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UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR MESTRADO EM FAMÍLIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÃNEA ANDRÉ BONELLI REBOUÇAS GUARDA DOS FILHOS MENORES DE CASAIS SEPARADOS: COMO DECIDIR EM JUÍZO? Salvador 2008 2 ANDRÉ BONELLI REBOUÇAS GUARDA DOS FILHOS MENORES DE CASAIS SEPARADOS; COMO DECIDIR EM JUÍZO? Dissertação apresentada à Universidade Católica do Salvador como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Família na Sociedade Contemporânea. Orientador: Prof. Dr. José Euclimar Menezes Co-Orientador: Prof. Dr. Camilo Colani Salvador 2008 3 TERMO DE APROVAÇÃO ANDRÉ BONERLLI REBOUÇAS GUARDA DOS FILHOS MENORES DE CASAIS SEPARADOS: COMO DECIDIR EM JUÍZO? Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador, pela seguinte banca examinadora: Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti Doutora em História – Universidad de León Camilo de Lelis Colani Barbosa Doutor em Direito – PUC-SP José Euclimar Xavier de Menezes Doutor em Filosofia - UNICAMP Salvador, 20 de agosto de 2008. 4 AGRADECIMENTOS Agradeço imensamente, pela oportunidade de ingressar e cursar o Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea : A Ritinha, minha mulher, pelo apoio que recebi: foi muito importante; A meus filhos: André, Marina, Clara, Breno e Enzo, pela compreensão pelos momentos em que não me fiz presente; A meu orientador, Prof. Dr. Menezes, pela dedicação e atenção a este trabalho, orientando-me com grande esmero e competência. A Júlia e Gorete, pelo apoio logístico: meu muito obrigado. 5 RESUMO Esta tese busca discutir a guarda de filhos menores no pós-separação dos pais, um desafio constante para a boa solução dos litígios intrafamiliares.Perpassa, ,inevitavelmente, por aspectos culturais de nossa sociedade, de raízes fincadas no patriarcado; revela os meandros psicológicos dos genitores e de seus filhos; e questiona o sistema jurídico do Direito de família e do Direito processual, com especificidades de cunho conceitual, hermenêutico e operativo.Sob o aspecto cultural, percebe-se que ainda remanesce, em algumas das decisões judiciais relativas à guarda a crença derivada do senso comum de que a mãe deve ser a guardiã dos filhos porque,,detentora do ‘instinto materno’, lhe confere maior aptidão para o convívio e educação da prole. Ao homem deve ser confiado o papel de provedor e visitante. Mas esse posicionamento, que já não corresponde à orientação majoritária da jurisprudência, parece tender a esmaecer. Já se percebe que os operadores do direito, ante a constatação da dificuldade de solucionar as lides familiares apenas pela ótica jurídico-positivista, buscam seu equacionamento fundados na interdisciplinaridade, de modo que a custódia de menores, ainda que decidida pelo juiz, passa a ser abordada por outras fontes do saber. Neste sentido, tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA como o Código Civil, CC abrem espaço à instrução processual motivada na perícia interdisciplinar. O menor deve ser visto como o foco principal nas ações relativas à sua guarda. É, pois, um sujeito de direito, o que implica ser uma pessoa suscetível de satisfazer suas necessidades juridicamente protegidas : o direito ao aleitamento materno, à ludicidade adequada, à escola qualificada, à assistência médica apropriada, à convivência comunitária e familiar, ao respeito; enfim, todo modo apropriado que possibilite seu bem-estar, conforme indica o ordenamento jurídico que lhe é protetivo. Se a criança ou adolescente é o foco, a modalidade da guarda a ser adotada —unilateral, compartilhada ou alternada —, não é importante por seus próprios atributos, mas em função do que, no caso concreto, pode proporcionar ao filho, em termos de garantir seu melhor interesse e a proteção integral de seus direitos.Por isso, a fixação da guarda não poderá contrapor-se à igualdade de gênero, constitucionalmente consagrada. Palavras chaves: Família; Guarda de filhos menores; Critérios para decisão: Instrução Processual; Efetivação das decisões. 6 ABSTRACT This thesis seeks to discuss the custody of minor children after separation from their parents, a constant challenge to the proper solution of disputes within the family. The text exists, inevitably, in the cultural aspects of our society, by from roots planted in patriarchy, it reveals the psychological intricacies of parents and their children and it questions the legal system of Family law and Procedural law, with specific features of conceptual imprint, hermeneutic and operating. Under the cultural aspect, we find that still remains, in some court decisions concerning the care, the belief derived from common sense that the mother should be the guardian of the children because she’s holding the “maternal instinct” and she giving it greater ability for the living and education of offspring. The man should be given the role of provider and visitor. But this position tends to weaken, because doesn’t correspond to the major direction of jurisprudence. Now, you can see that the operators of the law, at the conclusion of the difficulty of solving the deal between the families only positivist legal perspective, seek to align themselves based on interdisciplinary, so the custody of minors becomes approached by other sources of knowledge, even if decided by the judge. In this sense, both the ECA as the Civil Code provides room for instruction on procedural grounds interdisciplinary expertise. The minor must be seen as the main focus on actions relating to their custody. The minor is a subject of law, which requires a person be susceptible to satisfy their needs legally protected: it’s entitled to breast- feeding, the playful approach, the school qualified, appropriate medical care, the living community and family, respect ; finally, all the appropriate manner which allows their well-being, as indicated by the legal system it’s protective. If the child or adolescent is the focus, the type of custody to be adopted - unilateral, alternately or shared – it’s not important for their own attributes, but in the light of that, in this case, the child can provide in terms of their best interest and ensure full protection of their law. Hence the setting of the guard can’t interpose itself to gender equality, constitutionally enshrined. 7 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AI – Agravo de Instrumento ApCv – Apelação Cível CC – Código civil CDC – Código de Defesa do Consumidor CF – Constituição Federal CP – Código Penal CPC – Código de Processo Civil DJ – Diário da Justiça ECA – Estatutoda Criança e do Adolescente IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística REsp – Recurso Especial STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça TJBA – Tribunal de Justiça do Estado da Bahia TJMG - Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais TJPE - Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco TJPR - Tribunal de Justiça do Estado do Paraná TJRJ - Tribunal de Justiça do Estado do rio de Janeiro TJRS - Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul TJSE - Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe TJSP - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 1 CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UM OLHAR PARA O PASSADO 23 1.1 Regramentos jurídicos brasileiros até o Código de Menores de 1979 26 2 .DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DO MELHOR INTERESSE DO MENOR: UM SUJEITO DE DIREITO 32 3.DO PODER FAMILIAR 46 4 DO DIREITO DE CONVIVÊNCIA: UM RECONHECIMENTO DA DIGNIDADE DA PESSOA 64 5 DA GUARDA 70 5.1 Considerações históricas 70 5.2 Aspectos conceituais 76 5.3 Classificação da guarda quanto à origem 80 5.4 Das modalidades de guarda 83 5.4.1 Da guarda unilateral 83 5.4.2 Da guarda alterada 90 5.4.3 Da guarda compartilhada 92 5.4.3.1 A regulamentação da guarda compartilhada no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo antes da Lei 11 698, de 13 de junho de 2008 96 5.4.3.2 Mais diretamente sobre a Lei 11 698, de 13 de junho de 2008, que altera os artigos 1 583 e 1 584 do Código Civil e dispõe sobre a guarda unilateral e compartilhada 107 5.4.3.3 Guarda compartilhada pressupõe consenso dos pais? 118 5.4.3.4 Na guarda compartilhada em que casa o infante deve ficar? 130 6 A INSTRUÇÃO PROCESSUAL NAS AÇÕES DE GUARDA 135 9 7 A FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO QUE DETERMINA A GUARDA 143 8 DA EFETIVAÇÃO DA DECISÃO QUE FIXA A GUARDA 148 CONCLUSÃO 159 REFERÊNCIAS 163 10 INTRODUÇÃO . JUSTIFICATIVA A questão da guarda de filhos menores em decorrência do dissenso dos pais tem sido objeto de debates e indagações, que vão desde a situação e aspirações dos próprios pais até as expectativas e o resguardo dos interesses dos menores. Guarda é um conjunto de direitos e deveres para filhos e pais, respectivamente, que pode ser exercido de modo espontâneo ou em função de determinação judicial, mas sempre como uma manifestação do direito de convivência familiar. Por isso, coexistem entendimentos, na doutrina, na jurisprudência e agora ratificados pelo texto da Lei 11. 6981, de 13 de junho de 2008, que deu nova redação aos arts 1 Lei 11.698/08 e a nova redação dos arts 1 583 e 1 584 do Código Civil: “Art. 1º - Os arts. 1.583 e 1.584 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, passam a vigorar com a seguinte redação: "Art. 1 583. A guarda será unilateral ou compartilhada. § 1º Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores, ou a alguém que o substitua (art. 1,.584, § 5º) e, por guarda compartilhada, a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres, do pai e da mãe, que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. § 2º A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores: I - afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; II - saúde e segurança; III - educação. § 3º A guarda unilateral obriga o pai, ou a mãe, que não a detenha, a supervisionar os interesses dos filhos. "Art. 1 584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: I - requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma, de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar; II - decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. § 1º Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas. § 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada. § 3º - Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob a guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento da parte, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar 11 1.583 e 1.584 do Código Civil, na direção de sustentar que: a guarda pode ser unilateral, ou seja, permite a apenas um dos pais a custódia da criança ou adolescente na pós ruptura do casal, restando ao cônjuge não guardião o direito de visitas ao filho; guarda conjunta, quando compartilhada entre os pais, que, embora separados, continuam em interação recíproca e quotidiana com o menor, dispensada assim a figura do pai ou mãe visitante; e, ainda, a guarda alternada, na qual o infante reveza períodos, isoladamente, com o pai e com a mãe. Os que criticavam o compartilhamento da guarda da criança ou adolescente argumentavam, a princípio, que esta espécie de custódia não era sequer regulada pelo direito brasileiro, pois a legislação nacional, antes da edição da Lei 11.698/08, pressuporia a presença contínua e inseparável do menor junto ao genitor guardião. Afirmavam também que, quando há animosidade entre os pais separados, é impossível a fixação conjunta da guarda 2, visto que isto poderia causar aos menores problemas de instabilidade emocional, perda de referências, ausência de definição de responsabilidade entre o pai e a mãe. E como derradeira justificativa defendiam que a guarda deve ser prevalentemente decidida em favor da mulher em razão do seu “instinto materno”, que tende a proporcionar melhores condições afetivas e educacionais para a prole. Por esse raciocínio, conforme delineia Eduardo de Oliveira Leite (2004, p. 264): Enquanto a família permanece unida, a guarda conjunta é perfeitamente admissível. Questionar-se-ia sobre a realidade de tal expressão quando a família já se encontra separada. A separação dos pais e o inevitável afastamento de um dos genitores da presença do filho impediriam a guarda conjunta. Mesmo após a vigência da Constituição Federal de 1988, nossos Tribunais se manifestaram a favor da guarda unilateral, como regra (TJRS, ApCv 70005760673, § 4º A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência com o filho. § 5º Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe , deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade." Art. 2º Esta Lei entra em vigor após decorridos 60 (sessenta) dias de sua publicação. 2 Conforme Rolf Madaleno (2004, 91-92) e Marilene Silveira Guimarães (2004, 5/6) 12 j. 12/03/03; TJRS, ApCv 70002792919, j. 01/11/01; TJMG, ApCv 1.0000.00.344568- 1/000, DJ 05/02/04)). É de se destacar quesegmentos da jurisprudência chegavam até a julgar extinto, por impossibilidade jurídica do pedido, o processo no qual se pleiteava a guarda compartilhada do filho menor que se encontrava sob a custódia exclusiva de um dos ex-consortes. Argumentavam que o ordenamento brasileiro prévio à Lei 11. 698/08 não reconhecia nem acolhia o compartilhamento da guarda a fim de garantir o direito da criança de conviver com os pais no caso de dissenso destes quanto àquela custódia. Para os que advogam o compartilhamento da guarda entre os pais, defendem-na, mesmo antes da publicação da nova Lei de Guarda (11.698/08), em função do melhor interesse do menor e de sua integral proteção, o direito à convivência familiar, assegurado pela Constituição Federal, já que para esses, a guarda compartilhada denota um efeito simbólico: reafirma a necessidade da criança poder estar — em disponibilidade —, tanto com a mãe como com o pai, reforçando em si sentimentos de inspiração e aceitação mútuas, tão importantes para a sua constituição psíquica. Pai ou mãe não guardião deixaria de exercer o papel de “visitante”, ato que não possibilita à família uma de suas mais significativas características: a intimidade do convívio. Há, ainda, quem avente a possibilidade da guarda alternada divisão simétrica do tempo e do espaço em que os pais exerceriam a custódia dos filhos. Observando as mudanças socioculturais em nossa sociedade e seus reflexos na questão da guarda, interessantes são as observações de Leila Maria Torraca Brito (2004, p. 360), Não se pode desprezar o fato de que, na sociedade ocidental, os estudos iniciais sobre a relação materno-infantil indicavam que as mulheres seriam portadoras do instinto materno, determinismo biológico que fixava lugares e atribuições e forjava estereótipos. Definia-se, ainda, que só a expressão do amor materno saberia dosar os cuidados e carinhos necessários ao adequado desenvolvimento infantil. Quanto aos homens, eram preparados para zelar pela honra da família, ao mesmo tempo em que eram afastados das tarefas domésticas. Como demonstram os estudos sobre gênero, as desigualdades em relação aos direitos e deveres entre homens e mulheres eram naturalizadas e legitimadas culturalmente. Dessa forma, a fiscalização, prevista inicialmente na legislação como prerrogativa do pai visitante, 13 retratava o mesmo como figura de autoridade, afastado do contexto diário com os filhos e a quem caberia avaliar o desempenho da ex-mulher na promoção do desenvolvimento infantil. Hoje, percebe-se que o significado do nascimento engloba, além do nascimento de um filho, o nascimento dos genitores nos lugares estruturais de pai e mãe, papéis que aprendemos a desempenhar. Tal condição pode ser enfraquecida, porém, quando a educação da criança passa a ser encaminhada, prioritariamente, pelo genitor responsável pela guarda. Atribuir ao genitor classificado como visitante o lugar prioritário de fiscal contraria as indicações atuais tanto dos documentos internacionais quanto das Ciências Humanas, que recomendam uma ampla aproximação e participação de ambos os pais no desenvolvimento dos filhos, sendo que o lugar e as funções dos genitores devem ser referendados pelos textos jurídicos. Observa-se, dessa forma, a existência de uma dinâmica social e, em virtude disto,l novos quadros se desenham, e as leis tendem a se adaptar a nova caminhada social. Diante deste cenário surge a indagação: quais são os mecanismos que o Direito dispõe para possibilitar a fixação da guarda de modo mais adequado aos interesses do menor? Responder a essa pergunta é o objeto dessa dissertação que se justifica em função dos critérios de interpretação e aplicação do Direito. A partir de investigações e posicionamentos da doutrina, da jurisprudência e da das próprias leis, consideram- se os princípios que salvaguardam os interesses do menor, e que convergem em pensar a criança como sujeito, que tem desejos, prerrogativas, direitos e deveres, e não como objeto de manipulação dos que os cercam. Propõe-se, também, a demonstrar em que medida há necessidade da manutenção ou não dos laços de convivência entre os pais e seus filhos após a separação, divórcio, dissolução da união estável e, ainda, sobre os filhos nascidos de relações casuais ou acidentais, em que não houve um consenso sobre com quem permanecerão os filhos. 14 . PROBLEMATIZAÇÃO Para tratar do problema suscitado pelo presente trabalho, referente ao estudo dos mecanismos jurídicos de hermenêutica e aplicação do Direito a fim de fundamentar a decisão que definirá a guarda unilateral ou compartilhada ou mesmo alternada, é preciso que sejam analisados alguns princípios jurídicos que circundam o tema. Há que se desvelar o alcance e sentido de expressões e princípios que norteiam as relações do direito de família, tais como: o melhor interesse do menor, a proteção integral, o poder familiar, a maternidade e a paternidade responsáveis, o direito de convivência, a isonomia de gêneros, alicerces para melhor compreensão e solução de conflitos dessa natureza. Essas acepções precisam ser entendidas desde os seus sentidos mais específicos até os mais latos, para que se possa estudar o assunto com maior precisão e mais segurança epistemológica, pois a análise da guarda exorta o observador a conhecer determinadas variáveis do direito, numa compreensão que perpassa, interdisciplinarmente, pela psicologia, psiquiatria, sociologia e outras ciências afins. O princípio do melhor interesse da criança que traz a Constituição Federal - CF em seu art. 2273, e o Código Civil, sobretudo nos seus arts. 1.583 e 1.584, e o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente em vários de seus dispositivos, é informador no sentido de que pode o magistrado conceder a guarda a um ou a ambos os pais, ou ainda a um terceiro, de modo que seja garantida a integridade física e psicológica do menor como precisamente, afirma Rosana Fachin (2005, p. 125): O melhor interesse da criança descreve-se como sendo aqueles essenciais cuidados para viver com saúde, incluindo física, emocional e intelectual, cujos interesses, inicialmente, são dos pais, mas que, se negligenciados, o Estado deve intervir. De acordo com a Constituição, o modelo institucional de família é atenuado para residir na relação entre pais e filhos o poder paternal que está centrado na idéia de proteção. A paridade de direitos e deveres tanto do pai quanto da mãe está em assegurar aos filhos todos os 3 Art. 227 da CF – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 15 cuidados necessários para o desenvolver de suas potencialidades para a educação, formação moral e profissional, revelando a transformação e a revalorização de cada um de seus componentes. Já o poder familiar é formado sobre novos conteúdos e significados inseridos na isonomia de gêneros de que trata o art. 226, § 5º 4, da Constituição Federal e os arts. 1.6305 e seguintes do Código Civil, que não deve ser entendido como fonte de força acintosa, exercida pelos pais, para revelar a igualdade de suas potencialidades no disputado comando da família, mas como poder familiar que tem sentido se for tradutor de uma relação familiar interativa entre pais e filhos. Lançando mão de uma perspectiva histórica, remetendo-se ao ambientegreco-romano para, em seguida, contextualizar poder familiar na atualidade, Caio Mário da Silva Pereira (2005, p. 417 e 421) acentua: No direito antigo, a estrutura autocrática da família, alicerçada no princípio da autoridade, constitui na noção de pátrio poder em termos rígidos e severos. A tendência foi forçosamente a consagração da bilateralidade nas relações pais-filhos, a atribuição do poder parental a ambos os pais e a predominância dos deveres e do sentido de proteção e defesa dos interesses do menor sobre toda a idéia de prerrogativa paterna ou de direito dos pais sobre os filhos. Por isso mesmo, as definições tradicionais se desprestigiam, por acentuarem um lado apenas da relação jurídica. Daí, dizemos nós, fixando o conceito deste instituto após a Carta de 1988 compreendendo: ‘complexo de direitos e deveres quanto à pessoa e bens do filho, exercidos pelos pais na mais estreita colaboração, e em igualdade de condições’. Não pode também o intérprete, para a definição da guarda, perder de vista o princípio responsável, da paternidade e da maternidade, que vincula os pais aos filhos menores, fazendo aqueles responderem pelos danos que causam a estes e bem assim por danos que os próprios filhos causem a terceiros. Segundo Vieira (2004, p 47-48), devem os genitores, solteiros, casados, separados, divorciados ou viúvos, ter a exata consciência de seu mister como pais e educadores de cidadãos do futuro, sendo certo que atos por eles praticados poderão gerar graves prejuízos em face dos filhos. 4 Art. 226, § 5º, da CF: Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. 5 Art. 1 630 do CC: Os filhos estão sujeitos ao poder familiar enquanto menores. 16 A guarda dos filhos menores, quando da ruptura familiar, até antes do advento da Lei 11.698/08, foi decidida, de ordinário, segundo a adoção de critério interpretativo literal do art. 1.5846, caput, do Código Civil, que, com antiga redação já revogada, pugnaria pela guarda unilateral. É preciso também ter em vista que o tema deve ser contextualizado com os princípios que alicerçam o direito de convivência do menor, consagrados na legislação constitucional e infraconstitucional, que deve ser interpretado e efetivado com o auxílio interdisciplinar de outras ciências sociais afins, principalmente considerando os diversos matizes e questionamentos que cercam os atores envolvidos — pais e filhos —, mas tendo a prole sempre como protagonista. Os pressupostos da guarda no ordenamento jurídico brasileiro, as suas modalidades e os critérios de racionalidade observados segundo os fatos da causa são aportes dos quais o juiz se vale para decidir qual dos consortes revela melhores condições de exercê-la, ou se ambos, concomitante ou alternativamente, podem fazê-lo no sentido de preservar o direito de convivência familiar (art. 227 da Constituição Federal). Esta escolha reclama, todavia, uma percepção mais ampla do julgador quanto à subjetividade dos envolvidos, exigindo-lhe um conjunto de informações que devem passar por abordagens multidisciplinares associados ao novo desenho constitucional do Direito de Família, sem o que a sua decisão estará desconectada da realidade a ser regulada. Por isso, rompendo as amarras das tradições, alguns intérpretes como Gustavo Tepedino (2004, p. 307) alerta para esses novos enfoques: Cuida-se, pois, de uma reconstrução das categorias do direito de família, renovado pelos valores existenciais, processo hermenêutico cuja importância avulta no exame da filiação. A relação parental, com efeito, e em particular a filiação, põe em evidência uma série de situações jurídicas existenciais incompatíveis com o tratamento dogmático tradicionalmente forjado nas relações patrimoniais. Ou seja, estudam-se com freqüência as 6 Art. 1.584 do CC: Decretada a separação ou o divórcio, sem que haja acordo entre as partes quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la (texto alterado pela Lei 11.698/08). 17 relações entre pais e filhos a partir da estrutura do direito subjetivo, categoria típica dos direitos patrimoniais e, por isso mesmo, inapto a servir de paradigma para as situações jurídicas existenciais que medeiam o reconhecimento da filiação e a educação dos filhos como processo destinado à afirmação e ao desenvolvimento da personalidade. Por isso, deve-se visualizar em que medida os mecanismos de instrução processual, as técnicas de interpretação e de efetivação da decisão hoje disponíveis oferecem ao juiz os elementos necessários à adequada resolução dos problemas que envolvem a custódia dos filhos menores. Não é difícil constatar que a maioria das decisões judiciais, ao tornar unilateral a guarda o faz em direção da mãe, conforme se observará no percorrer deste trabalho, subestimando a figura paterna. A um só tempo, essas decisões criam um distanciamento dos filhos em relação ao pai, pois imprime a este a perda da reciprocidade do afeto ante a ausência do convívio. Isto pode ser reflexo de uma cultura pigmentada ainda com resquícios do patriarcado porque, quando se enaltece o papel da mulher na família, nem sempre é para notabilizá-la, mas, nas entrelinhas, para circunscrevê-la às prendas e muros domésticos. Para um esclarecimento epistemológico, há de se fazer quanto ao modo usual de fixação judicial da guarda do menor de forma disjuntiva ou conjunta ou alternada, aferido pelo julgador que nem sempre dispõe, numa perspectiva interdisciplinar, de ferramentas adequadas para decidir. Como se trata de questão multifacetada, a sua abordagem exige a apuração também do contexto sócio-antropológico e suas conseqüências sobre a estrutura psicológica do menor e dos pais, fundamentos que o juiz, isoladamente, a partir apenas dos seus conhecimentos jurídico-dogmáticos não alcança. É em nome da proteção integral ao melhor interesse da criança, observado inclusive por uma ótica interdisciplinar, também na crença de uma instrução processual e em técnicas de decisão que possibilitem essa concepção e, ainda, firme em critérios mais eqüitativos para se determinar o presente e o futuro de um sujeito (ainda) em formação, que se estabelece o fio condutor deste trabalho. 18 Com atenção voltada para essa realidade, em que se trabalha com relações jurídicas, sentimentos, emoções, inserções culturais e psíquicas, não se pode negar que a Constituição Federal trouxe ao Direito de Família uma nova tábua axiológica, vertendo seu eixo para a preservação e valorização da pessoa. Com isso, exige-se dos intérpretes do Direito uma releitura dos conceitos do Código Civil, do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código de Processo Civil postos à luz da própria Constituição. Este é o encaminhamento para o trato dos interesses e conflitos no núcleo familiar. João Batista Villela (1980, p. 132) denomina de “intinerário da liberdade” essa mudança da família, em razão do aprofundamento afetivo ocorrido no interior do grupo que lhe deu novo rosto. Tornou-se um canon, na contemporaneidade, sustentar que a família vem sendo moldada sob novos paradigmas, passando a ser o principal locus de construção da realização pessoal de seus membros. Como decorrência dessas mudanças, em contraposição a um quadro outrora pincelado com as linhas do domínio autoritário e ensimesmado dos pais, o menor passou a ser o ponto central da entidade familiar, o seu “novo interlocutor” (PERLINGIERI, 1997, p. 244), e isto com efeitos concretos e importantes nas nossas Leis e nosso Direito, no modo de interpretá-los e de aplicá-los. Não é sem razão que o Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA destaca o valor intrínseco do menor como ser humano e a necessidade de especial respeito a sua condição de pessoa em desenvolvimento. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de 1989, que serviu de fonte inspiradora ao ECA, ressalta, como se constatará mais adiante, a importância da manutenção e continuidade dos laços familiares da criança e ascendente, a fim de preservar o seu bem-estar. Os pais, mesmo que separados pelos seus próprios conflitos, têm o dever de preservar tais laços com os filhos, vínculos que são pilares de vida da pessoa. Todavia, situações poderão ocorrer em que a continuidade da convivência com um ou ambos os pais será nefasta para a boa formação psicofísica da criança, e nesses casos, a decisão sobre a guarda deverá contemplar outras possíveis variáveis, incluindo-se, até mesmo, a hipótese do menor ficar sob a custódia do Estado. 19 Os operadores do direito, principalmente os juízes, porque têm o poder de decisão, por mais que queiram, não estão habilitados a compreender sozinhos as relações familiares, dado sua complexidade. Devem ser analisados os aspectos jurídicos e afetivos dos filhos, que necessitam de proteção a seus direitos e de acompanhamento quotidiano com orientação, equilíbrio e amor. Sem se considerar essa conjuntura não se pode pensar em julgamento justo. Em uma perspectiva de ampliação e fortalecimento do princípio da paternidade/maternidade responsável, é necessário que os aplicadores do Direito busquem sempre o auxílio dos valores sociais e da dignidade pessoal previstos na Constituição, como elos estruturantes da personalidade, da família e da cidadania. O Direito, como uma das ciências sistematizadoras das relações intersubjetivas, precisa abarcar para si elementos colhidos da interdisciplinaridade da cultura humana, com vistas a contribuir para melhor aparelhar advogados, promotores e juízes no trato das questões que envolvem a guarda de crianças e adolescentes. A atividade jurisdicional deve considerar a subjetividade de cada um, moldando-a aos ajustes sociais/normatizantes que forem adequados. A melhor interpretação da Lei será aquela realizada por esse prisma, pois em derredor do Direito gravitam outras ciências sociais de suma importância para a compreensão e solução dos conflitos de família. Não se devem decidir essas questões de modo isolado, afinal, nada é sozinho, senão é nada. O ECA ,entretanto, já sinaliza nessa direção. Num primeiro momento, ressalta o dever dos pais (arts. 4º7 e 198) — dos dois, portanto —, de conviverem com os filhos, sem excepcioná-la no pós-separação, desde que a convivência seja salutar ao desenvolvimento infantil. A lei 11.698/08 trouxe para o Código Civil concreta manifestação do direito de convivência familiar, ao tornar pragmática a guarda 7 art. 4º do ECA: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público, assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. 8 Art. 19 do ECA: Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família, e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. 20 conjunta como regra geral do pós-separação em seu art. 1.584, § 2º 9. Conviver em família é um direito mútuo e recíproco de todos que integram esse núcleo. Além do mais, também não foram esquecidos pelo ECA (art. 15110) e pela nova Lei de Guarda (art. 1.584, § 3º 11) os insumos da interdisciplinaridade para o trato da questão, de modo a contribuir para que a prática forense possa conjugar princípios do direito, da psicologia, da sociologia e da antropologia em direção à construção de um ser humano melhor. Esses trabalhos instrumentam o juiz durante todo o processo, prestando-lhe auxílio indispensável para compor os fundamentos da decisão judicial. Ainda no campo das inovações processuais trazidas pelo ECA, há a inédita possibilidade do próprio juiz re-decidir o mérito do que acabou de sentenciar (art. 198, VII 12), o que se traduz numa importante exceção à regra geral do esgotamento da atividade cognitiva prevista no art. 463 13 do Código de Processo Civil. De seu turno, a Lei 11.698/08 conferiu amplos poderes ao juiz para deferir, inclusive ex officio, a concessão da guarda em atenção às necessidades prementes do menor (art. 1.584, inc. II14), o que é um aspecto importante na outorga de tutela protetiva da criança/adolescente. O que se pode notar é que o ECA e o Código Civil estão atentos à nova realidade jurisdicional, que exige que a decisão proferida pelo Juiz possa ser edificada também sobre os vários alicerces do saber humano e que esse Magistrado deve ser 9 Art. 1.584, § 2º, do CC: Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: § 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada. 10 Art. 151 do ECA: Compete à equipe interpessoal, dentre outras atribuições que lhes forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação da autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico. 11 Art. 1.584, § 3º, do CC: § 3º Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar 12 Art. 198, VII, do ECA: VII – antes de determinar a remessa dos autos à instância superior, no caso de apelação ou de instrumento, no caso de agravo, a autoridade judiciária proferirá despacho fundamentado, mantendo ou reformando a decisão, no prazo de cinco dias. 13 Art. 463 do CPC: Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la: I – para corrigir, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais, ou lhes retificar erro de cálculos; II – por meio de embargos de declaração. 14 Art; 1.584,II: A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser: II - decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. 21 detentor de maiores poderes, a serem utilizados na direção do melhor interesse infanto-juvenil. Numa ordem seqüencial, pode-se afirmar que o indivíduo integra a família, que, de sua vez, compõe a coletividade como seu elemento estruturador. A boa formação da criança, nessa cadeia indivíduo>família>sociedade, é, portanto, essencial à harmonia das relações sociais. Daí porque a Constituição de 1988 foi tão incisiva ao dispor que a família é base da sociedade (art. 22615) e que é dever da família, da sociedade e do Estado — e aí seguramente está incluído o juiz com as decisões que produz —, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, caput). A família é o maior dos fenômenoshumanos de coexistência e suas relações devem ser interpretadas num amplo contexto. Luis Edson Fachin (2003, p. 14-15), com inegável sensibilidade, diz: A família, como fato cultural, está antes do Direito e nas entrelinhas do sistema jurídico. Mais que fotos nas paredes, quadros de sentido, possibilidades de convivência, na cultura, na história; prévia a Códigos e posteriores a emoldurações. No universo jurídico, trata-se mais de um modelo de família e de seus direitos. Vê-la tão só na percepção jurídica do Direito de Família é olhar menos que a ponta de um iceberg. Antecede, sucede e transcende o jurídico, a família como fato e fenômeno. Como fenômeno que habita as divisas do Direito, mas que também vasa as suas fronteiras, não pode, sob nenhum argumento, ser visto apenas pelos olhos de quem vê a literalidade da Lei. Reclama que o exegeta tenha braços mais longos para manusear outros ramos do saber humano, em cooperação constante. O juiz tem o dever, pela letra da Constituição, de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à saúde, inclusive psíquica; à 15 Art. 226 da CF: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. 22 educação, também em seu sentido mais lato de cidadania; ao lazer, como possibilidade de dar asas às brincadeiras que os colocam em estado de felicidade; à cultura, que informa e projeta; à dignidade, que os faz respeitar o próximo e por ele serem respeitados; e, por derradeiro, à convivência familiar que proporciona à criança/adolescente e a seus pais o aprendizado recíproco do afeto e generosidade. Esse juiz, que tem sobre os ombros o dever/função de assegurar todos esses direitos, não tem como fazê-lo sozinho, com o respaldo apenas no seu conhecimento jurídico que carreou das leis. . OBJETIVOS Analisam-se em que medida os operadores do direito, em especial o juiz, dispõem, com fundamentação jurídica e sustentada por uma visão interdisciplinar, de critérios e mecanismos adequados para a definição da guarda unilateral, ou da compartilhada, ou da alternada dos filhos. Faz-se necessária, desse modo, a utilização de mecanismos processuais com vistas a proporcionar uma instrução multidisciplinar da demanda; a implementação de critérios sistemático e zetético de interpretação da norma, aí considerados os princípios e valores constantes da Constituição; e, ainda, a efetivação das decisões judiciais embasada nas novas técnicas do cumprimento de tutelas específicas. 23 1. CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UM OLHAR PARA O PASSADO Até por volta dos Séculos XVIII e XIX, os adultos não olhavam as crianças com os olhos da atualidade. A sociedade, de um modo geral, não lhes dispensava a devida atenção em termos de políticas públicas com adequações específicas, estabelecidas a partir das carências infantis e voltadas para o seu bem-estar, porque pessoas em formação. O Estado, mais especialmente, não desenvolvia mecanismos jurídico- sociais de proteção aos interesses da sua população de crianças e adolescentes, capazes de resguardá-los de todo modo de abusos, discriminações e violências, inclusive dentro do seio da própria família. Aliás, a família — os pais, mais notadamente —, detinha o exclusivo poder sobre os destinos e educação dos filhos, bem como de seus modos de viver e de ser, ainda que isto implicasse em cerceio às suas aptidões psíquicas, morais ou físicas, utilizando, muitas vezes, meios cruéis, constrangedores e opressores. O núcleo familiar não deixava espaço para atuação institucional externa e, assim, as primeiras investidas do Estado deparavam-se nos muros domésticos, instransponíveis, servis aos excessos dos pais. A estrutura familiar no Império Romano (750 a.c a 450 d.c), que se propagou no tempo e por grande parte do ocidente, é aqui tomada como referência histórica porque moldou o direito de família ocidental, deixando ainda enorme legado para as normas que regem a família na contemporaneidade, não só nos países de origem latina e integrantes do chamado sistema civil law, isto é, aquelas nações que mantiveram o sistema romano onde a lei é a principal fonte do Direito, mas também nos países de origem anglo-saxônica, que adotaram o método common law, no qual o Direito se origina na lei, nos costumes sociais e é também construído pelos próprios tribunais. Seja como for, o esboço normativo que hoje regula as relações de família tem assento no Império Romano. Analisando o perfil do núcleo familiar em Roma antiga, Ricardo Pereira Lira (1997, p. 87) comenta: 24 O pater familias era o chefe absoluto, sacerdote incumbido de oficiar a veneração dos penates, deuses domésticos. Como chefe do grupo familiar, excedente do poder marital, tinha direitos absolutos sobre a mulher e os filhos, inclusive com direito de vida e morte sobre os últimos, decorrente do jus vitae necisque. O pater familias era titular do jus noxae dandi, consistente no abandono reparatório do filho em favor da vítima que houvesse sofrido prejuízo com a prática pelo filho de um ilícito privado. Podia exercer também o jus vendendi, que era a faculdade de alienar o filho, mediante o mancipatio, a outro pater familias. Subespécie do jus vitae necisque era o jus exponendi, faculdade do pater familias de abandonar o filho recém-nascido ao seu destino. Ter o direito de matar um filho ou de abandoná-lo ou de vendê-lo era, no contexto, algo inerente à condição paterna. Que significado tinha a criança/adolescente para o adulto de então? Não obstante o contexto, compreender essa relação entre pais e filhos estabelecida no Império Romano exige uma análise que dê conta de sua complexidade, sobretudo quando se investiga o papel da criança desde então até o final de Idade Média. Observando a criança e em seu entorno,a partir do que a arte medieval retratou do cotidiano das pessoas na Europa, num período compreendido entre os séculos XI até XV, Philipe Ariès (1981, p.51: p. 55) constata que a criança não tinha significação expressiva para a sociedade. A arte refletia, assim, o descaso dos adultos em relação às crianças e adolescentes. {...} a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo. Não se pensava como normalmente acreditamos hoje, que a criança já contivesse a personalidade de um homem. Elas morriam em grande número. Consta que durante muito tempo se conservou no País Basco, o hábito de se enterrar em casa, no jardim, a criança morta sem batismo. Talvez houvesse aí uma sobrevivência de ritos muito antigos, de oferendas sacrificiais. Ou será que simplesmente as crianças mortas muito cedo eram enterradas em qualquer lugar, como hoje se enterra um animal doméstico, um gato ou um cachorro?16 16 Philippe Ariès analisa algumas gravuras do XI a XIII e relata: “Uma miniatura otoniana do século XI nos dá uma idéia impressionante da deformação que o artista impunha então aos corpos das crianças, num sentido que nos parece muito distante do nosso sentimento e da nossa visão. O tema é uma cena do Evangelho em que Jesus pede que se deixe vir a ele as criancinhas, sendo o texto latino claro: parvuli. Ora, o miniaturista agrupou em torno de Jesus oito verdadeiros homens, sem nenhuma das características da infância: eles foram simplesmente reproduzidos numa escala menor. Apenas seus tamanhos os distinguem dos adultos. Numa miniatura francesa do século XI, as três crianças que São Nicolau ressuscitou estão representadas numa escala mais reduzida que os adultos,sem nenhuma diferença de expressão ou de traços. O pintor não hesitava em dar à nudez das crianças, nos raríssimos casos em que era exposta, a musculatura do adulto: assim, no livro de salmos de São Luiz de Leyde, datado do fim do século XII ou do início do século XIII, Ismael, pouco depois de seu nascimento, tem os músculos abdominais e peitorais de um homem. Embora exibisse mais sentimento ao retratar a infância, o século XIII continuou fiel a esse procedimento”. 25 Se se interpretar a suspeita de Àries a respeito dos costumes medievais como indiferença dos adultos em relação às crianças e o hermetismo da família em face da sociedade e do próprio Estado, pode-se ter como hipótese que o mundo medieval proporciona um domínio absoluto dos pais sobre seus filhos e, mais especificamente, um poder desmedido do próprio pai sobre a prole. Isto é verificado não só na Europa dominada tantos séculos pelos romanos, mas também em outros povos, mesmo já por volta do século XVIII, como constata Göran Therborn (2006, p. 31): Em algumas sociedades, particularmente nas africanas, mas, em princípio, também na China imperial, o poder patriarcal era o poder supremo e elaboraram-se práticas religiosas para veneração dos ancestrais e para o contato com seus espíritos. As regras do confucionismo ortodoxo, mais precisamente os códigos penais da China imperial, colocavam o dever filial acima da lealdade ao Estado e às suas Leis, de modo a, de forma explícita, endossar ou permitir, respectivamente, a cobertura dos crimes cometidos pelos pais ou por outro membro graduado da família. As primeiras manifestações a dedicar proteção às pessoas com hipossuficiência psicofísica de convivência desenvolvem-se lentamente e ainda que de forma apenas embrionária, na Inglaterra, por volta do século XIV, através do regime do parens patriae, que era concebido como a autoridade herdada da família pelo Estado, em situações muito singulares e que não se aplicavam aos filhos menores, para atuar como guardião de um indivíduo com limitação de sua capacidade jurídica, tal é o relato de Tânia Pereira (2000, p. 2-3), em prospecção histórica da obra de Daniel B. Griffith. Mas, só a partir do século XVIII que as Cortes de Chancelaria inglesas passaram, no contexto do parens patriae, a distinguir as crianças daquelas outras pessoas portadoras de determinadas limitações, como os loucos ou os pródigos. Desta época consta, segundo a referida autora acima, a primeira decisão judicial, ainda que isolada, em que o interesse do menor é exaltado a um patamar em que se sobrepõe aos interesses dos próprios pais. É o tímido limiar de uma era em que os poderes constituídos passam a intervir na órbita familiar para resguardar interesses da prole, conforme afirma: 26 A criança era considerada uma coisa pertencente a seu pai (thing to be owned). Era predominante a preferência da custódia para o pai, sem que se importasse com as conseqüências dela decorrentes. Griffith, referindo-se às origens históricas do parens patriae, reporta-se ao caso Finlay versus Finlay, julgado pelo Juiz Cardozo, em que ficou ressalvado que, ao exercitar o parens patriae, a preocupação não deveria ser a controvérsia entre as partes adversas e nem mesmo compor as diferenças entre elas. O bem- estar da criança deveria se sobrepor aos direitos de cada um dos pais. Dois julgados do Juiz Lord Mansfield, em 1763, envolvendo medidas semelhantes ao nosso procedimento de ‘busca de apreensão do menor’, identificados como o caso Rex versus Delaval e o caso Blissets, são conhecidos no Direito Costumeiro inglês como os precedentes que consideraram a primazia do interesse da criança e o que era mais próprio para ela. Somente em 1836, porém, este princípio tornou-se efetivo na Inglaterra. Esses são os primeiros movimentos político-sociais, ainda incipientes, na direção de se começar a reconhecer na criança um sujeito de direito. Eram os passos iniciais no caminho de se ver a criança como titular do direito à sua proteção psicofísica pela família, pela sociedade e pelo Estado. 1.1 Regramentos jurídicos brasileiros até o Código de Menores de 1979 Antes do rei D. João VI desembarcar no Brasil, em 1808, estava em vigências as Ordenações Filipinas, uma legislação imposta pela Coroa portuguesa, criada pela dinastia dos Felipe, reis espanhóis que governaram Portugal entre os anos de 1580 a 1640. Essas Ordenações retratavam com fidedignidade o tratamento que era dispensado às crianças e aos adolescentes brasileiros até o início do século XIX, o que nos impele a significar, para a nossa realidade, as observações de Ariès sobre a infância pincelada pela arte da Idade Média. Em seus estudos sobre a história da responsabilidade penal do menor no Brasil, Janine Borges Soares (2007, p. 40) constata: De acordo com as Ordenações Filipinas, a imputabilidade penal iniciava-se aos sete anos, eximindo-se o menor da pena de morte e concedendo-lhe 27 redução da pena. Entre dezessete e vinte e um anos havia um sistema de ‘jovem adulto’, o qual poderia até mesmo ser condenado à morte, ou, dependendo de certas circunstâncias, ter sua pena diminuída. A imputabilidade penal plena ficava para maiores de vinte e um anos. Antes de 1830, quando foi publicado o primeiro Código Penal do Brasil, as crianças e os jovens eram severamente punidos, sem muita diferenciação quanto aos adultos, a despeito do fato de que a menor idade constituísse um atenuante à pena. A adolescência confundia-se com a infância, que terminava em torno dos sete anos de idade, quando iniciava, sem transição, a idade adulta. Observa-se que não se distinguia praticamente a criança do adulto naquilo que correspondia aos deveres deste e suas respectivas sanções pelo não cumprimento. O menor era, sobretudo, um ser de deveres, como se pudesse discernir entre o certo e o errado; entre o possível e o não permitido. A criança era punida quase com que se adulto fosse. Não havia diferenças significativas. É como se o ser humano (ainda) em formação fosse o ser humano (já) formado ou como se a punição excessiva fosse exemplar e profilática. O que levaria a sociedade de então a punir com reclusão a criança que cometesse um “crime” aos sete anos de vida? Que espécie de “crime” seria esse? O Código Penal do império, de 1830, e também o primeiro Código Penal da era republicana, de 1890 foram inspirados pelo que se chamou da “Doutrina do Direito Penal do Menor”, preocupavam-se especialmente com a delinqüência infanto-juvenil e baseavam a imputabilidade na pesquisa do discernimento, em que se atribuía ao Juiz a competência para determinar o grau de esclarecimento do infrator quanto à menor ou maior gravidade do ato que tivera praticado. O art. 13 do Código, de 1830 autorizava o juiz punir a criança com menos de quatorze anos de idade, com pena de reclusão, nos seguintes termos: Art. 13 – Se se provar que os menores de quatorze anos, que tiverem cometido crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos às casas de correcção, pelo tempo que ao juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda a idade de dezesete annos. Assim, segundo Liborni Siqueira (1979, p. 32), cabia ao magistrado verificar se o jovem era ou não capaz de dolo e, para tal fim, levaria em conta a sua vida 28 pregressa, seu modo de pensar, sua linguagem, não justificando basear-se apenas numa razão, obrigando-o a pesquisar um conjunto de elementos informadores. Vivia-se no Brasil dessa época, ainda uma era de mecanismos excessivos e, às vezes, cruéis de punição, quando, ao redor do mundo, outros países do continente europeu já acenavam com novas formas de repressão institucionalizada. Era preciso, então,distinguir o punido do punidor: este, quando voraz e selvagem, se igualava, aos olhos da modernidade, ao criminoso a ser punido. A sociedade reclamava humanização na aplicação da pena. O esquartejamento público, a fogueira que ardia nos corpos dos condenados, o ferro em brasa que lhes deformavam as faces, a castração, etc., etc., vão cedendo espaço a outros modos de punição. Michel Foucault (2003, p. 12) investiga esse momento da história, ao que denomina de nova justificação moral e política do direito de punir, revelando: No fim do século XVIII e começo do século XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de punição vai-se extinguindo. Nessa transformação misturam-se dois processos. Não tiveram nem a mesma cronologia nem as mesmas razões de ser. De um lado, a supressão do espetáculo punitivo. O cerimonial da pena vai sendo obliterado e passa a ser apenas um novo ato de procedimento e ou de administração. A confissão pública dos crimes tinha sido abolida na França pela primeira vez em 1791, depois novamente em 1830 após ter sido restabelecida por um breve tempo; o pelourinho foi supresso em 1789; a Inglaterra aboliu-o em 1837. As obras públicas que a Áustria, a Suíça e algumas províncias americanas, como a Pensilvânia, obrigavam a fazer em plena rua ou nas estradas — condenados com coleiras de ferro, em vestes multicores, grilhetas, trocando com o povo desafios, injúrias, zombarias, pancadas, sinais de rancor ou de cumplicidade — são eliminados mais ou menos em toda a parte no fim do século XVIII, ou na primeira metade do século XIX. O suplício de exposição do condenado foi mantido na França, até 1831, apesar das críticas violentas — ‘cena repugnante’, dizia Real; ela é finalmente abolida em abril de 1848. Quanto às cadeias, que arrastavam os condenados a serviços forçados através de toda a França, Brest e Toulon, foram substituídas em 1837 por decentes carruagens celulares, pintadas de preto. A punição, pouco a pouco, deixou de ser uma cena. E tudo que pudesse implicar em espetáculo desde então terá um cunho negativo; e como as funções da cerimônia penal deixavam de ser compreendidas, ficou a suspeita de que tal rito que dava um ‘fecho’ ao crime mantinha com ele afinidades espúrias; igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em selvageria, acostumando os espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vê- los afastados, mostrando-lhes a freqüência dos crimes, fazendo o carrasco se parecer com o criminoso, os juízes aos assassinos, invertendo no último momento os papéis, fazendo do suplicado um objeto de piedade e de admiração. 29 Se o mundo experimenta, na passagem pela Idade Contemporânea, novos modos de tratar seus criminosos, é provável que disso tenha também defluido as novas formas de tratamento diferenciado que se ensaiava para as crianças e adolescentes, no final do século XIX, distanciando-os dos adultos e remetendo esses menores, pouco a pouco, para um sistema jurídico protetivo, com regras que os reconhecem sujeitos titulares de direitos, não necessariamente os mesmo direitos dos adultos, mas outros, mais específicos, que se compadeciam de suas vulnerabilidades. A nossa primeira legislação dedicada exclusivamente à pessoa de menor idade (até 21 anos, então) foi o Código de Menores de 1927, também denominado de Código Mello de Mattos, instituído pelo Decreto Federal 17 943-A, de 12 de outubro de 1927, que, embora guardasse resquícios da legislação anterior (como a permissão para o trabalho de crianças maiores de 12 anos — art. 101, por exemplo), continha alguns elementos que se inspiravam em recentes documentos internacionais vigentes na ocasião, como a Declaração de Genebra, de 1924, que já estabelecia “a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial”. O referido Código ainda fundava-se na teoria do discernimento e na aplicação de processos repressivos, remanescentes do Brasil imperial, em vez da adoção de medidas socioeducativas (CARVALHO, 1977). Além de ser uma legislação de cunho autoritário, para Janine Borges Soares,(2006), simbolizava a intenção de controle das crianças e jovens, constituindo mecanismo de intervenção sobre a população pobre. Nesse momento constrói-se a categoria do “menor”, que, ainda, segundo a autora , referia-se à infância pobre e potencialmente perigosa, diferente do restante da infância. Muito embora se constituísse o Código de 1927 numa legislação autoritária, contemplava um aspecto relevante, na época, para a criança e o adolescente, consistente na possibilidade de intervenção do Estado no seio da família, para proteger os menores dos excessos e maltratos dos pais, como se constata do seu art. 26, VII e respectivas alíneas: Art. 26 – Consideram-se abandonados os menores de 18 annos: 30 VII, que, devido à crueldade, abuso de autoridade, negligência ou exploração dos Paes, tutor ou encarregado de sua guarda, sejam: a) victimas de máos tratos physicos habituaes ou castigos immoderados; b) privados habitualmente dos alimentos ou dos cuidados indispensáveis à saúde; c) empregados em ocupações prohibidas ou manifestamente contrarias à moral e aos bons costumes, ou que lhe ponham em risco a vida ou a saúde; d) excitados habitualmente para a gatunice, mendicidade ou libertinagem; Com o advento do novo Código de Menores, de 1979, o Brasil adotou a “Doutrina Jurídica da Situação Irregular”, mas essa legislação apresentava-se defasada em face de documentos internacionais (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969) e de outras legislações estrangeiras. Esse Código, nos termos do seu art. 1º, I, dispunha sobre a assistência, proteção e vigilância de menores que se encontrassem em situação irregular, isto é, praticantes de atos que infringissem, sobretudo, as leis criminais. Eis o teor do dispositivo: Art. 1º - Este Código dispõe sobre a assistência, proteção e vigilância de menores: I – até 18 (dezoito) anos de idade, que se encontrem em situação irregular. Em algumas situações, o referido Código de Menores estabelecia, relativamente aos processos judiciais, mecanismos que submetiam crianças e adolescentes ao mesmo tratamento dos adultos, em vez de legislar de modo diferenciado e específico a proteção infanto-juvenil. No seu art. 84, por exemplo, determina aquele diploma: Art. 84. A jurisdição de menores será exercida, em cada Comarca, por Juiz a quem se atribuam as garantias constitucionais da magistratura, especializado ou não, e, em segundo grau, pelo Conselho da Magistratura ou órgão Judiciário equivalente, conforme dispuser a Lei de Organização Judiciária. Jurisdição, como se sabe, é atribuição do Estado ao qual, através do juiz, cabe dirimir os conflitos interpessoais mediante aplicação impositiva do Direito, na busca do ideal de paz social. A jurisdição de menores representa, então, a atuação do 31 Estado para solucionar os conflitos de interesses que envolvam crianças e adolescentes e, como tal, seria mais efetiva se aplicada, diferentemente do que preconizou o Código, apenas por juízes especializados, com conhecimento apurado na área de sua competência, até porque, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos já exortava, antecedentemente àquele Código, medidas diferenciadas, com jurisdição especializada, para o tratamento da criança e do adolescente, com vistas à sua proteção integral, pela família, pela sociedade e pelo Estado. Nos seus arts. 5º, V, e 19 a citada Convenção estatuía: Art. 5º - Direito à integridade pessoal: V – Os menores, quando puderem ser processados, devem ser separados dos adultos e conduzidos a um tribunal especializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento. Art. 19 – Direitos da CriançaToda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte de sua família, da sociedade e do Estado. Márcio Marques (2000, p. 468) bem discorre sobre o período de vigência do Código de Menores no Brasil: No Brasil, o Código de Menores foi o instrumento mais poderoso na consolidação da chamada doutrina da situação irregular, esta instituída com foco estigmatizante, no mais das vezes, por se referir quase sempre àquele infanto-juvenil em situação de desajuste familiar, por questões principalmente de ordem econômica, alcançando notadamente meninas e meninos habitantes de rua, adictos ou de qualquer forma marginalizados, excluindo-os ainda mais do gozo dos direitos e garantias que teriam, se adultos fossem. O ‘paternalismo’ das instâncias com ações voltadas às crianças e adolescentes traduzia uma perspectiva de que a criança e o adolescente somente seriam conhecidos como objetos de medidas de proteção, em uma perspectiva tutelar, pelo que sua dimensão ôntica, como pessoa em desenvolvimento, era substituída por uma condição de receptor da prática assistencialista, como benesse, e, portanto, sem considerar seus direitos à convivência familiar e comunitária, à opinião, ao respeito e à dignidade. Esses são movimentos que a sociedade brasileira experimenta e vivencia até o advento da Constituição de 1988, diploma que significou um marco para o tratamento jurídico da criança e adolescente. 32 2. DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DO MELHOR INTERESSE DO MENOR: UM SUJEITO DE DIREITO. No decorrer do século XX, surgem documentos internacionais de defesa dos direitos humanos, como a Declaração de Genebra, de 1924, que passam a propugnar pela “necessidade de proclamar à criança uma proteção especial”. O mesmo teor é ratificado pela Declaração Universal de Direitos Humanos, das Nações Unidas, de 1948. Entretanto, só com a Declaração Universal de Direitos da Criança, de 1959, é que o menor passa a ser alvo de destaque como titular de direitos que preservam sua integridade como ser humano em sua completude, conforme exorta o seu Segundo Princípio: A criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidade e serviços, a serem estabelecidos em lei por outros meios, de modo que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança. Há um aspecto interessante: a Declaração Universal de Direitos da Criança destaca, pela primeira vez, num documento internacional voltado para os interesses da criança, a inserção da afetividade como direito seu e elemento essencial para a formação da sua personalidade. Neste sentido, o Sexto Princípio enuncia: A criança necessita de amor e compreensão, para o desenvolvimento pleno e harmonioso de sua personalidade; sempre que possível, deverá crescer com o amparo e sob a responsabilidade de seus pais, mas, em qualquer caso, em um ambiente de afeto e segurança moral e material; salvo circunstâncias excepcionais, não se deverá separar a criança de tenra idade de sua mãe. A sociedade e as autoridades públicas terão a obrigação de cuidar especialmente do menor abandonado ou daqueles que careçam de meios adequados de subsistência. Convém que se concedam subsídios governamentais, ou de outra espécie, para a manutenção dos filhos de famílias numerosas. 33 Vai-se desenhando, assim, nos textos legais, por volta de meados do século passado, o reconhecimento da criança como pessoa necessitada de cuidados especiais; um ser humano que é peculiar por sua própria condição de estar em desenvolvimento. Alguém que merece ser tratado com proteção compatível com a sua circunstância de ser hipossuficiente diante das demais pessoas. Em termos de eficácia dos documentos internacionais — vale esclarecer —, as Declarações contêm princípios que, embora possam inspirar as legislações dos países, não têm, todavia, caráter de obrigatoriedade para impor aos Estados que adotem e que cumpram o quanto nelas se contém. Somente as Convenções dispõem de regras que, adaptáveis às circunstâncias culturais de cada povo, devem ser recepcionadas e obedecidas pelas legislações dos chamados Estados-partes. Os países signatários de tratados internacionais se obrigam, através de suas próprias leis, a dar seguimento àquilo que prescrevem as Convenções. Em 1969, a Convenção Americana de Direitos Humanos, referendada pelo Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, dispôs, em seu art. 19, que “toda criança tem direito às medidas de proteção que sua condição de menor requer, por parte da família, da sociedade e do Estado”, diante do que os países partícipes daquele Pacto obrigaram-se a reproduzir, em seus textos legais, dispositivos que assegurassem a proteção integral capitulada na citada Convenção. Com atenção voltada exclusivamente para a criança, a Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, após um longo período de dez anos de discussões e amadurecimento de teses e propostas, aprova a sua Resolução nº L.44 e assim promulga o documento político-jurídico de grande relevância prática: a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, a qual, no seu art. 3º, dispõe expressamente que “todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”. Mais especificamente, com relação à garantia do direito de convivência familiar, prerrogativa da criança que se espraia nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, 34 aquela Convenção enuncia regras que impõem aos Estados-partes o dever de proporcionar, naquilo que for de suas competências, o convívio entre pais e filhos, como se vê do seu art. 9��� � Art. 9º. 1. Os Estados-partes deverão zelar para que a criança não seja separada dos pais contra a vontade dos mesmos, exceto quando, sujeita à revisão judicial, as autoridades competentes determinarem, em conformidade com a lei e com os procedimentos legais cabíveis, que tal separação é necessária ao interesse maior da criança. Tal determinação pode ser necessária em casos específicos, por exemplo, nos casos em que a criança sofre maus-tratos ou descuidos por parte de seus pais ou quando estes vivem separados e uma decisão deve ser tomada a respeito do local da residência da criança. 2. Caso seja adotado qualquer procedimento em conformidade com o estipulado no parágrafo primeiro do presente artigo, todas as partes interessadas terão a oportunidade de participar e de manifestar suas opiniões. 3. Os Estados-partes respeitarão o direito da criança que esteja separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos, a menos que isso seja contrário ao interesse da criança. Incrementam-se, por todo o mundo, a partir da segunda metade do século XX, as manifestações da sociedade, reveladas em textos legais, que indicam a necessidade de se disponibilizar mecanismos que dêem efetividade aos direitos que crianças e adolescentes foram vagarosamente conquistando a partir dos séculos XVIII e XIX. Já na fase final que antecedeu sua elaboração e mesmo antes de ter sido promulgada, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança trouxe significativa e determinante influência para Constituição brasileira de 1988 e, posteriormente, para o próprio ECA — Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Essa influência não se dásó pela obrigação protocolar diplomática do Brasil em referendar os ditames de uma Convenção que subscreve, mas responde também aos anseios da sociedade brasileira que também pugna pela criação e execução de políticas protetivas infantis. Nesse sentido, a Constituição Federal brasileira estabelece em seu art. 227 que: 35 Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. De igual modo, o ECA, que define como criança “a pessoa com até doze anos de idade incompletos, e adolescente, aquela entre doze e dezoito anos de idade” (art. 2º), estabelece normas protetivas que desdobram e regulamentam o enunciado pelo art. 227, da Constituição e pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança, , com ênfase no contido em seus arts.1º, 4º e 5º: Art. 1º - Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Mais especificamente, com relação à guarda de menores no pós-separação, o Código Civil manifesta regra protetiva dos filhos, em seu art. 1 583, § 1º (redação da Lei 11..698/08), ao estabelecer a responsabilidade conjunta dos pais, dispondo que “compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores, ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5º) e, por guarda compartilhada, a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres, do pai e da mãe, que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”. É por intermédio da Constituição Federal de 1988, que o Brasil, enfim, chancela a “Doutrina da Proteção Integral”, o que só se fez possível em face de um longo processo evolutivo da sociedade brasileira em derredor das questões que envolvem a criança e o adolescente. A família é conduzida para a Constituição em meio a debates, na sociedade e no Congresso constituinte, envolvendo entidades representativas dos interesses dos menores, das mulheres, parlamentares, juristas, 36 governo, judiciário, órgãos de classe, igrejas, etc.. Acolhiam-se também, assim, as orientações emanadas da Convenção Americana de Direitos Humanos (de 1969) e as teses e princípios que logo seriam referendadas pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989. O significado que a Constituição trouxe e trará para a família, e em particular para seus filhos menores, é algo que deve ser vivenciado e avaliado pela própria sociedade, com o passar do tempo. A letra da Lei, por si só, não é muito; pouco ou nada pode significar, se não for interpretada e aplicada com o sentido, no particular, de salvaguardar os interesses da criança e do adolescente. A Lei não basta por si mesma. Eros Grau (2006, p. 27; p. 82) enfatiza: Compreender é algo existencial, consubstanciando, destarte, experiência. O que se compreende, no caso da interpretação do direito, é algo — um ‘objeto’ — que não pode ser conhecido independentemente de um ‘sujeito’. As disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando – através e mediante a interpretação – são transformados em normas). Por isso as normas resultam da interpretação, e podemos dizer que elas, enquanto disposições, nada dizem – elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem. Não obstante, a Carta constitucional de 1988 representa um avanço. A criança e o adolescente que, desde os tempos mais remotos, foram tratados como objeto passivo de manipulação, passam a ser, com a promulgação da Constituição, sujeitos titulares de direitos fundamentais, que são um conjunto de direitos e garantias outorgados ao ser humano para protegê-lo do arbítrio de quem quer que seja, preservando sua integridade como pessoa e estabelecendo condições mínimas para viver e se desenvolver, tais como: o direito à vida, à dignidade, à honra, à liberdade, à igualdade social, à nacionalidade, à fraternidade, ao meio ambiente equilibrado, etc. Tal como os adultos, os menores incorporam uma série de possibilidades, prerrogativas e necessidades juridicamente protegidas. Porém, mais que os adultos, são alvo de proteção especial, dada a sua condição singular de pessoa em desenvolvimento, que os fazem mais frágeis e, portanto, destinatários de tratamento 37 desigual como tentativa de equalizá-los, em sua hipossuficiência, diante do restante da sociedade. A proteção integral é, em verdade, uma manifestação do princípio da isonomia de que fala a Constituição da República (art. 5º, caput17) e que proporciona igualdade de tratamento a todas as pessoas, independentemente de idade, credo, sexo, etnia, etc.. Proteção do menor que se realiza em duas mãos: de um lado, devem crianças e adolescentes, ser protegidos pela própria família, sociedade e Estado e, do outro, serem protegidas das omissões ou excessos da própria família, da sociedade e do Estado. A proteção integral está contida num conjunto de normas jurídicas que tanto exorta a família, sociedade e Estado a guarnecerem o menor, como, também,, reprime os atos desses mesmos agentes que possam ser-lhes prejudicial. Aliás, o ECA é bastante incisivo neste sentido: Art. 98 – As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados: I — por ação ou omissão da sociedade ou do Estado II — por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; Embora seja esse jovem, no campo das relações jurídicas, uma pessoa incapaz ou relativamente incapaz para exercer, por si mesmo, os atos da vida civil em sua plenitude, conforme limita o Código Civil, necessitando, pois, enquanto menor, de representação ou assistência de seus pais ou curadores para casar, vender, transacionar, renunciar, etc. isto não se lhe retira a titularidade de direitos que lhe seja específica, a fim de que possa exercer a sua cidadania no quadrante que lhe for possível como pessoa em construção de si própria. Gomes da Costa (1990, p. 39) acentua que, não obstante a sua incapacidade para os atos da vida jurídica, a condição de peculiar desenvolvimento do menor Não pode ser definida apenas a partir do que a criança não sabe, não tem condições e não é capaz. Cada fase do desenvolvimento deve ser reconhecida como revestida de singularidade e de completude relativa, ou seja, a criança e o adolescente não são seres inacabados, a caminho de uma plenitude a ser consumada na idade adulta, enquanto portadora de 17 Art. 5º, caput, da CF: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,[...] 38 responsabilidades pessoais, cívicas e produtivas plenas. Cada etapa é, à
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