangel Pereira - (Graduação Direito, PUC Minas) Projeto Gráfico, Diagramação e Capa Leandro Carlos de Toledo Observatório da Justiça Brasileira 6 ÍNDICE Introdução ........................................................................................................................ 9 O Contexto Histórico -Teórico do Acesso à Justiça no Brasil ........................................... 13 Revelando Desigualdades: O Direito como Sistema de Poder ..................................... 20 Teoria Crítica do Direito .................................................................................................... 23 A identidade racial e de gênero dos agentes de justiça ...................................................... 23 Contribuições Feministas e de Pensadores das Relações Racias sobre o Direito .............. 24 Criminologia Crítica e as Relações de Gênero .................................................................. 29 Estudos Brasileiros Sobre Violência e Gênero .................................................................. 31 Acesso à Justiça e o Tema da Raça/Etnia....................................................................... 34 O Juciciário e as “Comunidades Tradicionais” .................................................................. 35 Identidade Racial e a Porta de Entrada no Sistema de Justiça: O Poder Policial .............. 36 No Meio Judicial, o Viés das Decisões Judiciais em Primeira Instância ........................... 38 A Absolvição dos Crimes de Racismo em Tribunais de Segunda Instância ...................... 39 A Composição Sociorracial da População Carcerária ....................................................... 41 Os Marcadores de Diferenças de Raça/Etnia e Gênero/Sexualidade: construções históricas e políticas e a importância do contexto coletivo de opressão ...................... 42 Por uma Teoria da Opressão dos Grupos ...................................................................... 55 Aspectos da Complexidade no campo das opressões - a discriminação interseccional .... 59 Estado e Opressão Marcada nas Instituições ..................................................................... 61 O Objeto Pesquisado - os acórdãos e seus respectivos marcadores de diferenças naquilo que estes conforam uma evidência da opressão de grupos/minorias .......................... 63 Os principais descritores da pesquisa Algumas Pistas para a Pesquisa sobre Dano Moral e determinada ressalvas de conteúdo ...... 82 A Metodologia de Trabalho ............................................................................................. 85 A Justiça especializada e a comum e a discussão de gênero, sexualidade, raça e etnia ................................................................................................................................ 90 Justiça do Trabalho ............................................................................................................ 91 Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 7 Justiça Eleitoral .................................................................................................................. 94 Justiça Militar ..................................................................................................................... 95 Justiça Estadual (Comum - Criminal) ................................................................................ 95 Os Primeiros Dados Coletados........................................................................................ 97 À Guisa de Conclusões muito Preliminares ................................................................... 109 Referências Bibliográficas ............................................................................................... 121 Observatório da JustiçaBrasileira 8 ÍNDICE DE TABELAS Tabela 1: Comparação dos acórdãos selecionados com o universo de acórdãos, por justiça e por tribunais (2009, Dados da Justiça Criminal ainda parciais) ........................................ 98 Tabela 2: Distribuição dos acórdãos por justiça e por tribunais (Dados PARCIAIS para os acórdãos da justiça criminal) ............................................................................................. 99 Tabela 3: Distribuição (PARCIAL) dos acórdãos por justiça de acordo com a temática, 2009.................................................................................................................................... 100 Tabela 4: Distribuição (PARCIAL) dos acórdãos por justiça de acordo com sexo do(a) relator(a) (dados PARCIAIS) 2009 .................................................................................... 102 Tabela 5: Distribuição do Resultado do acórdão segundo existência de voto contrário ao relator/a (dados PARCIAIS para a justiça criminal), 2009 ................................................ 103 Tabela 6: Distribuição do Resultado do acórdão segundo sexo do(a) relator(a), para a temática de gênero, naqueles acórdãos de decisão unânime da Justiça Criminal, (dados PARCIAIS), 2009.................................................................................................................................... 104 Tabela 7: Resultado do acórdão segundo sexo do(a) relator(a), para a temática de gênero, naqueles acórdãos de decisão unânime das Justiças especializadas, (dados PARCIAIS) 2009.................................................................................................................................... 104 Tabela 8: Resultado do acórdão segundo o tipo de justiça, (dados PARCIAIS) 2009. ...... 105 Tabela 9: Principais palavras-chave segundo tipo de justiça, (dados PARCIAIS) 2009. .. 106 Tabela 10: Direção do voto dos(as) relatores(as) mais atuantes na Justiça Criminal, (dados PARCIAIS) 2009 ............................................................................................................... 107 Tabela 11: Resultado dos acórdãos por estado, segundo o tipo de justiça (2009) ............. 108 Tabela 12: Valor das indenizações segundo temática, para Justiça especializada, (dados PARCIAIS) 2009 ............................................................................................................... 109 Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 9 Introdução Este é um trabalho escrito a várias mãos2 e, em certa medida, um trabalho ainda incompleto. Escrito a várias mãos porque é fruto de demorado, instigante, mas fastidioso trabalho coletivo de levantamento e coleta de dados que não existem compilados desta forma em nosso país. Além do mais é fruto também de um reforço no inventariar, não menos trabalhoso, de recortes teóricos e analíticos de fontes ainda mais plurais e distintas que vão desde os estudos sobre judicialização da política até levantamentos de relatório nacionais e internacionais sobre acesso a justiça em suas interfaces com as dimensões de gênero, sexualidade, raça e etnia. Os campos disciplinares consultados e aqui tratados também são plurais: o mais evidente é o das ciências sociais (Sociologia, Antropologia e Ciência Política), mas fizemos fronteira óbvia com os estudos do Direito e da Psicologia Social. O trabalho ainda está incompleto porque mesmo após quase um ano de pesquisas não nos foi possível finalizar a primeira parte dos levantamentos de acórdãos judiciais, especialmente aqueles oriundos da Justiça criminal, portanto estes dados e suas análises aqui apresentados são parciais e não integralmente conclusivos. Mesmo assim arriscamos a oportunidade de publicação por entendermos que é uma oportunidade para abrir o diálogo com outros parceiros que possam vir a se interessar no desenho e resultados desta investigação em curso. Em nosso país, têm sido cada vez mais debatidos os aspectos relacionados à democratização do Estado. Partimos do pressuposto de que o “acesso à justiça brasileira” é um direito fundamental de todo o cidadão e cidadã, independentemente de seu sexo, gênero, sexualidade, cor de pele, raça, etnia, classe social, grupo de origem etc. Contudo, quanto mais nos aprofundamos no estudo dessas temáticas, mais percebemos o quanto estão eivadas de complexidades. Indiscutível também é a percepção de que a possibilidade de exercer esse direito está diretamente relacionada à realidade socioeconômica das pessoas, assim como às características adscritivas que serão o alvo de nossa investigação aqui – gênero/sexualidade e raça/etnia –, e, certamente, à qualidade do serviço jurisdicional prestado pelas nossas instituições de justiça (estatais e não estatais) – no caso desta investigação: os Tribunais de Justiça e Turmas Recursais de seis estados da federação – Distrito Federal, Ceará, Minas Gerais, Pará, Rio Grande do Sul e São Paulo-, que deveriam garantir e também administrar tal direito, apenas para citar aqueles elementos mais óbvios. Mesmo assim, é importante que se diga que tais temáticas ainda não se constituíram num tema efetivamente prioritário da agenda pública, e mesmo da agenda das políticas públicas de inclusão social, em nosso país. É verdade, contudo, que em muitos países temos alcançado uma maior capacitação econômica, por exemplo das mulheres e população negra, através de legislação progressista que tem proibido as práticas discriminatórias, garantido igual remuneração, licenças e afastamentos em função da maternidade e da paternidade, e maior proteção contra o assédio sexual no local de trabalho, por exemplo. É já uma realidade a constatação de que os mais 2 Agradecemos a disponibilidade inestimável de Marcia Cristina de Almeida Castro, advogada e colaboradora de primeira hora, sobretudo no momento inicial do desenho desta pesquisa bem como na discussão de seus primeiros passos. Sua contribuição também foi crucial para termos chegado a estes resultados. Observatório da Justiça Brasileira 10 diferenciados governos, de distintos matizes ideológico-partidários, não tratam a violência contra as mulheres, negros e negras como um “assunto privado”, sendo que temos leis em todas as regiões do planeta proibindo este flagelo em suas muitas manifestações3. Há também a conquista de alguma legislação que tem como foco proibir – em patamares diferenciados - a discriminação baseada no sexo, na raça e/ou na orientação sexual no que diz respeito, por exemplo, à herança e a outros aspectos importantes da cidadania, leis de igualdade dentro do mercado de trabalho e vinculadas a garantias de direitos de família, assim como algumas políticas públicas para se assegurar que as mulheres e as meninas, as negras e negros, os indígenas e os homossexuais possam ter acesso a bens e serviços públicos, incluindo saúde e educação de modo a que também possam contribuir de modo efetivo para avanços significativos no padrão de vida de toda a população. Parece-nos claro, então, que aspectos relacionados à perspectiva de uma reforma judiciária e do sistema de justiça brasileiros também precisariam estar associados a um componente essencial que é inerente à investigação que se relata aqui: como promover uma maior democratização desse acesso aos sistemas judiciários? O que se poderia fazer para transformar a realidade de um acesso ainda limitado? Quem deveria ser responsável por isso? A quem, por sua vez, as ações estatais deveriam se dirigir? Por quê? Como? Quais seriam seus potenciais beneficiários? Quais aspectos da gestão judicial e da prestação jurisdicional precisam ser revistos? O que a infra-estrutura do sistema judiciário tem a ver com isso? Para além de processos propriamente institucionais, quaisseriam as principais mudanças culturais a serem perseguidas em relação à sociedade e aos diversos atores vinculados ao âmbito dos sistemas judiciais, quais sejam juízes, advogados, operadores do Direito e comunidade em geral? Não vamos, claro, responder a todas estas perguntas com a finalização desta investigação, certamente. Mas vamos ter com certeza um caminho melhor pavimentado de respostas, mesmo provisórias que poderão nos balizar bem melhor o olhar. Ao alvorecer do século XXI, o Estado brasileiro, após um processo rico e intenso de redemocratização levado a cabo ao longo das três últimas décadas do século anterior, se depara com enormes desafios que têm disputado espaço no processo recente de construção de uma agenda propriamente político-social no âmbito dos governos. Em 1998, Robert Dahl definiu em seu livro Sobre a democracia, que as democracias contemporâneas, em dimensões de alta escala, necessitariam de seis instituições básicas para serem consideradas democracias de fato. São elas: (1) funcionários eleitos; (2) eleições livres, justas e freqüentes; (3) liberdade de expressão; (4) fontes de informação diversificadas; (5) autonomia para as associações, e; (6) cidadania inclusiva. O autor passou a cunhar de democracia poliárquica aqueles sistemas políticos contemporâneos dotados destas seis instituições. Em países que são hoje chamados democracias, existiriam todas as seis instituições. Podemos supor (como maior ou menor dificuldade) que as cinco primeiras características estão já presentes no Brasil. Mas podemos afirmar, com tranqüilidade, que o Brasil é um país onde a cidadania é 3 O mesmo infelizmente não procede para o tratamento da homossexualidade: ela ainda é criminalizada em aproximadamente 70 países e em alguns, inclusive, com pena de morte. Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 11 efetivamente inclusiva? Sabemos que crescer e desenvolver, para além de ser desafiante às nossas estruturas e instituições econômicas e democráticas, significa igualmente superar as fortes e profundas desigualdades sociais e políticas que o país (e seus respectivos governos) alimentou ao longo de séculos. Só assim poderá concretizar-se, de fato, uma cidadania inclusiva através da expansão e vivência real dos direitos exercidos de fato e não apenas na letra da lei. Também só assim poderemos nos declarar efetivamente democráticos. Tal agenda político-social enfrenta níveis muito diferenciados de disputas e tensões que, em última instância, se depara com o desafio de ir além das questões afeitas ao campo de uma justiça exclusivamente de caráter distributivo, com impasses na ampliação e afirmação dos direitos humanos de nossas minorias. Referida agenda é respaldada, sobretudo, por uma consciência, que vem se disseminando pelo país, de que precisamos promover mudanças sociais ancorados em princípios inequívocos de inclusão, pluralismo, igualdade, reconhecimento, respeito e valorização das diferenças, de modo a promover formas de autonomia e emancipação ainda pouco experimentadas aqui. O caso do acesso à justiça de segunda instância pelos coletivos subalternizados de gênero e sexualidade, raça e etnia que estudaremos aqui é emblemático neste sentido. O exercício pleno da cidadania pressupõe, então, que em situações de direito violado os/as cidadãos/ãs possam ter acesso aos serviços ofertados pelas instituições públicas para fazer valer seus direitos fundamentais à reparação e/ou responsabilização judicial. Entende-se também que seria imprescindível facilitar o acesso tanto às instituições formais de reparação e responsabilização, quanto àqueles espaços de prevenção e resolução de conflitos onde as pessoas, independentemente de qualquer característica adscrita, possam ter contato com mais informações qualificadas e compreender quais seriam os recursos jurídicos e/ou administrativos cabíveis em seu caso. Desta forma, entendemos que o “acesso à justiça” nesta pesquisa compreende o direito de que sejam eliminados todos os obstáculos que impedem a consecução desses processos, incluindo-se ai a possibilidade de inclusão cidadã e democrática por via da prestação jurisdicional. Nesse sentido, parece-nos importante ressaltar, especialmente quando tematizarmos os marcadores de diferenças tão pouco compreendidos como aqueles que se vinculam às vicissitudes relacionadas a gênero e sexualidade ou à raça e etnia, que é necessário um verdadeiro novo processo de alfabetização jurídica a ser perseguido em diferentes níveis institucionais e societários. Isso para que seja de fato possível diminuir e mesmo eliminar os altos custos econômicos requeridos para se aceder aos sistemas judiciais e administrativos do Estado, promover a criação concreta de redes de articulação entre a demanda e a prestação de serviços jurídicos gratuitos, assim como melhorar a oferta dos serviços de justiça na medida em que se promova um processo de abertura das consciências à compreensão de que elementos como gênero/sexualidade, raça/etnia, não pertencem apenas a pequenos grupos vulneráveis e subalternos, mas são características partilhadas por todos os cidadãos e todas as cidadãs brasileiras. Observatório da Justiça Brasileira 12 É assim que compreendemos o acesso concreto à prestação jurisdicional como um efetivo mecanismo de participação e cidadania no âmbito das esferas públicas (estatais e não estatais) que poderia, inclusive, vir a compensar o efeito de deterioração ou impedimento de acesso em outros canais institucionais de representação dos interesses coletivos em nosso país. Nesse aspecto, fenômenos recentes de “judicialização das relações sociais”, dos freqüentes conflitos sociais, podem tender a ativar processos de discussão mais extensos sobre o formato que as políticas públicas vêm adotando no Estado brasileiro. Têm sido muito freqüentes, no Brasil, as situações em que o Poder Judiciário assume a tarefa de verificar o cumprimento de preceitos jurídicos tanto no desenho quanto na execução dessas políticas públicas, sobretudo aquelas de caráter social. O caso muito recente da aprovação, por unanimidade, pelo Supremo Tribunal Federal, da igualdade de direitos para as parcerias homoafetivas e homoconjugais é apenas o caso mais recente nesta agenda de tensas disputas. Claro está que o recurso às vias judiciais não poderia e não deveria ser compreendido como o único canal ou ainda o centro das estratégias para se efetivar e garantir direitos no país, mas apenas como mais um de seus pontos de apoio, que teria seu foco primordial nos processo políticos e sociais mais amplos e complexos da democratização do Estado e mesmo da própria sociedade4. Ao longo dessa investigação foi possível já identificar, sobretudo, o papel que desempenham os juízes e seus órgãos colegiados na construção de posições e descrições de certos grupos e de sujeitos. Chamaremos aqui essas descrições de “dispositivos discursivos”, na forma como os entende Foucault (1999) e será através destes dispositivos que poderemos perceber qual seria o tipo de sensibilidade jurídica, social e política que tais atores do sistema de justiça brasileiro vêm construindo e consolidando para responder aos reclamos provenientes daqueles setores “menos favorecidos”, no contexto de múltiplos conflitos sociais que têm ocorrido no Brasil nesses últimos anos. As bases institucionais do Poder Judiciário, na figura de seus magistrados, têm sido capazes de lidar com esses conflitos de quais formas? Através de quais mecanismos ou dispositivos mais hegemônicos? Por quê? Nossas análises preliminares já nos permitem perceber e mesmo reconhecer a importância que têm as pessoas investidas de seu papel judiciário, especialmente os colegiados de juízes. Elas também possibilitam compreender através de quais estratégias taiscoletivos profissionais vêm significando os conflitos associados aos marcadores de diferenças que investigamos aqui. Nesse sentido, é importante que apresentemos a partir de quais vieses teórico-analíticos situamos, nessa pesquisa, tais marcadores. Mas antes disso discutimos, de forma breve, alguns aspectos centrais do contexto histórico e teórico que emolduram o debate sobre o acesso à justiça em nosso país. 4 Caberia aqui igualmente mencionar que existe um outro tipo de movimento que surge no Brasil e também no mundo que é justamente contrário à judicialização dos conflitos. A cada dia mais, a justiça se vê sufocada com um volume enorme de processos, por isso busca incentivar soluções destes através de estratégias não judiciais, a exem- plo da mediação e da arbitragem. Apenas a título de esclarecimento mencionamos o cão da Itália que acabou de promulgar uma lei obrigando que todas as causas civis devam necessariamente passar por uma mediação anterior. Parece-nos que o Brasil segue caminho similar. Existe inclusive uma Campanha Nacional Pela Conciliação e uma Política Nacional de Conciliação, promovida pelo próprio poder Judiciário. Mais informações: http://www.tjmg.jus. br/conciliar/campanhas/atual.html Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 13 O Contexto Histórico - Teórico do Acesso à Justiça no Brasil O acesso à justiça é direito fundamental garantido pelo artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição de 1988. Por essa razão, tem aplicação imediata, exigindo-se, do intérprete, atividade hermenêutica que conduza ao entendimento que o acesso à justiça não é apenas acesso ao prédio do Judiciário, às suas dependências físicas, de custas baratas e até com dispensa ou isenção de custas, por meio de advogados pagos pelo Estado (defensorias públicas) ou dispensa da presença do advogado. Trata-se, essencialmente, de realização efetiva da Justiça, como valor sem o qual o ser humano não pode sobreviver. Segundo Bobbio: “Deve-se recordar que o mais forte argumento adotado pelos reacionários de todos os países contra os direitos do homem, particularmente contra os direitos sociais, não é a sua falta de fundamento, mas a sua inexeqüibilidade. Quando se trata de enunciá-los, o acordo é obtido com relativa facilidade, independentemente do maior ou menor poder de convicção de seu fundamento absoluto; quando se trata de passar à ação, ainda que o fundamento seja inquestionável, começam as reservas e as oposições. O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político. Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados”. (BOBBIO, Norberto. A Era do Direito, p. 24/25, negritos nossos) Todas as Constituições brasileiras enunciaram o princípio da garantia da via judiciária. Não como mera gratuidade universal no acesso aos tribunais, tão cara aos ideais românticos do individualismo liberal, mas como garantia universal de que a via judiciária está franqueada para defesa de todo e qualquer direito, tanto contra particulares como contra poderes públicos, independentemente das capacidades econômicas de cada um. Parece-nos, contudo, ilusória a simples garantia formal, abstrata e universal do acesso ao Judiciário, quando tantos são os obstáculos que se interpõem à efetiva reparação aos direitos violados no Brasil. Entende-se que tal garantia constitucional somente se aperfeiçoará se, além de não haver exclusão legal da apreciação judicial, isto é, se além da garantia formal de não ser excluído da apreciação do Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito, ocorrer a real reparação do direito violado, ou o impedimento que a ameaça ao direito se concretize. Isto é, que haja acesso à justiça e, posteriormente, seja conferida eficácia à decisão judicial. Cabe mencionar aqui uma precisão conceitual que nos é importante: a Observatório da Justiça Brasileira 14 diferenciação entre “acesso à justiça” e “acesso ao sistema jurídico”. Acessar o sistema jurídico refere-se exclusivamente a um tipo de acesso apenas formal, como ingressar com um processo etc. O “acesso à justiça” como o estamos tratando aqui é mais complexo e amplo do que tal dimensão formal e pode, inclusive, ser realizado por meios não jurídicos e diz não só do processo/procedimento, mas também daqueles que seriam (ou deveriam ser) os seus principais resultados. Formalmente, a igualdade perante a Justiça está assegurada pela Constituição, desde a garantia de acessibilidade a ela (art. 5º, XXXV). Mas, faticamente, essa igualdade não existe para milhares de brasileiros/as: “(...), pois está bem claro hoje, que tratar ‘como igual’ a sujeitos que econômica e socialmente estão em desvantagem, não é outra coisa senão uma ulterior forma de desigualdade e de injustiça” (CAPPELLETTI, Processo, Ideologia e Sociedad, p. 67). É de fato real que, no Brasil, sejam tamanhas as dificuldades enfrentadas para a obtenção da prestação jurisdicional, que poucos a conseguem? Quem são aqueles “privilegiados” que conseguem ter o efetivo acesso e ter de fato julgadas as suas lides no país? As dimensões de gênero/sexualidade e raça/etnia têm algum impacto no acesso à prestação jurisdicional? Segundo José Renato Nalini (Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo e Diretor Adjunto da Escola Nacional da Magistratura): “Em lugar da orgulhosa proclamação da vítima: ‘Vou procurar por meus direitos’, o que se vê aqui é a ironia do infrator: ‘Vá procurar por justiça’. Sabem todos como funciona a Justiça: A proliferação de decisões ilegais e de arbitrariedades significa que a administração e outros centros de poder (incluindo os privados) se sentem relativamente impunes em face das suas irregularidades”. Para o magistrado, há ao menos três causas, dentre as muitas que representam obstáculo à ampliação do acesso à Justiça no Brasil, que têm afetado profundamente tal dinâmica: (a) o desconhecimento do Direito; (b) a pobreza e (c) uma visão bastante singular da lentidão do processo. Sabemos todos que os pobres têm acesso precário à justiça, sabemos igualmente que dentre os pobres, os/as negro/as, as mulheres e o/s homossexuais são aquelas/es em pior situação de desvantagens. Alguns carecem de recursos para contratar bons advogados, outros têm menor acesso às informações em geral e há ainda situações claras de menor oportunidades de compreensão de informações sobre direitos e exercício de cidadania. O patrocínio gratuito (através das Defensorias Públicas), onde e se existente, ainda se revela igualmente deficiente e lento no Brasil, dado o baixo número de profissionais e a precariedade estrutural enfrentada pela instituição. A idéia principal que norteia esta pesquisa é a de que algumas mulheres, homossexuais e a população negra têm acesso precário à justiça no Brasil, porque, entre outros motivos, são fortemente discriminados, estão oprimidos e/ou desinformados e carecem de recursos para contratar bons advogados e quando contratam ou conseguem Defensores, a resposta judicial às suas disputas é lenta e frequentemente tardia. Desta forma, as barreiras econômicas e de reconhecimento simbólico se somam ao elevado custo da justiça, que inclui Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 15 custas processuais, honorários de advogado e riscos de sucumbência5.Ademais, entendemos também que a justiça tardia pode ser interpretada efetivamente como injustiça ou inacesso à justiça. Não há justificativa para que haja uma justiça rápida para uns e uma justiça lenta para outros. Justiça rápida para uns e justiça lenta para outros é a expressão cabal de injustiça. Perguntamos: o poder Judiciário brasileiro “discrimina pobres, homossexuais, mulheres e negros” ao negar-lhes efetivo acesso e solução efetiva quando conseguem acessá-lo? Ela discrimina de modo ainda mais significativo as mulheres negras, por exemplo? Vimos como esta discriminação está vedada pela Constituição brasileira, na medida em que todos são iguais perante a lei. Mas uma prestação jurisdicional lenta ou a existência de obstáculos ao acesso da justiça não seriam, em si, violadoras do direito constitucional de acesso à justiça concreta? Quando direitos são violados, sabemos que é fundamental a atuação judicial, que deverá, fazendo valer a garantia do acesso à justiça, dar uma resposta rápida e fulminante, decidindo com imparcialidade a questão entre as partes litigantes e reconhecendo o direito à reparação. Nosso Estado Democrático de Direito deve ser entendido como um sistema de princípios e regras processuais que devem aperfeiçoar a ordem jurídica. Ao lado da legitimação da atuação estatal, o Estado deve estar aberto às reivindicações que lhes são dirigidas. Pretendemos estabelecer algumas bases para a recente compreensão da representação política e do acesso às esferas decisórias, incluindo as da justiça, como instrumentos de inclusão social e política, ademais de meios de promoção de mais justiça social. Este se constitui em um dos maiores desafios da recente poliarquia brasileira. Entendidos como aspectos fundamentais para a erradicação das injustiças que afetam as sociedades ao redor do mundo, novos conceitos e práticas de representação e participação políticas – ou a constatação de sua efetiva lacuna - no momento contemporâneo, ainda de um modo lento, vêm facilitando a ampliação da participação nos governos e nos demais postos de decisão, não só através de si mesmas, mas aliadas à presença estratégica da sociedade civil. Assim, assegura-se de um modo mais eficiente a possibilidade da inclusão de demandas históricas de distintos grupos minoritários na agenda púbica de debates. Nos parece claro igualmente que hoje é urgente pensar a promoção e o acesso à justiça a partir do modo como os grupos sociais – em suas mais diversas dimensões e perspectivas, nomeadamente gênero, raça, sexualidade, etnia, geração, nacionalidades etc. – experimentam (ou não) uma estrutura institucional e real de oportunidades e de liberdades que, na conjuntura atual, deveriam estar apresentadas e difundidas pelo Estado. Tratar do tema da 5 Lembramos ainda que alguns direitos para essas minorias nem sempre estão expressos no texto da Lei, muitas decisões estão ainda na dependência da interpretação de um advogado e/ou de um juiz que corroborem com esses ideais. As situações vividas como as do de aborto de anencéfalos, da mudança de sexo no registro civil por uma tran- sexual, ou até mesmo a união entre pessoas de mesmo sexo, antes da decisão do STF, são exemplares neste sentido. Observatório da Justiça Brasileira 16 justiça hoje ignorando a configuração e dinâmica concreta das sociedades contemporâneas, desconhecendo as experiências e as demandas que estas vêm trazendo atualmente, apresenta como conseqüência inevitável a produção tanto de um sistema teórico fechado em si mesmo (fundamentalmente abstrato e irrelevante para a análise da vida política na prática), quanto num formato de Estado e de gestão pública (e em suas diferentes instituições) refratários e distanciados das demandas societárias concretas. Assim, o reconhecimento simbólico dos grupos minoritários e a ampliação e consolidação de seus direitos humanos é uma dimensão relevante na busca efetiva pela justiça e pela democracia nos Estados contemporâneos. Ademais, além da promoção das políticas distributivas, é crucial fazer valer políticas mais incisivas de reconhecimento simbólico-cultural e de representação política, como formas para se alcançar maior justiça. A conciliação entre o significado meramente formal do Estado de Direito com os procedimentos de atuação social, transforma-se, por sua vez, efetivamente em um dilema para o Estado. De um lado, estão os direitos individuais e as reservas limitativas do próprio Estado; do outro, as inúmeras reivindicações contra a sua ineficiência, lentidão e passividade, quanto à própria estrutura social e econômica. A construção, de fato, de algo como um Estado Democrático de Direito deve se balizar no sentido da proteção aos direitos dos governados e não uma mera leitura formal da norma, destituindo-a de qualquer eficácia. O conceito de Estado moderno vincula-se, essencialmente, aos princípios da igualdade e da liberdade, inicialmente, meramente formais. Atualmente, o constitucionalismo proclama a essencialidade da efetividade, da materialidade de tais princípios com vistas ao alcance da justiça. A liberdade e igualdade não podem ficar figuradas somente na retórica: impõe-se igualdade e liberdade reais, efetivas, começando pela plena e efetiva proteção jurisdicional dos direitos humanos ou a possibilidade do acesso à justiça e à reparação quando o direito for violado. De fato, o que se discute por intermédio da problematização do tema do acesso à justiça brasileira é também a própria questão da cidadania e da inclusão/exclusão — e da democracia, em última instância —, que mais do que direitos universais, legalmente instituídos, requer e implica necessariamente a disponibilização e a generalização de recursos necessários ao seu exercício e garantia. Em outras palavras, é a democratização do Judiciário que se coloca em xeque. Segundo Junqueira (1996, p. 01), “Resenhar as investigações que têm sido produzidas sobre acesso à Justiça - tema cuja amplitude permite incluir toda e qualquer investigação sobre o Poder Judiciário e sobre formas alternativas de resolução de conflitos - é, portanto, (re)escrever, a partir de um novo recorte, a trajetória da sociologia do direito brasileira e a sua vinculação a discussões político-jurídicas presentes na história recente do Brasil”. Ou seja, ainda que entendamos que não existe ainda uma produção totalmente sistemática na área de convergência entre os temas do Direito e da Sociedade, seria impossível (e mesmo desnecessário) proceder a este esforço aqui nesta pesquisa. No entanto, ainda que não o Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 17 façamos de modo exaustivo, alguns dos elementos centrais que têm permeados os debates a este respeito estão assinalados abaixo. Importa salientar que o interesse dos pesquisadores brasileiros sobre este tema se iniciou nos anos 80, diretamente vinculado ao movimento que havia começado na década anterior em diversos países do mundo, o “access-to-justice movement”, o qual, no plano acadêmico, havia justificado o Florence Project, coordenado por Mauro Capelletti e Bryant Garth com financiamento da Ford Foundation (1978). A principal referência teórica no âmbito desta discussão sobre o acesso à justiça foi o trabalho de Cappelletti e de Garth (1978)6. Os autores reportam a existência de três ondas sucessivas que teriam constituído o que se denominou, conforme enunciado, movimento de acesso efetivo à justiça. A primeira onda teria como característica uma expansão da oferta da assistência judiciária aos setores mais pobres da população. A segunda teria sido marcada pela incorporação dos interesses difusos ou coletivos, o que levou à revisão de noções tradicionais do processo civil. Finalmente, a terceira decorreu e, ao mesmo tempo, englobou as duas anteriores,expandindo e consolidando tanto o reconhecimento quanto a presença no Judiciário, de atores até então excluídos, desembocando num aprimoramento ou numa modificação das suas instituições, seus mecanismos, procedimentos e pessoas envolvidas no processamento e na prevenção de disputas experimentadas na sociedade. Em que pese o empenho dos autores em relativizar a ênfase exclusiva nas cortes, em ressaltar a necessidade de se atentar para a demanda de justiça e para as diferentes formas e condições em que ela se expressa, há algumas premissas que permeiam as análises e que cabem ser destacadas7. Uma delas é a da legitimidade da instituição judiciária enquanto instância que detém a autoridade para dirimir disputas de naturezas diversas. Tomada como dada, a crença nesta legitimidade implica perceber a judicialização dos conflitos como um anseio natural e efetivo da população, que acorreria prontamente à justiça uma vez eliminadas as barreiras ao seu ingresso. Associa-se a esta cadeia de noções prévias uma certa visão de que os recursos de apropriação da justiça como um direito são igualmente distribuídos pela sociedade. Deste modo, rompidos os limites institucionais, os indivíduos ou grupos, independentemente de sua posição social, estariam aptos a reconhecer e a recorrer à justiça a fim de resolver seus conflitos, o que fariam de forma crescente desde que fossem conscientes de seus direitos enquanto cidadãos. Junqueira, entretanto, nos adverte: 6 Mauro Cappelletti & Bryant Garth, Access to justice: the worldwide movement to make rights efective. A gene- ral report, in Mauro Cappelletti & Bryant Garth (dir.), Access to justice. A world survey (Milan, Alphenaandenrijn, Dott. A. Giuffrè; Sijthoff and Noordhoff, 1978. v.1, b.1, p.3-124). 7 Em um texto mais recente, O acesso à justiça e a função do jurista em nossa época, in Anais da XIII Conferência Nacional da OAB (s/l, s/e, 1990. p. 123-40), Mauro Cappelletti observa, à página 140, que, diferentemente de uma perspectiva mais tradicional, que insistia em tratar do direito unicamente pela ótica dos produtores — legisladores, juízes, funcionários públicos — e de seus produtos — a lei, o provimento judicial e o ato administrativo —, a abor- dagem do acesso consiste em dar prioridade ao consumidor do direito e da justiça. Observatório da Justiça Brasileira 18 “No entanto, a análise das primeiras produções brasileiras revela que a principal questão naquele momento, diferentemente do que ocorria nos demais países, sobretudo nos países centrais, não era a expansão do welfare state e a necessidade de se tornarem efetivos os novos direitos conquistados principalmente a partir dos anos 60 pelas ‘minorias’ étnicas e sexuais, mas sim a própria necessidade de se expandirem para o conjunto da população direitos básicos aos quais a maioria não tinha acesso tanto em função da tradição liberal-individualista do ordenamento jurídico brasileiro, como em razão da histórica marginalização sócio-econômica dos setores subalternizados e da exclusão político-jurídica provocada pelo regime pós- 64”. (JUNQUEIRA, 1996, p.01) Como sabemos, o caso brasileiro não acompanhou a dinâmica das etapas e do processo analisado (e descrito anteriormente) por Cappelletti e Garth a partir da metáfora das três “ondas” do access-to-justice movement. Ainda que durante os anos 80 o Brasil, tanto em termos da produção acadêmica como em termos das mudanças jurídicas, também tivesse “participado da discussão sobre direitos coletivos e sobre a informalização das agências de resolução de conflitos, aqui estas discussões são [foram] provocadas não pela crise do Estado de bem-estar social, como acontecia então nos países centrais, mas sim pela exclusão da grande maioria da população de direitos sociais básicos, entre os quais o direito à moradia e à saúde” (idem: p. 02). Junqueira analisa dois subtemas que nortearam os estudos na área aqui no Brasil. Um primeiro vinculado ao acesso coletivo à Justiça e outro relacionado às investigações sobre as possíveis formas estatais e não-estatais para a resolução de conflitos individuais (tais como os novos mecanismos informais que passaram a ser designados por Juizados Especiais de Pequenas Causas). Em relação ao primeiro eixo, para o Brasil, não se tratava de buscar procedimentos jurídicos mais simplificados e alternativos aos tribunais como instrumentos de garantia do acesso à justiça e de diminuir as pressões resultantes de uma “explosão de direitos que ainda não havia acontecido” (p. 02), mas de serem analisadas as demandas por direitos coletivos e difusos (já que o Direito e a Justiça brasileiros estavam organizados e estruturados para lidar com os direitos individuais) que ganharam a cena da esfera pública brasileira através da mobilização dos novos movimentos sociais rearticulados no país a partir da segunda metade da década de 70. Impunha-se naqueles momentos a força da noção de pluralismo jurídico (SANTOS, 1977) que dava destaque às fraturas e às desigualdades experimentadas pelos diferentes segmentos sociais brasileiros, que se contrapunha diretamente à pressuposição de uma sociedade homogeneizada onipresente nas análises sobre direito estatal. Na seqüência de sua retomada histórica, destaca-se a importância das invasões urbanas ocorridas no país, especialmente na cidade do Recife, que foram analisadas por Joaquim Falcão (1981). Este último torna-se, então, referência nas discussões ao final dos anos 80: Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 19 “[o] acesso das classes sociais majoritárias à Justiça é um dos aspectos necessários, a partir do qual se pode pensar numa base social e política que dê ao Judiciário a independência que procura. (...) Neste sentido, a contribuição do Judiciário à redemocratização implica não negar-se a lidar com os conflitos do padrão emergente. Ao contrário, implica reconhecê-los e tentar equacioná-los. Um passo, entre os muitos necessários, é admitir a possibilidade de representação coletiva” (FALCÃO, 1981, p. 20). Ainda sob os auspícios e os desdobramentos da contribuição de Boaventura de Sousa Santos e da “Escola de Recife”, a PUC Rio assume protagonismo nas pesquisas, desta vez no âmbito dos direitos difusos (e não dos direitos básicos como em Recife), passando a analisar as formas de encaminhamento e resolução de conflitos coletivos em três associações de moradores de classe média do Rio de Janeiro - Jardim Botânico, Gávea e Laranjeiras. Nesses casos, ficou evidenciada a utilização do Poder Judiciário apenas como último recurso na resolução de conflitos, quando já estavam esgotadas todas as possibilidades de negociação através dos demais Poderes – o Executivo e o Legislativo. No que tange ao segundo eixo temático a autora destaca a produção da Dissertação de Mestrado de Luciano Oliveira, que fora voltada para uma análise das práticas “judiciais” da polícia como estratégias que minimizam a violência legalmente prevista, geradas em função do hábito das classes populares de “dar queixa no distrito”, buscando a resolução de seus problemas interindividuais de natureza pessoal. Oliveira identificava em seu trabalho a existência e persistência de uma prática histórica das camadas populares, legalizada inclusive durante um período pelo Código Criminal do Império, que atribuía à polícia a competência para apreciar pequenos delitos de natureza pessoal. Este tipo de demandas evidenciava, de fato e mais uma vez, a situação real de inacessibilidade do Judiciário às classes empobrecidas da população brasileira. É assim que quase simultaneamente, no Rio de Janeiro e em São Paulo, surgem trabalhos voltados para o tema das agências judiciais informais de resolução de conflitos. Em São Paulo, Maria Cecília MacDowell dos Santos (1989) publica algumasconsiderações para o desenvolvimento de uma pesquisa empírica sobre os Juizados Informais de Conciliação (JIC) e “no Rio de Janeiro, o grupo da PUC Rio dá continuidade aos seus trabalhos de investigação voltando-se para a análise de novas agências de resolução de conflitos, tais como os Juizados de Pequenas Causas, de Nova Iguaçu e do Centro, a Promotoria de Bairro e a Comissão de Consumidores da Câmara dos Vereadores da Cidade do Rio de Janeiro” (idem, p.08). Nesta segunda vertente, a preocupação fundamental já não era então a luta por direitos coletivos, mas sim a urgência de se alargar a cultura cívica no Brasil, entendida esta em função das expectativas construídas pelos indivíduos em relação ao governo e às suas instituições. De fato, em países como o Brasil, é fundamental a expansão da oferta, a melhoria da qualidade e da eficiência, e a redução dos custos dos serviços judiciários, tornando-os efetivamente acessíveis, em particular aos setores de baixa renda, reduzindo o fosso entre a justiça e a população. Como mostra pesquisa coordenada por Vianna, Carvalho, Melo e Observatório da Justiça Brasileira 20 Burgos (1997), esta percepção vem ganhando força mesmo entre agentes centrais do campo judiciário, como os juízes. Dela resultaram, por exemplo, movimentos como o do chamado direito alternativo — em que alguns magistrados pregam a necessidade de que a justiça se volte para a defesa dos segmentos sociais inferiores —, ou associações como a dos Juízes para a Democracia. Foi também ela, em grande parte, que deu base a iniciativas como a criação de um órgão de assistência judiciária como a Defensoria Pública, e de instâncias mais ágeis, informais e isentas de custos, como os juizados de pequenas causas, atualmente substituídos pelos juizados especiais cíveis e criminais. Iremos nos debruçar agora sobre algumas interfaces do Judiciário com estes marcadores de diferenças (gênero/sexualidade e raça/etnia) que já foram investigadas, pesquisadas e analisadas na literatura das ciências sociais e humanas brasileiras. Trata-se ainda de um levantamento inicial que não tem pretensões de esgotar toda a literatura que se debruçou sobre estas temáticas. Também a seguir identificamos uma posição que é aquela compartilhada pelos grupos de pesquisadores que aqui se alinharam: recorremos à perspectiva de uma Teoria Crítica do Direito e da Justiça, com fortes contornos feministas, para delimitar nosso escopo de interpretação dos sentidos empíricos aqui delineados. Revelando Desigualdades: O Direito como Sistema de Poder Um paradigma crítico para compreender qualquer doutrina, seja ela política, social, moral, ou legal, se baseia no pressuposto de que o poder está imbricado em todas as estruturas (adiante tematizamos este ponto a partir de uma perspectiva relacional e microfísica do poder, recorrendo à contribuição inegável de Foucault nesta perspectiva). Outra dimensão conceitual importante neste trabalho refere-se ao campo dos estudos pós ou des-colonialistas que ao propor o conceito de “colonialidade” insistem igualmente no quanto as nossas instituições (assim como gênero e sexualidade e raça e etnia) estão também atravessados pelo poder. No que tange aos estudos feministas de caráter pós-colonialistas é importante chamar atenção para a contrubuição de C. Mohanty (1984), em um artigo que já se tornou célebre - Under Western Eyes: Feminist Scholarship and Colonial Discourses -, procurou identificar nos textos de feministas ocidentais aquilo que ela definiu como a “ produção da ‘mulher do terceiro mundo’ como um sujeito monolítico” (MOHANTY, 1984, p. 333, tradução livre), a partir da construção crítica de três princípios norteadores: (a) a afirmação de que “ as mulheres” se constituem em um grupo coeso e homogêneo, com interesses e desejos idênticos; (b) o usos acrítico de metodologias particulares de análise que visem “ provar” a existência desta universalidade e de sua correlata validade para os estudos de diferentes países (especialmente tendo-se como referência a permanência da dominação patriarcal e da opressão das mulheres como um fenômeno global) e; (c) estes dois aspectos anteriores, por gerarem a noção homogênea de opressão das mulheres como um único grupo, definiriam por via de conseqüência uma imagem/representação específica das mulheres do terceiro mundo (aqui estaria ainda em jogo um construção de relações de força onde a definição hegemônica Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 21 de poder é reduzida a jogo binários de estruturas entre quem possui poder – homens – e aqueles que não o possuem – as mulheres, especialmente aquelas do terceiro mundo). Sua proposta, inicialmente vigorosa e original, teve repercussões imediatas no mundo acadêmico já que, provocativamente, a obra localizava o feminismo acadêmico dentro do contexto global de dominação política e econômica do “primeiro mundo”. Com o artigo e a crítica, a autora procurou evidenciar modos de apropriação e de codificação de conhecimentos acadêmicos sobre as mulheres (especialmente as não ocidentais e aquelas do “terceiro mundo”), forjados a partir de categorias analíticas desenvolvidas exclusivamente pelas teóricas anglo-saxãs e europeias. No mesmo artigo há a insistência da autora em reforçar a necessidade (já naquele momento) da formação/construção de estratégias de coalizão entre as dimensões de gênero, sexualidade, classe, raça/cor e nacionalidade na construção de tradições acadêmicas feministas contra-hegemônicas, que estariam em contraponto com as propostas (monolíticas) ocidentais. A autora, ao considerar as práticas tradicionalmente acadêmicas (o ler e o escrever, sejam críticos ou textuais) como inscritas em relações políticas, dá o devido destaque ao fato de “como” as teorias (feministas) ocidentais estariam construindo uma representação distorcida, estável, ahistórica e reducionista a respeito das mulheres e dos feminismos do terceiro mundo como: sexualmente limitadas, ignorantes, pobres, não escolarizadas, tradicionais e conservadoras, voltadas essencialmente para o doméstico e a família, dependentes e vitimizadas pelo sistema sócio-econômico etc. A denúncia de Mohanty, justamente, situa-se na necessidade de identificar nestas estratégias, que aparentemente seriam apenas de enunciação, como os feminismos e algumas teorias ocidentais estariam se apropriando e efetivamente “colonizando” (portanto, oprimindo ou suprimindo), as complexidades fundamentais e os conflitos que seriam inerentes e que marcam a vida das mulheres de classes, sexualidades, raças, religiões, culturas e castas tão diferentes, em prol de uma visão binária e reducionista8, e as alocando invariavelmente na categoria de “as outras”. Já o convite que ela nos faz é o de se pensar como o feminismo acadêmico ocidental (assim como outros tipos de saberes) deveria(m) enfrentar o desafio de se situar e de examinar o papel efetivo que tem desempenhado no contexto econômico e político global. Numa outra perspectiva mas dentro desta abordagem, desta vez insistindo sobre a importância das questões étnicorraciais, a colonialidade do poder pode ser entendida, segundo Quijano (2005), como a classificação social da população mundial de acordo com uma ideia inicialmente convencionalizada do que seja “raça”. Nesta perspectiva, a raça termina por ser considerada uma “[...] construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo” (QUIJANO, 2005, p. 227-228). Tal construto “raça”, segundo Colaço e Damázio (2010) acabou por ser 8 Está claro que na construção destas homogeneizações que as características de contraponto que identifica e qualificaas mulheres ocidentais, por oposição, seriam: mulheres escolarizadas, modernas, com controle sobre seus próprios corpos e sexualidade e liberdade e autonomia para tomar as próprias decisões. Observatório da Justiça Brasileira 22 assumido “pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia. Assim foi classificada a população da América e, posteriormente, do mundo, a partir desse novo padrão de poder. Trata-se do princípio organizador que estrutura as múltiplas hierarquias do sistema-mundo a partir de centros de poder e de regiões subalternas” (p. 92). Neste sentido, o patriarcado europeu e as noções européias de sexualidade, epistemologia e espiritualidade foram exportadas para o resto do mundo através da expansão colonial, transformadas assim nos critérios hegemônicos que iriam racializar, classificar e patologizar a restante população mundial de acordo com uma hierarquia de raças superiores e inferiores. (GROSFOGUEL, 2008, p. 124). Assim, a perspectiva de superioridade/inferioridade além de estar na base do conceito de superioridade de gênero e étnicorracial também implicaria uma superioridade epistêmica. O conhecimento produzido pelo homem branco é geralmente qualificado como “científico”, “objetivo” e “racional”, enquanto aquele produzido por homens de cor (ou mulheres) é “mágico”, “subjetivo” e “irracional” (DELGADO, 2007). Essa dimensão, a colonialidade do saber, não apenas estabelece o eurocentrismo como perspectiva única de conhecimento, mas também descarta as outras produções intelectuais. Tendo como nosso norte orientador a compreensão de que o Direito e suas instituições correlatas (a exemplo dos Tribunais e dos seus acórdãos que vamos investigar aqui) são instituições e sistemas de poder igualmente atravessados pelas clivagens das diferenças de gênero/sexualidade e raça/etnia, localizamos este esforço de pesquisa em campos disciplinares múltiplos onde encontramos as teorias feministas e os dos estudos pós ou des-colonialistas. Neste sentido, nosso conhecimento aqui produzido é um conhecimento de “fronteira” entre arcabouços acadêmicos igualmente diversos: Antropologia, Sociologia, Ciência Política, Psicologia Social e Política em sua interface com os estudos jurídicos. Sabemos que foi a partir dos anos 80 que se desenvolveu o paradigma da articulação entre história, sujeitos e do poder, tendo entre seus focos estudar a maneira como o poder e a história podem vir a determinar e se inscrever nos processos legais. Nos 90, a Antropologia Jurídica anglo-saxã buscou aprofundar o duplo papel da legalidade apontado pelos trabalhos anteriores, de forma que o Direito pode ser ao mesmo tempo um instrumento de dominação e um espaço para resistência (SIERRA; CHENAUT, 2002). Para estes autores, a partir da crítica da visão formalista do Direito, ou seja, da ideia de conceber o legal vinculado ao Direito estatal, impulsionada pelo pluralismo jurídico, resulta de grande interesse para avançar em uma interpretação sobre os sistemas de regulação vigentes nas distintas sociedades. Surge uma heterogeneidade de abordagens, temas e enfoques ressaltando o quanto este é um campo de investigação dinâmico que necessita ir além de apenas uma disciplina fechada em si mesma. Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 23 Aqui, buscaremos compreender a relação do sistema legal com as diversas hierarquias de gênero/sexualidade e raça/etnia, entendendo que essas não podem ser separadas de outras hierarquias e desigualdades, como por exemplo, as de classe. Isso porque elas fazem parte de um sistema maior de poder e de opressão, que pode ou não ser mantido e/ou reproduzido através das estruturas institucionais – formais e informais - do direito. A análise oferecida nesta subseção está dividida em três partes que representam dois grandes eixos: o enfoque teórico guiado por discussões conceituais travadas na academia e um enfoque empírico guiado por análises de gênero/sexualidade e raça/etnia, sobretudo, no sistema penal brasileiro. Sendo assim, primeiramente, apresentamos como as novas críticas ao sistema legal foram criadas a partir de uma definição que alinha o sistema legal com um canal ideológico que detém poder. Segundo, faremos uma breve síntese das contribuições das/dos teóricas/os feministas e do campo das relações raciais a esse mesmo debate. Já no segundo eixo, examinaremos mais especificamente a justiça criminal e finalizaremos, na terceira seção, com uma breve síntese de alguns estudos no Brasil que buscaram identificar o papel do sistema penal na reprodução de rígidos papéis de gênero, particularmente no que tange à violência de gênero e às relações étnico-raciais. A Teoria Crítica do Direito Um dos princípios básicos subjacentes aos estudos designados de teoria crítica do direito (critical legal studies - CLS) é que o direito está diretamente implicado em instituições e padrões ideológicos que ordenam e mantêm certas estruturas na sociedade (COLLINS, 1987). O movimento iniciou-se nos anos 70 nos Estados Unidos como um contraponto aos estudos sobre direito e sociedade na Universidade de Winsconsin (TUSHNET, 1991). Os intelectuais que compunham o movimento concordavam em termos gerais que o direito é política, dado que o direito é uma forma de “atividade humana na qual conflitos políticos são trabalhados de forma a contribuir com a estabilidade da ordem social” (TUSHNET, 1991, p. 1526). Apesar de sua diversidade interna, em que críticas orientadas por gênero/ sexualidade e raça/etnia também se encontravam, o movimento de teoria crítica do direito buscava desenvolver: (1) certas técnicas desconstrucionistas para mostrar a falta de diferença entre discursos legais e discursos morais e políticos, e; (2) críticas à sociologia do direito baseadas nos trabalhos de Marx e Weber (TUSHNET, 1991). Para esse movimento, a virada crítica significava olhar para o papel e a relação do direito com a lógica e as contradições por detrás das instituições na sociedade que estruturam diversas formas de desigualdades. A identidade racial e de gênero dos agentes de justiça Uma das formas de investigarmos o acesso diferencial à justiça por grupos identitários é a medida com que estes ocupam postos e cargos no sistema de justiça. Este será um Observatório da Justiça Brasileira 24 primeiro objeto de breve análise aqui. Acerca desta dimensão, o primeiro relatório bianual produzido pelo LAESER/UFRJ (Laboratório de Análises Estatísticas, Históricas e Sociais, 2007-2008) fornece dados acerca da identidade racial e de gênero da alta magistratura brasileira9. Seguindo a classificação por sexo e por «raça ou cor» utilizada pelo IBGE, dos 72 membros da alta magistratura, 56 foram identificados pelos pesquisadores como homens brancos (78%), 12 como mulheres brancas (16%), dois como homens pretos (3%), e dois como homens amarelos (3%). Decerto que os mecanismos que atuam na seleção da alta magistratura são tanto técnicos quanto políticos, mas a sua composição demonstra muito bem o quadro social elitista do qual o Poder Judiciário faz parte. Três quartos do quadro de ministros do judiciário é formado pelo grupo identitário mais privilegiado política e culturalmente, homens brancos. Um trabalho interessante de se fazer, mas que foge ao espectro de nossa pesquisa, seria comparar a composição identitária das diversas instituições que formam o sistema de Justiça no Brasil – os corpos policiais e as instâncias judiciárias, ao menos. Uma tal investigação nos permitiria responder em que medida o sistema judiciário no Brasil reflete e é formado em consonância com a pluralidade e a diversidade identitária do país – indicando, portanto, os diversos níveis de democratização que convivemna composição desta dimensão do acesso à justiça. Contribuições Feministas e de Pensadores das Relações Raciais sobre o Direito Os intelectuais ligados a uma perspectiva crítica do direito, particularmente as vertentes ligadas às críticas feministas e das relações raciais, ressaltam que o direito serviu e serve como um lócus político de alienação e opressão. Mas, paradoxalmente, ele também pode servir como um espaço de transformação (TUSHNET, 1991). Ou como Kimberlé Crenshaw enfatiza, “o poder social que delineia a diferença não precisa ser um poder de dominação, pode, ao contrário, ser uma fonte de empoderamento social e reconstrução” (1991, p. 1242). Seguindo esse mesmo intuito e refletindo sobre a atualidade brasileira, Piovesan (2003, apud IZUMINO, 2004) argumenta que a ordem jurídica abarca tensões ilustrativas, por um lado, de uma visão mais progressista e, por outro lado, de uma visão mais conservadora e reacionária. Essa tensão entre valores é contida na ordem jurídica que reúne “num mesmo sistema normativo instrumentos jurídicos contemporâneos e inovadores (como a Constituição Federal) e outros anacrônicos como o Código Civil e o Código Penal de 1940”. Diante da perspectiva androcêntrica na qual o direito se encaixa, Piovesan (2003) sugere duas formas de desafiar tal lógica. Em primeiro lugar, é necessário mudar o ensino jurídico para transformar o perfil conservador dos agentes jurídicos. Em segundo lugar, 9 No Brasil, as instituições que compõem a alta magistratura são, Supremo Tribunal Federal, Supremo Tribunal de Justiça, Superior Tribunal Militar, Tribunal Superior do Trabalho e Tribunal Superior Eleitoral. É possível que um juiz ou juíza acumule funções em mais de uma dessas instituições, o que foi considerado quando da pesquisa citada, que contou cada juiz ou juíza apenas uma vez, independentemente do número de cargos que ocupava. Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 25 precisamos investir em mudanças que criam uma doutrina jurídica capaz de visualizar o lugar da mulher, do/as homossexuais e dos/as negros/as na sociedade e perceber como o poder está intrinsecamente ligado às relações de gênero, sexualidade, raça e etnia. É precisamente a partir da visão salientada por Piovesan (2003) que as teóricas ligadas aos estudos feministas do direito (feminist legal studies) buscaram enfatizar que as desigualdades de gênero/sexualidade e raça/etnia são perpetuadas e reproduzidas pelo sistema legal que se legitima por uma lógica masculina, heterossexual e branca construída através de princípios como universalidade e neutralidade (FINEMAN, 2005; CONAGHAN, 2000). Em termos gerais, essa perspectiva busca colocar tais hierarquias no centro dos estudos do direito, explorando o seu papel em manter um status desigual para as mulheres e os demais grupos historicamente excluídos. Ou seja, tais críticas convergem ao entender de que o direito guia presunções sobre papéis de gênero/sexualidade, raça/etnia já que pode ser considerado como uma extensão dos sistemas capitalista, patriarcal, racista e heteronormativo de opressão (ANDRADE, 1999, 2007; CONAGHAN, 2000). Duas contribuições que surgem destes debates feministas incluem: (1) a crítica da dicotomia do público e privado, ligada, por sua vez, aos rígidos papéis de gênero/sexualidade e questões afeitas ao papel da interseccionalidade neste processo (discutiremos este conceito mais adiante); (2) o papel da justiça criminal na perpetuação destes papéis. A lógica dicotômica estruturadora dos papéis de gênero/sexualidade e raça/etnia, estendeu-se tanto para a produção científica quanto para a produção de normativa estatal. Nesse sentido, podemos pensar que a produção jurídica funciona como um mecanismo capaz de legitimar certas hierarquias de poder. Isso porque o próprio sistema legal tem implicações políticas. Feministas (PATEMAN, 1989; FRASER, 1986; OKIN, 1998; WALBY, 1990) têm apontado que o público e privado não devem ser apenas considerados como uma mera dicotomia, precisamente porque as práticas e ações do público são inteiramente influenciadas pelas práticas e ações do privado e vice versa. As assimetrias presentes nas duas esferas são, em grande medida, resultado da valorização diferenciada conferida aos dois espaços. A configuração histórica e filosófica da esfera privada como o lugar por excelência do “feminino” levou a que questões associadas com a família fossem consideradas como uma questão privada. Seguindo o famoso lema de que o pessoal é político, Martha Fineman (2005) chama atenção para o fato de que a família é altamente regulada e controlada pelo Estado, já que as leis definem “quem pode casar com quem, quais relacionamentos são legítimos ou legais, quais são as responsabilidades e qual é o papel da família” (p. 413-414). Desse modo, a lei serve, sobretudo, para legitimar, cristalizar e perpetuar certos papéis tanto dentro da família quanto fora dela. Cabe ressaltar que a naturalização dos papéis de gênero/sexualidade e raça/etnia é fundamentada por uma premissa heterossexual e racista. Portanto, o simbolismo que a família tradicional carrega em si é duplo. Tanto Collins (1998) quanto Fineman (2005) concordam que o sentido conferido à tradicional família representa não somente uma construção Observatório da Justiça Brasileira 26 ideológica, mas também um princípio de organização social capaz de influenciar a construção de identidades, com implicações para mulheres e homens, cruzando as fronteiras de classe, raça e sexualidade. Exploraremos pelos menos três problemas oriundos dessa simbologia e estrutura de poder. Em primeiro lugar, a função da família nessa perspectiva, de acordo com Fineman, cria problemas para além da reprodução de papéis de gênero. A função tradicional da família como um lugar de dependência emocional e física e como uma panacéia para os mais diversos problemas sociais retira a responsabilidade do estado de intervenção neste espaço (FINEMAN, 2005). Em segundo lugar, se os papéis de gênero da família tradicional seguem padrões de interação patriarcais, eles também estabelecem um ideal hegemônico e heteronormativo do que significa a masculinidade. O sistema patriarcal que permeia a ordem jurídica cristaliza uma definição de masculinidade pautada por uma constante tentativa de diferenciá-la do que é o ideal “feminino”, levando, portanto, nas piores circunstâncias, a atos de exclusão, manipulação, exploração, e violência (HARRIS, 2000). Enquanto isso não indica que todo homem ocupará sempre uma posição dominante e que as mulheres estarão sempre em uma condição de subordinação (WALBY, 1990, p. 20), teóricas feministas e teóricas queer têm mostrado que tal busca para alcançar o ideal da masculinidade influencia não somente a relação entre homens e mulheres, mas também e, de maneira importante, a relação entre homens e homens. Tal ideal cria uma tensão e ambigüidade nas ações e relações de gênero. Como a teórica queer Eve Kosofsky Sedgewick (1990, apud HARRIS, 2000, p. 787) argumenta, inicialmente os homens temem sua própria homossexualidade quando se relacionam com outros homens, já que esses são os espaços em que se espera que eles demonstrem toda sua virilidade. Segundo, há um reservatório de violência capaz de surgir deste regime que dita específicos padrões de ações. Instâncias de violência atreladas a essas visões de masculinidades10 resultam de experiências em que homens sentem-se ameaçados por outros homens e mulheres ou quando grupos de homens encenam conjuntamente atos de violência. Portanto, devemos lembrar que o conceito de gênero nos permite compreender como as estruturas e práticas de subordinação que operam no público e no privado não somente fazem as mulheres sofrerem, mas os homens também, mesmo que sejaem graus e níveis diferentes (HIRSCHMANN, 2003). As famílias tradicionalmente burguesas, patriarcais e monogâmicas reproduzem também as hierarquias associadas à sexualidade e a raça/etnia. Este modelo hegemonizado de família claramente obscureceu e invisibilizou outros formatos familiares, a exemplo das famílias homoafetivas (MATOS, 2000) e das famílias de escravos. No que tange ao tema étnicorracial, basta lembrar como o Estado brasileiro, no final do século XVIII e início do XIX, desenvolveu uma política de imigração em massa para atrair famílias de imigrantes europeus em detrimento das famílias dos ex-escarvos, 10 Angela Harris (2000 p. 780) ressalta que existem diversos tipos de masculinidades já que os homens estão divi- didos por raça, etnia, classe, religião, e sexualidade e que tais masculinidades também influenciam sobre diferentes relações de aliança, dominação e subordinação. Acesso ao Direito e à Justiça Brasileiros na Perspectiva de Gênero/Sexualidade, Raça/Etnia: Entre o Estado e a Comunidade 27 oferecendo lotes de terra para que se estabelecessem como pequenos/as proprietários/as agrícolas (alemães/ãs e italianos/as em Santa Catarina e Rio Grande do Sul). Para o Estado de São Paulo, a política imigratória foi de obter mão de obra para a lavoura do café. Os/As imigrantes pobres recebiam passagem e transporte para as fazendas. A escolha da imigração em massa tinha intenção de substituir o trabalho escravo, pois a escravidão estava em crise e nenhum interesse público havia sobre as famílias de ex-escravos. Ainda neste sentido cabe lembrar que alguns avanços de pesquisas antropológicas favoreceram uma abordagem totalizante das sociedades ditas “primitivas”. A população negra e indígena historicamente foi classificada como tal, no Brasil e em todo mundo ocidental, tendo seus modelos de organização societária e cultural sido diminuídos em importância e caracterizados, no mínimo, como “atrasados”. A antropologia evolucionista buscava comparar traços culturais e instituições de várias sociedades para formular hipóteses sobre a evolução de determinada instituição. Por exemplo, a comparação entre regras de casamento e parentesco de diversas “sociedades primitivas” possibilitou que Morgan (1980) elaborasse sua teoria sobre a evolução do casamento que passaria por fazes distintas: (a) uma suposta etapa de “promiscuidade primitiva”, (b) evoluindo depois para o “matriarcado”, (c) depois para o patriarcado, (d) em seguida para a poligamia e, por fim, (f) a monogamia que, enquanto forma de organização familiar ocidental, seria tida como a forma mais “avançada”. Os desdobramentos deste tipo de raciocínio são obviamente processos de subalternização e alienação. No Brasil, sabe-se que os casamentos inter-raciais são mais comuns do que em outras sociedades multirraciais e que tais uniões, por meio do processo de miscigenação racial que começou no período colonial, continuam a existir. Contudo, os poucos estudos existentes no país sobre este tema instigante nos mostram que aproximadamente 80% dos casamentos no Brasil são racialmente endogâmicos e que tal padrão está longe do que seria esperado se os marcadores de cor ou raça fossem, de fato, totalmente irrelevantes na seletividade dos casados (BERQUÓ, 1991, LAZO, 1988; SCALON, 1992, SILVA, 1987 e 1991). Outro problema que surge desse foco na família tradicional e que nem sempre é considerado, mas de importância para a pesquisa que se propõem aqui, é como a família envolve questões de interseccionalidade. Patricia Collins (1998) chama atenção para o fato de que as presenças de hierarquias de gênero, riqueza, idade e sexualidade dentro da família são paralelas às hierarquias presentes na sociedade. O que a imagem da família tradicional faz é reforçar a naturalização dessas relações com implicações para a naturalização da autoridade masculina e a invisibilidade de sexualidade gay, lésbica e bissexual (COLLINS, 1998). O mesmo ocorre para as hierarquias de raça/etnia tanto dentro quanto fora da família, particularmente no que tange os estereótipos que tendem a naturalizar a inferioridade intelectual de negros e negras. Como já referimos acima, tais hierarquias influenciam as identidades tanto fora quanto dentro da família. O papel das discriminações associadas a distintos e hierarquicamente valorados modelos de famílias, têm levado as pesquisas sobre mobilidade social e raça a dar destaque ao papel da filiação racial na transmissão intergeracional das desigualdades sociais. Os resultados apontam não só para as menores taxas de mobilidade Observatório da Justiça Brasileira 28 ascendente para os estratos médios e altos, experimentadas pelos não brancos, como também para as maiores dificuldades encontradas pelas famílias não brancas de classe média para transmitir aos filhos as posições sociais conquistadas (SILVA, 1981; HASENBALG, 1985; CAILLAUX, 1994; HASENBALG E SILVA, 1999, OSÓRIO, 2004). Parece-nos claro então que características tais como número de membros da família, sua renda, condições de moradia, escolaridade da pessoa de referência e tipo de família modificam a estrutura de oportunidades dos indivíduos. Invariavelmente, em nosso país, são as famílias oriundas da população negra e indígena que, devido às suas determinações históricas de subordinação e opressão, se mantêm alijadas deste processo de competição pelas oportunidades existentes. Desta forma, as condições da família têm sido consideradas pelos/as estudiosos/as do tema como um importante indicador – senão o mais importante - na composição das desigualdades sociais, justamente por agregar características econômicas, sociais e culturais. O número de membros da família, principalmente o número de pessoas com menos de quinze anos, a presença ou ausência de cônjuge, o grau de instrução dos pais e mães, além da renda familiar, são, pois, determinantes fundamentais para a formação da nova geração11. Ante toda essa evidência acumulada na pesquisa sociológica e demográfica dos últimos tempos, o ônus da prova está com aqueles que tentam desfazer o elo causal entre racismo, discriminação e desigualdades raciais. Se as desigualdades raciais no Brasil não são produto de racismo e discriminação, qual é a teoria ou interpretação alternativa para dar conta das desigualdades constatadas? Feministas têm mostrado que dentro da família as hierarquias de gênero com implicações no direito também se manifestam, muitas vezes, através de questões ligadas ao divórcio e ao abuso e/ou violência de gênero. O impacto fora da família novamente remete a discussões da ligação entre as ações no privado e no público, já que o papel moral que a mulher deverá sustentar se estende para além da esfera doméstica. Aqui cabe lembrar também como a moralidade desejada dentro das bordas familiares e nas práticas e instituições da sociedade tende a limitar e/ou controlar a autonomia da mulher. Além disso, representa uma base que paradoxalmente é utilizada para julgar as mulheres que demandam do sistema penal em casos de violência de gênero (ANDRADE, 2007). Se pensarmos na construção da identidade individual e da família tradicional como unidades que constroem uma nação, no sentindo de constituição de uma família nacional, conseguimos perceber como os pressupostos de heterossexismo e da heteronormatividade são transportados para esse nível também (COLLINS, 1998). As hierarquias são reproduzidas ao mesmo tempo em que certas questões historicamente relegadas à esfera privada continuam invisíveis. Tomamos o exemplo dado por Collins sobre violência e a resistência de lidar com as suas formas de manutenção de poder. Ele utiliza exemplos comuns nos Estados Unidos, 11 No Brasil, a renda familiar per capita das famílias com pessoas de referência branca é quase o dobro da renda per capita das famílias chefiadas por pretos/as e pardos/as;
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