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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Ricardo Mégre Alvares da Silva Efeitos da pulsão, linguagem e laço social sobre a constituição dos sujeitos. Belo Horizonte 2013 2 Ricardo Mégre Alvares da Silva Efeitos da pulsão, linguagem e laço social sobre a constituição dos sujeitos. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica. Orientador: Prof. Dr. Oswaldo França Neto Belo Horizonte 2013 3 150 S586e 2013 Silva, Ricardo Mégre Alvares da Efeitos da pulsão, linguagem e laço social sobre a constituição dos sujeitos [manuscrito] / Ricardo Mégre Alvares da Silva. - 2013. 111 f. : il. Orientador: Oswaldo França Neto. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Inclui bibliografia 1.Psicologia – Teses 2. Psicanálise - Teses. 3.Linguagem - Teses. I .França Neto, Oswaldo. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título. 4 5 AGRADECIMENTOS Ao meu grande Mestre, na acepção grega da palavra, Célio Garcia, que me acolheu quando eu caminhava a esmo e me ensinou a verdadeira dimensão do social no cerne da própria psicanálise. Ao meu Orientador, Professor Oswaldo França Neto, que nos momentos precisos soube me conduzir a cada vez que me perdi durante o percurso. À Professora Ilka Franco Ferrari, que anos atrás fez com que eu transformasse um escorregão em minha primeira produção científica. Que após tantos anos, continuou me indicando caminhos através das valiosas contribuições trazidas no momento da minha qualificação e, por último, prontamente aceitou nosso convite para participar como membro da banca examinadora da minha dissertação. À Professora Nádia Laguárdia Lima, que infelizmente não pôde participar da minha defesa, mas foi responsável pela leitura cuidadosa do meu projeto de qualificação, para que eu trouxesse para minha dissertação os artigos sobre a técnica de Freud, fundamentais no desenvolvimento do meu trabalho. À Professora Andréa Máris Guerra, que resgatou meu prazer em ler Freud pela delicadeza com que trata tanto a obra freudiana quanto seus alunos. Além disso, pelo pronto atendimento ao nosso convite para compor nossa banca. Ao Professor Cássio Eduardo Miranda, que nos momentos de desespero esteve ao meu lado. Aos meus alunos, com especial carinho a Matheus Ribeiro e Ademir Venil, que souberam me escutar antes mesmo de que eu soubesse a dimensão da minha fala. Ao Dr. Celso Rennó Lima, pelos anos de escuta e pela gentileza em me conceder uma entrevista sem a qual este trabalho não teria o mesmo brilho. Ao Dr. Francisco Paes Barreto, que mesmo distante, nos momentos de incerteza está sempre disponível para escutar minhas dúvidas. E, por último, mas não menos importante, aos meus pais. Sem eles nada disso teria sido possível. 6 RESUMO A presente dissertação discute os efeitos da pulsão e da linguagem sobre o laço social e suas consequências sobre a constituição dos sujeitos. Com base em dois casos clínicos, demonstra as mutações inéditas ocorridas nos enlaçamentos dos sujeitos contemporâneos e seus sucedâneos na clínica psicanalítica. Por fim, aponta a relação indissolúvel entre pulsão, linguagem e laço social a partir da noção de que um resto não dialetizável sempre permanece. Palavras-chave: Psicanálise; linguagem; sociedade; laço social. 7 ABSTRACT This current dissertation discusses the effects of the desire and the language on the social lace and its consequences on the individuals’ constitution. Based on theoretical-argumentative principles of the psychoanalytic theory. It goes through the main Freud’s and Lacan’s texts which are about the social aspects and the relation between the individual and the culture. Based on two clinical case, inedited mutations ocurred in the connections of the contemporaneous individuals and their substitutes in the psychoanalytic clinic. Finally, it shows the indissoluble relation between desire, language and social lace from the notion that a non-dialetable rest always remains. Keywords: Psychoanalysis; language; society; social lace. 8 LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 - Os quatro discursos................................................................................ 85 FIGURA 2 - Lugares discursivos................................................................................ 85 FIGURA 3 - Discurso do mestre................................................................................. 86 FIGURA 4 - Discurso do capitalista........................................................................... 89 FIGURA 5 - Os cinco discursos................................................................................. 90 FIGURA 6 - Mulher / mãe.......................................................................................... 96 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................... 9 1 CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E SUA INSERÇÃO NO CAMPO DO SOCIAL..................................................................................................................... 14 1.1 Da surdez dos DSMs à escuta psicanalítica: um caso paradigmático................ 14 1.2 Primeiras elaborações teóricas acerca da constituição subjetiva....................... 17 1.3 Formalização teórica dos conceitos fundamentais a partir da clínica - práxis... 20 1.3.1 Trieb – construção conceitual e articulações diversas........................... 24 1.3.2 Elaborações sobre o conceito de recalque.............................................. 27 1.4 A influência dos ideais sociais na constituição dos sujeitos.............................. 29 1.5 Da compulsão à repetição ao conceito de pulsão de morte............................... 33 2 SURGIMENTO DA LEI: DO TOTEM AO ASSASSINATO DO PAI................ 40 2.1 No princípio era a interdição: a regulação simbólica dos laços sociais............. 41 2.2 Tabu e doença neurótica - articulações possíveis.............................................. 44 2.3 Peculiaridades relativas ao tabu......................................................................... 48 2.4 Considerações acerca dos sentimentos sociais.................................................. 52 2.5 Animismo: uma teoria psicológica da concepção do mundo............................. 53 2.6 O mito freudiano: seus desdobramentos e seus efeitos sobre a teoria psicanalítica...................................................................................................... 56 2.7 Articulações entre o complexo de Édipo e o assassinato do pai primevo......... 60 3 MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO: DOS PRIMÓRDIOS DA SOCIEDADE AO CONTEMPORÂNEO........................................................................................ 66 3.1 Da família primitiva à família nuclear burguesa...............................................67 3.2 A fratura da modernidade e seus efeitos nos enlaçamentos sociais................... 69 3.3 O declínio do mestre antigo e a ascensão do mestre capitalista........................ 75 3.4 Impasses da constituição subjetiva no contemporâneo - vinheta clínica........... 92 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 102 REFERÊNCIAS............................................................................................................... 109 9 INTRODUÇÃO Sabe-se que uma das características do mundo contemporâneo é a pressa, a urgência do social em relação às suas demandas de produção e consumo. Atravessadas pelo seu tempo, o tempo presente, as pessoas, acabam por assimilar tais demandas e passam a buscar de todas as formas satisfazer as exigências dos ideais que compõem o imaginário contemporâneo, ideais determinados pelo discurso do capital, outro nome para o mundo globalizado. Diante da impossibilidade de tal empreitada, muitas pessoas acabam por adoecer ou, mais precisamente, apresentam sintomas que denunciam algo de desumanizante na lógica do capital e têm como resposta sua inclusão em alguma categoria da psicopatologia contemporânea1. Esta pesquisa pretende investigar as principais considerações freudo-lacanianas acerca do social e suas relações com o método psicanalítico, tomando como premissa a assertiva freudiana segundo a qual Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social (Freud, 1921/1996, p. 81). A partir disso, buscaremos verificar, a partir da psicanálise, os efeitos das mudanças do campo social sobre as subjetividades, consequentes de possíveis mutações nos laços sociais dos sujeitos entre si e entre a civilização propriamente dita. Trata-se de uma pesquisa teórica, considerando este termo a partir do artigo ‘Pesquisa de tipo teórico. Psicanálise e universidade’ (Garcia-Roza, 1994) onde o autor discute quanto às possibilidades de uma pesquisa teórica, para além de uma submissão da teoria a uma análise com fins de verificação da existência de uma lógica interna, de conceitos estruturalmente coesos, que é o que ele acredita acontecer comumente na universidade. Garcia-Roza (1994) questiona a identificação do trabalho do epistemólogo com o do pesquisador, apontando diferenças fundamentais para compreensão da especificidade de cada 1“Em 28 de julho de 2010, a agência de notícias Reuter deu a conhecer a resposta que o Royal London College of Psichiatrics endereçara ao grupo de psiquiatras que, nos EUA, está encarregado de revisar o DSM-IV para a edição do DSM-V [...]. Esta resposta foi originada por uma consulta no qual o grupo norte-americano solicita de seus colegas britânicos opiniões e recomendações surgidas da aplicação do DSM-IV desde 1992 (ano de sua publicação) até a atualidade. Nela, os psiquiatras ingleses manifestam que a aplicação do DSM-IV tem produzido ao menos três epidemias falsas: (1) o Transtorno Bipolar; (2) o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade; e (3) o Autismo infantil.” Jerusalinsky, Alfredo & Frendrik, Silvia (Orgs.). (2011). O livro negro da psicopatologia contemporânea. São Paulo, Vialettera, p. 10. 10 um. Enquanto o primeiro se coloca numa posição reverente frente à teoria buscando uma purificação e a eliminação de aderências potencialmente degradantes, o segundo persegue o novo, insiste em transpor os limites do já estabelecido, a fim de alcançar o status de criador. Ocupa-se, então, em diferenciar comentário de releitura, guardando para a releitura a condição de fazer surgir o inédito, o que está para além do texto de forma radical, diferentemente do comentarista, que, mesmo não sendo um mero copiador, se limita a fazer surgir uma novidade que seja ainda expressão do próprio texto. É na perspectiva de uma releitura que Garcia-Roza (1994) propõe abordar os escritos psicanalíticos. Finalizando uma construção textual refinada, o autor defende uma releitura que se aproxima da escuta analítica, buscando no texto sua potencialidade significante, no sentido de produzir uma multiplicidade de sentidos. Nessa perspectiva, entretanto, assevera quanto aos limites dessa empreitada no sentido de não resvalar para o campo da opinião, da doxa, que seria exatamente o que o discurso acadêmico busca ultrapassar. Feita a advertência, Garcia-Roza (1994) é contundente em defender seu processo de releitura enquanto um método privilegiado de pesquisa em psicanálise, onde os conceitos surgiriam como singularidades a partir da textualidade do texto, em vez de derivações de um processo lógico abstrato. Termina com esta afirmativa: A questão maior não é essa que opõe discurso conceitual e discurso psicanalítico, mas a que opõe duas concepções de conceito: o conceito entendido como entidade abstrata, como universal formal, e o conceito entendido como singularidade, como respondendo a verdadeiros problemas (Garcia-Roza, 1994, p. 20). Embora nosso enfoque central seja a pesquisa teórica tal como descrita acima, pretendemos apresentar, ao início e ao final desta dissertação, dois fragmentos de casos, a fim de exemplificar nossa hipótese de mutação dos laços sociais e seus efeitos nos vários campos da civilização, com especial destaque para a patologização e a consequente medicalização da vida. Em 1910, em As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica, Freud apresenta sua visão da posição da psicanálise, ressaltando os avanços e as dificuldades inerentes a uma teoria inacabada, mas em contínua elaboração. Naquele momento, ele parece já perceber uma tensão na relação entre sociedade e psicanálise. De acordo com o teórico, “A sociedade não pode responder com simpatia a uma implacável exposição de seus efeitos danosos e deficientes. Porque destruímos ilusões, somos acusados de comprometer os ideais” (Freud, 1910/1990, p. 132). A psicanálise, assim, assume uma posição crítica frente à sociedade, 11 asseverando que o social contribui de forma significativa para o aparecimento das doenças neuróticas na civilização. A discussão a respeito da utilidade pública da psicanálise e sua aplicação à terapêutica não é algo recente. Em 1919, dirigindo-se aos psicanalistas, Freud (1919/2010) postula sobre a necessidade de se estender a aplicação do método psicanalítico a mais pessoas, acrescentando serem necessárias para isso algumas adaptações. Afirma sobre a necessidade de misturar o ouro da psicanálise pura ao cobre da sugestão e talvez até mesmo lançar mão da hipnose. Nesse ponto, porém, devemos estar advertidos de que o autor, sete anos antes, em Recomendações ao médico que pratica a psicanálise (Freud, 1912/2010), havia se posicionado em relação à aplicabilidade de seu método nas instituições asseverando que, apesar de eventuais desvios provocados por particularidades institucionais, a psicanálise pura seria a saída ideal, mesmo em condições aparentemente desfavoráveis à sua aplicabilidade, o que demonstra a preocupação de Freud quanto à diferenciação entre a psicanálise e uma psicologia da consciência, atento que era a aparentes melhoras transitórias e aos efeitos danosos decorrentes da aplicação desta última. Desde o início estamos advertidos quanto à garantia da manutenção, no campo civilizatório, de uma ética do bem-estar entre os sujeitos, o mesmo não acontecendo com a ética da psicanálise; a éticado bem-dizer que ela segue e propaga não possui garantias de sobrevivência (Barreto, 1999). Miller (2004) assevera que a questão da sobrevivência da psicanálise seria antes uma escolha da humanidade, ressaltando inclusive a possibilidade da criação de uma sociedade harmônica, através de dispositivos físico-químicos que funcionariam como reguladores do desejo e do gozo. A questão é que essa proposta está atrelada, como toda escolha, a uma perda, nesse caso, a perda da própria subjetividade. Resta saber se estamos dispostos a nos tornar autômatos, abrindo mão de nossa singularidade subjetiva, estreitamente ligada ao atravessamento da angústia, que, como nos aponta Garcia, é essencial para que nos tornemos verdadeiramente humanos (Garcia, 2000, p. 24). Para melhor entendimento das discussões iniciadas acima, o presente trabalho foi dividido em três capítulos. No primeiro discutimos a constituição dos sujeitos, tomando como premissa que não nascemos humanos, mas temos a possibilidade de nos tornar humanos na presença de outros humanos e sob seus cuidados. Nesse sentido, desde o início consideramos impensável o sujeito fora do campo social; portanto é necessário introduzir esse sujeito no campo social, que, por definição, antecede cada um de nós. Além disso, introduzimos o postulado de que a linguagem é fundamental para o estabelecimento dos laços sociais entre os sujeitos, além de organizar os ideais civilizatórios através dos tempos. Nesse ponto 12 acrescentamos o conceito de pulsão, elemento inerente ao humano e que tem como característica marcante o fato de sempre exigir sua satisfação, o que muitas vezes vai de encontro aos ideais culturais de determinada época. Pode-se mudar a tolerância em referência às exigências pulsionais de satisfação, mas não encontramos nenhuma cultura em que não haja nenhum interdito em relação a algumas dessas exigências. No segundo capítulo trabalhamos no sentido de esclarecer como se dão a fundação e a manutenção da civilização humana. Para tanto, partimos de um estudo exaustivo do artigo Totem e tabu, onde Freud ([1912-1913] /2011), buscando apoio em pesquisadores antropólogos e sociólogos, faz um retorno aos primórdios da civilização humana, a fim de compreender o amadurecimento do processo de regulação das relações humanas. Em seu percurso, o autor acaba por criar uma espécie de mito moderno para explicar a fundação de nossa civilização. Partindo dos estudos de Darwin, ele supõe uma horda primeva dominada por um macho, que encarnava a Lei de forma violenta e arbitrária. Os filhotes machos dessa suposta horda, expulsos pelo Pai que detinha para si todas as fêmeas, se rebelam cometendo um parricídio seguido de uma refeição totêmica. A partir desse assassinato, nenhum outro homem ocupou o lugar do pai morto. De forma alguma isso significa que esse lugar tenha desaparecido; pelo contrário, o pai morto ganha força e passa a representar a Lei a que todos devem se submeter. Finalizando, Freud traz à luz o complexo de Édipo, que seria uma representação fantasmática do assassinato do pai primevo. Além disso, tratamos a questão freudiana do supereu, considerado pelo autor como o herdeiro do complexo de Édipo, com os desdobramentos que essa instância apresenta na teoria psicanalítica. No terceiro capítulo, tomando como norteador o texto O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010), articulamos questões relacionadas ao laço social, indicado pelo autor como o maior responsável pelo desconforto inerente à condição humana, às mudanças ocorridas desde o início da modernidade, que consideramos coincidente com as grandes navegações, que marcaram o início da globalização mundial. Para isso, fizemos cotejamentos com alguns autores contemporâneos, dando principal ênfase à teoria lacaniana, que, de alguma forma, produziu uma revolução dentro da revolução freudiana provocada pela invenção da psicanálise. Tudo isso no intuito de verificar se realmente têm ocorrido mutações inéditas nos laços sociais que sustentam a civilização humana, ou se o que estamos presenciando é apenas mais uma mudança entre tantas mudanças inerentes ao processo civilizatório em seu constante devir. Por fim, nas considerações finais, encadeamos de forma cadenciada as articulações desenvolvidas no decorrer desta pesquisa, envolvendo, além dos principais conceitos 13 psicanalíticos discutidos ao longo de nosso trabalho, questões relativas às mudanças ocorridas no campo do social, lembrando a assertiva freudiana que tomamos como premissa, qual seja, não é possível pensar o sujeito fora do campo do social. Ou, em termos lacanianos, pautar nossas discussões a partir do postulado desse autor segundo o qual o Outro nos antecede e é a partir Dele que nos fundamos enquanto sujeitos falantes, habitados pela linguagem. 14 1 Constituição do sujeito e sua inserção no campo do social Neste capítulo, após um percurso pela obra freudiana, esclarecemos como Freud, a partir de sua clínica, elabora suas construções metapsicológicas, dando ênfase à constituição dos sujeitos e sua entrada no campo civilizatório. Fizemos nossas articulações com base em cotejamentos com um fragmento de caso clínico por nós supervisionado, na intenção de seguir a trilha deixada pelo criador do método psicanalítico. Ao longo de sua prática clínica, Freud não se atém apenas ao funcionamento interno do aparelho psíquico de seus analisantes. Em Psicologia das massas e análise do eu ele afirma que “[...] a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social [...]” (Freud, 1921/2011 p. 14). Na discussão acerca do fragmento clínico a seguir, explicitamos os condicionantes dos ideais culturais contemporâneos e seus efeitos nos laços sociais, que por sua vez, tiveram consequências no posicionamento da analisante em questão frente aos seus pares. Concomitantemente, vimos como Freud, ao longo de todo o seu trabalho, foi moldando seus conceitos em um constante movimento dialético. Se no começo de sua obra temos a impressão de certa influência biologicista, encontramos desde o Projeto, passando pela Carta 52 e A interpretação dos sonhos indícios de, senão todos, pelo menos a maioria dos conceitos fundamentais que, através de um incansável e sistemático trabalho de elaboração teórica, foram sendo gradualmente forjados, lapidados e devidamente articulados, resultando no consistente arcabouço teórico psicanalítico. Tal criação tem o status de um divisor de águas. O mundo jamais será o mesmo depois do aparecimento da psicanálise. 1.1 Da surdez dos DSMs à escuta psicanalítica: um caso paradigmático Neste ponto, discutiremos a eficácia do método psicanalítico para o resgate e a manutenção da singularidade dos sujeitos tratados pelos dispositivos médico-psicossociais disponibilizados pelas políticas públicas relativas à educação, saúde e assistência social. Tais dispositivos, embora apresentem um discurso que aponta no sentido de contribuir para a evolução da humanidade em termos do estabelecimento de laços sociais mais solidários, trazem implicitamente um imperativo mais obscuro, excluindo as singularidades através uma 15 padronização desmedida dos laços sociais em nome do mestre moderno, o mestre capitalista (Lacan, 1969-1970/1992). Vejamos um fragmento de caso supervisionado pelo autor, que nos faz refletir acerca da patologização e da medicalização desmedida de sujeitos que buscam, através de formações sintomáticas, dizer algo de um saber sobre si, que ele próprio não tem consciência, um saber inconsciente, portanto. Trata-se de uma menina de 11 anos, estudante do 5º ano da rede municipal de educação. Após uma palestra ministradapela Polícia Militar sobre o tema do abuso sexual infantil, essa criança se dirigiu a uma policial e disse que o tio fazia com ela coisas semelhantes às descritas no encontro. Imediatamente a polícia acionou o Conselho Tutelar do município para que fossem tomadas as medidas cabíveis nesse tipo de situação. Além disso, foi aberto um inquérito policial para verificar a veracidade dos fatos. A ação dos conselheiros, além de comunicar ao ministério público através da vara da infância e juventude, foi agendar uma consulta com o psiquiatra infantil da rede municipal de saúde. Ao tomar conhecimento da situação, tentamos realizar uma intervenção através da equipe multiprofissional do Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS). Infelizmente não tivemos tempo hábil, e a jovem acabou sendo atendida pelo psiquiatra sem a participação de outros profissionais da rede. Logo após a intervenção psiquiátrica, através de um estagiário de psicologia de uma faculdade local supervisionado pelo autor, iniciou-se o tratamento da criança a partir do método psicanalítico. Inicialmente, como indica Viganó (2010), buscamos ouvir todos os envolvidos: a criança, seus familiares, os conselheiros tutelares, a equipe do CREAS e o próprio psiquiatra. Deste conseguimos apenas o acesso ao prontuário da criança, que já era sua paciente há aproximadamente 03 anos, data que posteriormente, através das sessões do tratamento psicanalítico, percebemos coincidir com a mudança da criança para a casa dos avôs, onde morava o tio apontado como suposto abusador da menor. No início de tratamento, segundo anotações do psiquiatra, a criança se apresentava agitada, dispersa, com dificuldades de aprendizagem (encaminhamento escolar); fez-se então o diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), e foi prescrito o medicamento Ritalina, um psicoestimulante. Temos aqui, em consonância às considerações de Barreto (2010), a psiquiatria atuando dentro da ética do bem-estar, onde a supressão do sintoma é buscada através de medicamentos, buscando silenciar o sujeito que, mesmo de uma forma desajeitada, tenta pela via do sintoma, falar de seu mal-estar. Alguns meses depois, sem a melhora esperada pelo tratamento medicamentoso, o profissional acrescenta outro remédio: Tofranil, antidepressivo 16 tricíclico, indicado, entre outras coisas, para terror noturno e pânico. Finalmente, na última consulta psiquiátrica, em decorrência da denúncia de abuso sexual, o médico inicia seu relato escrito exatamente pelo fato narrado pela mãe: os atos libidinosos do tio em relação à criança. Em seguida, porém, segue dizendo do medo e da insegurança da criança em ficar sozinha. O diagnóstico em letras garrafais é PARANOIA. Então, às medicações prescritas anteriormente acrescenta Haldol, conhecido neuroléptico de ação incisiva sobre delírios e alucinações. Surpreendentemente, apesar de explicitar a questão do abuso sexual no prontuário da jovem, o psiquiatra se comporta como se não houvesse escutado nada ou feito qualquer relação entre o fato e os sintomas apresentados. Eis a surdez produzida pela padronização objetivante dos DSMs. Seguindo outra vertente, a criança passa a ser atendida pelo estagiário de psicologia como dito anteriormente. Vejamos os desdobramentos decorrentes da escuta psicanalítica. Seguindo as Recomendações ao médico que pratica a psicanálise (Freud, 1912/2010), desde o início dos atendimentos, acatamos a regra fundamental da associação livre. Primeiramente nos é relatado o constrangimento em ter que comparecer à delegacia para responder a perguntas relativas à sua relação com o tio. Tudo começa com a mudança para a casa dos avôs por causa da separação de seus pais, que atualmente reataram o casamento. Logo pudemos perceber a divisão subjetiva entre dizer a verdade sobre o comportamento do tio e o temor de que por isso o avô (pai do transgressor) viesse a morrer. Em conversa o pai se mostra apático, sem querer se posicionar frente ao problema, o que corrobora o lugar de destaque ocupado pelo avô da analisante em sua constelação familiar. Nas sessões seguintes, muitas vezes tendo o discurso mediado por desenhos, nossa analisante fala de seus anseios e inquietações. Diz que gostaria de ser estilista e apresenta desenhos de roupas através dos quais deixa transparecer seus ideais de feminilidade, elegância e vulgaridade (certa vez tenta mudar a cor de um vestido a princípio colorido de vermelho dizendo que estava muito vulgar). Frente ao silêncio operante do analista, a jovem continua se posicionando no campo dos ideais: primeiro diz do seu desconforto em ser gordinha, mas rapidamente encontra uma saída ao contestar o diagnóstico de seu médico que a aponta como obesa: “Eu não sou obesa, sou gordinha, sou criança, só adultos são obesos, crianças são gordas”. Ao ter o termo “criança” destacado de seu discurso pelo analista, faz uma retificação subjetiva passando a se apresentar como uma pré-adolescente. Daí por diante passa a falar de seu desejo pelos garotos da escola e a fazer planos para seu futuro. 17 Ao final nos diz que estava parando de tomar os medicamentos justificando que não precisava mais deles. Quanto ao término do tratamento provocado pelo final do semestre letivo, se mostra triste, mas logo demonstra interesse em continuar no próximo semestre com outro estagiário. “Ainda tenho muito que falar...”. A mãe por sua vez insiste na medicação da criança dizendo que a Ritalina a torna mais dócil, o que facilita o convívio entre elas. Na premissa desta dissertação, apresentada na introdução, vê-se claramente a preocupação de Freud com relação aos determinantes acidentais advindos da civilização e sua influência na constituição dos sujeitos e de seus ideais. Tais determinantes estão presentes em nosso caso, tanto na questão do discurso moralizante em relação à pedofilia quanto ao ideal estético da magreza imposto pela mídia, passando pelos sintomas apresentados pela criança como uma forma de falar de sua angústia. Estes são prontamente rechaçados enquanto uma linguagem por todos os envolvidos e identificados como patologias pertencentes à criança em questão. A teoria freudiana se constrói a partir da prática clínica de seu autor. Médico neurologista, Freud é capturado muito cedo pela histeria e é com base nessa neurose que ele inicia a construção do arcabouço teórico psicanalítico. Na nota do editor inglês de um de seus últimos escritos, Análise terminável, análise interminável encontramos uma alusão sobre o pessimismo de Freud em relação aos resultados terapêuticos de seu método. Tentemos, portanto, a partir de um percurso pela metapsicologia freudiana, ou seja, pelas suas elaborações teóricas, lançar luz sobre alguns dos impasses da clínica psicanalítica relacionados ao social a partir do fragmento ora apresentado. 1.2 Primeiras elaborações teóricas acerca da constituição subjetiva Já em seu Projeto para uma psicologia científica, considerado por muitos como um escrito pré-psicanalítico, Freud, mesmo ainda trazendo em sua escrita marcas da neurologia de seu tempo, dá indícios da importância da relação com outro humano para formação de um Eu, termo já presente nesse escrito. Descrevendo a experiência de satisfação, Freud (1950 [1895] 1990) demonstra que certos estímulos endógenos necessitam de uma alteração no mundo externo para serem satisfeitos. 18 O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via da alteração interna. Essa via de descargaadquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais (p. 431, grifos do autor). Temos, portanto, desde os primórdios da psicanálise, a presença de um outro, portador das marcas do seu tempo, das exigências do social. Tais exigências serão inevitavelmente inscritas, de algum modo, nesse ser prematuro e dependente dos cuidados do outro humano representante dos valores da sociedade na qual se encontra inserido. Por outro lado, encontramos também no Projeto apontamentos de Freud relativos à dimensão traumática do encontro com o sexual provocado por um outro. Na parte II, dedicada à psicopatologia, temos a tentativa de localizar a etiologia da histeria no despertar precoce da sexualidade infantil a partir da apresentação do caso Emma; nele, tal como no caso por nós apresentado, um fato ocorrido na puberdade faz despertar “[...] uma liberação sexual, que se transformou em angústia” (Freud, 1950 [1895] /1990, p. 476). Esse tema será recorrente, e veremos Freud embaraçado com a existência de uma sexualidade infantil até que, nos Três ensaios sobre a sexualidade, formaliza o descaso da sociedade em relação à sexualidade infantil, denunciando que Faz parte da opinião popular sobre a pulsão sexual que ela está ausente na infância e só desperta no período de vida designado da puberdade. Mas este não é um erro qualquer, e sim um equívoco de graves consequências, pois é o principal culpado de nossa ignorância de hoje sobre as condições básicas da vida sexual. (Freud, 1905/1990, p. 162). Ressalta ainda que desde 1896, em seu artigo sobre a etiologia da histeria, nunca deixou de destacar a importância da sexualidade infantil (Freud, 1905, p. 163). Temos, portanto, nos Três ensaios uma confirmação contundente acerca da importância da sexualidade na vida dos seres humanos em geral, e não apenas naqueles com uma suposta predisposição degenerativa ou que foram molestados precocemente. Seguindo o percurso freudiano, encontraremos nos Extratos dos documentos dirigidos a Fliess, mais precisamente, na Carta 52, de 06 de dezembro de 1896, uma complexa elaboração que apresenta a essência do que seria mais tarde a parte principal do capítulo VII da Traumdeutung, um dos pilares da psicanálise. Nessa carta, Freud (1950 [1892-1899] 1990) apresenta “[...] a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos” (p. 324). Prossegue sugerindo que a memória passa por diferentes registros que de tempos em tempos se rearranjam, são transcritos de diferentes formas, e ao final, numa camada chamada Vorbewusstsein (pré-consciência), os traços que continuam sendo inscritos e 19 rearranjados se juntam a restos de palavras, representações verbais, dando origem ao nosso Eu. Temos, mais uma vez, a presença da comunicação, agora explicitada em termos de linguagem. Podemos, portanto, supor que o autor, desde o início da sua construção teórica, considera que a linguagem, mais precisamente a fala, deixa marcas no processo de constituição dos seres humanos; ela nos precede. Mais que isso, não seria ousado apontar a linguagem como a principal responsável pelo enlaçamento dos indivíduos, produtora, portanto, do campo social no qual a humanidade encontra-se imersa. Como já dito, A interpretação dos sonhos foi considerado pelo próprio Freud, um de seus mais importantes livros. Nele o autor faz um estudo exaustivo do material existente sobre o assunto para, ao fim, propor o que ele considera sua grande descoberta, qual seja: “A interpretação dos sonhos é a via real para o conhecimento das atividades inconscientes da vida anímica” (Freud, 1900/1990, p. 550). Nessa assertiva, não se deve menosprezar o rigor do autor, que adverte um pouco antes, no início do capítulo O trabalho do sonho, sobre a novidade de sua proposta. Ele ensina que até então os sonhos eram considerados apenas em seu conteúdo manifesto, ficando fora do alcance dos estudiosos que o antecederam a sua verdadeira essência: os pensamentos latentes. Estes, para serem apreendidos, deveriam passar por uma espécie de tradução, pois, para Freud, o conteúdo manifesto dos sonhos, em sua maior parte figurativo ou pictográfico, seria na verdade uma distorção de seus pensamentos latentes. Assim, fazendo-se a retranscrição adequada, chegaríamos a pensamentos inteligíveis, em contraste com um conteúdo manifesto aparentemente absurdo (Freud, 1900/1990, p. 270). Mais uma vez encontramos Freud se referindo claramente à questão da linguagem, quando ele nos apresenta sua proposta de análise do material de um sonho: [...] podemos fazer um juízo adequado do quebra-cabeças se pusermos de lado essas críticas da composição inteira e de suas partes, e se, em vez disso, tentarmos substituir cada elemento isolado por uma sílaba ou palavra que possa ser representada por aquele elemento de um modo ou de outro. As palavras assim compostas já não deixarão de fazer sentido, podendo formar uma frase poética de extrema beleza e significado (Freud, 1900/1990, p. 271). O aparelho psíquico apresentado por Freud no capítulo VII da Interpretação dos sonhos tem, então, características de um aparelho de linguagem. Essa argumentação pode ser corroborada pelo exemplo do sonho do filho morto com o qual Freud (1900/1990) inicia o referido capítulo. Ali ele aponta que uma característica ressaltada nesse sonho “[...] é o fato de que o pensamento se transforma em imagens visuais e em fala” (p. 490). Tais transformações reforçam ainda mais a suposição de uma preponderância da língua dentre as formas de 20 comunicação, bem como sua participação fundamental na constituição dos laços sociais e mesmo dos próprios sujeitos que se enlaçam. Se estendermos a explicação da relação entre os pensamentos latentes e o conteúdo dos sonhos à associação livre desenvolvida pela nossa analisante durante suas sessões, não teremos dificuldades em inferir a outra cena que se apresenta para além do discurso manifesto. Num dos encontros do fragmento de caso apresentado anteriormente, a analisante se põe a falar sobre a preocupação de sua mãe em relação a brincar com fogo, dizendo que sabe bem o que está fazendo, que já não é mais criança e já sabe manusear o fogão. Numa aparente mudança de assunto, segue dizendo de sua preferência em se relacionar com amigas mais velhas. Diz de seu desejo de sair sozinha sem ser vigiada, poder ir a barzinhos e participar da vida noturna, pois já não é mais criança mas uma pré-adolescente, já tendo feito até... (interrompe a frase). Nesse ponto talvez possamos pensar nas “brincadeiras” com o tio e o interesse manifesto em relação aos colegas da escola. 1.3 Formalização teórica dos conceitos fundamentais a partir da clínica - práxis Após mais de dez anos, Freud (1911/2004) retoma suas formalizações teóricas a partir de suas hipóteses clínicas no artigo Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico, discutindo sobre a relação que neuróticos, psicóticos e humanos em geral estabelecem com a realidade externa. Conclui que todos se afastam mais ou menos da realidade conforme esta lhes inflija determinada cota de desprazer, ressaltando que uma ruptura radical ocorre em algumas psicoses. Não teríamos, portanto, uma objetividade em relação a uma realidade externa, mas uma representação psíquica singular deste campo que se apresenta a nós desde fora. Revisitando os estudos do capítulo VII do Traumdeutung, postula a existência de processos psíquicos primários e secundários, funcionando segundo dois princípios: prazer e realidade, respectivamente. Considera que no inícioestamos sob a égide do princípio do prazer, onde a satisfação é buscada a partir de pensamentos alucinados. Só a frustração das exigências pulsionais pelas vias alucinatórias faz com que o aparelho psíquico passe a considerar a existência de uma realidade externa a ele. A partir de então, as sensações e a consciência passam a ter mais importância, assim como a atenção que nos serve para monitorar o mundo externo a partir de seus estímulos sobre o organismo, mantendo sempre 21 atualizadas as informações referentes ao mundo externo para maior agilidade nos casos do surgimento de necessidades internas inadiáveis. [...] o recalque, que excluía do processo de investimento uma parte das representações mentais (Vorstellungen) que se mostrassem geradoras de desprazer, foi substituído por uma imparcial avaliação de juízo. A esta cabia então decidir se determinada representação era verdadeira ou falsa, isto é, se estava ou não em sintonia com a realidade, e para tal comparava-a com os traços de lembranças deixadas pela realidade (Freud, 1911/2004, p. 66). Também a remoção de estímulos torna-se instrumento de intervenção no mundo; transforma-se em um agir intencional, que a partir de postergações das ações motoras sofistica-se em pensamentos. Adverte-nos, no entanto, que [...] um determinado tipo de atividade do pensar foi apartado do teste de realidade, permaneceu livre deste e ficou submetido apenas ao princípio do prazer. É ele o fantasiar, que já se inicia com o brincar das crianças e mais tarde prossegue com o devanear, deixando então de sustentar-se em objetos reais (Freud, 1911/2004, p. 67). Em nossa analisante não podemos de deixar de perceber a questão dos devaneios ligados à questão da feminilidade manifesta nos desenhos ousados e sensuais que se apresentam associados a um indisfarçável prazer exibicionista. As pulsões sexuais, presentes desde o início, não necessitam do mundo externo para se satisfazerem, permanecendo por mais tempo sob o domínio do princípio do prazer, a vida inteira para muitas pessoas (Freud, 1911/2004, p. 68). A consequência dessa permanência é a manutenção do reino da fantasia instaurado pelo recalque, constituindo a subjetividade como clivada, o que para o autor estabelece o ponto fraco do aparelho psíquico, pois uma parte do pensar segue desconsiderando a realidade na qual o sujeito se encontra inserido. Na verdade, Freud (1911/2004) conclui que o princípio da realidade trabalha em função da continuidade lógica do princípio do prazer, advertindo que não se deve menosprezar a importância da realidade psíquica na vida dos seres humanos em geral e na etiologia das neuroses e psicoses, visto que, para o inconsciente, a realização de um desejo no campo da fantasia não se distingue de sua realização no mundo externo. Uma vez mais vemos surgir uma determinação inconsciente nos sujeitos que os impossibilita de serem objetivos em suas relações sociais, pois se encontram inexoravelmente marcados pelas representações psíquicas fantasmáticas, o que os condena a se enlaçarem socialmente a partir de fantasias sexuais inconscientes predeterminadas. Para melhor compreensão da questão dos dois princípios do funcionamento mental e de suas relações com o recalque, talvez o conceito de narcisismo desenvolvido por Freud 22 (1914/2004) em seu artigo sobre o assunto lance alguma luz sobre o tema. Segundo o editor inglês, já em 1909, antes, portanto, da formalização conceitual relativa aos dois princípios do acontecer psíquico, Freud já definia o narcisismo como uma fase normal entre o autoerotismo e o amor objetal. No referido artigo, o autor traz a novidade de uma divisão da libido em libido objetal e libido do eu, afirmando que o narcisismo seria “[...] o complemento libidinal do egoísmo próprio da pulsão de autoconservação [...]” (Freud, 1914/2004, p. 97). Como consequência dessa assertiva o eu de cada pessoa passa a ser considerado como o primeiro investimento libidinal dos seres humanos. É a partir desse ego narcísico completamente idealizado que os humanos, em algum momento, farão seus investimentos objetais, lembrando que o primeiro objeto para todos é o próprio eu. Freud (1914/2004) então se pergunta pela causa de a psique humana abandonar seu narcisismo primário e investir parte de sua libido em objetos, trazendo como resposta que “Um forte egoísmo protege contra o adoecimento, mas, no final, precisamos começar a amar para não adoecer, e iremos adoecer se, em consequência de impedimentos, não pudermos amar” (p. 106). Essa necessidade de amar implica escolhas que, segundo o autor, novamente se dividem em duas formas, narcísica e de ligação, baseadas nas representações das primeiras experiências objetais dos sujeitos. Ainda no artigo sobre o narcisismo, Freud (1914/2004), traz a questão sobre os destinos das pulsões que inicialmente se concentravam no eu do infans,2 concluindo que nem toda libido se dissolveu em investimentos objetais: Sabemos que, quando as moções pulsionais libidinais entram em conflito com as concepções [Vorstellungen] culturais e éticas do indivíduo, o destino das moções será o recalque patogênico. Todavia, não estamos com isso querendo dizer que na condição do recalque o sujeito passa a ter um conhecimento meramente intelectual sobre a existência dessas concepções [Vorstellungen], ele continua a considerá-las parâmetros fundamentais para si próprio e se submete de fato às exigências que derivam dessas concepções culturais e éticas. Já dissemos que o recalque ocorre a partir do Eu, mas poderíamos ser mais precisos: ele parte da avaliação que o Eu faz de si mesmo (Freud, 1914/2004, p. 112). Portanto, a partir da concepção freudiana, pode-se inferir que o campo do social é determinante para a construção dos condicionantes subjetivos do recalque. Deve-se, entretanto, estar advertido de que diferentes sujeitos constroem diferentes Ideais de Eu como balizadores do recalcamento, o que marca a singularidade irredutível de cada um. Nesse ponto, talvez seja interessante refletir sobre nossa necessidade de amores objetais. Afinal, se precisamos amar para não adoecer, o próprio amor objetal, que pode ser identificado ao amor que nos faz construir a própria civilização, está ele próprio calcado em 2 Termo latino que significa aquele que não fala; criança. 23 um egoísmo primário, o que justifica o termo objetal. Ora, isso significa que tomamos o outro como objeto de nosso amor enquanto ele atende os nossos próprios interesses. Nesse sentido, o amor dirigido a outro sujeito, para além de seu status de objeto, seria uma ilusão, podendo fazer romper os laços civilizatórios a cada vez que se apresentar sua face verdadeira, utilitária e narcísica (Freud, 1930/2010). Na tentativa de esclarecer melhor a passagem de parte do egoísmo original humano para investimentos objetais amorosos — principais responsáveis pelo estabelecimento de laços sociais entre os indivíduos e entre estes e o Coletivo — vamos nos aprofundar no conceito de pulsão, um conceito aparentemente contraditório, segundo o comentador editorial do artigo Pulsões e destino da pulsão (1915/2004). Como saída para tal contradição, o referido comentador argumenta “[...] que sua solução esteja precisamente na ambiguidade do próprio conceito — um conceito-limite entre o físico e o mental” (p. 134). Freud (1915/2004), já no princípio do artigo acima referido, discute sobre as particularidades de um conceito ainda em construção, ponderando que, se a ciência exige clareza e exatidão desde o início, na prática as coisas se dão de maneira diversa. Aponta para a dialética entrea prática clínica e a construção teórica, admitindo que por vezes a intuição possa surgir antes mesmo de sua comprovação propriamente dita (p.145). Temos, então, claros indícios de que o autor esteja às voltas com a construção de um conceito novo e inusitado, algo da ordem da invenção, portanto. O ponto de partida para tal construção foi o já conhecido ‘esquema do arco reflexo’, tomado de empréstimo da fisiologia e que consiste em reagir a um estímulo exterior que atinge o sistema nervoso através de uma ação motora que de alguma forma cesse tal estímulo. Concomitantemente, Freud (1915/2004) adverte no sentido de não se fazer uma equivalência entre pulsão e estímulo psíquico, ressaltando a existência de estímulos psíquicos não pulsionais. Surge, então, a primeira e principal diferenciação da pulsão: ser uma força constante e endógena, não admitindo pela segunda característica a fuga como solução. Resta, portanto, satisfazer tal necessidade, outro nome dado pelo autor para o estímulo pulsional (p. 146). Temos aqui um estímulo externo atingindo de alguma forma o mental, transformando-se nessa passagem em estímulo psíquico interno que passa a fazer uma exigência imperativa de satisfação; se pensarmos nesse estímulo pulsional, primariamente externo, partindo de outro sujeito ou de alguma exigência dos ideais culturais de determinado grupo social, podemos estabelecer uma articulação entre o pulsional e o social, produzindo interferências mútuas, incluindo impasses e mesmo impossibilidades harmônicas. 24 1.3.1 Trieb - construção conceitual e articulações diversas Pensando em termos evolucionistas, Freud propõe que as pulsões, através de exigências, fazem com que o sistema nervoso tenha que desenvolver processos cada vez mais complexos e elaborados que o arco reflexo para satisfazer tais exigências. Podemos então concluir que são as pulsões, e não os estímulos externos, os verdadeiros motores dos progressos que levaram o sistema nervoso, com sua capacidade de realizações ilimitadas, a seu atual nível de desenvolvimento (Freud, 1915/2004, p. 147-148). As pulsões, a princípio derivadas dos estímulos externos, mas já diferenciadas deles, ultrapassariam uma ontogênese do ser, podendo ser pensadas como um dos condicionantes de nossa evolução em nível da filogênese da espécie humana. Em termos biológicos [...] a “pulsão” nos aparecerá como um conceito-limite entre o psíquico e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo e alcançam a psique, como uma medida da exigência de trabalho imposta ao psíquico em consequência de sua relação com o corpo (Freud, 1915/2004, p. 148). Encontramos, a partir desse fragmento, uma indicação de que a pulsão propriamente dita, mais do que um estímulo interno surgido em qualquer ponto do corpo, se apresentaria especificamente no aparelho psíquico, que como já discutimos anteriormente, bem poderia ser chamado de aparelho de linguagem, responsável pelo estabelecimento dos laços sociais. Poderíamos, portanto, inferir que a pulsão tem estreitas relações com o campo da linguagem, podendo influir nas significações e sentidos estabelecidos pelo aparelho psíquico, mais especificamente referente ao Eu dos indivíduos. Com relação às características pulsionais, vamos nos ater à sua meta e ao seu objeto, que são os que acreditamos serem mais susceptíveis a interferências derivadas de estímulos do mundo externo, mais precisamente advindos do campo social, intervindo a partir das exigências ou ideais civilizatórios nos destinos moções pulsionais. A primeira delas não busca outra coisa senão a satisfação pulsional, que pode ser atingida das mais diversas formas. Uma pulsão pode sofrer interferências no que diz respeito a sua satisfação direta, tendo assim que percorrer caminhos tortuosos para atingir sua meta, a satisfação, mesmo que parcialmente. Tais interferências indubitavelmente estão ligadas ao eu e seus ideais civilizatórios. Assim, seu objeto 25 [...] é aquilo que, ou por meio de que, a pulsão pode alcançar sua meta. Ele é o elemento mais variável na pulsão e não está originalmente vinculado a ela, sendo-lhe apenas acrescentado em razão de sua aptidão para propiciar a satisfação (Freud, 1915/2004, p. 149). Essa plasticidade ou adaptabilidade do objeto de satisfação pulsional provavelmente tem os mesmos condicionantes externos provocadores dos desvios impostos à meta, quais sejam, os ideais relativos a uma determinada sociedade. Nesse momento do seu trabalho, Freud (1915/2012) propõe uma divisão das pulsões entre pulsões do eu ou de autoconservação e pulsões sexuais. Ele toma o cuidado, entretanto, de explicitar o caráter provisório dessa divisão justificando-a como uma construção auxiliar que pode ser modificada desde que surja outra proposição mais adequada. De certa forma ele já antevê essa mudança, quando justifica a escolha atual pelas experiências com as neuroses de transferência, antecipando que a partir dos estudos das neuroses narcísicas, aqui equiparadas às psicoses, adequações poderiam se fazer necessárias, como realmente foi feito posteriormente. Se em 1915, em Pulsões e seus destinos, ele defende a pouca probabilidade da existência de um masoquismo original, reservando o lugar primário ao sadismo, que só posteriormente se voltaria contra o próprio Eu, em 1924 ele argumenta em favor de um masoquismo original e erógeno (Freud, 1924/2007). Feitas essas considerações, Freud (1915/2004) limita o aprofundamento de suas investigações em relação aos destinos às pulsões sexuais, segundo ele, por serem mais familiares à psicanálise naquele momento. Entre os quatro destinos selecionados, o autor escolhe dois, A transformação em seu contrário e O redirecionamento a própria pessoa. Estamos, portanto, no campo do sexual — lembrando que para Freud este não se limita nem deve ser confundido com o genital — e no campo do social, lembrando que temos relações narcísicas e de ligação, implicando, portanto, os laços sociais. Considerando que estamos acompanhando o percurso freudiano em relação aos destinos das pulsões sexuais, vamos estreitar ainda mais nosso foco, a partir da seguinte citação: O caso de amor e ódio torna-se de especial interesse para nós, porque não se encaixa em nossa explanação das pulsões. Não duvidamos de que exista a mais estreita relação entre a vida sexual e esses dois sentimentos opostos. Porém, se tivéssemos de considerar o amar como sendo apenas um tipo de pulsão parcial figurando lado a lado com as outras pulsões parciais também pertencentes à sexualidade, com razão teríamos dificuldades em aceitar essa ideia. Tendemos muito mais a enxergar no amar a expressão da vertente sexual inteira (Freud, 1915/2004, p. 157). Buscando esclarecer melhor o caso descrito, o autor observa que ele não suporta apenas o par de opostos amar-odiar; teríamos também amar-ser amado. E mais, considerando 26 os opostos amor e ódio em conjunto, teríamos a indiferença. Ora, esses pares parecem conter a essência das relações humanas, dos enlaces dos sujeitos entre si e entre o grupo do qual fazem parte. Essência marcada pela ambivalência presente nas relações amorosas, quase sempre mescladas por sentimentos odiosos dirigidos ao mesmo objeto que se ama. Esse parece ser um daqueles pontos citados por Freud (1917-1990) em seu artigo Dificuldades no caminho da psicanálise, onde chama atenção de que a dificuldade em relação ao entendimento da psicanálise se deve mais a questões afetivas do que racionais, ou seja, não compreendemos facilmente coisas que não são agradáveis mas dizem respeito ao âmago do nosso ser. Se acompanharmosatentamente o raciocínio freudiano em relação ao amor, não seria exagerado supor que na existência humana, num primeiro tempo, mesmo ínfimo ou mítico, toda pulsão sexual, amorosa está voltada para o próprio ser, o que abre o caminho para a posição narcísica primária. Por consequência, o investimento ou sentimento relativo a coisas e pessoas alheias ao referido ser, nesse momento ancorado no autoerotismo, é, primeiramente, ódio ou, no melhor dos casos, indiferença a tudo e a todos ao seu redor. Seria, então, uma característica do humano um amor objetal surgido secundariamente a um narcisismo primário, condicionado ao seu próprio desamparo, ou seja, o amor ao próximo tem como base um egoísmo primário com vistas a atender suas necessidades a partir do princípio do prazer. Pode-se antever aqui a afirmativa feita por Freud (1930/2010) de que todo indivíduo em separado é um inimigo potencial da civilização. 27 1.3.2 Elaborações sobre o conceito de recalque Tomemos agora O recalque (1915/2004), considerado por Freud como a pedra angular que alicerça toda a psicanálise. Embora usado anteriormente pelo psicólogo Herbert nos primórdios do século XIX, o termo recalque é considerado por Freud um conceito original de sua autoria: a significação que ele lhe é confere é inédita, da ordem da invenção, portanto (p. 175). Feitas as devidas considerações, Freud passa a delimitar seu conceito indicando de início que não se aplicaria a grandes quantidades de tensão, como a necessidade de comer, tomada por ele como exemplo, mas seria antes um mecanismo eficiente em se tratando de moções pulsionais. Ao tratarmos dos dois princípios do acontecer psíquico, o mecanismo do recalque não atua desde o início da existência de um indivíduo; ele surge a partir da ineficácia da fuga motora primariamente utilizada para evitar um desprazer provocado por alguma exigência pulsional. Claro que, se em vez de uma pulsão, se tratasse de um estímulo externo, a fuga teria sido a medida mais apropriada para escapar de seu raio de ação, mas, no caso de uma pulsão, tal fuga não teria serventia, pois o Eu não pode fugir de si mesmo. Em um período posterior, o sujeito perceberá que repudiar o conteúdo da pulsão [trieberegung] baseando-se em um julgamento de valor (condenação) pode ser uma providencia eficaz (Freud, 1915/2004, p. 177). Na hiância entre o processo de fuga e um psiquismo ainda incapaz de elaborar um juízo de valores adequado a situações em que ocorre um aumento da tensão anímica, o processo de recalque se faz presente. Vale lembrar que tal mecanismo, incluindo seu retorno, acompanha o ser humano por toda a sua existência; é determinante nos posicionamentos de cada sujeito frente ao mundo e frente ao outro com quem estabelece seus laços sociais. Freud (1915/2004) pondera sobre as dificuldades teóricas encontradas para desenvolver o conceito de recalque, posto que de início uma aparente contradição se presentifica em relação à existência de uma pulsão cuja satisfação provocaria desprazer, o que por sua vez a faria sucumbir ao recalque. Tal dificuldade se desfaz prontamente quando o autor nos lembra da divisão do psiquismo humano, de tal maneira que é bastante plausível que a satisfação de uma mesma pulsão possa trazer desprazer à parte consciente do psiquismo, enquanto proporcionaria prazer à outra parte que se encontra apartada da consciência — o inconsciente propriamente dito. Aliás, essa seria a fonte causadora das psiconeuroses: impulsos pulsionais advindos do psiquismo incompatíveis com os ideais do Eu dos indivíduos 28 inelutavelmente submetidos às exigências de uma sociedade que muitas das vezes vão de encontro às exigências imperativas de satisfação dos impulsos pulsionais. Para avançar nas tentativas plausíveis de conciliar a questão do recalque às exigências pulsionais, temos a proposta de dividir a pulsão em dois componentes: um representante ideacional e uma quantidade de afeto. Podemos supor neste ponto que teríamos um representante ideacional, de alguma forma articulado à língua, matéria-prima dos pensamentos, conscientes ou não, e um quantum afetivo não submetido a uma lógica racional, portanto acéfalo. Talvez tenhamos aqui um lampejo em relação a uma impossibilidade estrutural de uma harmonização das relações baseada no bom senso, uma vez que teríamos, em nível pulsional algo da ordem do non sens. Sem a pretensão de esgotar a discussão em relação ao recalque, Freud (1915/2004) sustenta a maior importância do destino da quantidade de afeto em relação ao representante ideacional, argumentando que as sensações advindas do processo de recalque são as que realmente nos interessam para compreendê-lo. “Se um recalque não consegue impedir que surjam sensações de desprazer ou medo [Angst], podemos dizer que ele fracassou, ainda que seu objetivo tenha sido alcançado com relação à parcela representacional” (p. 183). Continua trazendo a questão da inacessibilidade ao inconsciente, ao afirmar que um recalque inteiramente bem-sucedido escapa ao nosso interesse. Somos, portanto, determinados por algo inteiramente estranho a nós, ao qual podemos simplesmente rechaçar, pois está fora do campo de nossa responsabilidade ou, o que é mais difícil, nos posicionamos eticamente no sentido de admitir, mesmo sem uma compreensão imediata, nossa íntima ligação com esse estranho radical, nos responsabilizando por seus efeitos. Outro ponto abordado pelo autor em relação ao recalque é o grau de deformação ou deslocamento que deve atingir para que a resistência do consciente seja suspensa. O recalque trabalha, portanto, de forma altamente individual, cada representação derivada isolada pode ter seu destino específico; um pouco mais ou um pouco menos de deformação faz com que todo o resultado se altere. Nesse mesmo sentido, pode-se compreender também que os objetos preferidos das pessoas, bem como seus ideais, se originam das mesmas percepções e experiências que os objetos por elas mais execrados, e mais, que originalmente tais objetos se diferenciavam uns dos outros apenas por meio de pequenas alterações (Freud, 1915/2004, p. 180). Seguindo o raciocínio acima, o autor aventa a possibilidade da decomposição de um mesmo representante pulsional, que teria uma de suas partes recalcada enquanto a outra tomaria parte do campo dos ideais relativos a um determinado momento histórico. Tais considerações podem ser valiosas para pensarmos as relações dos indivíduos entre si e mesmo 29 com o coletivo em que se encontram inseridos, onde atos completamente altruístas ou de compaixão desmedida se mesclam com explosões de vandalismo e crueldade só encontradas nas sociedades humanas. 1.4 A influência dos ideais sociais na constituição dos sujeitos Sabemos que Freud almejava a divulgação da psicanálise e seu reconhecimento como uma ciência, acreditando que trazia uma novidade que não deveria passar despercebida. Retomando seu artigo Uma dificuldade no caminho da psicanálise, vemos que o autor apresenta o método psicanalítico a um público de pessoas cultas porém leigas em relação à psicanálise. A dificuldade é apresentada logo de início como sendo da ordem dos afetos, e não uma dificuldade intelectual. “Onde falta simpatia a compreensão não virá facilmente” (Freud, 1917/1990, p. 171). Se trazemos esse artigo neste momento é para refletirmos sobre a atualidade de nossa discussão relativa à constituição de um sujeito, sempre marcada pelas exigências pulsionais libidinais próprias do humano e pelos ideais da época em que surge, resultando, na maioria dos casos, em uma clivagem no momento de sua entrada no campo do social.À época desse artigo, a sociedade era marcada por princípios éticos, morais e religiosos típicos da austera Era Vitoriana. Naquele momento, tratar dos afetos eróticos era um assunto delicado, e não era de bom-tom trazê-lo à baila em círculos sociais formados por famílias ‘de respeito’. Tratava-se antes de assuntos de alcova, mesmo assim as mulheres ‘sérias’ não deveriam se aventurar neles. Aos homens era permitido, desde que fosse com a discrição conveniente ao assunto, escapadelas para aventuras amorosas clandestinas, mas circunscritas a locais apropriados para esse tipo de comportamento. É nesse contexto que Freud (1917/1990) se aventura em apresentar sua teoria sobre a etiologia sexual das neuroses, fazendo uma sucinta explanação sobre os conflitos gerados por desejos libidinais que iam de encontro aos ideais puritanos de sua época. Sua hipótese era de que tais conflitos acabavam por provocar as neuroses, resultado do retorno dos recalques relativos aos desejos libidinais, em forma de sintomas neuróticos. Ainda nesse artigo, Freud (1917/1990) não pretende anunciar uma boa nova, mas antes colocar a novidade da psicanálise entre as grandes feridas narcísicas sofridas pela humanidade, o que justificaria a resistência ou mesmo o repúdio irrefletido de muitos. Traz, 30 então, por ordem cronológica, a revolução provocada por Copérnico ao retirar a Terra e, por conseguinte, o homem do centro do universo, rebaixando-a a apenas mais um planeta de um sistema mais amplo. Em seguida apresenta Darwin, que retira do homem sua descendência divina, alinhando-o aos demais animais superiores. Restava-nos a racionalidade cartesiana. Eis que surge o terceiro golpe narcísico desvelado pela psicanálise: o Eu não é senhor de sua própria morada; somos determinados por uma instância inconsciente. Faz, então, uma perspicaz analogia com a forma de governo absolutista, recentemente abolida na maioria dos países ocidentais. Compara o Eu do sujeito como um Rei que governa apenas a partir das informações de seus assessores mais próximos, não se dando ao trabalho de ouvir o clamor das massas, aqui representando o material psíquico inconsciente recalcado. Ignorar as exigências de seus súditos — nesse caso uma clara alusão às exigências pulsionais — de modo algum faz com que desapareçam; pelo contrário, provoca um recrudescimento das insatisfações culminando muitas vezes numa revolução que acaba por destituir o soberano. Ou seja, ignorar as manifestações do inconsciente faz com que o Eu desenvolva sintomatologias patológicas a fim de satisfazer os impulsos pulsionais que não cessam de pressionar o aparelho psíquico. Com tal analogia, Freud (1917/1990), pretende demonstrar que a descoberta da psicanálise de que o Eu dos sujeitos é determinado por uma instância inconsciente que não cessa de fazer exigências relativas a satisfações pulsionais inerentes ao aparelho psíquico não é uma invenção com intenções obscuras de subverter a ordem vigente. É antes o resultado da teorização de um longo trabalho clínico feita com o rigor e a imparcialidade exigidos pela ciência. Ignorar tais resultados não vai fazer com que eles deixem de existir, mas torna os sujeitos impotentes frente a conflitos internos erroneamente considerados fatalidades do destino frente às quais ele nada pode fazer exatamente por considerar não ter nenhuma participação em relação ao surgimento dos males que o afligem. Por outro lado, considerar que, mesmo sem ter consciência disso, um sujeito pode ter alguma participação subjetiva em seus sofrimentos, tornaria possível um trabalho no sentido de se implicar subjetivamente com as questões sintomáticas, buscando ao menos transformá-las em formas menos sofridas e dolorosas em sua existência. Pouco depois, em seu artigo Introdução à psicanálise e às neuroses de guerra (1919), originalmente escrito como introdução ao primeiro volume da Internationaler Psichoanalytischer, Freud comenta sobre as expectativas dos médicos em relação ao tratamento às neuroses de guerra, que, segundo ele, nada mais são do que as conhecidas neuroses traumáticas de tempos de paz. Naquele momento, o método psicanalítico era visto 31 como uma possibilidade promissora para o tratamento dessas neuroses. Entretanto, com o fim da guerra se interrompeu o grupo de trabalho que estava sendo preparado para utilizar o método psicanalítico e, consequentemente, verificar a eficácia de seus resultados. Concomitantemente ao fim da guerra, as neuroses de guerra também desapareceram, o que para Freud é uma das evidências do caráter psicogênico dessas neuroses. Ora, tal caráter não é outra coisa senão mais uma evidência dos adoecimentos provocados por exigências sociais insuportáveis para alguns sujeitos, justamente por irem de encontro às suas exigências pulsionais. Tal episódio não deixou de ser importante para a divulgação da psicanálise, mas Freud (1919/1990) está advertido que, mesmo com a concordância quase universal da existência de um ganho primário relacionado com a fuga para a doença, não deveria se iludir com o reconhecimento dos princípios teóricos de sua teoria pelos opositores. Se, por um lado, a psicanálise foi recrutada pelo social a fim de ser aplicada a determinada neurose, seus opositores, “[...] cuja aversão à sexualidade é evidentemente mais forte do que sua lógica, apressaram-se a proclamar que a investigação das neuroses de guerra desmentiu finalmente esta parte da teoria psicanalítica” (Freud, 1919/1990, p. 260). Voltamos ao recém-discutido artigo sobre a dificuldade da psicanálise, onde o autor reitera que fatores emocionais narcísicos interferem na compreensão e aceitação de sua teoria. Em relação ao eu, Freud (1919/1990) supõe que ele se divide provocando um conflito neurótico. Por um lado, a libido do eu, cuja função é a manutenção da sua integridade narcísica do eu, se vê seriamente ameaçada por um risco iminente de morte. Por outro lado, aparece aqui o fator da heteroagressividade em relação a outro semelhante, que em tempos de paz não fica tão evidenciada. Vemos ressurgir a questão da agressividade, já evidenciada no artigo sobre o narcisismo. Embora ainda considere Eros a grande força que nos impulsiona e nos embaraça frente a exigências incompatíveis com nossos ideais, inelutavelmente marcados pelo campo do social, Freud esbarra novamente na agressividade e na questão da morte, nesse ponto específico, da morte biológica, para além das diversas mortes de nossos ideais e expectativas com as quais nos deparamos tão frequentemente em nosso cotidiano. Penso que aqui, mesmo que não esteja ainda devidamente elaborada, podemos ver se desenhar algo do campo de Tânatos, algo mais arcaico que suplanta o princípio do prazer, que mais tarde veremos surgir como pulsão de morte. No apêndice Memorandum sobre o tratamento elétrico dos neuróticos de guerra, publicado ao final do artigo discutido acima, encontramos Freud aguerrido numa dura crítica à medicina de sua época. Discute o diagnóstico e principalmente a etiologia das neuroses 32 traumáticas — de tempos de guerra ou de paz — comentando a fragilidade do argumento de que essas neuroses seriam consequências de violentos choques que teriam provocado lesões no sistema nervoso, portanto são doenças orgânicas. Rebate que muitos médicos avançam no sentido de uma disfunção funcional cerebral, e outros, com uma percepção mais aguçada, já se utilizam de um termo mais preciso: doença mental. Quanto à origem psíquica, o autor ratifica sua posição pela própria experiência clínica com os neuróticos de guerra. “Como se podia discutir esse fato quando os mesmos sintomas apareciam também por trás da frente de batalha, longe dos horroresda guerra, ou imediatamente após o regresso de uma licença?” (Freud, 1919/1990, p. 266). Em relação ao uso do tratamento elétrico, Freud (1919/1990) é enfático em afirmar que os pacientes eram tratados desconsiderando-se a existência de processos inconscientes, ou seja, como se eles proposital e conscientemente escolhessem a fuga para a doença como forma de manipular o sistema. Infelizmente a aplicação do método se mostrou eficaz em relação à supressão dos sintomas e foi largamente utilizado à época, e ainda hoje é indicado nos compêndios de psiquiatria para, por exemplo, casos de depressão refratários a outros tipos de tratamento. A eficácia do tratamento em soldados traumatizados caía por terra quando eram enviados de volta à frente de batalha. Eles rapidamente faziam a escolha forçada pelo tratamento elétrico, que passava a ser menos temido que os horrores da batalha. Temos, então, um uso perverso de um suposto tratamento curativo para fins mais obscuros. A medicina, denuncia Freud (1919/1990), abandona sua função primeira e essencial passando a atender às exigências do Estado, e a recuperação dos pacientes fica relegada a segundo plano. Nesse sentido, a atualidade do discurso freudiano impressiona; nas organizações de assistência médica e psicossocial, pode-se dizer que a psiquiatria, por meio do auxílio de métodos físicos ou químicos, busca a supressão do sintoma.3 É auxiliada pela psicoterapia que, utilizando-se da palavra, procura modelar os indivíduos para que respondam mais assertivamente às exigências do Outro unificador. Esse Outro, em nome de uma universalidade, acaba por patologizar os comportamentos e as diferenças inerentes aos seres falantes. Ao lado deles, a reabilitação psicossocial aparece trabalhando com a “parte sadia” dos indivíduos com o intuito de restabelecer seus papéis sociais normais (Barreto, 2010). 3 A saúde mental, no modelo preconizado pela Organização Mundial de Saúde, ao suprimir o sintoma faz um “curto-circuito” entre os conceitos de universal e de particular ao excluir o singular. Garcia aponta para os sujeitos que não aceitam o lugar oferecido a eles pelo Social. Eles entram, assim, em um processo de desinserção, acabando por formar um outro coletivo/particular: os irregulares, em contraponto com aqueles que aceitam a regulação do sistema social, os regulares frente ao Ideal Social. Cf. Garcia, C. Psicanálise, psicologia, psiquiatria e saúde mental: interfaces. Belo Horizonte, 2002. 33 1.5 Da compulsão à repetição ao conceito de pulsão de morte Voltemos a Freud, mais precisamente ao seu artigo O estranho (1919/1990) onde faz uma extensa discussão do aspecto de estranheza surgido repentinamente em situações e atividades até então familiares e rotineiras. Aqui ele acena pela primeira vez para [...] a predominância de uma ‘compulsão à repetição’, procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos — uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio do prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco, e ainda muito claramente expressa nos impulsos das crianças pequenas; uma compulsão que é responsável, também, por uma parte do rumo tomado pelas análises dos pacientes neuróticos (Freud, 1919/1990, p. 298). Mas é em seu artigo Além do princípio do prazer que Freud (1920/2006) decisivamente põe em questão os princípios de funcionamento do acontecer psíquico, ressaltando que há muito se tomou como verdade inquestionável a pressuposição psicanalítica de que há uma regulação automática dos processos psíquicos a partir do princípio do prazer. “Consideramos este pressuposto tão verdadeiro que nem o questionamos” (p. 135). Mais uma vez testemunhamos o espírito investigador de Freud, que nos indica que a premissa supracitada tem suas raízes no cotidiano da clínica psicanalítica, não sendo mais que um conjunto de hipóteses especulativas sobre o prazer e o desprazer, que como outros conceitos psicanalíticos estão sujeitos a constantes revisões e eventuais alterações nos casos em que explicações mais adequadas aos fatos se fizerem presentes. Não sem ironia, porém, o autor completa que, apesar da transparente evidência do princípio do prazer do qual sequer pleiteia qualquer primazia em relação à originalidade da autoria, [...] ficaríamos gratos a uma teoria filosófica ou psicológica que soubesse nos informar sobre os significados das sensações de prazer e desprazer tão imperativas para a psique. Contudo, infelizmente, sobre este ponto de vista nada de útil nos é oferecido. Trata-se do território mais obscuro e inacessível da vida psíquica (Freud, 1920/2006, p. 135). Em seguida, o autor dedica toda a primeira parte de seu artigo a uma revisão dos princípios do prazer e da realidade, lembrando que o segundo continua trabalhando em função do primeiro. Antecipa possíveis críticas acerca de uma maior presença de sensações desprazerosas no cotidiano das pessoas relembrando a teoria do recalque e a clivagem 34 subjetiva dela resultante. Enfim, propõe que, a fim de conseguir algum material novo, bem como novas questões, um aprofundamento em relação às reações psíquicas ao perigo exterior seria o caminho mais apropriado. Para pensar sobre perigo exterior, vamos contextualizar o momento em que esse artigo foi escrito, qual seja, o final da Primeira Grande Guerra. Provavelmente não foi sem surpresa que o autor assistiu, num momento em que a ciência acenava com avanços sem igual para a humanidade, a um conflito sangrento bem no berço da cultura ocidental. Nesse momento surgem inúmeros casos de neurose traumática, “[...] um estado psíquico que se segue após graves choques mecânicos, colisões de trens e outros acidentes que envolvem risco de vida [...]” (Freud, 1920/2006, p. 139). Segundo o autor, tentativas de atribuir tais casos a lesões orgânicas ocasionadas por um violento choque mecânico não se sustentaram. Descreve essa neurose como tendo traços comuns à histeria, mas com um profundo sofrimento psíquico só encontrado em casos de hipocondria ou melancolia — quadros clínicos situados no campo das psicoses. Como uma forma de avançar em suas investigações Freud (1920/2006), propõe lançar mão do estudo dos sonhos, que considera ser “[...] o caminho mais confiável para pesquisar os processos psíquicos profundos” (p. 140). Surge, então, uma questão desconcertante em relação à teoria dos sonhos: além de guardiões do sono, os sonhos têm a função de realizar desejos inconscientes. A neurose traumática tem como característica a produção de sonhos recorrentes cujo conteúdo é exatamente a situação traumática vivida pelo sonhador, fazendo-o despertar com um susto semelhante ao sofrido na ocasião de seu acidente ou trauma. Como saída desse impasse Freud levanta duas hipóteses: ou o próprio trauma produz alterações na função do sonho, ou estaríamos frente a tendências masoquistas primárias do eu, tema que será aprofundado adiante. Nesse ponto Freud (1920/2006) decide retomar a discussão sobre o desenvolvimento do aparelho psíquico na infância, tomando como referência a brincadeira. Relata, então, suas conclusões com base na observação de uma criança de aproximadamente um ano e meio, com a qual passou alguns dias. Tal criança, que segundo o autor não apresentava nenhum dom intelectual acima da média e era descrita pelos pais como tranquila e obediente, criou o hábito de atirar pequenos objetos para longe de si, provocando algum incômodo no momento de guardar seus brinquedos. O lançamento dos objetos produzia satisfação na criança, sendo seguido de um som traduzido
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