Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Panorama histórico da classificação dos seres vivos e os grandes gruPos dentro da ProPosta atual de classificação 1 tóPico sônia godoy Bueno carvalho lopes fanly fungyi chow ho Licenciatura em ciências · USP/ Univesp 1.1 introdução 1.2 a primeira fase da história da classificação: o mundo macroscópico 1.3 a segunda fase da história da classificação: do microscópio de luz até as ideias de evolução das espécies 1.4 a terceira fase da história da classificação: do microscópio eletrônico ao sistema de cinco reinos 1.5 a quarta fase da história da classificação: biologia molecular e a proposta atual que será adotada na disciplina 2 Panorama histórico da classificação dos seres vivos e os grandes gruPos dentro da ProPosta atual de classificação 1 1.1 Introdução Conhecer e entender a diversidade de vida sempre foi e ainda é um desafio enfrentado pelos pesquisadores, e a história da classificação dos seres vivos é um reflexo dessa complexa tarefa. Antes de analisarmos essa história, vamos primeiramente fazer a distinção entre alguns termos que, apesar de semelhantes, possuem significados bastante distintos. Um sistema de classificação tem por objetivo separar objetos em grupos, seguindo um parâmetro arbitrariamente estabelecido. O parâmetro utilizado na antiguidade, por exemplo, era o de movimento: se o organismo não se move, é planta; se o organismo se move, é animal (Figura 1.1). Nesse tipo de sistema de classifi- cação, não se considera a evolução. Um sistema de classificação não tem como objetivo des- vendar a história evolutiva de um grupo de organismos, uma vez que nem precisa reconhecer que houve evolução! O objetivo de um sistema de classificação é simplesmente separar os organismos em grupos distintos para facilitar seu estudo. Esta organização se dá em geral a partir de parâmetros um tanto quanto arbitrários. É por isso que vemos, durante a história da biologia, diversas mudanças em relação à clas- sificação dos organismos, pois conforme nova informação é descoberta, novos parâmetros são utilizados para a classificação. Sabemos hoje, no entanto, que a evolução atuou na diversificação dos organismos e que todos os organismos vivos estão relacionados entre si. Dessa maneira, uma fundamental e fasci- nante área de estudo da biologia procura desvendar como os organismos estão relacionados e em quais tempos as separações de linhagens ocorreram. Esta área de estudo é a sistemática filogenética. Como tenta desvendar eventos históricos que já ocorreram, o produto do estudo da sistemática são reconstruções filogenéticas, em geral representadas na forma de uma árvore filogenética. A representação em forma de árvore é um tanto quanto fácil de compreender, pois estamos bastante acostumados a ver árvores genealógicas de famílias. O conceito de árvore filogenética é bastante semelhante, no entanto, a escala é em tempos muito maiores – milhares, dezenas de Figura 1.1: Um sistema de classificação simples pode funcionar a partir de um único parâmetro. No exemplo acima, como os golfinhos têm a capacidade de movimentação, são classificados como animais / Fonte: Cepa 3 vida e meio amBiente diversidade Biológica e filogenia licenciatura em ciências · usP/univesp milhares e, em alguns casos, milhões de anos. Adicionalmente, existem algumas convenções quanto à representação gráfica em árvores filogenéticas que iremos detalhar em outros tópicos. Ao tentar elucidar as relações evolutivas entre os grupos de organismos, as árvores resul- tantes podem ser utilizadas para gerar classificações que refletem os fenômenos evolutivos, classificações essas chamadas naturais, pois buscam refletir a organização natural das linhagens de organismos. A utilização de reconstruções filogenéticas para a construção de classificações é atualmente o método mais aceito. Porém, ao longo do tempo, muitos pesquisadores propuseram classifica- ções artificiais, ou seja, classificações que não refletem padrões evolutivos, mas se baseiam em outros tipos de parâmetros arbitrários. Isso pode parecer a princípio um contrassenso, mas o argumento utilizado pelos proponentes de sistemas não naturais é que o objetivo primordial de uma classificação é ser útil ao ser humano. Nesse caso, uma classificação deve separar organismos de maneira a facilitar seu estudo. Segundo os proponentes desse tipo de classificação, ao seguir o padrão evolutivo, a classificação se tornaria, por vezes, demasiado complicada ou até mesmo contraintuitiva. Essa visão é pouco favorecida pela grande maioria dos pesquisadores, mas tem ganhado força nas últimas décadas. Objetivos propostos Espera-se que o aluno compreenda: • o que é um sistema de classificação e qual o seu papel na classificação dos seres vivos; • o que é sistemática filogenética, explicada através de sua história, pontuando os principais pensadores por trás do desenvolvimento de cada fase. 1.2 A primeira fase da história da classificação: o mundo macroscópico A primeira fase da classificação dos seres vivos começou na Antiguidade, com o filósofo grego (384 - 322 a.C.), autor dos registros escritos mais antigos conhecidos sobre esse assunto e que datam do século 4 a.C. Nessa época, os naturalistas tinham ao seu dispor apenas os Agora é com você: Antes de começarmos nosso estudo, realize a atividade 1 online. 4 Panorama histórico da classificação dos seres vivos e os grandes gruPos dentro da ProPosta atual de classificação 1 seres que conseguiam distinguir a olho nu, pois não havia microscópios e o universo conhecido dos seres vivos era formado apenas pelos seres macroscópicos. Por meio de suas observações, Aristóteles reconheceu características comuns entre certos organismos e concluiu que todos os seres vivos poderiam ser organizados em uma escala ou hierarquia, desde características mais simples até as mais complexas. Reconheceu a dicotomia entre dois grandes grupos: o das plantas, seres que não se movem, e o dos animais, que se movem. Ele dedicou atenção especial ao estudo dos animais, publicando o Historia animalium (História dos animais), e descreveu cerca de 500 tipos diferentes de animais que ele chamava de espécie. Agrupava espécies em categorias como Aves e Mamíferos. Foi o primeiro a dividir os animais em vertebrados e invertebrados e já na época considerava baleia e morcego como mamíferos. Propôs os fundamentos para a organização da biologia em morfologia, sistemática, fisiologia, embriologia e etologia. Estudos mais detalhados das plantas na época foram feitos por um discípulo de Aristóteles, o filósofo (371 - 287 a.C.), que publicou dois importantes tratados em Botânica: Historia plantarum (História das plantas) e De causis plantarum (Sobre as causas das plantas). Teofrasto classificava os cerca de 500 tipos de plantas conhecidas com base no modo de cres- cimento (árvores, arbustos, subarbustos e ervas), presença ou não de espinhos e cultivo ou não pelo ser humano. Estudou as ervas medicinais, os tipos de madeira e seus usos. Essa primeira fase de classificação dos seres vivos em plantas e animais estendeu-se até mesmo depois da descoberta do microscópio de luz, quando um novo universo de seres vivos foi desvendado: os seres microscópicos. No entanto, o estudo desses micro-organismos acabou gerando a necessidade de novas classificações. 1.3 A segunda fase da história da classificação: do microscópio de luz até as ideias de evolução das espécies Essa fase começou por volta de 1665 e estendeu-se até cerca de 1940, portanto, por um período muito mais curto do que a primeira, que durou vários séculos. Apesar de curta, houve um grande avanço no estudo dos seres vivos. Em 1665, o cientista inglês descreveu a célula a partir de cortesfinos de cortiça observados ao microscópio de luz, mas foi com os trabalhos do holandês 5 vida e meio amBiente diversidade Biológica e filogenia licenciatura em ciências · usP/univesp que o estudo dos micro-organismos teve um grande salto. Leeuwenhoek produzia seus próprios microscópios, tanto as lentes como as partes de metal. Ele incansavelmente polia pequenas esferas de vidro por dias a fio, até atingirem o balanço perfeito entre aumento e claridade, de maneira que conseguia atingir aumentos de até 300 vezes, muito além dos aumentos produzidos pelas principais companhias de lentes da época. Atualmente, seria o equivalen- te, por exemplo, a produzir a sua própria câmera digital com resolução de 50 megapixels! Leeuwenhoek fazia observações com amostras do dia a dia, como raspas de placa dos seus próprios dentes, gotas d’água de chuva, vinagre etc. O mundo microscópico que encontrou era desconhecido da comunidade científica. Após fazer muitas observações, descrições e desenhos minuciosos, Leeuwenhoek (que não falava inglês) enviou uma carta com suas descobertas para a Sociedade Real de Londres, que inicialmente não acreditou em seus relatos. A Sociedade enviou um cientista à Delft, na Holanda, para a residência de Leeuwenhoek, para comprovar que os organis- mos descritos por ele realmente existiam. Após a confirmação pelo enviado, a Sociedade resolveu publicar, em 1676, os animálculos de Leeuwenhoek para serem vistos pelo mundo todo. Hoje se sabe que entre os organismos descritos por Leeuwenhoek havia tanto bactérias como unicelulares eucariontes, referidos na época como animálculos, pois podiam se movimentar, ou infusoria, pois encontravam-se somente em meios líquidos. Em pouco tempo, milhares de cientistas e micros- copistas amadores passaram a observar amostras em seus microscópios à procura desses intrigantes micro-organismos, o que levou à descrição de enorme variedade deles. Com a descrição de diversos tipos de micro-organismos e o aumento dos conhecimentos sobre os seres macroscópicos, surge o problema de como classificar a diversidade de espécies que estava sendo desvendada. O naturalista que trouxe as maiores contribuições nesse período, na sistematização do co- nhecimento sobre as espécies, foi o botânico, zoólogo e médico sueco (1707 - 1778). Sua obra mais famosa, Systema Naturae (Sistema Natural), foi publicada pela pri- meira vez em 1735, com apenas 10 páginas, refletindo o conhecimento da época e substituindo Figura 1.2: Ilustração de modelo de microscópio desenvolvido por Leeuwenhoek, e modo de utilização do microscópio / Fonte: Cepa Figura 1.3: Uma das ilustrações feitas por Leeuwenhoek, descrevendo alguns dos organismos que havia observado. Note que, neste caso, todos se referem à bactérias e não a unicelulares eucariontes / Fonte: Cepa 6 Panorama histórico da classificação dos seres vivos e os grandes gruPos dentro da ProPosta atual de classificação 1 as desajeitadas descrições usadas anteriormente por descrições concisas, simples e ordenadas. Essa obra teve várias edições, sendo a mais importante delas a décima edição, composta por dois volumes, o primeiro publicado em 1758 e o segundo em 1759. As edições da obra de Lineu podem ser encontradas na internet (http://biodiversitylibrary.org/page/728487#page/1/ mode/1up para a primeira edição e http://biodiversitylibrary.org/page/726878#page/79/ mode/1up para a décima edição). Lineu acreditava que os organismos eram criados por uma divindade com sua forma de- finitiva e que o número dos diferentes tipos de organismos era constante desde a criação do mundo. Esse era o pensamento criacionista que predominava na época em função da grande influência da Igreja em todos os setores da sociedade, inclusive nas ciências. O criacionismo está especificado na Bíblia pelo Livro da Gênesis. Segundo essa interpretação, os seres vivos são imutáveis, ou seja, não mudam ao longo do tempo, o que ficou conhecido como fixismo. Lineu agrupou todos os seres vivos em dois reinos: o Reino Animal e o Reino Vegetal. Além desses, considerava o Reino Mineral para os seres inanimados. Um aspecto interessante, que indica historicamente a falta de interesse nos micro-organis- mos, é que o próprio Lineu tinha uma visão bastante reducionista com relação aos animálculos. Ele reconheceu apenas um gênero (Volvox) com duas espécies na décima e última edição de seu Systema Naturae, para representar todas as linhagens de micro-organismos eucariontes conheci- das até então. Essa abordagem estava em desacordo com a diversidade, sendo descrita por outros pesquisadores contemporâneos à Lineu. Otto Friedrich Muller, por exemplo, em seu extensivo Animalcula Infusoria Fluviatilia et Marina, descreveu dezenas de gêneros e centenas de espécies, alguns ainda hoje válidos, como por exemplo, o gênero Paramecium. Nessa segunda fase da história da classificação, muitas propostas de classificação surgiram, mas o sistema de dois reinos de Lineu foi mantido por muito tempo. Nesse sistema, as plantas eram caracterizadas pela presença de parede celular, pela fotossíntese e por serem sésseis, possuindo estru- turas de fixação ao substrato, geralmente, filamentosas e reconhecidas como raízes ou semelhantes. Os animais eram caracterizados pelo fato de conseguirem se locomover em busca de abrigo, de alimento ou para fugir de predadores, por não fazerem fotossíntese e não possuírem parede celular. Nessa época, bactérias eram consideradas plantas por possuírem parede celular, os fungos eram considerados plantas por possuírem parede celular e apresentarem estruturas semelhantes a raízes. “Algas” macroscópicas e microscópicas também estavam incluídas nas plantas. Os consi- derados unicelulares eucariontes heterótrofos com capacidade de se deslocar eram considerados animais e classificados como protozoários. 7 vida e meio amBiente diversidade Biológica e filogenia licenciatura em ciências · usP/univesp Com os avanços nos estudos dos seres vivos, essa interpretação dicotômica da diversidade passou a ser questionada. Além disso, a partir de 1858, quando dois pesquisadores ingleses, (1809 - 1882) e (1823 - 1913), divulgaram suas ideias sobre evolução por seleção natural, aceitas até hoje, iniciou-se uma mudança na manei- ra de interpretar a diversidade biológica. Darwin publicou em 1859 o mais importante livro da história da Biologia: Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural, que teve várias edições. Assim, a evolução passou a ganhar espaço na comunidade científica e é hoje o principal enfoque nos estudos biológicos. Desde então, as concepções evolutivas foram incorporadas na classificação dos seres vivos. Ao serem classificadas, as semelhanças morfológicas e estruturais passaram a ser complementadas com informações sobre as relações de parentesco evolutivo entre os grupos e a se construir filogenias ou filogênese dos diferentes grupos de seres vivos. Portanto, novos sistemas de classificação foram propostos procurando estabelecer as principais linhas de evolução desses grupos. Essas classificações são conhecidas por sistemas naturais, pois ordenam naturalmente os organismos, visando compreender as relações de parentesco evolutivo entre eles. Um exemplo dessa nova forma de pensamento pode ser analisada quando se considera seres como as euglenas. Elas são unicelulares eucariontes e possuem características tanto de plantas quanto de animais. Elas fazem fotossíntese, não possuem parede celular e deslocam-se no meio. Pelo sistema de dois Reinos, seriam consideradas plantas pois fazem fotossínte- se e seriam consideradas animais pelo critério da Locomoção. Além disso, essa divisão arbitráriaem plantas e animais acaba colocando em grupos distintos organismos que estão filogeneticamente muito próximos. Um bom exemplo é, novamente, a Euglena, que é um gênero próximo de outro, a Peranema. Ao contrário da Euglena que é clorofila, Peranema é heterotrófica. Assim, seria considerada um animal unicelular dentro do grupo dos protozoários, e a Euglena, uma alga dentro do grupo das plantas, pois é autotrófica. Considerando essas e outras dificuldades, várias classificações surgiram. Dentre elas, desta- cam-se a de John Hogg, em 1860, que introduziu o Reino Protoctista para esses organismos que não eram nem plantas nem animais, e a do naturalista , em 1866, que Figura 1.4: Euglena e Peranema. Estes dois gêneros de organismos são parentes muito próximos, no entanto, o esquema tradicional de classificação em protozoários e algas os colocaria em Reinos distintos! / Fonte: Cepa 8 Panorama histórico da classificação dos seres vivos e os grandes gruPos dentro da ProPosta atual de classificação 1 introduziu o Reino Protista (Figura 1.5). Haeckel era um grande defensor da Teoria Evolutiva de Charles Darwin e teve grande projeção na comunidade científica da época, ele usou uma árvore para representar seu sistema de classificação, como mostra a figura 1.5. Dentro de protista colocou seres unicelulares, inclusive as bactérias que nomeou de Monera, e outros organismos multicelulares, como as esponjas. Mais tarde, em 1894 e 1904, Haeckel restringiu o termo protista apenas aos organismos unicelulares, incluindo moneras. Figura 1.5: Árvore proposta por Ernst Haeckel em 1866, com os três reinos: Planta, Animal e Protista. Mesmo tendo sido um avanço para a época, o sistema de dois reinos ainda era o mais empregado / Fonte: Cepa 9 vida e meio amBiente diversidade Biológica e filogenia licenciatura em ciências · usP/univesp 1.4 A terceira fase da história da classificação: do microscópio eletrônico ao sistema de cinco reinos Em 1932 surgiu o microscópio eletrônico, propiciando estudos mais detalhados da mor- fologia celular. Esses estudos trouxeram reflexos na sistemática, com novas propostas para se entender a evolução dos seres vivos e, com isso, novas classificações e reinos. Uma das classificações que teve influência na época foi a de Herbert Copeland, que em 1936 propôs um sistema de classificação em quatro reinos (Figura 1.6), retirando Monera de dentro dos protistas por serem procariontes, e resgatando o termo Protoctista de Hogg para eucariontes unicelulares ou multicelulares sem tecidos verdadeiros. Seus reinos eram: • Reino Mychota ou Monera: bactérias e cianobactérias; • Reino Protoctista: unicelulares eucariontes, multicelulares como “algas” e fungos; • Reino Plantae: multicelulares fotossintetizantes com tecidos; • Reino Animalia: multicelulares heterótrofos com tecidos. Figura 1.6: Classificação dos seres vivos em quatro reinos proposta por Herbert Copeland em 1936. Ele separou os procariontes dos eucariontes, estabelecendo para os primeiros o Reino Monera. Os eucariontes foram separados pela unicelularidade ou multicelu- laridade, presença de tecidos no corpo. Esse sistema começou a quebrar a preferência pelo sistema de dois reinos / Fonte: Cepa 10 Panorama histórico da classificação dos seres vivos e os grandes gruPos dentro da ProPosta atual de classificação 1 Essa proposta foi posteriormente substituída, a partir de 1959, pelo sistema de cinco reinos de (Figura 1.7), estabelecendo os seguintes reinos: • Reino Monera: procariontes representados pelas bactérias e cianobactérias; • Reino Protista: unicelulares eucariontes; • Reino Plantae: multicelulares eucariontes que fazem fotossíntese (“algas” e plantas terrestres); • Reino Fungi: eucariontes multicelulares heterótrofos que absorvem nutrientes do meio, possuem parede celular de quitina; • Reino Animalia: eucariontes multicelulares heterótrofos que ingerem alimento do meio. Embora bem aceita, a proposta de Whittaker passou por inúmeras revisões em função da deficiência de critérios para a reconstrução filogenética. Os avanços metodológicos para interpretar a filogenia dos seres vivos começaram a surgir a partir da década de 1950 com a divulgação dos trabalhos de , um entomólogo alemão. Surgiu nessa época uma nova escola de classificação, a escola filogenética ou cladística. Aprimoraram-se os critérios para a reconstrução filogenética e estabeleceu-se uma metodologia para testar hipóteses de filogenia, ausentes até então. Figura 1.7: Sistema de classificação em cinco reinos proposta por Robert Whittaker em 1959. Ele considerava o tipo celular, mantendo os procariontes em Monera, e mudou a clas- sificação dos eucariontes para quatro reinos com base na condição unicelular ou multice- lular e, dentre os multicelulares, no tipo de nutrição (fotossíntese, absorção ou ingestão). Apesar de proposto em 1959, esse sistema só ganhou força mais tarde, na década de 1980, quando muitos outros avanços já haviam sido feitos na classificação / Fonte: CEPA 11 vida e meio amBiente diversidade Biológica e filogenia licenciatura em ciências · usP/univesp A sistemática filogenética será abordada no tópico 4 desta disciplina. 1.5 A quarta fase da história da classificação: biologia molecular e a proposta atual que será adotada na disciplina A partir de 1970 até os dias de hoje, as propostas de classificação estão mais relacionadas com os avanços da biologia molecular, o aprimoramento dos estudos com microscopia eletrônica e com a maior aceitação e desenvolvimento da sistemática filogenética. Os seres vivos possuem DNA, RNA e proteínas. Organismos muito próximos apresentam similaridade maior entre essas moléculas. é uma das pes- quisadoras mais importantes nessa fase, ela pautou-se em dados mole- culares e ultraestruturais, e apoiou- -se na Teoria da Endossimbiose de origem da célula eucariótica para propor algumas mudanças no siste- ma de cinco reinos. A Teoria da Endossimbiose de origem e evolução da célula eucari- ótica foi discutida de forma mais completa na disciplina História da vida na Terra e está resumi- damente representada e explicada na figura 1.8 a seguir: Além da origem de mitocôndrias e cloroplastos por endossimbiose, Margulis propõe a origem de flagelos como sendo por endossimbiose com bactérias espiroquetas. Atualmente, há dados que confirmam a origem de mitocôndrias e de cloroplastos por endossimbiose, mas não há dados que confirmem a origem de flagelos por esse processo. Agora é com você: Participe do fórum atividade online 2. Figura 1.8: Esquema simplificado mostrando o processo de endossimbiose que deu origem às organelas mitocôndrias e depois cloroplastos / Fonte: Cepa 12 Panorama histórico da classificação dos seres vivos e os grandes gruPos dentro da ProPosta atual de classificação 1 A árvore filogenética proposta por Margulis em parceria com Karlene Schwartz foi pu- blicada pela primeira vez em 1982 (Figura 1.9). Nessa proposta, as autoras resgataram o termo protoctista para agrupar “algas” eucariontes uni e multicelulares, além de eucariontes unicelu- lares heterótrofos. Mantiveram o Reino Monera, subdividindo-o em dois sub-reinos: Eubacteria e Archaea. No reino das plantas consideraram apenas as plantas terrestres, e mantiveram o reino dos fungos e dos animais. Figura 1.9: Sistema de cinco reinos proposto por Margulis & Schwartz inicialmente, em 1982. Os processos de endossimbiose estão representados por setas tracejadas / Fonte: Cepa 13 vida e meio amBiente diversidade Biológica e filogenia licenciatura em ciências · usP/univesp O resgate do termo protoctista não foi bem aceito na comunidade científica e foi subs- tituído por protista.Assim, os dois termos, apesar de serem considerados de forma distinta por Margulis & Schwartz, são considerados sinônimos e com uso preferencial para protista. Porém, ambos estão incorretos do ponto de vista filogenético. O mais correto atualmente para esses organismos é simplesmente o termo descritivo “micro-organismos eucariontes”. As propostas de classificação em cinco reinos tanto de Whittaker quanto de Margulis & Schwartz coexistiram na preferência de muitos autores desde a década de 1980 até muito recentemente, mesmo com os avanços que passaremos a descrever. Ao mesmo tempo em que a proposta de classificação de Margulis & Schwartz foi feita, surgiu outra elaborada por em 1977. Ele foi um dos pioneiros nos estudos de filogenia molecular, usando inicialmente comparações entre as moléculas de RNA que formam os ribossomos. Seus dados evidenciaram que os eucariontes são muito próximos entre si, mas que os procariontes formam dois grupos distintos. Assim, estabeleceu uma categoria taxonômica superior a Reino, o Domínio, e considerou que todos os euca- riontes podem ser reunidos em um único domínio, que chamou Eucarya. No caso dos procariontes, as diferenças são tantas que dois domínios foram estabelecidos: o Domínio Archaea e o Domínio Bacteria. O termo Archaea significa “antigo” e foi usado para reunir procariontes que habitam apenas ambientes extremos. Esses organismos, chamados extremófilos, ocorrem em am- bientes com temperaturas muito elevadas ou ricos em metano ou enxofre, onde outros grupos de organismos não conseguem sobreviver. Como esses ambientes se assemelham ao que se supõe terem sido os ambientes da Terra primitiva, pensou-se que esses procariontes tivessem sido os primeiros seres vivos na Terra. Hoje se sabe, no entanto, que há Archaea em ambientes não extremos e que provavelmente surgiram mais tarde na evolução dos procariontes, sendo o Domínio Bactéria o primeiro a surgir. Além disso, há hoje registros de bactérias em alguns desses ambientes extremos. Com base na proposta de Woese, o Reino Monera deixa de existir, embora o termo possa ser usado como coletivo para procariontes. Dentro de Eucarya há enorme diversificação dos seres vivos que não cabe nos tradicionais reinos já descritos. O Reino Protista também deixa de existir, embora o termo possa ser usado como coletivo para todos os eucariontes unicelulares e até mesmo para “algas” multicelulares. A definição do Reino Fungi também difere entre os cientistas. Alguns consideram nesse reino formas que possuem flagelos em 14 Panorama histórico da classificação dos seres vivos e os grandes gruPos dentro da ProPosta atual de classificação 1 seus ciclos de vida (chamados fungos flagelados), enquanto outros consideram esses orga- nismos em um reino distinto ou no Reino Protista. A grande explosão na área da sistemática molecular veio acompanhada por novas me- todologias de análises, trazendo profundas mudanças nas propostas de classificação, sendo essa área hoje uma das mais dinâmicas da Biologia. É muito frequente, em função disso, que propostas de classificação sejam conflitantes. Trata-se de uma área que está em pleno processo de construção e reconstrução. Discordâncias são comuns e isso será sentido em todas as disciplinas desse curso para todos os grupos de seres vivos. A representação da filogenia proposta por Woese (Figura 1.10) é feita por meio de diagrama de ramos, chamado cladograma. Entenderemos melhor como ele é construído e interpretado no tópico 4 da disciplina. Dentre o Domínio Eucarya estão os reinos dos fungos, das plantas, dos animais e vários outros grupos independentes. Esses grupos independentes foram tratados no sistema de Whittaker como Reino Protista, e no de Margulis & Schwartz como Reino Protoctista. Com o passar dos anos, no entanto, vários estudos analisando maior número de caracteres, especialmente moleculares, têm reforçado a proposta de classificação de Woese em três domínios, sendo essa uma das mais adotadas atualmente. Levando-se em conta o atual status da classificação dos seres vivos e as evidências que sus- tentam a classificação em três domínios, a classificação de Woese será adotada nesta e nas demais disciplinas desse curso. Assim, usaremos o termo “monera” como coletivo e entre aspas para todos os procariontes que serão tratados em dois domínios: Bacteria e Archaea. Da mesma forma, Figura 1.10: Sistema de classificação proposto por Carl Woese. O Domínio Archaea seria mais próximo evolutivamente do Domínio Eucarya do que do Domínio Bacteria / Fonte: CEPA 15 vida e meio amBiente diversidade Biológica e filogenia licenciatura em ciências · usP/univesp adotaremos “protista” como coletivo e entre aspas para nos referirmos a todos os eucariontes uni e multicelulares sem tecidos verdadeiros. É importante destacar que o uso desses termos entre aspas significa que não são categorias taxonômicas, apenas servem para fazer referência a um coletivo de seres vivos diversos e sem parentesco filogenético. Para o caso dos eucariontes, vamos adotar uma das classificações que tem sido bem aceita, proposta inicialmente por Sandra L. Baldauf, em 2003, e posteriormente modificada por ela em conjunto com outros pesquisadores em 2007 (Figura 1.11). Essa proposta será analisada com mais detalhes no tópico 4, quando passaremos a falar dos eucariontes unicelulares. Os vírus não estão incluídos nessas propostas de classificação e serão analisados nessa disci- plina ao final do estudo dos grupos celulares. Figura 1.11. Esquema de filogenia dos principais grupos do Domínio Eukarya / Fonte: CEPA, modificado de A árvore filogenética, que usaremos nessa disciplina e em todas as demais que abordam a diversidade de seres vivos), está representada na figura 1.10 e foi proposta por Fehling, Stoecker & Bauldaf em 2007 Agora é com você: Analise a árvore filogenética mostrada na figura 1.11 e, a seguir, realize a atividade online 3, 4, e 5. 16 Panorama histórico da classificação dos seres vivos e os grandes gruPos dentro da ProPosta atual de classificação 1 Fechando o assunto A história da classificação dos seres vivos é longa, tendo início no século 4 a.C. com Aristóteles. Até os dias de hoje há grande discussão sobre as hipóteses de classificação, procu- rando entender as relações evolutivas entre os diferentes grupos de seres vivos. A diversidade biológica está em pleno processo de expansão do conhecimento. Novas espécies têm sido descritas a cada dia, com ênfase nos unicelulares. Novas metodologias de estudo relacionadas ao uso da biologia molecular e da microscopia têm revelado um universo enorme de seres vivos, cada vez mais difíceis de serem encaixados em um sistema rígido de classificação. Isso explica as diferentes propostas na tentativa de acomodar todos os organismos conhecidos e permitir prever onde novos organismos que começam a ser descritos possam ser encaixados. Vamos adotar uma das mais recentes e bem aceitas propostas de classificação em três do- mínios, Archaea, Bacteria e Eucarya, e dentre os Eucarya consideraremos sete grandes grupos: Opistocontes, Amebozoa, Rhizaria, Archaeplastida, Alveolados, Extramenópilas e Discristados, além de outro grupo dentro de Excavados, que inclui formas amitocondriadas. Referências Bibliográficas Baldauf, S.L. The Deep Roots of Eukaryotes. Science 300, 2003. p. 1703-1706. Baldauf S.L. et al. The tree of life. In: Craft, J. e donoghue, M.J. (editores) Assembly the Tree of Life. Oxford: Oxford University Press, 2004. p.43-75. Bellorin, A. e oliveira, M.C. Plastid origin: A driving force for the evolution of algae. In: Sharma, A.K. e Sharma, A. (editores) Plant Genome Biodiversity and Evolution, vol. 2, part. B, Enfield: Science Publishers,2006. p.39-87. CampBell, N.A. et. al. Biologia. 8 ed. Porto Alegre: Artmed, 2010. 1464p. CraCraft, J. e donoghue, M.J. (editores) Assembly the Tree of Life. Oxford: Oxford University Press, 2004. 576p. falkowaki, P. G. & knoll, A. H. Evolution of Primary producers in the Sea. Boston: Elsevier. 2007. 441p. Katz, L. A. & BhattaCharya, D. Genomics and Evolution of Microbial Eukaryotes. Oxford: Oxford University Press, Great Britain. 2008. 243p. marguliS, L & SChwartz, K.V. Cinco Reinos. Um Guia Ilustrado dos Filos da Vida na Terra. 3 ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2001. 497p. 17 vida e meio amBiente diversidade Biológica e filogenia licenciatura em ciências · usP/univesp matioli, S.R. Biologia Molecular e Evolução. Ribeirão Preto-SP: Holos, 2001. 202p. raven, P.H.; evert R.F. e eiChhorn S.E. Biologia Vegetal. 7 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2007. 830p. Sadava, D. et al. Vida. A Ciência da Biologia. vol. 2. Porto Alegre: Artmed, 2009. 1126p. 2 TÓPICO Licenciatura em ciências · USP/ Univesp Sônia Godoy Bueno Carvalho Lopes Fanly Fungyi Chow Ho NOçõeS de evOLuçãO BIOLÓGICa 2.1 Introdução: Por que estudar evolução biológica? 2.2 evolução antes de darwin e a Teoria de Lamarck 2.3 a contribuição de darwin 2.4 a importância do Mendelismo 2.5 a Teoria Sintética da evolução 2.6 evidências da evolução 20 2.1 Introdução: Por que estudar evolução biológica? Você já se perguntou por que há organismos tão parecidos e outros tão diferentes uns dos outros? Por que não existem elefantes e leões na América do Sul? Por que há flores que são somente polinizadas por abelhas? Por que há tantas espécies de aranhas? Por que pinguim não voa? Como é possível existir um código genético universal? Essas são algumas das inúmeras perguntas que vêm à nossa cabeça quando observamos o mundo ao nosso redor, ou quando assistimos a documentários sobre a natureza, seja sobre a vida na Antártida, na África, ou até mesmo sobre a mais recente epidemia de gripe. O fenômeno responsável pela diversificação dos seres vivos desde o aparecimento da vida na Terra é chamado de evolução biológica. Traçar a história da vida no planeta e investigar as possíveis causas da evolução que resultaram nas semelhanças e diferenças que observamos na biodiversidade são temas centrais da Biologia Evolutiva. Atualmente podemos dizer, com embasamento teórico consistente, que a enorme diversidade biológica surgida no passado e a que vemos hoje resultam de um processo que , em A Origem das Espécies (1859), definiu como ‘descendência com modificação a partir de an- cestrais comuns’. Isso indica que todos os seres vivos, incluindo os seres humanos, evoluíram a partir de uma única forma primordial de vida, e que o acúmulo de modificações em cada grupo resultou no aparecimento das diferentes formas de vida. Portanto, fungos, bactérias, plantas, aves e humanos estão todos relacionados uns com os outros, em um menor ou maior grau de parentesco. Em função da interação constante das formas de vida com o ambiente abiótico, a evolução biológica não é estática, ela continua atuando sobre a biodiversidade atual. Desde o aparecimento das primeiras formas de vida, há aproximadamente 3,8 bilhões de anos, a evolução é responsável pelo surgimento e extinção de espécies, tornando dinâmica a biodiversidade no planeta. O estudo da evolução biológica também traz importantes contribuições em áreas aplicadas da sociedade moderna. Por exemplo, na área da Saúde, nos ajuda a entender o mecanismo de aquisição de resistência a antibióticos; na Agricultura, propicia o desenvolvimento de novas variedades de alimentos para consumo humano; na área Farmacêutica, permite identificar pro- dutos biológicos de maior potencial terapêutico. A Biologia Evolutiva é o princípio unificador de todas as áreas biológicas. Essa interpretação foi muito bem descrita, em 1973, numa curta frase de um dos mais importantes biólogos dos últimos tempos, : “Nada em Biologia faz sentido, a não ser sob a luz da evolução”. 21 Licenciatura em Ciências · uSP/univesp Objetivos propostos Espera-se que o aluno compreenda: • quais são os agentes das teorias propostas e sua história; • quais foram as evidências que corroboraram o estudo da biologia evolutiva; • que existe uma interdisciplinaridade da Evolução Biológica com diversas áreas da Biologia; • o que é um sistema de classificação e qual o seu papel na classificação dos seres vivos. 2.2 Evolução antes de Darwin e a Teoria de Lamarck A relação do ser humano com o mundo natural sempre foi objeto de interesse de pensado- res. No entanto, por muito tempo, sob influência da Igreja, o Homem foi considerado como uma forma máxima do desenvolvimento, como um ser superior. No século 18, com o aparecimento de uma visão materialista e científica nos campos da física, geologia, astronomia e filosofia, a interpretação da diversidade biológica passou a sofrer mudanças. Embora historiadores naturais ainda acreditassem que os seres vivos eram frutos da manifestação divina (Criacionismo, ver Tópico 1), começaram a surgir discussões crescentes sobre uma essência “não estática” da vida. Passou-se a considerar a possibilidade de que as espécies vivas, ao invés de imutáveis, descendiam de formas pré-existentes de vida e podiam sofrer modificações. Dentre os naturalistas desse período, destacam-se: • (1720-1793): apresentou a teoria da pré-existência, na qual o desen- volvimento da vida ocorreria em função da presença de “germes” previamente criados, considerados a essência do ser e capazes de progredir. • , Conde de Buffon (1707-1788): propôs que os seres vivos possuiriam uma matriz interior determinante das características de uma espécie. Espécies de um mesmo gênero compartilhariam uma mesma ‘matriz interna’ e passariam por modificações graças a diferentes condições climáticas em que viviam. A matriz mais pri- mitiva, no entanto, teria sido criada por geração espontânea. • (1707-1778): admitiu que a ação de diferentes condições ambien- tais resultariam em distintas variedades dentro de uma espécie (embora a essência fosse fixa); e admitiu ainda que espécies dentro de um mesmo gênero poderiam ser resultado de cruzamentos entre duas espécies pré-existentes. Apesar de reconhecer esses aspectos, Linnaeus era fixista e criacionista. 22 A teoria de maior impacto sobre a diversificação dos seres vivos, resultante de um processo de evo- lução no período anterior ao de Charles Darwin, foi organizada pelo naturalista francês Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet, (1744-1829), que publicou importantes trabalhos nas áreas de Zoologia dos Invertebrados (Système des Animaux sans Vertebres, 1801 e Histoire naturelle des animaux sans vertebres, em sete volumes, 1815-1822) e Evolução (Philosophie Zoologique, 1809). Sobre o processo de evolução, Lamarck defendia primeiramente que as espécies surgiam a partir da matéria inanimada (geração espontânea), e os organismos, por ação de uma força externa, evoluíam de modo contínuo e progressivo rumo à perfeição. Para Lamarck, as formas mais simples de vida seriam as que surgem primeiro e depois vão adquirindo, ao longo do tempo, níveis maiores de organização e complexidade. Na segunda parte de sua teoria, Lamarck argumentava que a diversidade biológica existente seria o resultado das transformações que os seres vivos sofrem durante sua vida como resposta às necessidades dos indivíduos em se adaptar às condições ambientais. Nesse processo, a necessida- de do uso frequente de certo órgão ou estrutura favoreceria seu desenvolvimento, bem como a falta de uso de certo órgão o tornaria enfraquecido e gradualmente diminuiria sua capacidade funcional até seu desaparecimentototal (lei do uso e desuso). Essas características desenvolvidas – ou perdidas – ao longo da vida do indivíduo seriam, então, transmitidas aos seus descendentes (lei da transmissão dos caracteres adquiridos). Segundo essas interpretações de Lamarck, aves pernaltas teriam surgido do esforço feito por algumas aves aquáticas ancestrais para se manterem fora da água em regiões inundadas. O alonga- mento das pernas adquirido durante a vida dessas aves, pelo esforço, seria transmitido à próxima Figura 2.1: (A) Teoria de Lamarck sobre a progressão orgânica. Linhagens surgem por geração espontânea e, com o tempo, evoluem para um maior grau de organização e complexidade. Organismos não descendem de um ancestral em comum, e à medida que o tempo passa, as linhagens ficam mais complexas. (B) A Teoria de Darwin sobre descendência com modificação. Linhagens descendem de um ancestral em comum e sofrem modificações ao longo do tempo (marcas horizontais) / Fonte: Cepa; Adaptado de FUTUYMA, 1998. 23 Licenciatura em Ciências · uSP/univesp geração. Os descendentes passariam a ter pernas cada vez mais longas e, após várias gerações, originariam as atuais aves pernaltas. Assim, a necessidade e o esforço constante das aves ancestrais para se manterem com o corpo fora d’água, gradualmente teriam feito com que pernas mais longas fossem desenvolvidas, e tal modificação adquirida teria sido transmitida aos descendentes. Embora não aceitasse na íntegra as ideias de Lamarck, Charles Darwin, em A origem das Espécies (1859) destacou a originalidade desse pesquisador em primeiramente atribuir as di- ferenças entre os seres vivos a fenômenos científicos (de causalidade) e não a uma divindade criadora, além de reconhecer princípios evolutivos como a descendência de caracteres, os efei- tos ambientais na diversificação das espécies e o conceito de adaptação dos seres ao ambiente. 2.3 A contribuição de Darwin Charles Darwin (1809-1882) desistiu da carreira de Medicina e a sua fascinação e dedi- cação pelo mundo natural levou-o a embarcar, em 1831, como historiador natural, no navio HMS Beagle, que saiu da Inglaterra, passou pela Amazônia brasileira, Pampas argentinos, Ilhas Galápagos, Taiti e Austrália e, em 1836, retornou à Inglaterra. A viagem permitiu a Darwin observar e coletar espécimes da diversidade biológica e geológica que encontrou nos distintos lugares por onde passou, levando-o a duvidar do fixismo das espécies. Passados vinte anos do retorno dessa expedição, Darwin continuou seus estudos, mas não publicou suas ideias, o que só fez após rece- ber, em 1858, um manuscrito do naturalista (1823-1913), que descrevia, independentemente, o princípio de seleção natural, com o qual Darwin vinha trabalhando e reunindo evidências por mais de 20 anos. Darwin reconheceu o trabalho de Wallace e se conscientizou de que era a hora de publicar seus próprios dados. No ano seguinte, em 1859, publicou o livro “Sobre a origem das Espécies pelos Meios da Seleção Natural, ou A Preservação das Raças Favorecidas na Luta Agora é com você: Antes de continuar a leitura do texto, realize a atividade on-line 1. Charles Darwin / Fonte: Cepa 24 pela Vida” (ou somente A Origem das Espécies, como é popularmente conhecido), que teve várias edições. Até os dias de hoje esse livro é um marco na história da Biologia. Símbolo do pensamento evolutivo moderno, Darwin, em A origem das Espécies, aborda dois conceitos fundamentais sobre a origem da vida e a história da evolução. Primeiramente, afirma que todas as linhagens, vivas e extintas, descendem de uma única forma ancestral de vida, e que o surgimento de linhagens distintas é resultado do acúmulo de modificações ao longo do tempo em resposta à ação do meio. Como a ramificação de uma árvore, partindo de um mesmo ancestral (nó), cada uma das linhagens (galhos) vai acumulando um conjunto diferente de modificações e se torna cada vez mais distinta de outra linhagem (diz-se que as linhagens estão em processo de divergência). Esse processo se repete: cada uma das linhagens que se formou vai, ao longo do tempo, acumulando modificações, podendo sofrer novo processo de ramificação, originando outras linhagens. Espécies proximamente relacionadas divergiram de um ancestral comum mais recente; espécies distantemen- te relacionadas possuem um ancestral comum mais antigo e, portanto, diferem em maior grau. Essa é a teoria da descendência com modificação, que infere serem todos os organismos – fungos, amebas, insetos, aves, mamíferos, bactéria – descendentes de um ancestral em comum. Outro conceito essencial para o estudo moderno de evolução, abordado em A Origem das Espécies, é a teoria da seleção natural como causa da mudança evolutiva. Simplificadamente, para Darwin, indivíduos dentro de uma mesma população não seriam idênticos, mas sempre apresenta- riam variações quanto à morfologia, à fisiologia e ao comportamento. Tais variações, ao conferirem uma melhor chance de sobrevivência no ambiente onde vivem esses indivíduos (vantagem adap- tativa), fariam com que eles tivessem também maior chance de se reproduzirem, dando origem a Figura 2.2 Os grupos de seres vivos originam-se como galhos de uma árvore. Os nós representam os ancestrais que dão origem a duas linhagens (direita). Repetidamente, cada uma das linhagens diverge e origina outras novas linhagens. Espécies proxima- mente relacionadas apresentam um ancestral comum mais recente (centro) do que espécies distantemente relacionadas (esquerda). / Fonte: Cepa 25 Licenciatura em Ciências · uSP/univesp descendentes igualmente mais capazes. Ocasionalmente, indivíduos contendo variação aumentariam em frequência na população e, gradualmente, prevaleceriam sobre a forma anterior. Devido à sua importância, discutiremos o processo de seleção natural mais adiante, em detalhes. 2.4 A importância do Mendelismo Se há variação na população, qual é a origem dessa variação? Por que e como algumas ca- racterísticas parentais são transmitidas e outras não? Apesar de saber que os organismos transmitem características a seus descendentes, Darwin não sabia qual era a origem da variação entre indivíduos e não estabeleceu propostas concretas de mecanismos pelas quais tais características variantes seriam transmitidas aos descendentes. O monge e biólogo austríaco Johann Gregor Mendel (1822-1884) propôs, em 1865, que as características seriam transmitidas aos descendentes a partir de unidades de hereditariedade, que ele denominou fatores, atualmente chamados de genes. Ao realizar experimentos científicos de cruza- mentos entre distintas variedades da planta de ervilha, Pisum sativum, observou que certas características dos descendentes não representa- vam uma mistura ou uma média do padrão parental. Na época, essa era a interpretação da herança de muitos dos caracteres, falando-se em hereditariedade por mistura. Por exemplo, ao se cruzar uma planta alta com uma planta baixa, os descendentes seriam de média estatura. Os experimentos realizados por Mendel demonstraram que, no caso de Pisum sativum, os descendentes não tinham estatura média, mas eram altos ou baixos. Após acompanhar muitas gerações de aproximadamente 29.000 plantas de ervilha, ele des- creveu matematicamente um padrão de hereditariedade. Mendel e Darwin foram contemporâneos, mas Darwin não chegou a ler o trabalho de Mendel. Foi encontrado na biblioteca de Charles Darwin um exemplar da publicação original de Mendel, mas as folhas não haviam sido tocadas, evidenciando, por- tanto, que o trabalho não fora lido. Somente em 1900 a pes- quisa de Mendel foi “redescoberta” e passou a representar não só um impulso no estudo da Genética, como também passou a ser importante nas teorias evolutivas.Johann Gregor Mendel (1822-1884) / Fonte: Cepa Agora é com você: Faça a atividade on-line 2. 26 2.5 A Teoria Sintética da Evolução Estudos na área da Genética deixam claro que as características dos indivíduos são produtos de genes, e que eles podem apresentar mudanças (mutações) responsáveis por causar tanto pequenas como drásticas transformações no indivíduo. Inicialmente, a teoria proposta por Darwin e o processo de mutação foram considerados vertentes incompatíveis para o entendimento da diversificação dos seres vivos, pois se acreditava que mutações isoladamente poderiam originar novas espécies. Nas décadas de 1930 e 1940, houve a sincronização dessas duas frentes de pensamento, e os estudos da genética clássica trouxeram contribuições complementares à Teoria de Darwin. Geneticistas, paleontólogos, sis- tematas e taxonomistas contribuíram para o desenvolvimento da Teoria Sintética da Evolução, que ainda constitui o pilar da Evolução Biológica moderna. Contribuíram para o desenvol- vimento dessa teoria: , e (desenvol- vimento de uma teoria matemática em genética de populações); (genética em populações naturais); e (envolvendo características taxonômicas no entendimento da evolução das espécies animais e vegetais) e (dados da paleontologia corroborando a Teoria Sintética). Resumidamente, a Teoria Sintética da Evolução assume que: • a hereditariedade é baseada na informação genética que pode sofrer mutações. Mutações ocorrem aleatoriamente e podem ser vantajosas, desvantajosas ou neutras em relação ao valor adaptativo; • evolução é um processo que atua sobre uma população composta por indivíduos apresen- tando variações (formas variantes). Formas variantes podem ser mais ou menos frequentes na população e são capazes de substituir a forma prevalente; • a substituição de uma forma variante por outra dentro da população pode ocorrer por deriva genética ou por seleção natural; • seleção natural é a causa da adaptação; • deriva genética refere-se a mudanças nas características da população por eventos ocor- ridos ao acaso. A forma variante predominante é determinada aleatoriamente, portanto, diz-se que tais eventos de deriva genética não geram adaptação; • espécie é definida como conjunto de populações isoladas reprodutivamente de outras, ou seja, não trocam informação genética com indivíduos de outras espécies; 27 Licenciatura em Ciências · uSP/univesp • espécies-irmãs (proximamente relacionadas) são inicialmente semelhantes e gradualmente acumulam modificações (divergem). Estudos em várias áreas da biologia continuam trazendo importantes descobertas que contribuem para a expansão do conhecimento sobre evolução. Em 1953, e decifraram a estrutura do DNA e, posteriormente, seu papel central como responsável por conter as informações genéticas, impulsionando a área da Biologia Molecular. Atualmente, pode-se, por exemplo, ler partes ou todo o material genético dos organismos, o que permite apontar as diferenças genéticas entre eles e estabelecer correlações entre as diferenças genéticas e as fenotípicas. Por exemplo, a partir do sequenciamento e comparação dos genes BRCA1 e BRCA2 em mulheres com e sem câncer de mama, pôde-se estabelecer que certas mutações são importantes no desenvolvimento dessa doença. 2.6 Evidências da evolução A Teoria da Evolução conta com um imenso leque de evidências que corroboram seu papel no estabelecimento da diversidade dos seres vivos. Para investigar a história da vida na Terra e entender a relação de parentesco entre todos os seres vivos, são feitos estudos comparativos dos organismos utilizando dados morfológicos, embriológicos, celulares, bioquímicos, moleculares, comportamentais e, ainda, informações sobre os ambientes onde vivem. Destacam-se como evidências da evolução: Fósseis Fósseis são registros da existência de organismos que viveram em épocas remotas na Terra. Por exemplo, podemos citar os organismos ou partes de um organismo preservados pelos dife- rentes processos de fossilização, como a mineralização de suas estruturas no decorrer do tempo e as impressões deixadas por organismos que viveram em eras passadas – pegadas de animais extintos, impressões de folhas, de penas de aves extintas e da superfície da pele dos dinossauros. Agora é com você: Antes de prosseguirmos para a seção Evidências da evolução, faça a atividade on-line 3 para discutir alguns pontos principais sobre a história do pensamento evolutivo. 28 Atualmente, graças ao desenvolvimento da biologia molecular, passou-se a empregar técnicas que têm possibilitado revelar a existência de fósseis celulares ou moleculares. Os fósseis são geralmente encontrados em camadas de rochas sedimentares que foram depositadas e solidificadas formando a camada mais externa do planeta. Podem também ser encontrados em resinas de plantas (âmbar) ou ainda em geleiras. Fósseis mais antigos são geralmente de organismos marinhos que habitaram os oceanos do planeta e que, ao morrerem, foram rapidamente soterrados por areia, silte e lama, conservando suas estruturas. Animais e plantas terrestres foram muitas vezes decompostos ou predados, e somente as partes duras como dentes, ossos, conchas ou madeira foram preservados. Os fósseis nos permitem conhecer alguns dos organismos que viveram em épocas remotas da Terra e ilustram um panorama sobre as mudanças da biodiversidade ao longo de 3,8 bilhões de anos. Por exemplo, o grupo Dinosauria viveu aproximadamente entre 240 a 65 milhões de anos atrás e, por um evento de extinção em massa, deixaram de existir no planeta, embora uma linhagem, a das aves, tenha sobrevivido até os dias de hoje. Fósseis en- contrados foram capazes de revelar não só a abundante presença desses organismos nesse intervalo de tempo na Terra, mas também a diversidade desse grupo durante seu período de existência. Dentro do grupo das algas vermelhas (Rodófitas) há espécies que são capazes de secretar carbonato de cálcio, o que favo- receu o processo de fossilização. Registros fósseis de espécies pertencentes a este grupo estimam a presença destes seres eucariontes no planeta há 1,25 bilhões de anos. Homologia Estruturas homólogas são estruturas que derivam de outras, presentes num ancestral em comum. Estruturas homólogas podem ou não exercer a mesma função. Comparemos, por exemplo, os ossos dos membros anteriores do ser humano, dos cavalos e das baleias. Fonte: Latinstock 29 Licenciatura em Ciências · uSP/univesp Comparando esses ossos, anatomistas concluíram que, apesar desses animais vertebrados terem membros anteriores com funções distintas, com diferentes tamanhos e formas, todos possuem membros que se correspondem, sugerindo um ancestral em comum entre esses organismos. Os ossos desses membros anteriores são, por isso, considerados homólogos. São homólogas, também, estruturas semelhantes e que têm a mesma função, como os ossos das nadadeiras das baleias e das nadadeiras dos golfinhos. Genes também podem ser homólogos. O gene Pax-6, por exemplo, relaciona-se com o desenvolvimento dos olhos em humanos. Curiosamente, outros mamíferos, as aves, os peixes e até mesmo os insetos também contêm uma versão desse gene em seu material genético, e desempenham a mesma função: desenvolvimento dos olhos. Tal fato sugere que o gene Pax-6, em todos esses animais, foi herdado de um único ancestral comum. Órgãos vestigiais São órgãos que tiveram uma função definida na espécie an- cestral, porém, nas espécies descendentes geralmente apresentam um tamanho reduzido e a função foi perdida. Como exemplo de órgão vestigial, o corpo humano apresenta o ceco e o apêndice vermiforme. Enquanto em seres humanosesses órgãos são redu- zidos e não apresentam funções definidas, em mamíferos roedo- res o ceco é uma estrutura bem desenvolvida, onde alimentos parcialmente digeridos sofrem a ação de bactérias especializadas para o auxílio da digestão. Outro exemplo interessante é o vestí- gio de membros posteriores na jiboia (Boa constrictor), sugerindo que essa serpente derivou de um ancestral que possuía pernas. Figura 2.3: Representação dos ossos dos membros anteriores do (b) ser humano (braço), (c) do cavalo (pata dianteira) e (a) da baleia (nadadeira peitoral). No cavalo, restou somente o terceiro metacarpo e falanges, todos os outros foram perdidos / Fonte: Cepa; adaptado de Monroe e Wicander, 2006. Figura 2.4: Exemplo de órgão vestigial: algumas jiboias e pítons possuem ossos que se projetam da região pélvica, representando vestígios da estrutura dos membros posteriores. / Fonte: Marcelo Duarte A) B) C) 30 Informações moleculares A pesquisa envolvendo o material genético dos organismos revelou que todos os seres vivos carregam informação genética na molécula de DNA, e que em todos eles o DNA é composto invariavelmente pelos nucleotídeos adenina, timina, citosina e guanina (A, T, C e G, respec- tivamente). Além da natureza da informação, os seres vivos também compartilham o mesmo mecanismo de leitura e tradução dessa informação. Esse é um dos argumentos mais poderosos a favor da existência de um ancestral comum de toda a biodiversidade. Similaridade embrionária Podemos também comparar as estruturas dos organismos em sua fase de desenvolvimen- to embrionário. disse, em 1828, que organismos são mais semelhantes quando ainda embriões do que quando adultos, e que características comuns a um grande grupo taxonômico (filo, subfilo) frequentemente aparecem na fase de desenvolvimento antes das características específicas de táxons (como do gênero ou da espécie). Quanto maior o grau de parentesco, mais semelhantes são seus desenvolvimentos embrionários. Figura 2.5: Ilustração da Lei de Von Baer. Todos os grupos de vertebrados compartilham muitas características nos estágios iniciais de desenvolvi- mento (estágio I); características que diferem uns organismos dos outros aparecem nos estágios mais tardios (estágio II e III). / Fonte: Cepa; adaptado de ROMANES, 1910 e FUTUYMA, 1998. 31 Licenciatura em Ciências · uSP/univesp A semelhança é tão evidente que atualmente utiliza-se o peixe-zebra (Dani rerio) como organismo modelo para pesquisas científicas sobre o desenvolvimento embrionário de células nervosas no grupo dos Vertebrados (portanto, inclui humanos). Convergência Caracteres convergentes são aqueles semelhantes em diferentes grupos de organismos apenas como resposta à adaptação a condições semelhantes do meio. Estas estruturas possuem um propósito funcional em comum, porém, não representam uma ancestralidade comum recente. Ou seja, organismos pertencentes a diferentes grupos desenvolveram estas estruturas (chamadas análogas ou homoplásticas) em processos evolutivos independentes e distintos. Portanto, não são homólogas. Como exemplo, podemos citar a membrana planadora do petauro-do-açúcar e do esquilo-voador. Apesar da incrível semelhança entre suas membranas planadoras, ao observar a relação de ancestralidade desses organismos, percebemos que essa característica não foi herdada de um ancestral em comum das duas espécies, mas provavelmente surgiu independentemente nas duas linhagens, em dois momentos distintos das suas histórias evolutivas. Evidência biogeográfica Baseando-se na teoria da descendência com modificação, se uma espécie descende de outra, é essencial que ancestral e descendente compartilhem o mesmo local geográfico, ou seja, deve haver Figura 2.6: Exemplo de convergência evolutiva: à esquerda, o petauro-do-açúcar (Petaurus breviceps, do grupo de mamíferos marsupiais) e à direita, o esquilo-voador (Pteromys volans, do grupo de mamíferos placentários), ambos em movimento de planagem com o auxílio da membrana planadora. / Fonte: Latinstock 32 continuidade geográfica entre eles. No entanto, há espécies que possuem proximidade de relação de parentesco, mas são encontradas em regiões geográficas distantes. A explicação para esse fato se pauta na teoria tectônica de placas: a crosta terrestre é formada por placas que se descolam por ação do manto, de modo que a posição dessas placas no Globo Terrestre não é fixa. Todos os continentes foram inicialmente conectados entre si, formando uma massa contínua de terra chamada Pangeia. Em função da movimentação das placas tectônicas, a Pangeia foi fragmentada. Num primeiro mo- mento, África, América do Sul, Austrália e Nova Zelândia ficaram ainda unidas num supercontinente, a Gondwana. Depois, esta massa de terra foi se separando uma a uma: primeiro houve a separação da África, seguida pela Nova Zelândia, Austrália e América do Sul. As populações coexistentes no supercontinente Gondwana, consequentemente, também foram separadas, acumularam diferenças e deram origem a novas espécies. A evidência da existência dos supercontinentes é dada pela grande similaridade de alguns fósseis encontrados em continentes distintos. Figura 2.7: Cada faixa colorida representa a presença de fósseis semelhantes nas diferentes regiões no planeta. Atualmente encontrados em continentes separados, a descoberta desses fósseis mostra um padrão definido que indica a prévia conexão entre as massas de terra. / Fonte: Cepa Agora é com você: Faça a atividade on-line 4 e conheça mais alguns exemplos de evidências da evolução. 33 Licenciatura em Ciências · uSP/univesp Referências Bibliográficas Baldauf, S.L. The Deep Roots of Eukaryotes. Science 300, 2003. p. 1703-1706. Baldauf, S.L. et al. The tree of life. In: CraCraft, J. e donoghue, M.J. (editores) Assembly the Tree of Life. Oxford: Oxford University Press, 2004. p.43-75. Bellorin, A. e oliveira, M.C. Plastid origin: A driving force for the evolution of algae. In: Sharma, A.K. e Sharma, A. (editores) Plant Genome Biodiversity and Evolution, vol. 2, part. B, Enfield: Science Publishers, 2006. p.39-87. BruSCa, R.C. & BruSCa, G.J. Invertebrados. 2 ed., Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2007. 968p. CampBell, N.A. et. al. Biologia. 8 ed. Porto Alegre: Artmed, 2010. 1464p. CraCraft, J. e donoghue, M.J. (editores) Assembly the Tree of Life. Oxford: Oxford University Press, 2004. 576p. falkowaki, P. G. & knoll, A. H. Evolution of Primary producers in the Sea. Boston: Elsevier. 2007. 441p. lahr, D. J. G. et. al. The chastity of amoebae: re-evaluating evidence for sex in amoeboid organisms. Proceedings of the Royal Society. Biological Sciences, 2011. marguliS, L & SChwartz, K.V. Cinco Reinos. Um Guia Ilustrado dos Filos da Vida na Terra. 3 ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan, 2001. 497p. matioli, S.R. Biologia Molecular e Evolução. Ribeirão Preto-SP: Holos, 2001. 202p. raven, P.H.; evert R.F. e eiChhorn S.E. Biologia Vegetal. 7 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2007. 830p. ruppert, E.E.; fox, R.S. e BarnerS, R.D. Zoologia dos Invertebrados. 7 ed. São Paulo: Roca, 2005. 1145p. Sadava, D. et al. Vida. A Ciência da Biologia. vol. 2. Porto Alegre: Artmed, 2009. 1126p. TÓ PI CO Sônia Godoy Bueno Carvalho Lopes Fanly Fungyi Chow Ho PrOCeSSOS evOLuTIvOS 3 3.1 Introdução 3.2 Fatores que promovem aumento da variabilidade genética 3.2.1 Mutação 3.2.2 reprodução sexuada 3.2.3 Migração 3.2.4 Transferência horizontal de genes 3.3 Seleção Natural e Deriva Genética 3.3.1 Seleção Natural 3.3.2 Deriva genética 3.4 especiação 3.4.1 especiação alopátrica 3.4.2 especiação Simpátrica 3.4.3 especiação parapátrica 3.4.4 especiação peripátrica 3.5 Isolamentoreprodutivo 3.5.1 Barreiras reprodutivas pré-zigóticas. 3.5.2 Barreiras reprodutivas pós-zigóticas 3.6 Gradualismo e quilíbrio pontuado Licenciatura em ciências · USP/ Univesp Licenciatura em Ciências · uSP/univesp 37 3.1 Introdução Como já foi apresentado no tópico anterior, quando nos referimos à evolução, mencionamos os mecanismos que causam modificações genéticas nos organismos vivos e a transmissão dessas modificações a sucessivas gerações que, a longo termo, transformam as populações biológicas. Portanto, a unidade evolutiva é a população. População é conjunto de indivíduos entrecruzáveis que ocupa uma dada área geográfica num dado momento. Os fatores evolutivos que atuam sobre a população, causando variações, podem ser analisados em dois níveis: • Fatores que promovem aumento na variabilidade genética na população: mutação, repro- dução sexuada, imigração e transferência horizontal (ou lateral) de genes. Esses fatores são a origem da variabilidade genética. • Fatores que atuam sobre a variabilidade genética já existente, causando mudanças: seleção natural e deriva genética. • Fatores que promovem aumento na variabilidade genética na população: mutação, repro- dução sexuada, imigração e transferência horizontal (ou lateral) de genes. Esses fatores são a origem da variabilidade genética. Objetivos Espera-se que o aluno compreenda: • os mecanismos pelo qual a evolução se processa; • qual a origem e importância da variabilidade; • quais os efeitos da seleção natural e da deriva genética sobre populações; • o processo de especiação; • quais são os mecanismos que isolam reprodutivamente as espécies; • as teorias do Gradualismo e Equilíbrio. 38 Licenciatura em Ciências · uSP/univesp 3.2 Fatores que promovem aumento da variabilidade genética 3.2.1 Mutação Por mutação entende-se qualquer alteração da sequência de DNA, podendo ser benéfica, maléfica ou neutra para o indivíduo. Popularmente, mutações referem-se a alterações no ma- terial genético que resultam em aberrações no organismo que a contém. Porém, é importante ressaltar que nem todas as mutações acarretam alterações fenotípicas. Mutações podem ser causadas pela exposição do material genético a agentes externos (como luz ultravioleta, radiação) ou por mecanismos internos e naturais ao longo da vida do orga- nismo. Diversos processos celulares, como por exemplo a duplicação do DNA, que durante a divisão celular pode acarretar erros e danos à molécula de DNA. Apesar de o material genético ser copiado de forma muito eficiente durante esse processo, as enzimas especializadas nesta função podem cometer erros e introduzi-los à mais nova cópia do DNA. Quando esses erros não são reparados, caracterizam mutações no DNA do organismo. Esses “erros” são a origem primária da variabilidade genética nos organismos, e se forem transmitidos às gerações seguintes diz-se que possuem um valor evolutivo. 3.2.2 Reprodução sexuada A vantagem da reprodução sexuada é o aumento da variabilidade genética nos descendentes. Na reprodução sexuada podem ser considerados dois momentos importantes, que são ge- radores desse aumento da diversidade: a meiose na formação dos gametas e a fecundação. Na meiose, o número de cromossomos das células iniciais é reduzido à metade e gera variação genética. Por exemplo: na espécie humana há 46 cromossomos organizados em 23 pares de homólogos em cada célula do corpo. De uma célula inicial são formados, por meiose, quatro gametas com 23 cromossomos, sendo um cromossomo de cada par (na meiose ocorre a separação dos cromossomos homólo gos). Para se saber o número de tipos diferentes de gametas que uma só pessoa pode formar em um só processo de meiose, aplica-se o seguinte cálculo: 2n, em que n corresponde ao número de pares de cromossomos homólogos. Como na espécie humana esse número é 23, ao aplicarmos a fórmula temos 223, assim, obtemos 8.388.608 Licenciatura em Ciências · uSP/univesp 39 tipos de gametas diferentes. Na fecundação, dois gametas, sendo um masculino e um feminino, se unem ao acaso e o cálculo do número de encontros possíveis entre esses gametas é dado por (8.388.608)2, o que resulta em aproximadamente 70 trilhões de zigotos possíveis. Assim, a probabilidade de dois irmãos serem idênticos é muito pequena, a não ser nos casos de gêmeos monozigóticos, mas esses são casos especiais. Todos esses cálculos foram feitos sem considerar um processo que ocorre na meiose: a permu- tação, que é a quebra e a troca de trechos da molécula de DNA entre cromossomos homólogos, o que aumenta ainda mais o número de gametas diferentes que um indivíduo é capaz de formar. A cada geração, esse processo se repete de modo que novas combinações no material gené- tico são introduzidas na população. Assim, a reprodução sexuada entre os idivíduos de uma mesma população promove aumen- to na variabilidade genética dessa população. 3.2.3 Migração Por migração entende-se entrada (imigração) ou saída (emigração) de indivíduos de uma população. A imigração pode promover aumento na variabili- dade genética da população, pois os imigrantes podem conter outras combinações de genes geradas em suas populações de origem. Ao se reproduzirem sexuada- mente com os indivíduos da população para a qual imigraram, passam essas variações aos descendentes. As imigrações permitem que se estabeleça fluxo gênico entre populações distintas da mesma espécie, diminuindo as diferenças genéticas entre elas. Por outro lado, as emigrações podem reduzir a variabiliadade genética da população de origem. Em geral, esses eventos de emigrações são mais importantes em populações pequenas, em que a saída de alguns indivíduos pode significar considerável redução da variabilidae genética. Figura 3.1: Representação do mecanismo de imigração que contribui com o fluxo gênico entre populações. Algumas jo- aninhas pintadas podem se juntar à população de joaninhas não-pintadas. Isso poderia fazer com que a presença de pintas passasse a ser mais frequente na população na qual essas joaninhas imigraram. / Fonte: Cepa 40 Licenciatura em Ciências · uSP/univesp 3.2.4 Transferência horizontal de genes Ao contrário da transferência vertical de material genético, em que a transferência ocorre de um ancestral para a geração seguinte por reprodução, a transferência horizontal não é vinculada à produção de descendentes, mas sim à transferência de material genético entre indivíduos de espécies diferentes, sem que haja reprodução entre eles. Por esse motivo, até mesmo organismos que possuem alto grau de divergência (distantemente relacionados) são capazes de trocar informações genéticas: organismos dos domínios Archaea, Bacteria e Eukarya são capazes de transferir genes horizontalmente. Embora presente em todos os domínios, a transferência horizontal de genes é um instrumento central como fonte de variabilidade genética em micro-organismos. A transferência de material genético foi primeiramente evidenciada em procariontes. Por esse processo surgiu, por exemplo, a linhagem multi-resistente de Staphylococcus aureus, bactéria comu- mente encontrada em infecções hospitalares, resistente a diversas classes de agentes antimicrobianos. 3.3 Seleção Natural e Deriva Genética Sobre a variabilidade genética, já estabelecida nas populações pelos mecanismos descritos no item anterior, atuam os processos de seleção natural e deriva genética. Para que ocorra evolução, é fundamental a existência de variações, sejam morfológicas, fisiológicas e de comportamento, codificadas no material genético e passíveis de transmissão aos descendentes. 3.3.1 Seleção Natural Talvez, uma das características mais inspiradoras quando observamos a naturezaé a adaptação dos seres vivos ao meio em que vivem. É o caso das orquídeas, cujas flores possuem uma de suas pétalas especialmente modificada, capaz de enganar os machos de certas espécies de insetos. Estes, achando se tratar de uma fêmea, entram na flor da orquídea e, ao fazerem isso, coletam e dispersam involun- tariamente o pólen da planta. Essa adaptação da flor da orquídea propicia um eficiente método de polinização, garantindo a reprodução sexuada da planta. Outro exemplo é o dos insetos chamados es- peranças (família Tettigonidae), que possuem o par anterior de asas semelhante a folhas. Quando parados sobre as plantas das quais se alimentam, ficam imperceptíveis, de modo que seus predadores têm mais dificuldade em localizá-los. Esse mecanismo, chamado camuflagem, evita a predação. Licenciatura em Ciências · uSP/univesp 41 Para explicar essas e outras inúmeras adaptações que resultam num aprimoramento da so- brevivência e da capacidade reprodutiva, Darwin e Wallace propuseram a Teoria da seleção natural, central no processo evolutivo. Em um exemplo bastante simples, considere- mos uma população de gafanhotos. Suponhamos que um dos gafanhotos dessa população, por um processo qualquer de variação genética, passe a apresentar uma coloração que permita se camuflar melhor no habitat em que vive. A camuflagem, que dificulta sua predação por aves, aumenta as chan- ces de sobrevivência do gafanhoto. Uma maior chance de sobrevivência leva a um maior número de oportunidades para reprodução e, consequen- temente, a um maior número de descendentes. Esses descendentes, que carregam geneticamente a adaptação vantajosa da nova coloração, geração após geração, passam a aumentar em frequência na população. A população de gafanhotos passa, então, a ter a cor variante como predominante e como característica determinante para a sobrevivência da espécie. Nesse exemplo, dizemos que essa população de gafanhotos está sendo selecionada naturalmente. Uma variante da seleção natural é a seleção sexual, em que as adaptações selecionadas referem-se ao sucesso na obtenção de parceiros, em vez de adaptações para aprimoramento da sobrevivência. Mas em organismos sexuados, sobrevivência não tem valor evolutivo quando não há reprodução, e, portanto, a transmissão de seu material genético para os descendentes. Para demonstrar seu vigor e convencer a fêmea de que são os mais bem adaptados ao meio, os A seleção natural é um processo evolutivo que atua constantemente nos seres vivos. Assista ao vídeo 1 da atividade complementar para descobrir um exemplo de seleção natural que podemos ob- servar nos dias de hoje. Figura 3.2: clique na imagem para visualizar a animação / Fonte: Cepa 42 Licenciatura em Ciências · uSP/univesp machos podem utilizar duas estratégias: exibição para a fêmea de padrões de cores, ou disputar com outros machos para que vença o mais forte. As fêmeas também podem escolher com quem acasalar, sendo esse mais um fator de seleção sexual. Seleção artificial Em A Origem das Espécies, Darwin também discorreu sobre a variação e a seleção de organismos domesticados, denominando-as de seleção artificial. Esse tipo de seleção difere da seleção natural por focar em uma ou poucas características do organismo de interesse para o ser humano, ao invés da adapta- ção do ser vivo ao ambiente em que vive. Assim, seleção e manutenção de características em um organis- mo também podem ser feitas de modo artificial. Fala-se em seleção artificial quando a ação humana age como força seletiva e direciona o desenvolvi- mento de determinadas características. Um exemplo cotidiano é a domesticação e a produ- ção de novas raças de cães. Apesar de todos os cães domésticos serem da espécie Canis familia- ris, podem apresentar imensa variação de tama- nho, coloração e estrutura corporal. Depen- dendo das preferências físicas ou comportamentais que se deseja ressaltar no animal – companheirismo, caça, pastoreio, padrões de cor, pêlo – determina-se quais indi- víduos vão se reproduzir, selecionando as características a serem propagadas aos descendentes. Durante toda a história, o ser humano selecionou artificialmente diversas espécies animais e vegetais, visando seu benefício. Um exemplo interessante de versatilidade é a mostarda selvagem (Brassica oleracea). Assista ao vídeo 2 da atividade complementar para expandir seus conhecimentos sobre seleção sexual. Figura 3.3: Cães domésticos (Canis familiaris) apresentam grande variação devido à seleção artificial de características físicas e comporta- mentais desejadas pelo ser humano. / Fonte: Thinkstock Agora é com você: Realizar atividade online 1 Licenciatura em Ciências · uSP/univesp 43 3.3.2 Deriva genética A deriva genética corresponde à flutuação da com- posição genética das populações como consequência do acaso. Consideremos uma população com indi- víduos que apresentam variações genéticas entre si. A cada geração, alguns indivíduos podem, somente pela força do acaso, deixar mais descendentes do que outros indivíduos, aumentando a frequência de uma certa variação dentro da população. Note que a variação em questão não aumentou na população por conferir uma “melhor chance de sobrevivência” ou por proporcionar alguma “vantagem qualquer” ao indivíduo, mas aumentou simplesmente ao acaso, aleatoriamente. É por esse motivo que eventos de deriva genética são chamados de não adaptativos. São exemplos de eventos que podem causar a deriva genética: desastres ecológicos como incên- dios florestais, inundações, desmatamentos, que podem reduzir drasticamente o tamanho de uma população, mencionando aqui o efeito de gargalo da garrafa. Ao reduzir o número de indivíduos, esses eventos também reduzem a quantidade de varia- ção genética da população. Por ser de natureza aleatória, há chance de certa variação genética passar a ter frequência maior na população simplesmente por acaso, e não porque confere alguma vantagem adaptativa aos indivíduos que a contêm. Agora é com você: Realizar atividade online 2 Figura 3.4: Representação do efeito de gargalo da garrafa. Por algum evento aleatório, o número de indivíduos da população (representado pelas bolinhas) é drasticamente reduzido. A variabilidade genética (representada pelas cores das bolinhas) também é drasticamente reduzida na população sobrevivente / Fonte: Cepa; Adaptado de Campbell e Reece, 2008 Figura 3.5: Evento de deriva genética sobre uma população de besouros composta por indivíduos verdes e marrons. Neste exemplo, a variação ‘cor marrom’ não confere nenhuma vantagem adaptativa aos besouros, e ao acaso, aumentou em frequência na população (a pessoa, por acaso, matou somente os besouros da cor verde ao pisar nesta população). Há agora uma maior probabilidade desta população ser futuramente composta por indivíduos somente da cor marrom. / Fonte: Cepa 44 Licenciatura em Ciências · uSP/univesp A redução da variação genética significa que a população pode não se adaptar a novas pres- sões seletivas, como mudanças climáticas ou mudança da disponibilidade de recursos, porque a variação genética sobre a qual a seleção natural atuaria pode já ter sido excluída aleatoriamente pela redução severa da população. Dessa forma, nem todas as populações conseguem se recu- perar de um evento de deriva, em especial de um evento do efeito de gargalo, podendo levar populações à extinção. Uma importante variável no impacto de um evento de deriva depende do número de indi- víduos que compõem a população: a deriva genética tem um efeito maior quanto menor for o tamanho da população. Resumidamente, em uma população pequena há um menor número de
Compartilhar