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Uma ética Nietzscheana

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Uma ética nietzschiana
Dossiê: Genealogia e transvaloração dos valores morais para naturalizá-los
TAGS: Artigo, dossiê, Nietzsche
Scarlett Marton
Ousado, irreverente, rebelde, é sobretudo dessa maneira que Nietzsche é conhecido entre nós. 
Filosofando a golpes de martelo, este pensador, um dos mais controvertidos de nosso tempo, não
hesita em seus escritos em desafiar normas. Tanto é que ele vem questionar nossa maneira 
habitual de proceder, nosso modo costumeiro de agir. Ao criticar de forma contundente os 
valores que norteiam nossa conduta, quer mostrar que, ao contrário do que supomos, o bem nem
sempre contribui para o prosperar da humanidade, nem o mal para a sua degeneração.
Diagnosticar os valores estabelecidos é um dos propósitos que Nietzsche se coloca nos textos a
partir de Assim Falava Zaratustra. Introduzindo a noção de valor, ele opera uma subversão 
crítica: põe de imediato a questão do valor dos valores e, ao fazê-lo, levanta a pergunta pela 
criação dos valores. Se nunca se colocou em causa o valor dos valores “bem” e “mal”, se nunca se 
hesitou em atribuir ao homem “bom” um valor superior ao do “mau”, é porque se consideraram 
os valores essenciais, imutáveis, eternos.
Mas, ao contrário do que sempre se acreditou, Nietzsche quer evidenciar que os valores “bem”
e “mal” têm uma proveniência e uma história. Eles não existiram desde sempre, não são obra de 
uma divindade ou de um princípio superior. “Humanos, demasiado humanos”, em algum 
momento e em algum lugar, simplesmente foram criados; por isso mesmo, surgem, passam por 
transformações e podem vir a desaparecer, dando lugar a novos valores.
Na Grécia antiga dos tempos homéricos, a aristocracia guerreira concebeu espontaneamente o princípio “bom”, 
que atribuiu a si mesma; só depois criou a ideia de “ruim”, como “uma pálida imagem-contraste”, para designar 
os que não pertenciam à casta, os que não eram dignos de serem inimigos. Com o judaísmo e o cristianismo, os 
sacerdotes converteram a preeminência política em preeminência espiritual. Enquanto valor aristocrático, 
“bom” se identificava a nobre, belo, feliz; tornando-se valor religioso, passou a equivaler a pobre, miserável, 
impotente, sofredor, piedoso, necessitado, enfermo. A transformação por que então passaram os valores morais 
foi fruto do ressentimento de homens fracos, que, não podendo lutar contra os mais fortes, deles tentaram 
vingar-se através desse artifício.
Nesse sentido, a religião cristã, desde o seu apareci-?mento, desempenhou papel de extrema 
relevância. Criação do apóstolo Paulo, ela veio impor o reino dos fracos e dos oprimidos. Se 
Nietzsche se dedica a criticá-la de forma radical, é antes de mais nada porque a vê como um 
sintoma da degeneração dos impulsos vitais. Produto do ódio e desejo de vingança daqueles a 
quem não é dado reagir e só resta res-sentir, ela seria a expressão mesma da decadência.
Perspectivismo, não relativismo
Ora, ao apontar as diferentes perspectivas a partir das quais surgem os valores, Nietzsche conta 
desmontar o mecanismo insidioso que impedia de questioná-los. Não vacila em levar à mesa de 
dissecação o ressentimento, a culpa e a má consciência, o altruísmo, o amor ao próximo e as 
chamadas virtudes cristãs. Com um agudo sentido de análise, empenha-se em desvendar o 
funcionamento secreto das paixões do homem.
É em Montaigne, Pascal, La Rochefoucauld, Vauvenargues e Chamfort que Nietzsche se 
inspira em suas reflexões acerca da conduta humana. É neles, ao lado do escritor Stendhal, que 
encontra alimento para as suas reflexões morais. Os chamados moralistas franceses, em vez de 
procurar pautar o comportamento do homem por alguma lei divina ou princípio superior, 
propõem-se estudar o ser humano tal como ele é. Sem se preocupar com a natureza humana 
universal ou a misericórdia de Deus que viria salvá-la, querem tomar por objeto de estudo o 
homem, sem recorrer à metafísica ou à teologia.
A obra que esses pensadores empreendem consiste, de modo geral, numa análise sutil dos 
móveis do homem. Embora quase todos cuidem do modo de agir individual, sempre o concebem 
como determinado ou corrompido por preconceitos da sociabilidade. No século 17, Pascal 
dedica-se a fazer ver que o homem sempre se ilude a respeito de si mesmo. É por desconhecer-se 
que se imagina grande; é para evitar o espetáculo da própria condição que recorre a 
dissimulações. Observa como as conveniências sociais transformam seus móveis verdadeiros e, 
sob a máscara da vaidade, descobre seus apetites inconfessáveis. E, com muita propriedade, 
escreve nos Pensamentos: “Divertida justiça que um rio limita! Verdade aquém dos Pirineus, 
erro além” (fragmento 294). No século 18, Chamfort amplia o âmbito da pesquisa e chega a 
encarar a moralidade social como englobando ou alterando a dos indivíduos; no século 19, 
Stendhal é o primeiro que, pela observação comparada dos costumes de diversos povos, acredita 
atingir fatos gerais.
Assim como esses pensadores franceses que tanto admira, Nietzsche quer fazer ver que os 
valores não são universais. Mas nem por isso resvala no relativismo. Insiste, ao contrário, que 
não basta mostrar que os valores surgiram a partir de ângulos de visão diferentes. Não basta 
relacioná-los com as perspectivas que os engendraram; é preciso ainda investigar que valor 
norteou essas perspectivas ao criarem valores.
Genealogia dos valores
Na ótica nietzschiana, a questão do valor apresenta duplo caráter: os valores supõem 
perspectivas que os engendram; estas, por sua vez, ao criá-los, supõem um valor que as norteia. 
É nisso que consiste o procedimento genealógico. A genealogia comporta assim dois movimentos
inseparáveis: de um lado, relacionar os valores com perspectivas avaliadoras e, de outro, 
relacionar estas perspectivas avaliadoras com um valor.
É preciso, pois, encontrar um valor ou, se se quiser, um critério de avaliação que não tenha 
sido criado, ele mesmo, por uma perspectiva avaliadora. Em outras palavras: é preciso adotar um
critério de avaliação que não possa ser avaliado. E o único critério que se impõe por si mesmo é a
vida. “É preciso estender os dedos, completamente, nessa direção e fazer o ensaio de captar essa 
assombrosa finesse – de que o valor da vida não pode ser avaliado”, afirma Nietzsche. “Por um 
vivente não, porque este é parte interessada, e até mesmo objeto de litígio, e não juiz; por um 
morto não, por uma outra razão” (Crepúsculo dos Ídolos, “O Problema de Sócrates”, parágrafo 
2).
Moral, política, religião, ciência, arte, filosofia, qualquer apreciação de qualquer ordem deve 
ser submetida ao exame genealógico, deve passar pelo crivo da vida. Fazer qualquer apreciação 
passar pelo crivo da vida equivale a perguntar se contribui para favorecê-la ou obstruí-la; 
submeter ideias ou atitudes ao exame genealógico é o mesmo que inquirir se são signos de 
plenitude de vida ou da sua degeneração; avaliar uma avaliação, enfim, significa questionar se é 
sintoma de vida ascendente ou declinante.
“Viver”, define Nietzsche em Para Além de Bem e Mal, “é essencialmente apropriação, 
violação, dominação do que é estrangeiro e mais fraco, opressão, dureza, imposição da própria 
forma, incorporação e pelo menos, no mais clemente dos casos, exploração” (parágrafo 259). A 
partir daí, compreende-se que ele encare a moral cristã como negação da vida. E, se tivesse 
sentido falar em bem e mal, consideraria bom tudo o que contribui para a expansão e 
exuberância da vida e mau tudo o que provém da fraqueza.
Transvaloração dos valores
Mas ao lado da vertente corrosiva de sua obra, Nietzsche apresenta-nos outra, construtiva. 
Entendendo que o filósofo deve ser o “médico da civilização”, a ele atribui a tarefa de “resolver o 
problema do valor”, “determinar a hierarquia dos valores”. A filosofia tem de mergulhar fundo 
na própria época para ultrapassá-la; ela deve visar o que está porvir, tendo em mira um objetivo 
preciso: a criação de valores.
É por isso que Nietzsche concebe sua obra como a tentativa de retomar as rédeas do destino 
da humanidade. Sócrates representou um marco na visão grega do mundo, substituindo o 
homem trágico pelo teórico; e Cristo, um marco no pensamento ocidental, substituindo o pagão 
pelo novo homem. Mas, com ele, a negação deste mundo em que vivemos aqui e agora “se fez 
carne e gênio”. Inimigo implacável do cristianismo, Nietzsche nele encontrará um adversário que
julga à sua altura. Conta inverter o sentido que ele procurou dar à existência humana; espera 
subvertê-lo. E, para inaugurar esta nova era, tem de realizar a transvaloração de todos os valores.
Transvalorar é, antes de mais nada, suprimir o solo a partir do qual os valores até então foram
engendrados. Aqui, Nietzsche espera realizar obra análoga à dos iconoclastas: derrubar ídolos, 
demolir alicerces, dinamitar fundamentos. É deste ponto de vista que critica a metafísica e a 
religião cristã.
Traço essencial de nossa cultura, o dualismo de mundos foi invenção do pensar metafísico e 
fabulação do cristianismo. Com Sócrates, teve início a ruptura da unidade entre homem e mundo
– e a filosofia converteu-se, antes de mais nada, em antropologia. Com o judaísmo, houve o 
despovoamento de um mundo que estava cheio de deuses – e a religião tornou-se, acima de tudo,
um “monótono-teísmo”. Com o cristianismo, propagou-se a mentira da vida depois da morte e 
do chamado reino de Deus. Desvalorizando este mundo em nome de um outro, essencial, 
imutável e eterno, a cultura socrático-judaico-cristã é niilista desde a base.
Transvalorar é, também, inverter os valores. Aqui, Nietzsche conta realizar obra análoga à dos
alquimistas: transformar em ouro o que até então foi odiado, temido e desprezado pela 
humanidade. É deste ângulo de visão que denuncia o idealismo e reivindica a adesão a esta vida 
tal como a vivemos, a aceitação deste mundo tal como o encontramos aqui e agora.
É chegada “a hora do grande desprezo”; é chegado o momento de questionar tudo o que até 
então o ser humano venerou e, pelo mesmo movimento, afirmar tudo o que até então ele negou. 
Só assim será possível revelar o que por trás dos valores instituídos se esconde e trazer à luz o 
que eles mesmos escondem. Se outrora o maior delito era o cometido contra Deus, agora mais 
sacrílego ainda é delinquir contra a Terra. Se outrora se prezava acima de tudo a vida depois da 
morte, agora é urgente entender que eterna é esta vida. Se outrora a alma mostrava descaso pelo 
corpo, agora é preciso que o corpo torne evidente o caráter fictício da alma.
Transvalorar é, ainda, criar novos valores. Aqui, Nietzsche pretende realizar obra análoga à 
dos legisladores: estabelecer novas tábuas de valores. É desta perspectiva que concebe a filosofia.
Eliminando as esperanças ultraterrenas, Zaratustra, “o sem-Deus”, conta reinscrever o ser 
humano na natureza. Suprimindo o além, Nietzsche, “o anticristo”, quer estabelecer uma nova 
aliança entre homem e mundo. Naturalizar os valores morais, é nisso que consiste seu 
empreendimento filosófico.
É bem verdade que, em momento algum, o autor de Assim Falava Zaratustra pregará um tipo 
de comportamento determinado ou imporá um estilo de vida específico; ele jamais pretenderá 
dizer o que se deve fazer. Sublinhando o caráter singular e irrecuperável de cada ação, Nietzsche 
insistirá em fazer ver que nosso modo de agir tem doravante de nortear-se por valores em 
consonância com a Terra, com a vida, com o corpo.
E, para tanto, ele se empenhará tanto na crítica corrosiva dos valores quanto na criação de 
novos valores. Genealogia e transvaloração aparecem assim como as duas faces da mesma 
moeda. Afinal, “quem quiser ser um criador no bem e no mal, esse tem de ser um aniquilador e 
destruidor de valores”.
	Uma ética nietzschiana

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