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NIETZSCHE* Perspectivismo, Genealogia, Transvaloração Oswaldo Giacoia Junior** Texto extraído da Revista Cult 37 Ano IV A filosofia de Nietzsche está tão imbricada com sua veia polêmica que até mesmo a tentativa de circunscrever seus temas centrais tem sido uma tarefa não isenta de disputa entre as diversas correntes de interpretação - isso vale tanto para a identificação quanto para a compatibilidade entre esses mesmos temas. Limito-me aqui a observar que duas interpretações contemporâneas emblemáticas, embora concordando parcialmente quanto à identificação dos temas, divergem quanto à sua harmonização possível no interior de um mesmo sistema. Martin Heidegger e Karl Löwith concordam parcialmente em que a vontade de poder, o niilismo, o eterno retorno do mesmo, o além-do- homem e a justiça sejam as doutrinas mais importantes da filosofia nietzscheana. Porém, enquanto para Löwith a manifesta incompatibilidade entre a vontade de poder e o eterno retorno do mesmo implode o edifício metafísico nietzscheano, Heidegger vislumbra na co-pertença entre essas "lições capitais" o cabal atestado de legítima filiação de Nietzsche à ancestral tradição do pensamento metafísico. Tendo em vista esse debate, minha tarefa consistirá discernir um núcleo sistemático na reflexão de Nietzsche, sem necessariamente tomar como ponto de partida os temas metafisicamente mais "nobres"; por outro lado, gostaria de sugerir que a existência desse vínculo * Texto publicado na Revista Cult 37 - Revista Brasileira de Literatura - Ano IV. São Paulo. ** Professor, livre docente de filosofia da Unicamp, autor de Labirintos da Alma: Nietzsche e a Auto- supressão da Moral (Edunicamp) e Folha Explica Nietzsche. 2 sistemático entre conjuntos de problemas e questionamentos não exige a inclusão de Nietzsche na galeria tradicional da metafísica. Parto, pois, de figuras e imagens aparentemente enigmáticas - como a metáfora feminina da verdade -, noções e conceitos como perspectivismo, genealogia, transvaloração - perifericamente vinculados às grandes doutrinas acima aludidas. Supostamente desprovidos de idêntica densidade e "dignidade" metafísica, eles podem fornecer pistas preciosas que, sem déficit teórico, nos colocam em sendeiros que demandam ao centro nevrálgico da reflexão nietzscheana: a ideia de um mundo pensado a partir do conceito de vontade de poder. Para demonstrá-lo, tomo como fio de Ariadne a metáfora atrevida, pela qual verdade e feminilidade se identificam. Para podermos compreender o significado da metáfora, é necessário considerar, antes de tudo, seu lugar estratégico: o prefácio ao livro Além do Bem e do Mal, isto é, o pórtico da obra que realiza, a um só tempo, a desconstrução fulminante da tradição metafísica e a primeira exposição das noções de vontade de poder e do perspectivismo. De acordo com esse libelo antidogmático, o pior, o mais persistente e perigoso erro da filosofia foi um erro de dogmáticos, a saber, a invenção por Platão de um espírito puro e de um bem em si'. Erro que coincide com a instauratio do modo tipicamente metafísico de pensar, isto é, a partilha e a oposição entre forma inteligível e matéria sensível, essência e aparência, verdade e falsidade, original e cópia, eterno e efêmero, ser e vir a ser, espírito (alma) e corpo. No horizonte instituído por esse dualismo, os dados fornecidos pela experiência sensível, bem como nosso conhecimento de senso comum, nos apresentam apenas sombras e imagens imperfeitas da verdadeira realidade. Essa é essencialmente constituída por estruturas inteligíveis (formas, essências ou ideias) que a razão discerne para além das aparências (meta physika). Elas constituem o 3 elemento substancial e permanente por detrás da fugacidade das aparências. Nosso intelecto só é capaz de ascender até a contemplação (esse o significado original de teoria) dessas formas puras porque, partícipe da essência inteligível, é aparentado a elas; e é tanto mais capaz de fazê-lo quanto mais se liberta dos grilhões que o aprisionam ao insubsistente mundo das aparências enganosas: as cadeias do desejo, das paixões, da corporeidade. Filosofia, enquanto verdadeira sabedoria, é uma forma transfigurada de ascese, cuja destinação consiste em elevar seus iniciados à intelecção da mais sublime das ideias. Essa ideia é a causa originária de todas as outras formas inteligíveis: a ideia do Bem (ou de Deus, em termos cristãos), essencialmente vinculada às ideias de Verdade e de Beleza. Gerada pela pura forma do Bem, a Verdade corresponde à vocação essencial do espírito e não pode estar atrelada à indigência do parecer subjetivo, à inconstância do meu e do teu, que condena a opinião e o conhecimento fundado nos simulacros sensíveis aos descaminhos da imaginação delirante. Como o próprio espírito, a verdade tem a propriedade da universalidade, da necessidade e da objetividade -- de ambos fica excluída a distorção subjetiva, escrava da particularidade dos interesses, das inclinações e dos apetites. Fruto do espírito puro, a verdade seria a transparência plena, desvelamento (aletheia), a realidade nua da essência, iluminada pela potência do espírito. Nietzsche sustenta que esta figura da verdade se encontra na raiz de toda a metafísica dogmática; a despeito de suas distintas modalizações nos diferentes sistemas, ela subsiste como ideal sagrado da própria filosofia, uma vez que até mesmo o ceticismo -- valoroso combatente do dogmatismo filosófico -- se limita a deplorar a impotência de nosso conhecimento para alcançar esta verdade, sem, contudo, renunciar a seu ideal. 4 A verdade como realidade desvelada -- como conhecimento das formas universais e necessárias de todos os objetos possíveis -- se apresenta, pois, como correlato daquela invenção platônica do espírito puro e do Bem em si, que está na origem da metafísica e acompanha toda a história de seu desdobramento. Nietzsche, porém, pretende que conceber o espírito como o fizeram Platão e os metafísicos de todos os tempos, implica "colocar a verdade de cabeça para baixo", inverter seu sentido, transformá-la em seu avesso. E justamente o caminho para essa "tese" é argumentativamente pavimentado pela metáfora da verdade como mulher. Como vimos, o essencial da operação platônica consiste na instauração de um conceito objetivo de verdade - a verdade como ultrapassamento do simulacro e desvelamento das essências. Se, com isso, a verdade foi posta de "cabeça para baixo", então o avesso da verdade platônica consistirá precisamente na valorização positiva da aparência, dos véus, do disfarce, da sedução, das paixões, do corpo e do desejo - isto é, de tudo aquilo que, ao longo da tradição metafísica ocidental esteve associado com o feminino, com o perigoso, com a carne, as paixões, o mundo sensível. Supondo que a verdade seja uma mulher - assim se inicia o prefácio de Para além de Bem e Mal -, então está explicado porque nenhum dogmático jamais pôde conquistá-la, pois a verdade estaria sempre no inverso do que procuram os dogmáticos. Essa operação de inversão, que anima a metáfora, promove no texto a ocasião necessária para apresentar ao leitor a noção de perspectivismo. A inversão que a introduz não se restringe a marcar com um sinal positivo aquilo que a tradição indiciara com o estigma do negativo. Se, em virtude do erro de Platão e dos dogmáticos, inverteu-se a imagem da verdade, isso ocorre porque, de acordo com Nietzsche, não é possível um conhecimento desvinculado decondicionamentos subjetivos, da incontornável particularidade dos interesses de 5 manutenção e ampliação de posições alcançadas de força e de poder. Esse é o ângulo perspectivo que nenhum olhar pode elidir, a forma de avaliar que determina os conteúdos valorativos que dela se originam. E, se os metafísicos obtiveram êxito em apresentar seus sistemas como expressão objetiva do conhecimento racional puro, derivado de um Bem em si, é porque souberam dissimular a limitação perspectiva e a idiossincrasia das circunstâncias a que devem seu surgimento e desenvolvimento. Nesse sentido, o perspectivismo, como teoria, consiste no esforço para trazer à luz o permanente antagonismo -- vigente tanto no plano do conhecimento teórico quanto no do juízo estético e moral -- entre as pretensões de validez objetiva e os diversos contextos particulares em que se enraízam as condições que suscitaram tais pretensões. Tendo esse antagonismo em vista, Nietzsche escreve, no epílogo de Nietzsche contra Wagner: hoje em dia não acreditamos mais que a verdade ainda permaneça verdade se lhe subtraímos os véus, pois talvez a verdade seja mulher, e, portanto, tenha fundamentos para não deixar espiar os seus fundos. O perspectivismo opõe, portanto, à imparcialidade de um conhecimento desinteressado a inexorabilidade das determinações históricas, sociais, culturais, psicofisiológicas e linguísticas que condicionam o conhecer, o julgar e o agir humanos. Afirmar o caráter perspectivo de todo conhecimento implica dizer que nosso aparelho cognitivo não pode ter acesso às coisas em si mesmas, que sua atividade está necessariamente condicionada por formas e categorias estruturantes, que configuram toda realidade como fenomênica, isto é, tal como aparece para nós, sob as condições subjetivas desse mesmo quadro categorial. Pode-se objetar, a esse respeito, não haver aqui diferença substancial com o idealismo presente na crítica kantiana da razão. Para Nietzsche, entretanto, as formas categoriais não configuram um esquema a priori universal e necessário, comum à racionalidade humana entendida como um sujeito genérico. Para ele, essas 6 categorias constituem uma espécie de a priori empírico, pois estão condicionadas aos avatares da história e às funções gramaticais comuns à raiz linguística de determinadas civilizações. Isso transforma essencialmente todo conhecer num interpretar, vedando qualquer acesso possível a fatos brutos, que seriam como que os textos a serem interpretados: a interpretação é tudo - tanto o conhecimento teórico como a produção artística são interpretações, formas distintas da poiesis (criação) humana. Nietzsche considera, além disso, que seu perspectivismo é a consequência radical e inexorável da filosofia transcendental de Kant e do ulterior desenvolvimento do idealismo alemão; portanto, ele o pensa como a teoria do conhecimento mais compatível com o estado atual da moderna cultura científica. Por essa razão, nenhum recurso tradicional - nem mesmo a referência a um horizonte categorial a priori - pode pôr fim ao conflito das interpretações: o universo se torna novamente infinito, em virtude da multiplicidade das perspectivas possíveis em que se resolve agora esse mesmo universo. Àquilo que apresentei até esse ponto, gostaria de vincular outro aspecto dessa mesma questão: o perspectivismo se liga essencialmente à arte da interpretação e constitui a teoria do conhecimento mais adequada a uma filosofia que concebe o mundo sob a ótica da vontade de poder. Para tornar plausível essa afirmação, faz-se necessário antes recordar que, para Nietzsche, a vontade de poder deve ser entendida como elemento fundamental da realidade, pois tudo aquilo que sucede no universo pode e deve ser explicado a partir de alianças e oposições entre forças, com vistas à manutenção e incremento de formas organizadas de relações de poder. Tal esquema interpretativo vigora, para Nietzsche, no reino inorgânico de matéria e gravidade, no plano dos organismos e das forças vitais, assim como no âmbito das motivações humanas e das formas de organização social. Mesmo as mais refinadas esferas da 7 cultura superior (Ciência, Filosofia, Religião, Arte, Moralidade) não são senão formações sublimadas de vontades de poder em relações permanentes de dominação e sujeição. Ora, vontades de poder se efetivam em forças cuja essência reside em seu exercício ou descarga. Esta, por sua vez, não pode ocorrer senão a partir de resistências sustentadas por outras forças, pois a força só se exerce contra a força. Sendo assim, aquilo que vale para as vontades de poder, em geral, vale também para suas configurações espiritualizadas, isto é, vige também no âmbito das teorias científicas, filosóficas, no plano da arte e da moral. Por conseguinte, as distintas interpretações globais da existência, em que consistem os sistemas filosóficos, se opõem e se combinam com outras tantas que lhe são afins, opondo-se às incompatíveis, sem que possa haver recurso a um tertius genus que pudesse solucionar o conflito exterior ao atuar no conjunto das múltiplas interpretações; isto é, não há recurso ao texto, ou à realidade objetiva, independente das interpretações. Por essa razão, o caráter agonístico é inseparável da constituição das diversas teorias e sistemas. Como toda teoria é interpretação, ela é também perspectiva que se afronta e compõe com outras perspectivas, de modo que a esse conceito e oposição pertence necessariamente uma condição tanto dialógica quanto polêmica. Por conseguinte, não se pode abrir espaço para interpretações legitimáveis senão a partir da refutação polêmica do dogmatismo metafísico, de tipo platônico, pois esse sempre se nutriu da crença na possibilidade de dirimir, em última instância, o conflito das interpretações, ainda que a resolução efetiva tivesse de permanecer indefinidamente em suspenso. Em outras palavras, era necessário recolocar a verdade sobre seus pés, revertendo a inversão platônica da razão pura e do Bem em si. Era necessário, pois, resgatar a verdade da mansão celeste das formas puras e atemporais, devolvendo-a ao solo pantanoso e sangrento da 8 história de sua origem, que ela tem boas razões para dissimular com véus e máscaras. Na medida, porém, em que a verdade vale, no mundo moderno, como o derradeiro resíduo de valor incondicional e sagrado, essa operação de inversão do platonismo se apresenta como transvaloração de todos os valores, pois que põe em questão o valor supremo, o último remanescente do absoluto ainda legitimado. Não sendo a verdade um absoluto, Nietzsche pode, então, perguntar: supondo que queiramos a verdade, já que não é isso que está em questão, por que não, antes, a não verdade, o erro, a incerteza? Para concluir, torna-se necessário observar que essa dissolução do valor absoluto da verdade não pode ser feita de um ponto de vista externo à tradição histórica da metafísica ocidental. Pelo contrário, é preciso que esta tenha se esgotado ao realizar todas as suas virtualidades. Nietzsche interpreta nesse sentido a tarefa da transvaloração: ela consiste em levar nossa tradição à sua plenitude, extraindo a derradeira consequência da lógica de seus próprios valores. Ao fazê-lo, ele a conduz à sua catástrofe isto é, à sua auto- superação. Desse modo, Nietzsche se compreende como herdeiro e realizador da mais autêntica vocação da história da filosofia: como aquele que a eleva à auto-reflexão e, portanto, à compreensão do sentido de seu desenvolvimento. Uma radical disciplina do espírito sob a perspectivade justificação imanente do sentido do sofrimento e da morte, desprovida do consolo metafísico de um final apocalíptico da história, é o caminho que conduz ao Além-do-Homem. O procedimento metódico a que Nietzsche recorre é também o mais adequado à sua teoria do conhecimento: o procedimento genealógico. Esse consiste em reconstituir as condições de surgimento, transformação, deslocamento de sentido e desenvolvimento dos supremos valores de nossa civilização. À genealogia nietzscheana, como método de investigação, compete desvendar as condições e circunstâncias de surgimento de nossos supremos valores e ideais - 9 portanto imiscuir-se no que neles existe de interesses, parcialidade, "imoralidade" -; inclusive e, sobretudo, naqueles ainda aptos a legitimar pretensões de validez objetiva para juízos e processos cognitivos. Sob o crisol da Genealogia, revela-se todo valor como histórico e culturalmente emergente em configurações de poder -- sejam elas de indivíduos, grupos, povos ou civilizações -- e, portanto, essencialmente como interpretações. Esse é um resultado que a moderna consciência científica é compelida a extorquir de si mesma, pois ele é o fruto mais legítimo e contraditório do progresso das Luzes e da própria ciência. Por essa razão, a crítica nietzscheana da razão é também autossupressão da metafísica e da moral. Todo meu esforço consistiu em mostrar como se pode percorrer o labirinto do pensamento de Nietzsche, chegar mesmo à caverna do minotauro, seguindo o fio de Ariadne de questões e figuras aparentemente desprovidas da gravidade metafísica dos assim chamados temas nobres.
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