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Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais São Gabriel Curso de Psicologia FILOSOFIA: RAZÃO E MODERNIDADE caderno de textos Prof. Dr. Claudemir Francisco Alves Belo Horizonte 2016/1 Filosofia: razão e modernidade 1 TEXTO 01: PARA QUE FILOSOFIA? Marilena Chaui CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995. p.9-20. AS EVIDÊNCIAS DO COTIDIANO Em nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou recusamos coisas, pessoas, situações. Fazemos perguntas como "que horas são?", ou "que dia é hoje?". Dizemos frases como "ele está sonhando", ou "ela ficou maluca". Fazemos afirmações como "onde há fumaça, há fogo", ou "não saia na chuva para não se resfriar". Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo, "esta casa é mais bonita do que a outra" e "Maria está mais jovem do que Glorinha". Numa disputa, quando os ânimos estão exaltados, um dos contendores pode gritar ao outro: "Mentiroso! Eu estava lá e não foi isso o que aconteceu", e alguém, querendo acalmar a briga, pode dizer: "Vamos ser objetivos, cada um diga o que viu e vamos nos entender". Também é comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muito subjetivos quando o assunto é o namorado ou a namorada. Frequentemente, quando aprovamos uma pessoa, o que ela diz, como ela age, dizemos que essa pessoa "é legal". Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano. Quando pergunto "que horas são?" ou "que dia é hoje?", minha expectativa é a de que alguém, tendo um relógio ou um calendário, me dê a resposta exata. Em que acredito quando faço a pergunta e Filosofia: razão e modernidade 2 aceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que ele passa, pode ser medido em horas e dias, que o que já passou é diferente de agora e o que virá também há de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido, e o futuro, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contém, silenciosamente, várias crenças não questionadas por nós. Quando digo "ele está sonhando", referindo-me a alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo impossível ou improvável, tenho igualmente muitas crenças silenciosas: acredito que sonhar é diferente de estar acordado, que, no sonho, o impossível e o improvável se apresentam como possível e provável, e também que o sonho se relaciona com o irreal, enquanto a vigília se relaciona com o que existe realmente. Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim, posso percebê-la e conhecê-la tal como é, sei diferenciar realidade de ilusão. A frase "ela ficou maluca" contém essas mesmas crenças e mais uma: a de que sabemos diferenciar razão de loucura e maluca é a pessoa que inventa uma realidade existente só para ela. Assim, ao acreditar que sei distinguir razão de loucura, acredito também que a razão se refere a uma realidade que é a mesma para todos, ainda que não gostemos das mesmas coisas. Quando alguém diz "onde há fumaça, há fogo" ou "não saia na chuva para não se resfriar", afirma silenciosamente muitas crenças: acredita que existem relações de causa e efeito entre as coisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa é causa de alguma outra (o fogo causa a fumaça como efeito, a chuva causa o resfriado como efeito). Acreditamos, assim, que a realidade é feita de causalidades, que as coisas, os fatos, as situações se encadeiam em relações causais que podemos conhecer e, até mesmo, controlar para o uso de nossa vida. Quando avaliamos que uma casa é mais bonita do que a outra, ou que Maria está mais jovem do que Glorinha, acreditamos que as Filosofia: razão e modernidade 3 coisas, as pessoas, as situações, os fatos podem ser comparados e avaliados, julgados pela qualidade (bonito, feio, bom, ruim) ou pela quantidade (mais, menos, maior, menor). Julgamos, assim, que a qualidade e a quantidade existem, que podemos conhecê-las e usá- las em nossa vida. Se, por exemplo, dissermos que "o sol é maior do que o vemos", também estamos acreditando que nossa percepção alcança as coisas de modos diferentes, ora tais como são em si mesmas, ora tais como nos aparecem, dependendo da distância, de nossas condições de visibilidade ou da localização e do movimento dos objetos. Acreditamos, portanto, que o espaço existe, possui qualidades (perto, longe, alto, baixo) e quantidades, podendo ser medido (comprimento, largura, altura). No exemplo do sol, também se nota que acreditamos que nossa visão pode ver as coisas diferentemente do que elas são, mas nem por isso diremos que estamos sonhando ou que ficamos malucos. Na briga, quando alguém chama o outro de mentiroso porque não estaria dizendo os fatos exatamente como aconteceram, está presente a nossa crença de que há diferença entre verdade e mentira. A primeira diz as coisas tais como são, enquanto a segunda faz exatamente o contrário, distorcendo a realidade. No entanto, consideramos a mentira diferente do sonho, da loucura e do erro porque o sonhador, o louco e o que erra se iludem involuntariamente, enquanto o mentiroso decide voluntariamente deformar a realidade e os fatos. Com isso, acreditamos que o erro e a mentira são falsidades, mas diferentes porque somente na mentira há a decisão de falsear. Ao diferenciarmos erro de mentira, considerando o primeiro uma ilusão ou um engano involuntários e a segunda uma decisão voluntária, manifestamos silenciosamente a crença de que somos seres dotados de vontade e que dela depende dizer a verdade ou a mentira. Filosofia: razão e modernidade 4 Ao mesmo tempo, porém, nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa ruim: não gostamos tanto de ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E não são mentira? É que também acreditamos que quando alguém nos avisa que está mentindo, a mentira é aceitável, não seria uma mentira "no duro", "pra valer". Quando distinguimos entre verdade e mentira e distinguimos mentiras inaceitáveis de mentiras aceitáveis, não estamos apenas nos referindo ao conhecimento ou desconhecimento da realidade, mas também ao caráter da pessoa, à sua moral. Acreditamos, portanto, que as pessoas, porque possuem vontade, podem ser morais ou imorais, pois cremos que a vontade é livre para o bem ou para o mal. Na briga, quando uma terceira pessoa pede às outras duas para que sejam "objetivas" ou quando falamos dos namorados como sendo "muito subjetivos", também estamos cheios de crenças silenciosas. Acreditamos que quando alguém quer defender muito intensamente um ponto de vista, uma preferência, uma opinião, até brigando por isso, ou quando sente um grande afeto por outra pessoa, esse alguém "perde" a objetividade, ficando "muito subjetivo". Com isso, acreditamos que a objetividade é uma atitude imparcial que alcança as coisas tais como são verdadeiramente, enquanto a subjetividade é uma atitude parcial, pessoal, ditada por sentimentos variados (amor, ódio, medo, desejo). Assim, não só acreditamos que a objetividade e a subjetividade existem, como ainda acreditamos que são diferentes e que a primeira não deforma a realidade, enquanto a segunda, voluntária ou involuntariamente, a deforma. Ao dizermos que alguém "é legal" porque tem os mesmos gostos, as mesmas ideias, respeita ou despreza as mesmas coisas que nós e tem atitudes, hábitos e costumes muito parecidos com os nossos, estamos, silenciosamente, acreditando que a vida com as outras pessoas – família, amigos, escola, trabalho, sociedade, política – nos Filosofia: razão e modernidade5 faz semelhantes ou diferentes em decorrência de normas e valores morais, políticos, religiosos e artísticos, regras de conduta, finalidades de vida. Achando óbvio que todos os seres humanos seguem regras e normas de conduta, possuem valores morais, religiosos, políticos, artísticos, vivem na companhia de seus semelhantes e procuram distanciar-se dos diferentes dos quais discordam e com os quais entram em conflito, acreditamos que somos seres sociais, morais e racionais, pois regras, normas, valores, finalidades só podem ser estabelecidos por seres conscientes e dotados de raciocínio. Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da aceitação tácita de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade. A ATITUDE FILOSÓFICA Imaginemos, agora, alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer perguntas inesperadas. Em vez de "que horas são?" ou "que dia é hoje?", perguntasse: O que é o tempo? Em vez de dizer "está sonhando" ou "ficou maluca", quisesse saber: O que é o sonho? A loucura? A razão? Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas, suas afirmações por outras: “Onde há fumaça, há fogo”, ou “não saia na chuva para não ficar resfriado”, por: O que é causa? O que é efeito?; “seja objetivo”, ou “eles são muito subjetivos”, por: O que é a objetividade? O que é a subjetividade?; “Esta casa é mais bonita do que a outra”, por: O que é “mais”? O que é “menos”? O que é o belo? Filosofia: razão e modernidade 6 Em vez de gritar “mentiroso!”, questionasse: O que é a verdade? O que é o falso? O que é o erro? O que é a mentira? Quando existe verdade e por quê? Quando existe ilusão e por quê? Se, em vez de falar na subjetividade dos namorados, inquirisse: O que é o amor? O que é o desejo? O que são os sentimentos? Se, em lugar de discorrer tranquilamente sobre “maior” e “menor” ou “claro” e “escuro”, resolvesse investigar: O que é a quantidade? O que é a qualidade? E se, em vez de afirmar que gosta de alguém porque possui as mesmas ideias, os mesmos gostos, as mesmas preferências e os mesmos valores, preferisse analisar: O que é um valor? O que é um valor moral? O que é um valor artístico? O que é a moral? O que é a vontade? O que é a liberdade? Alguém que tomasse essa decisão, estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência. Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica. Assim, uma primeira resposta à pergunta “O que é Filosofia?” poderia ser: A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido. Perguntaram, certa vez, a um filósofo: “Para que Filosofia?”. E ele respondeu: “Para não darmos nossa aceitação imediata às coisas, sem maiores considerações”. Filosofia: razão e modernidade 7 A ATITUDE CRÍTICA A primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às ideias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido. A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma interrogação sobre o que são as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações fundamentais da atitude filosófica. A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que chamamos de atitude crítica e pensamento crítico. A Filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do senso comum e, portanto, começa dizendo que não sabemos o que imaginávamos saber; por isso, o patrono da Filosofia, o grego Sócrates, afirmava que a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer: “Sei que nada sei”. Para o discípulo de Sócrates, o filósofo grego Platão, a Filosofia começa com a admiração; já o discípulo de Platão, o filósofo Aristóteles, acreditava que a Filosofia começa com o espanto. Admiração e espanto significam: tomamos distância do nosso mundo costumeiro, através de nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes, como se não tivéssemos tido família, amigos, professores, livros e outros meios de comuni-cação que nos tivessem dito o que o mundo é; como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é, por que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos. Filosofia: razão e modernidade 8 PARA QUE FILOSOFIA? Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia? É uma pergunta interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que matemática ou física? Para que geografia ou geologia? Para que história ou sociologia? Para que biologia ou psicologia? Para que astronomia ou química? Para que pintura, literatura, música ou dança? Mas todo mundo acha muito natural perguntar: Para que Filosofia? Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conhecida dos estudantes de Filo-sofia: “A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a Filosofia não serve para nada. Por isso, se costuma chamar de “filósofo” alguém sempre distraído, com a cabeça no mundo da lua, pensando e dizendo coisas que ninguém entende e que são perfeitamente inúteis. Essa pergunta, “Para que Filosofia?”, tem a sua razão de ser. Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata. Por isso, ninguém pergunta para que as ciências, pois todo mundo imagina ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação científica à realidade. Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da compra e venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura vê os artistas como gênios que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade. Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia, donde dizer-se: não serve para coisa alguma. Parece, porém, que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através Filosofia: razão e modernidade 9 de instrumentos e objetos técnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os. Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia como aplicação prática de teorias, naracionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados. Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas. Assim, o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas e filósofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que a Filosofia não serve para nada. Para dar alguma utilidade à Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia não serviria para nada, se “servir” fosse entendido como a possibilidade de fazer usos técnicos dos produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade econômica, obtendo lucros com eles; consideram também que a Filosofia nada teria a ver com a ciência e a técnica. Para quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia não seriam os conhecimentos (que ficam por conta da ciência), nem as aplicações de teorias (que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento moral ou ético. A Filosofia seria a arte do bem viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, a Filosofia teria como finalidade ensinar-nos a virtude, que é o princípio do bem- viver. Roberto macena Realce Filosofia: razão e modernidade 10 Essa definição da Filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas: O que é o homem? O que é a vontade? O que é a paixão? O que é a razão? O que é o vício? O que é a virtude? O que é a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as ações humanas? Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda assim, o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos, pois as perguntas filosóficas – o que, por que e como – permanecem. ATITUDE FILOSÓFICA: INDAGAR Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais a Filosofia se ocupa, veremos que a atitude filosófica possui algumas características que são as mesmas, independentemente do conteúdo investigado. Essas características são: - perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a ideia, é. A Filosofia pergunta qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual; - perguntar como a coisa, a ideia ou o valor, é. A Filosofia indaga qual é a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma ideia ou um valor; - perguntar por que a coisa, a ideia ou o valor, existe e é como é. A Filosofia pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma ideia, de um valor. A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele. Pouco a Filosofia: razão e modernidade 11 pouco, porém, descobre que essas questões se referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade de pensar. Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio pensamento: o que é pensar, como é pensar, por que há o pensar? A Filosofia torna-se, então, o pensamento interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo, a Filosofia se realiza como reflexão. A REFLEXÃO FILOSÓFICA Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo, interrogando a si mesmo. A reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento. Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e ações. A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade circundante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações. A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou questões: 1. Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos? Isto é, quais os motivos, as razões e as causas para pensarmos o que pensamos, dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos? 2. O que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o que queremos fazer quando agimos? Isto é, Roberto macena Realce Filosofia: razão e modernidade 12 qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos ou fazemos? 3. Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos? Isto é, qual é a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos? Essas três questões podem ser resumidas em: O que é pensar, falar e agir? E elas pressupõem a seguinte pergunta: Nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro, um conhecimento? Como vimos, a atitude filosófica inicia-se indagando: O que é? Como é? Por que é?, dirigindo-se ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. São perguntas sobre a essência, a significação ou a estrutura e a origem de todas as coisas. Já a reflexão filosófica indaga: Por quê?, O quê?, Para quê?, dirigindo-se ao pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir. FILOSOFIA: UM PENSAMENTO SISTEMÁTICO Essas indagações fundamentais não se realizam ao acaso, segundo preferências e opiniões de cada um de nós. A Filosofia não é um “eu acho que” ou um “eu gosto de”. Não é pesquisa de opinião à maneira dos meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores e montar uma propaganda. As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático. Que significa isso? Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou ideias obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e Filosofia: razão e modernidade 13 opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. Não se trata de dizer “eu acho que”, mas de poder afirmar “eu penso que”. O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes de ideias e significações, sejam provadas e demonstradas racionalmente. Quando o senso comum diz “esta é minha filosofia”ou “isso é a filosofia de fulana ou de fulano”, engana-se e não se engana. Engana-se porque imagina que para “ter uma filosofia” basta alguém possuir um conjunto de ideias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto de princípios mais ou menos coerentes para julgar as coisas e as pessoas. “Minha filosofia” ou a “filosofia de fulano” ficam no plano de um “eu acho” coerente. Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que muito confusamente, que há uma característica nas ideias e nos princípios que nos leva a dizer que são uma filosofia: a coerência, as relações entre as ideias e entre os princípios. Ou seja, o senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a Filosofia tem uma vocação para formar um todo daquilo que aparece de mo-do fragmentado em nossa experiência cotidiana. EM BUSCA DE UMA DEFINIÇÃO DA FILOSOFIA Quando começamos a estudar Filosofia, somos logo levados a buscar o que ela é. Nossa primeira surpresa surge ao descobrirmos que não há apenas uma definição da Filosofia, mas várias. A segunda surpresa vem ao percebermos que, além de várias, as definições parecem contradizer-se. Eis porque muitos, cheios de perplexidade, Filosofia: razão e modernidade 14 indagam: afinal, o que é a Filosofia que sequer consegue dizer o que ela é? Uma primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro definições gerais do que seria a Filo-sofia: 1. Visão de mundo de um povo, de uma civilização ou de uma cultura. Filosofia corresponde, de modo vago e geral, ao conjunto de ideias, valores e práticas pelos quais uma sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma, definindo para si o tempo e o espaço, o sagrado e o profano, o bom e o mau, o justo e o injusto, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o possível e o impossível, o contingente e o necessário. Qual o problema dessa definição? Ela é tão genérica e tão ampla que não permite, por exemplo, distinguir a Filosofia e religião, Filosofia e arte, Filosofia e ciência. Na verdade, essa definição identifica Filosofia e Cultura, pois esta é uma visão de mundo coletiva que se exprime em ideias, valores e práticas de uma sociedade. A definição, portanto, não consegue acercar-se da especificidade do trabalho filosófico e por isso não podemos aceitá-la. 2. Sabedoria de vida. Aqui, a Filosofia é identificada com a defi- nição e a ação de algumas pessoas que pensam sobre a vida moral, dedicando-se à contemplação do mundo para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo ético e sábio. A Filosofia seria uma contemplação do mundo e dos homens para nos conduzir a uma vida justa, sábia e feliz, ensinando-nos o domínio sobre nós mesmos, sobre nossos impulsos, desejos e paixões. É nesse sentido que se fala, por exemplo, numa filosofia do budismo. Esta definição, porém, nos diz, de modo vago, o que se espera da Filosofia (a sabedoria interior), mas não o que é e o que faz a Filosofia e, por isso, também não podemos aceitá-la. 3. Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e dotada de sentido. Nesse caso, começa-se Filosofia: razão e modernidade 15 distinguindo entre Filosofia e religião e até mesmo opondo uma à outra, pois ambas possuem o mesmo objeto (compreender o Universo), mas a primeira o faz através do esforço racional, enquanto a segunda, por confiança (fé) numa revelação divina. Ou seja, a Filosofia procura discutir até o fim o sentido e o fundamento da realidade, enquanto a consciência religiosa se baseia num dado primeiro e inquestionável, que é a revelação divina indemonstrável. Pela fé, a religião aceita princípios indemonstráveis e até mesmo aqueles que podem ser considerados irracionais pelo pensamento, enquanto a Filosofia não admite indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrário, a consciência filosófica procura explicar e compreender o que parece ser irracional e inquestionável. No entanto, esta definição também é problemática, porque dá à Filosofia a tarefa de oferecer uma explicação e uma compreensão totais sobre o Universo, elaborando um sistema universal ou um sistema do mundo, mas sabemos, hoje, que essa tarefa é impossível. Há pelo menos duas limitações principais a esta pretensão totalizadora: em primeiro lugar, porque a explicação sobre a realidade também é oferecida pelas ciências e pelas artes, cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo (no caso das ciências) e para a expressão (no caso das artes), já não sendo pensável uma única disciplina que pudesse abranger sozinha a totalidade dos conhecimentos; em segundo lugar, porque a própria Filosofia já não admite que seja possível um sistema de pensamento único que ofereça uma única explicação para o todo da realidade. Por isso, esta definição também não pode ser aceita. 4. Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas. A Filosofia, cada vez mais, ocupa-se com as condições e os princípios do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, artísticos e culturais; com a compreensão das causas e das formas Roberto macena Realce Roberto macena Realce Filosofia: razão e modernidade 16 da ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo; com as transformações históricas dos conceitos, das ideias e dos valores. A Filosofia volta-se, também, para o estudo da consciência em suas várias modalidades: percepção, imaginação, memória, linguagem, inteligência, experiência, reflexão, comportamento, vontade, desejo e paixões, procurando descrever as formas e os conteúdos dessas modalidades de relação entre o ser humano e o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros. Finalmente, a Filosofia visa ao estudo e à interpretação de ideias ou significações gerais como: realidade, mundo, natureza, cultura, história, subjetividade, objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição, mudança etc. Sem abandonar as questões sobre a essência da realidade, a Filosofia procura diferenciar-se das ciências e das artes, dirigindo a investigação sobre o mundo natural e o mundo histórico (ou humano) num momento muito preciso: quando perdemos nossas certezas cotidianas e quando as ciências e as artes ainda não ofereceram outras certezas para substituir as que perdemos. Em outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele instante em que a realidade natural (o mundo das coisas) e a histórica (o mundo dos homens) tornam-se estranhas, espantosas, incompreensíveis e enigmáticas, quando o senso comum já não sabe o que pensar e dizer e as ciências e as artes ainda não sabem o que pensar e dizer. Esta última descrição da atividade filosófica capta a Filosofia como análise (das condições da ciência, da religião, da arte, da moral), como reflexão (isto é, volta da consciência para si mesma para conhecer-se enquanto capacidade para o conhecimento, o sentimento e a ação) e como crítica (das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos, das teorias e práticas científicas, políticas e artísticas), essas três atividades (análise, reflexão e crítica) estando orientadas pela elaboração filosófica de significações gerais sobre a realidade e os seres humanos. Além de análise, reflexão e crítica, a Filosofia: razão e modernidade 17 Filosofia é a busca do fundamento e do sentido da realidade em suas múltiplas formas indagando o que são, qual sua permanência e qual a necessidade interna que as transforma em outras.O que é o ser e o aparecer-desaparecer dos seres? A Filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é sociologia nem psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é história, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humanos, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento da mudança das formas do real ou dos seres, a Filosofia sabe que está na História e que possui uma história. INÚTIL? ÚTIL? O primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é o útil? Para que e para quem algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil? O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e riqueza. Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando utilidade e a famosa expressão “levar vantagem em tudo”. Desse ponto de vista, a Filosofia é inteiramente inútil e defende o direito de ser inútil. Não poderíamos, porém, definir o útil de outra maneira? Platão definia a Filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em benefício dos seres humanos. Roberto macena Realce Filosofia: razão e modernidade 18 Descartes dizia que a Filosofia é o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida, a conservação da saúde e a invenção das técnicas e das artes. Kant afirmou que a Filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma para saber o que pode conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade a felicidade humana. Marx declarou que a Filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhecê-lo para transformá-lo, transformação que traria justiça, abundância e felicidade para todos. Merleau-Ponty escreveu que a Filosofia é um despertar para ver e mudar nosso mundo. Espinosa afirmou que a Filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade. Qual seria, então, a utilidade da Filosofia? Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às ideias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes. A PALAVRA FILOSOFIA A palavra filosofia é grega. É composta por duas outras: philo e sophia. Philo deriva-se de philia, que significa amizade, amor fraterno, respeito entre os iguais. Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos, sábio. Filosofia: razão e modernidade 19 Filosofia significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber. Filósofo: o que ama a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber. Assim, filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama, isto é, deseja o conhecimento, o estima, o procura e o respeita. Atribui-se ao filósofo grego Pitágoras de Samos (que viveu no século V antes de Cristo) a invenção da palavra filosofia. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desejá-la ou amá-la, tornando- se filósofos. Dizia Pitágoras que três tipos de pessoas compareciam aos jogos olímpicos (a festa mais importante da Grécia): as que iam para comerciar durante os jogos, ali estando apenas para servir aos seus próprios interesses e sem preocupação com as disputas e os torneios; as que iam para competir, isto é, os atletas e artistas (pois, durante os jogos também havia competições artísticas: dança, poesia, música, teatro); e as que iam para contemplar os jogos e torneios, para avaliar o desempenho e julgar o valor dos que ali se apresentavam. Esse terceiro tipo de pessoa, dizia Pitágoras, é como o filósofo. Com isso, Pitágoras queria dizer que o filósofo não é movido por interesses comerciais - não coloca o saber como propriedade sua, como uma coisa para ser comprada e vendida no mercado; também não é movido pelo desejo de competir - não faz das ideias e dos conhecimentos uma habilidade para vencer competidores ou “atletas intelectuais”; mas é movido pelo desejo de observar, contemplar, julgar e avaliar as coisas, as ações, a vida: em resumo, pelo desejo de saber. A verdade não pertence a ninguém, ela é o que buscamos e que está diante de nós para ser contemplada e vista, se tivermos olhos (do espírito) para vê-la. Roberto macena Realce Roberto macena Realce Roberto macena Realce Roberto macena Realce Filosofia: razão e modernidade 20 ESTUDO DIRIGIDO I CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995. p.9-20. ORIENTAÇÕES PARA TODOS OS ESTUDOS DIRIGIDOS: 1. Caso ainda não tenha tido a oportunidade de ler o texto, antes de responder às questões, faça uma leitura atenta, mas descontraída, isto é, sem se preocupar em identificar as respostas para as questões. Ocupe-se em entender o texto e perceber como o autor vai apresentando e encadeando seus argumentos. 2. Leia o roteiro com as questões a que você vai responder. 3. Releia o texto todo, já identificando a resposta das questões. Esse momento é importante para que você, conseguindo localizar a resposta que será dada às questões, não perca a visão de conjunto. 4. Responda às questões utilizando, sempre que possível, as suas palavras. Só utilize as palavras do autor se se tratar de um conceito que você julgue muito importante. Esse esforço vai ajudá-lo a assimilar as informações. 5. Releia atentamente o que você escreveu observando, primeiramente, se o seu texto está compreensível. Verifique a lógica das frases, a sintaxe, a ortografia, a pontuação. 6. Não tenha pressa. Dedique, aproximadamente, 01 hora e 30 minutos para executar essa tarefa. Use todo o seu tempo; não o desperdice com interrupções desnecessárias. Filosofia: razão e modernidade 21 ROTEIRO DE ESTUDO 1. Que crenças silenciosas sustentam nossas afirmações, negações, avaliações e condutas na vida cotidiana? 2. Que é passar da atitude ingênua do senso comum à atitude filosófica? 3. Quais as principais características da filosofia? 4. Tem sentido perguntar “para que filosofia”? 5. Por que a filosofia é diferente de outros tipos de conhecimento e de ações? 6. Quais as definições de filosofia existentes? Quais podemos aceitar e por quê? 7. Pode-se dizer que a filosofia é útil? Quando e por quê? Roberto macena Nota Sim, a Filosofia é útil. O tempo todo. Se há um questionamento sobre algo, estamos usando a filosofia para conseguir respostas sobre o que nos "assombra". Roberto macena Nota Existem várias definições de filosofia no mundo, mas dentre elas, à quatro que dão uma definição geral sobre seu conceito: Visão de mundo; Sabedoria de vida; Esforçoracional para conhecer o universo como uma totalidade ordenada e dotada de sentido; Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas. Podemos aceitar todas elas, ou até nenhuma, não há uma definição correta e nem errada para filosofia, ela é tudo o que move o mundo. A filosofa são as perguntas que não tem uma resposta.null Roberto macena Nota Nem que sim nem que não, pois a filosofia é questionada e questionadora. As pessoas esperam coisas mais "palpáveis", que sejam certas, a filosofia não pode proporcionar isso. Só vai saber "Para que a filosofia?" quando se houver dúvidas que não a uma resposta exata para esclarece-la. Roberto macena Nota Quando o questionador começa a redirecionar suas perguntas a um caminho que o leva a filosofar. Filosofia: razão e modernidade 22 TEXTO 02: A ATITUDE CIENTÍFICA Marilena Chaui CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995. p.247-251. O SENSO COMUM O Sol é menor do que a Terra. Quem duvidará disso se, diariamente, vemos um pequeno círculo avermelhado percorrer o céu, indo de leste para oeste? O Sol se move em torno da Terra, que permanece imóvel. Quem duvidará disso, se diariamente vemos o Sol nascer, percorrer o céu e se pôr? A aurora não é o seu começo e o crepúsculo, seu fim? As cores existem em si mesmas. Quem duvidará disso, se passamos a vida vendo rosas vermelhas, amarelas e brancas, o azul do céu, o verde das árvores, o alaranjado da laranja e da tangerina? Cada gênero e espécie de animal já surgiram tais como os conhecemos. Alguém poderia imaginar um peixe tornar-se réptil ou um pássaro? Para os que são religiosos, os livros sagrados não ensinam que a divindade criou de uma só vez todos os animais, num só dia? A família é uma realidade natural criada pela Natureza para garantir a sobrevivência humana e para atender à afetividade natural dos humanos, que sentem a necessidade de viver juntos. Quem duvidará disso, se vemos, no mundo inteiro, no passado e no presente, a família existindo naturalmente e sendo a célula primeira da sociedade? A raça é uma realidade natural ou biológica produzida pela diferença dos climas, da alimentação, da geografia e da reprodução Filosofia: razão e modernidade 23 sexual. Quem duvidará disso, se vemos que os africanos são negros, os asiáticos são amarelos de olhos puxados, os índios são vermelhos e os europeus, brancos? Se formos religiosos, saberemos que os negros descendem de Caim, marcado por Deus, e de Cam, o filho desobediente de Noé. Certezas como essas formam nossa vida e o senso comum de nossa sociedade, transmitido de geração em geração, e, muitas vezes, transformando-se em crença religiosa, em doutrina inquestionável. A astronomia, porém, demonstra que o Sol é muitas vezes maior do que a Terra e, desde Copérnico, que é a Terra que se move em torno dele. A física óptica demonstra que as cores são ondas luminosas de comprimentos diferentes, obtidas pela refração e reflexão, ou decomposição, da luz branca. A biologia demonstra que os gêneros e as espécies de animais se formaram lentamente, no curso de milhões de anos, a partir de modificações de microorganismos extremamente simples. Historiadores e antropólogos mostram que o que entendemos por família (pai, mãe, filhos; esposa, marido, irmãos) é uma instituição social recentíssima – data do século XV – e própria da Europa ocidental, não existindo na Antiguidade, nem nas sociedades africanas, asiáticas e americanas pré-colombianas. Mostram também que não é um fato natural, mas uma criação sociocultural, exigida por condições históricas determinadas. Sociólogos e antropólogos mostram que a ideia de raça também é recente – data do século XVIII –, sendo usada por pensadores que procuravam uma explicação para as diferenças físicas e culturais entre os europeus e os povos conhecidos a partir do século XIV, com as viagens de Marco Polo, e do século XV, com as grandes navegações e as descobertas de continentes ultramarinos. Ao que parece, há uma grande diferença entre nossas certezas cotidianas e o conhecimento científico. Como e por que ela existe? Filosofia: razão e modernidade 24 CARACTERÍSTICAS DO SENSO COMUM Um breve exame de nossos saberes cotidianos e do senso comum de nossa sociedade revela que possuem algumas características que lhes são próprias: ● são subjetivos, isto é, exprimem sentimentos e opiniões individuais e de grupos, variando de uma pessoa para outra, ou de um grupo para outro, dependendo das condições em que vivemos. Assim, por exemplo, se eu for artista, verei a beleza da árvore; se eu for marceneira, a qualidade da madeira; se estiver passeando sob o Sol, a sombra para descansar; se for boia-fria, os frutos que devo colher para ganhar o meu dia. Se eu for hindu, uma vaca será sagrada para mim; se for dona de um frigorífico, estarei interessada na qualidade e na quantidade de carne que poderei vender; ● são qualitativos, isto é, as coisas são julgadas por nós como grandes ou pequenas, doces ou azedas, pesadas ou leves, novas ou velhas, belas ou feias, quentes ou frias, úteis ou inúteis, desejáveis ou indesejáveis, coloridas ou sem cor, com sabor, odor, próximas ou distantes etc.; ● são heterogêneos, isto é, referem-se a fatos que julgamos diferentes, porque os percebemos como diversos entre si. Por exemplo, um corpo que cai e uma pena que flutua no ar são acontecimentos diferentes; sonhar com água é diferente de sonhar com uma escada etc.; ● são individualizadores por serem qualitativos e heterogêneos, isto é, cada coisa ou cada fato nos aparece como um indivíduo ou como um ser autônomo: a seda é macia, a pedra é rugosa, o algodão é áspero, o mel é doce, o fogo é quente, o mármore é frio, a madeira é dura etc.; ● mas também são generalizadores, pois tendem a reunir numa só opinião ou numa só ideia coisas e fatos julgados semelhantes: falamos dos animais, das plantas, dos seres humanos, dos astros, dos gatos, das mulheres, das crianças, das esculturas, das pinturas, das bebidas, dos remédios etc.; Filosofia: razão e modernidade 25 ● em decorrência das generalizações, tendem a estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos: “onde há fumaça, há fogo”; “quem tudo quer, tudo perde”; “dize-me com quem andas e te direi quem és”; a posição dos astros determina o destino das pessoas; mulher menstruada não deve tomar banho frio; ingerir sal quando se tem tontura é bom para a pressão; mulher assanhada quer ser estuprada; menino de rua é delinquente etc.; ● não se surpreendem e nem se admiram com a regularidade, constância, repetição e diferença das coisas, mas, ao contrário, a admiração e o espanto se dirigem para o que é imaginado como único, extraordinário, maravilhoso ou miraculoso. Justamente por isso, em nossa sociedade, a propaganda e a moda estão sempre inventando o “extraordinário”, o “nunca visto”; ● pelo mesmo moUvo e não por compreenderem o que seja investigação científica, tendem a identificá-la com a magia, considerando que ambas lidam com o misterioso, o oculto, o incompreensível. Essa imagem da ciência como magia aparece, por exemplo, no cinema, quando os filmes mostram os laboratórios científicos repletos de objetos incompreensíveis, com luzes que acendem e apagam, tubos de onde saem fumaças coloridas, exatamente como são mostradas as cavernas ocultas dos magos. Essa mesma identificação entre ciência e magia aparece num programa da televisão brasileira, o Fantástico, que, como o nome indica, mostra aos telespectadores resultados científicos como se fossem espantosa obra demagia, assim como exibem magos ocultistas como se fossem cientistas; ● costumam projetar nas coisas ou no mundo senUmentos de angústia e de medo diante do desconhecido. Assim, durante a Idade Média, as pessoas viam o demônio em toda a parte e, hoje, enxergam discos voadores no espaço; ● por serem subjeUvos, generalizadores, expressões de sentimentos de medo e angústia, e de incompreensão quanto ao trabalho científico, nossas certezas cotidianas e o senso comum de Filosofia: razão e modernidade 26 nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizam-se em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os acontecimentos. A ATITUDE CIENTÍFICA O que distingue a atitude científica da atitude costumeira ou do senso comum? Antes de qualquer coisa, a ciência desconfia da veracidade de nossas certezas, de nossa adesão imediata às coisas, da ausência de crítica e da falta de curiosidade. Por isso, ali onde vemos coisas, fatos e acontecimentos, a atitude científica vê problemas e obstáculos, aparências que precisam ser explicadas e, em certos casos, afastadas. Sob quase todos os aspectos, podemos dizer que o conhecimento científico opõe-se ponto por ponto às características do senso comum: ● é objeUvo, isto é, procura as estruturas universais e necessárias das coisas investigadas; ● é quanUtaUvo, isto é, busca medidas, padrões, critérios de comparação e avaliação para coisas que parecem ser diferentes. Assim, por exemplo, as diferenças de cor são explicadas por diferenças de um mesmo padrão ou critério de medida, o comprimento das ondas luminosas; as diferenças de intensidade dos sons, pelo comprimento das ondas sonoras; as diferenças de tamanho, pelas diferenças de perspectiva e de ângulos de visão, etc.; ● é homogêneo, isto é, busca as leis gerais de funcionamento dos fenômenos, que são as mesmas para fatos que nos parecem diferentes. Por exemplo, a lei universal da gravitação demonstra que a queda de uma pedra e a flutuação de uma pluma obedecem à mesma lei de atração e repulsão no interior do campo gravitacional; a estrela da manhã e a estrela da tarde são o mesmo planeta, Vênus, visto em posições diferentes com relação ao Sol, em decorrência do movimento da Terra; sonhar com água e com uma Filosofia: razão e modernidade 27 escada é ter o mesmo tipo de sonho, qual seja, a realização dos desejos sexuais reprimidos, etc.; ● é generalizador, pois reúne individualidades, percebidas como diferentes, sob as mesmas leis, os mesmos padrões ou critérios de medida, mostrando que possuem a mesma estrutura. Assim, por exemplo, a química mostra que a enorme variedade de corpos se reduz a um número limitado de corpos simples que se combinam de maneiras variadas, de modo que o número de elementos é infinitamente menor do que a variedade empírica dos compostos; ● são diferenciadores, pois não reúnem nem generalizam por semelhanças aparentes, mas distinguem os que parecem iguais, desde que obedeçam a estruturas diferentes. Lembremos aqui um exemplo que usamos no capítulo sobre a linguagem, quando mostramos que a palavra queijo parece ser a mesma coisa que a palavra inglesa cheese e a palavra francesa fromage, quando, na realidade, são muito diferentes, porque se referem a estruturas alimentares diferentes; ● só estabelecem relações causais depois de investigar a natureza ou estrutura do fato estudado e suas relações com outros semelhantes ou diferentes. Assim, por exemplo, um corpo não cai porque é pesado, mas o peso de um corpo depende do campo gravitacional onde se encontra – é por isso que, nas naves espaciais, onde a gravidade é igual a zero, todos os corpos flutuam, independentemente do peso ou do tamanho; um corpo tem uma certa cor não porque é colorido, mas porque, dependendo de sua composição química e física, reflete a luz de uma determinada maneira, etc.; ● surpreende-se com a regularidade, a constância, a frequência, a repetição e a diferença das coisas e procura mostrar que o maravilhoso, o extraordinário ou o “milagroso” é um caso particular do que é regular, normal, frequente. Um eclipse, um terremoto, um furacão, embora excepcionais, obedecem às leis da física. Procura, assim, apresentar explicações racionais, claras, simples e Filosofia: razão e modernidade 28 verdadeiras para os fatos, opondo-se ao espetacular, ao mágico e ao fantástico; ● disUngue-se da magia. A magia admite uma participação ou simpatia secreta entre coisas diferentes, que agem umas sobre as outras por meio de qualidades ocultas e considera o psiquismo humano uma força capaz de ligar-se a psiquismos superiores (planetários, astrais, angélicos, demoníacos) para provocar efeitos inesperados nas coisas e nas pessoas. A atitude científica, ao contrário, opera um desencantamento ou desenfeitiçamento do mundo, mostrando que nele não agem forças secretas, mas causas e relações racionais que podem ser conhecidas e que tais conhecimentos podem ser transmitidos a todos; ● afirma que, pelo conhecimento, o homem pode libertar-se do medo e das superstições, deixando de projetá-los no mundo e nos outros; ● procura renovar-se e modificar-se continuamente, evitando a transformação das teorias em doutrinas, e destas em preconceitos sociais. O fato científico resulta de um trabalho paciente e lento de investigação e de pesquisa racional, aberto a mudanças, não sendo nem um mistério incompreensível nem uma doutrina geral sobre o mundo. Os fatos ou objetos científicos não são dados empíricos espontâneos de nossa experiência cotidiana, mas são construídos pelo trabalho da investigação científica. Esta é um conjunto de atividades intelectuais, experimentais e técnicas, realizadas com base em métodos que permitem e garantem: ● separar os elementos subjeUvos e objeUvos de um fenômeno; ● construir o fenômeno como um objeto do conhecimento, controlável, verificável, interpretável e capaz de ser retificado e corrigido por novas elaborações; ● demonstrar e provar os resultados obUdos durante a investigação, graças ao rigor das relações definidas entre os fatos estudados; a demonstração deve ser feita não só para verificar a Filosofia: razão e modernidade 29 validade dos resultados obtidos, mas também para prever racionalmente novos fatos como efeitos dos já estudados; ● relacionar com outros fatos um fato isolado, integrando-o numa explicação racional unificada, pois somente essa integração transforma o fenômeno em objeto científico, isto é, em fato explicado por uma teoria; ● formular uma teoria geral sobre o conjunto dos fenômenos observados e dos fatos investigados, isto é, formular um conjunto sistemático de conceitos que expliquem e interpretem as causas e os efeitos, as relações de dependência, identidade e diferença entre todos os objetos que constituem o campo investigado. Delimitar ou definir os fatos a investigar, separando-os de outros semelhantes ou diferentes; estabelecer os procedimentos metodológicos para observação, experimentação e verificação dos fatos; construir instrumentos técnicos e condições de laboratório específicas para a pesquisa; elaborar um conjunto sistemático de conceitos que formem a teoria geral dos fenômenos estudados, que controlem e guiem o andamento da pesquisa, além de ampliá-la com novas investigações, e permitam a previsão de fatos novos a partir dos já conhecidos: esses são os pré-requisitos para a constituição de uma ciência e as exigências da própria ciência. A ciência distingue-se do senso comum porque este é uma opinião baseada em hábitos,preconceitos, tradições cristalizadas, enquanto a primeira baseia-se em pesquisas, investigações metódicas e sistemáticas e na exigência de que as teorias sejam internamente coerentes e digam a verdade sobre a realidade. A ciência é conhecimento que resulta de um trabalho racional. O que é uma teoria científica? É um sistema ordenado e coerente de proposições ou enunciados baseados em um pequeno número de princípios, cuja finalidade é descrever, explicar e prever do modo mais completo possível um conjunto de fenômenos, oferecendo suas leis necessárias. A teoria científica permite que uma multiplicidade empírica de fatos aparentemente muito diferentes sejam Filosofia: razão e modernidade 30 compreendidos como semelhantes e submetidos às mesmas leis; e, vice-versa, permite compreender por que fatos aparentemente semelhantes são diferentes e submetidos a leis diferentes. ESTUDO DIRIGIDO II CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995. p.247-251; 286. ROTEIRO DE ESTUDO 1. Dê exemplos de noções e preconceitos do senso comum que foram desmentidos pelas ciências. 2. O que é e como opera o senso comum? 3. O que é e como opera o senso crítico? 4. Compare as características da atitude de senso comum com aquelas atribuídas pela autora como de senso crítico. 5. O que garantem os métodos científicos? Filosofia: razão e modernidade 31 TEXTO 03: NÍVEIS DE CONHECIMENTO E SEUS SIGNIFICADOS Cipriano Carlos Luckesi Elizete Silva Passos LUCKESI, Cipriano Carlos, PASSOS, Elizete Silva. Introdução à filosofia. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2002. pp. 35-47; 53-54. No capítulo anterior, nos aproximamos do conceito de conhecimento, de seu processo de produção e dos modos de sua apropriação. Agora, cabe perguntarmos se os resultados obtidos com o processo de conhecer sempre tem o mesmo nível qualitativo. Assim, nos perguntamos pelo significado desses níveis para a vida humana individual, social e política. Em síntese, perguntamos: toda e qualquer explicação da realidade tem a mesma validade? Se não tem, quais são os níveis de explicação existentes e quais os seus respectivos significados para a vida humana? Neste capítulo, vamos abordar os níveis do conhecimento – comum e crítico – e seus significados para a vida humana, sejam de orientação prática para a vida, de superação da ignorância, de libertação individual e social, como também os possíveis usos do conhecimento como suportes da ação. Com isso, estaremos avançando mais um passo na compreensão desse complexo fenômeno que é o conhecimento. 1. O SENSO COMUM O senso comum é a compreensão da realidade, constituída de um conjunto de opiniões, hábitos e formas de pensamento, assistematicamente estruturada e utilizada diariamente pelos seres Filosofia: razão e modernidade 32 humanos como forma de entendimento e como forma de orientação de suas vidas. É o entendimento que emana das experiências cotidianas das pessoas; por vezes válido, por vezes sem qualquer fundamento ou justificação. Nem sempre é válido o ditado de que “a voz do povo é a voz de Deus”, no sentido de que aquilo que o povo diz, no dia a dia, é a verdade. Por vezes, o que o povo diz é simplesmente um conjunto de ingenuidades; porém, por vezes, é significativo e tem validade. Assim, pode-se dizer que o senso comum carrega em seu seio o bom senso, que nada mais é do que o conjunto de entendimentos e ações realizadas pelo ser humano, com base no conhecimento espontâneo e assistemático, que revelam acertos, diríamos quase que uma “ciência implícita”. O senso comum é o conhecimento acumulado pelas sociedades humanas sem um esforço de busca de coerência e organicidade das partes; por isso, manifesta-se como fragmentário. O bom senso define-se como o conjunto de elementos de criticidade que existe no seio do senso comum. Diz-se que este conhecimento é o da prática utilitária, devido ao fato de ele dar suporte ao conjunto das ações diárias dos seres humanos em sociedade, sem se perguntar e sem explicar em essência o que elas significam. Ou seja, faz-se alguma coisa desta ou daquela maneira devido ao fato de que “acostumou-se” a fazer assim. Porém, nunca se pergunta “por que” se faz desta maneira, nem qual é o fundamento desse modo de agir. Por exemplo, usamos o dinheiro diariamente, mas não nos perguntamos o que ele significa em economia política e na sociedade burguesa-capitalista na qual vivemos. Será que ele só serve de meio de troca ou é também uma mercadoria? Marx discute essa questão em O capital de maneira científica, buscando a sua compreensão essencial, que ultrapassa o utilitário cotidiano. Do exposto, pode-se concluir que o conhecimento produzido pelo senso comum é conhecimento, porém superficial, baseado nas aparências dos fatos e acontecimentos. Filosofia: razão e modernidade 33 Entre o senso comum e o senso crítico há um salto qualitativo; enquanto um é superficial e fragmentário, o outro pretende ir à essência e buscar compreensões coerentes e universais. Devido ao fato de ambos serem conhecimentos e devido ao fato de que, na oportunidade do dia a dia e na ordenação cronológica de nossas vidas, deparamo-nos primeiramente com o senso comum, há autores que consideram que a determinação entre uma e outra forma de conhecimento dá-se tão-somente por um processo de sofisticação, ou seja, entre o senso comum e o senso crítico, há uma continuidade de compreensão do mundo; todavia, o senso crítico utiliza-se de recursos metodológicos não disponíveis ao senso comum. O senso comum, sofisticando-se, torna-se senso crítico.1 De fato, parece que não é isso que ocorre. Ninguém nega que todos os seres humanos vivam o senso comum, inclusive aqueles que buscam a ciência e a filosofia; porém, o senso crítico exige um salto de qualidade, tanto no que se refere aos meios de produzi-lo quanto nas compreensões obtidas. Quanto ao modo de obtê-lo, Tiago Adão Lara, em Caminhos da Razão no Ocidente, nos diz: A diferença é que o conhecimento do homem do povo foi adquirido espontaneamente, sem muita preocupação com método, com crítica ou com sistematização. Ao passo que o conhecimento daquele que estudou algo foi obtido com esforço, usando-se um método, numa crítica mais pensada e uma organização mais elaborada dos conhecimentos.2 Assim, um dos cernes da questão dos níveis do conhecimento se acha na maneira de apreensão da realidade. o conhecimento prático-utilitário do senso comum carece de um embasamento metodológico. Considerando que ele tem origem nas experiências comuns e espontâneas do dia a dia, o enfrentamento da realidade 1 Cf. Hegenberg, Leônidas. Ciência. In Hegenberg, Leônidas, Explicações científicas, São Paulo, Ed. Pedagógica Universitária, 1973, pp. 29-40. 2 Lara, Tiago Adão. Caminhos da razão no Ocidente. 2 ed. Petrópolis, Vozes, 1986, p. 12. Filosofia: razão e modernidade 34 vai se dando de forma ametódica e assistemática. Os entendimentos vão se formulando ao sabor das circunstâncias que se apresentam, o que os faz imediatistas e utilitaristas, já que as experiências vividas quase sempre estão ligadas ao mundo mais próximo e, por isso, mais ou menos valorizadas, a depender do papel que venham a desempenhar na satisfação de necessidades emergentes. Por outro lado, o entendimento que se formula a partir do senso crítico tem um nível completamente diferenciado, pela sua coerência, organicidade e universalidade de seus juízos. o senso comum não está preocupado com as incoerências de suas partes, e muito menos se esse entendimento é válido aqui e acolá ouse só aqui ou só acolá. Sabe que, aqui e agora, nesse momento prático, ele é útil; o depois... e o acolá... do conhecimento são dimensões que não cabem no seu horizonte. Ernest Nagel, em um texto intitulado “Ciência: natureza e objetivo”, publicado em Filosofia da ciência, faz uma síntese interessante das características do senso comum, que transcrevemos abaixo. O senso comum manifesta: a) imprecisão e também aproximação de coisas e processos que são essencialmente diferentes; b) utilização arbitrária de crenças: havendo duas crenças incompatíveis para escolher, escolhe uma por preferência arbitrária; c) fragmentariedade: a dificuldade do homem menos culto de atingir relações mais sutis faz com que as ligações que existem entre enunciados independentes sejam habitualmente ignoradas; d) certo grau de inconsciência do alcance e das consequências das aplicações daquilo que é o seu saber; e) miopia utilitarista, que reduz seu campo de reflexão só àquilo que é presente, que exige apreensão imediata.3 3 Cf. Nagel, Ernest. Ciência: Natureza e objetivo. In Morgenbesser, Sidney, Filosofia da Ciência, São Paulo, Cultrix, 1985, p. 16. Filosofia: razão e modernidade 35 2. O SENSO CRÍTICO Das considerações sobre o senso comum, depreende-se que as características do senso crítico são diversas, ultrapassando qualitativamente o senso comum em metodicidade e universalidade de interpretação. O senso crítico exige um patamar superior de investigação e produz um entendimento mais significativo e abrangente da realidade. Do ponto de vista da construção do conhecimento, ele é intencional, voluntário e, por isso, utiliza-se de um variado recurso lógico-metodológico para apreender a verdade da realidade. Não espera, espontaneamente, que os fatos exijam alguma interpretação. O senso crítico está sempre inquieto com o desconhecimento e com a ignorância sobre os fatos e acontecimentos. Intencionalmente, procura compreendê-los. Para tanto, busca a sua essência, ou seja, o seu verdadeiro significado, que está oculto à primeira olhadela. Faz uso de recursos metodológicos tais como: 1) tomar o objeto de estudo como parte de um todo (uma gripe pertence ao organismo de um indivíduo e não só às suas vias respiratórias; os problemas de habitação não pertencem a uma cidade em específico, mas ao modelo capitalista de cidade); 2) tomar um objeto singular como representante de um universal (o sujeito individual gripado é um representante singular da universalidade dessa afecção da saúde; o problema habitacional de Salvador-BA é um representante singular de um universal, que é a questão da habitação na sociedade burguesa-capitalista); 3) tomar o objeto de estudo como uma manifestação aparente de algo que não está sendo captável, a sua essência; por isso, torna-se necessário desvendar a essência na aparência, a interpretação nem pode ser superficial, nem imediatista; 4) tomar o objeto de estudo como resultado de um passado; nenhum objeto presente manifesta- se sem um determinado passado de precursores (um indivíduo não adoece de imediato, mas sim em decorrência de fragilidades anteriores; um acontecimento político não emerge gratuitamente, ele tem um passado que o torna compreensível). Filosofia: razão e modernidade 36 Deste modo, o conhecimento do senso crítico é metódico. Além disso, manifesta-se como um patamar superior de compreensão da realidade, como já dissemos anteriormente. O que significa isso? Significa que o seu resultado, a sua explicação, explicita significativamente o que é um fato, o que é uma situação. Lembremo-nos dos casos da “febre puerperal” e do “bonapartismo” relatados no capítulo anterior. No nível do senso comum, a febre puerperal poderia ser um castigo dos céus, e o golpe de Estado um feito heroico de um ditador. No entanto, no nível do senso crítico, esses conceitos explicativos foram extraídos da própria realidade pelo uso de um instrumental metodológico. Constituíram-se não como “eventuais explicações” da realidade, mas sim como conceitos científicos universais e válidos. Isso significa que eles valerão para sempre? Não! Tanto os desvios orgânicos da febre puerperal como a prática de governo bonapartista poderão desaparecer da face da Terra e, então, esses conceitos não serão mais do que lembranças de fatos que aconteceram no passado. Vamos dar um outro exemplo. Pretendendo conhecer a estrutura administrativa de uma escola, solicitamos ao seu diretor o organograma e o regimento da instituição. Verificamos os órgãos competentes da escola, as relações entre eles etc. Até aqui, lemos os documentos e verificamos o que está escrito neles. Se assumirmos esta estrutura administrativa como aquela que está sendo exercitada, estaremos no nível do senso comum. Deixando os documentos e observando os atos das pessoas no processo administrativo dessa escola, veremos que as redes de poder aí vividas são diversas das descritas e, então, estaremos desvendando a verdadeira rede de poder dessa escola (aparência/essência). Neste segundo momento, descobrimos criticamente qual a verdadeira rede de relações do poder administrativo da escola e suas articulações. Aqui há um nível novo e verdadeiro de entendimento, que ultrapassa o primeiro. O primeiro é senso comum, o segundo, senso crítico. Em uma relação entre senso comum e senso crítico, é claro que o senso Filosofia: razão e modernidade 37 crítico é um modo e um nível de conhecimento que merece a atenção de todos os seres humanos devido ao patamar qualitativo a que ele se propõe atingir de desvendamento da realidade, agindo de forma coerente e sistemática. Quanto mais lúcida for a forma de conhecimento, maior será a possibilidade de consciência e coerência nas ações de reivindicações. Essa comparação entre o senso comum e o senso crítico não deve conduzir-nos a dois desvios possíveis. Em primeiro lugar, a considerar que o conhecimento cotidiano é só um conhecimento acrítico. No geral, poderíamos dizer que ele é fragmentário, tendo em si fragmentos de ingenuidade ao lado de fragmentos de criticidade. Foi o que falamos do “bom senso”. Em segundo lugar, torna-se perigoso equiparar senso crítico com conhecimento escolarizado e senso comum com conhecimento não-escolarizado. De fato, todo conhecimento escolarizado deveria ser crítico, mas nem sempre tem sido, nem sempre o é. Além disso, importa ter presente que nem todo conhecimento crítico passa pela escola. Conhecimento crítico é uma categoria mais abrangente que conhecimento escolarizado. O senso crítico pode dar-se nos setores de estudos e pesquisas tanto intra quanto extra-escolares. O lembrete que estamos fazendo aqui é para evitar desvios de interpretações e atitudes preconcebidas, evitando privilegiar seja o conhecimento popular, seja o escolar. 3. GLOBALIDADE E ESPECIFICIDADE DOS TIPOS DE CONHECIMENTO Por si, o conhecimento embutido no senso comum é globalizante, não possui especialidades. Com o mesmo tom, trata de normas morais, condutas sociais, religião, acontecimentos da natureza etc. As interpretações que emergem do senso comum não têm a pureza de tratar um objeto a partir dele mesmo. Trata um determinado objeto a partir de diversos direcionamentos, tais como: natureza, religião, normas morais, antropomorfismos. Cada fenômeno é interpretado por uma mescla de vertentes. Filosofia: razão e modernidade 38 Diversamente, o conhecimento do senso crítico especializa-se: cada fenômeno é tratado e interpretado a partir do seu âmbito; a natureza a partir da natureza, os fenômenos sociais a partir da sociedade, os fenômenos religiosos a partir da teologia, e assim por diante.O senso crítico busca um aprofundamento de interpretação, daí necessitar de enfoques centralizados, ou seja, de centros específicos de interesse de estudo e compreensão. Isto, por si, não suprime a interdisciplinaridade. Ao contrário, ela é necessária, porém de uma forma ordenada, a partir de um núcleo de abordagem e tratamento. Um fenômeno biológico, por exemplo, é visto do ponto de vista da biologia, em primeiro plano, porém, pode ser articulado, interdisciplinarmente, com economia, sociologia, história etc. Em síntese, enquanto o conhecimento do senso comum é genérico, o conhecimento do senso crítico é especializado. Divide-se em áreas que já conhecemos, como: ciência, filosofia e teologia. Por sua vez, a ciência se especializa em seus ramos: ciências formais (as matemáticas), ciências empírico-formais (as da natureza), ciências sociais (as humanas). Esses ramos subdividem-se mais ainda; as ciências da natureza especificam-se em física, química, biológica etc. O mesmo ocorre com a filosofia, que se torna filosofia da ciência, filosofia do direito, filosofia da arte. [...] 4. O PAPEL DO CONHECIMENTO NA VIDA INDIVIDUAL E SOCIAL Nas discussões que vimos desenvolvendo neste capítulo, temos tentado esclarecer os tipos de conhecimento. Agora, cabe tratar um pouco de suas consequências para a prática humana. Será que o conhecimento, seja no nível do senso comum, seja no nível do senso crítico, seria tão-somente um diletantismo? Ou o esforço dedicado a eles tem algum objetivo em relação às necessidades humanas? A nosso ver, tanto uma quanto outra forma de conhecimento tem um papel na vida individual e na vida social, assim como na vida dos povos. É do que vamos tratar a seguir. Filosofia: razão e modernidade 39 4.1. O conhecimento prático-utilitário e a ação Vimos, anteriormente, que a perspectiva metodológica é um dos fatores que diferencia o conhecimento prático-utilitário do crítico- metódico, assim como vimos que o primeiro é superficial e que o segundo busca a essência. Essas diferenças fundamentais entre eles não impedem que ambos exerçam a sua função no que concerne a um entendimento da realidade e a uma certa forma de lidar com a mesma, ainda que em níveis e perspectivas diferenciadas. Sendo o conhecimento prático-utilitário, direto e imediato, ou seja, sem uma busca intencional, proveniente da acumulação de experiências, um conhecimento que não se propõe a investigar em profundidade a significação das coisas, mas que se contenta com um entendimento orientado pelas aparências, a prática que ele orienta não poderá fugir a essas características. Essa prática se caracteriza por uma certa ingenuidade e por uma aceitação fácil daquilo que lhe é apresentado, sem questionamento e discussão. As ações são praticadas de maneira acrítica e pela lei do menor esforço. Se vamos a uma farmácia e o balconista nos diz que tal remédio é bom para tal doença, o compramos e usamos sem questionar seus efeitos e suas consequências. O que importa e que ele traga efeito imediato, mesmo que seja passageiro e acarrete consequências negativas posteriores. Assim sendo, no conhecimento prático-utilitário, o enfrentamento da realidade, bem como o produto desse enfrentamento, será baseado em “achismos”, no dado aparente e no aspecto sintomático. Isso implica uma frágil compreensão do real e, como consequência, uma superficial explicação do mesmo. Nesse nível de prática, o homem faz, mas não tem explicações objetivas do porquê e do como sabe fazer. Todavia, seria incorreto retirar todo valor desse tipo de conhecimento prático-utilitário, considerando que a maioria das ações humanas praticadas no dia a dia é fruto desse tipo de Filosofia: razão e modernidade 40 conhecer. É indiscutível o significado prático daquilo que o homem consegue formular a partir das suas experiências cotidianas. O conhecimento crítico, decorrente do uso sistemático de recursos metodológicos, possibilita um patamar de entendimento objetivo que garante, por consequência, uma ação objetiva e eficiente. O senso crítico é fundamental para o ser humano, pois que é no seu contexto que se dá e se desenvolve a cultura e a tecnologia mais avançadas da sociedade moderna. As demandas científicas das diversas áreas especializadas do conhecimento humano e seus diversos benefícios técnicos e tecnológicos decorrem de uma busca sistemática e permanente de um aprofundamento crítico da compreensão do mundo. O senso crítico não dirige todas as nossas ações, mas, parece-nos, seria ideal que assim o fosse, na medida em que ele destitui as fantasmagorias cotidianas. Nesse contexto, vale ainda uma observação no sentido de lembrar que a sociedade na qual vivemos (sociedade capitalista) não pode ser transparente e totalmente explícita. Se assim o fosse, ela não teria como executar o tipo de poder e de relações sociais que exercita. Portanto, o senso crítico e a cultura dele decorrente não poderão nem deverão ser atributos de todos, visto que eles ofereceriam condições de consciência e ação sobre a realidade, possibilitando modificações. Por isso, normalmente, nesta sociedade, a educação sistemática é restrita, não atingindo a todos. O senso comum passa a ser um instrumento para sustentar a exploração dos oprimidos. 4.2. O conhecimento crítico e a ação De acordo com o que foi dito, o conhecimento metódico-crítico não se contenta com as primeiras impressões, indo em busca do que é essencial nas coisas. Decorrente desse processo, o indivíduo assume um papel central no processo do conhecer, na medida em que é o sujeito do Filosofia: razão e modernidade 41 conhecimento e, articulada com esse conhecimento, dá-se sua ação de forma consciente e fundamentada. O saber, que estamos denominando de metódico-crítico, proporciona ao sujeito segurança e eficiência na ação, uma vez que lhe possibilitará conhecer não apenas os aspectos aparentes e sensivelmente perceptíveis da realidade, mas, principalmente, a razão de ser das coisas, aquilo que essencialmente a caracteriza e a define. Tal situação de competência que proporciona ao indivíduo uma ação libertadora, é verificada também em nível social com os grupos e as nações. Quanto maior criticidade se porta, tanto mais há a possibilidade de adequação e eficiência na ação. É sabido que a cultura está voltada para a satisfação das necessidades humanas, fundamentalmente das necessidades básicas que garantam a sua sobrevivência, e, mais remotamente, para a satisfação das necessidades da convivência cultural. Do ponto de vista valorativo, não existem culturas inferiores ou superiores. Cada uma delas é o que é na sua circunstância. Porém, do ponto de vista do desenvolvimento da realidade, as culturas podem, sim, ser classificadas em superiores e inferiores. O senso crítico, inegavelmente, é superior ao senso comum, na medida em que é crítico, orgânico, explicativo, sustentador de uma práxis objetiva. As sociedades que investem no seu desenvolvimento científico e tecnológico, que buscam apossar-se de um saber mais objetivo e verdadeiro, terão maiores meios para resolver os seus problemas sem ter que recorrer ao know-how de outros povos. Tal fato, se aparentemente se apresenta como algo de menor importância, de fato não o é. Essa competência acarretará, por sua vez, autossuficiência, liberdade e autonomia. As sociedades, porém, que não incentivam essa prática, que não investem num saber desvelador do real, não terão condições de enfrentar, verdadeiramente, os seus problemas; darão passos em Filosofia: razão e modernidade 42 falso e, certamente, precisarão da tutela do saber de fora. Essa prática as remeterá a uma situação de dependência, de domesticação
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