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O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E OS REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA SE AUTORIZAR RESTRIÇÃO A DIREITOS FUNDAMENTAIS Revista dos Tribunais | vol. 907 | p. 61 | Mai / 2011 | DTR\2011\1443 Georges Abboud Mestre e Doutorando em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Advogado. Área do Direito: Constitucional ; Fundamentos do Direito Resumo: O presente artigo tem por escopo demonstrar a relação existente entre a evolução do constitucionalismo e a regulação do Poder Público, a fim de evidenciar que os direitos fundamentais constituem conquista histórica, limitando e regulando toda a atuação do Estado. A partir desse embasamento, explicitar-se-á o equívoco de se preconizar a supremacia do interesse público sobre os direitos fundamentais, evidenciando a dimensão constitucional desses direitos. Por fim, serão elencados os requisitos necessários para as hipóteses que se possam admitir restrições a direitos fundamentais no Estado Constitucional. Palavras-chave: Direitos fundamentais - Constitucionalismo - Interesse público - Controle difuso de constitucionalidade - Restrição a direitos fundamentais. Abstract: The scope of the present article is to demonstrate the relation that exists between the evolution of constitutionalism and the regulation of public power, in order to evince that fundamental rights represent an historical achievement, limiting and regulating the whole role of the State. As of this premise, one shall render understandable the misconception of advocating the supremacy of public interest over fundamental rights, making evident the constitutional dimension of the latter. Lastly, one shall list the necessary requisites for admitting restrictions to fundamental rights within a Constitutional State. Keywords: Fundamental rights - Constitutionalism - Public interest - Diffuse constitutionality control - Restriction to fundamental rights. Sumário: 1.INTRODUÇÃO - 2.A POSIÇÃO E A NORMATIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO CONSTITUCIONAL - 3.OS MODELOS DE FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO DO CONSTITUCIONALISMO - 4.A DIMENSÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS - 5.O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS - 6.ROL DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA SE ADMITIR RESTRIÇÃO A DIREITO FUNDAMENTAL - 7.CONCLUSÕES PRINCIPAIS - 8.BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 1. INTRODUÇÃO O presente artigo tem o intuito de explicitar a intrínseca relação existente entre a evolução do constitucionalismo e o recrudescimento da regulação do Poder Público mediante a institucionalização dos direitos fundamentais. Para atingir seu desiderato, de início, tratar-se-á a posição que atualmente os direitos fundamentais ocupam no Estado Constitucional, ressaltando sua eficácia e normatividade. No momento subsequente, serão expostos os três modelos de fundamentação das liberdades, propostos por Maurizio Fioravanti: o individualista, historicista e estatalista. A caracterização desses três modelos será feita juntamente com a evolução histórica do constitucionalismo proposta por Nicola Matteucci, com o intuito de demonstrar como os direitos fundamentais devem ser concebidos como conquista histórica de nossa sociedade e, por conseguinte, esses direitos constituem, hodiernamente, limites para a atuação do Estado. A visão dos direitos fundamentais como conquista histórica, evidenciará a defasagem que o paradigma estatalista possui para garantir a preservação desses direitos. Desse modo, serão lançadas as bases teóricas necessárias para a desconstrução do mito da supremacia do interesse público sobre tais direitos. O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO A dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos necessários para se Página 1 Por fim, será tratado o problema relativo à restrição dos direitos fundamentais no Estado Constitucional. Com fundamento na doutrina suíça, elaborar-se-á rol de requisitos necessários para se admitir qualquer restrição a direitos fundamentais. 2. A POSIÇÃO E A NORMATIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO CONSTITUCIONAL 2.1 Conceito de direitos fundamentais Os direitos fundamentais ( Grundrechte) constituem na atualidade o conceito que engloba os direitos humanos universais e os direitos nacionais dos cidadãos. As duas classes de direitos são, ainda que com intensidade diferente, parte integrante necessária da cultura jurídica de todo o Estado Constitucional. 1 2.2 Direitos fundamentais e a limitação e vinculação do Poder Público Em um Estado de Direito, existe forte sentido substancial exercido pelos direitos fundamentais em relação à atuação do Poder Público. Assim, os Poderes estão limitados e vinculados à Constituição, não somente no que se refere à forma e procedimentos, mas também quanto aos conteúdos. Por outros termos, no Estado Constitucional de Direito, a Constituição além de disciplinar as formas de produção legislativa, também impõe a esta proibições e obrigações de conteúdo correspondentes aos direitos de liberdade e aos direitos sociais, cuja violação ocasiona antinomias e lacunas que a ciência jurídica precisa identificar para que sejam eliminadas e corrigidas. 2 Desse modo, cabe especificar, como bem ensina Garcia Herrera, que o Estado Democrático de Direito, em uma perspectiva garantista, está caracterizado pelo princípio da legalidade formal que subordina os Poderes Públicos às leis gerais e abstratas, bem como pela legalidade substancial que vincula o funcionamento dos três poderes à garantia dos direitos fundamentais. 3 Sendo assim, é facilmente perceptível que os direitos fundamentais constituem, primordialmente, uma reserva de direitos que não pode ser atingida pelo Estado [Poder Público] ou pelos próprios particulares. 4 Na realidade, os direitos fundamentais asseguram ao cidadão um feixe de direitos e garantias que não poderão ser violados por nenhuma das esferas do Poder Público. Os referidos direitos apresentam dupla função: constituem prerrogativas que asseguram diversas posições jurídicas ao cidadão, ao mesmo tempo em que constituem limites/restrições à atuação do Estado. 5 Hodiernamente, a existência e a preservação dos direitos fundamentais são requisitos fundamentais para se estruturar o Estado Constitucional tanto no âmbito formal quanto material. Assim, demonstraremos qual a relação estabelecida entre o desenvolvimento do constitucionalismo e a consagração dos direitos fundamentais, bem como evidenciaremos o mito consistente na assertiva de que sempre haveria supremacia do interesse público sobre o individual. Por fim, elaboraremos rol a fim de identificar quais são os requisitos – que necessariamente precisam ser atendidos – para se admitir que ocorra restrição a qualquer direito fundamental. 3. OS MODELOS DE FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO DO CONSTITUCIONALISMO Maurizio Fioravanti, 6 em obra dedicada à evolução dos direitos fundamentais, propõe um esquema em três modelos de fundamentação teórica das liberdades (direitos fundamentais de primeira dimensão). A partir da classificação proposta por ele, lançaremos as premissas teóricas que servirão de fundamento para algumas das conclusões finais. 3.1 O modelo historicista O primeiro modelo é o Historicista, 7 desenvolvido pela tradição anglo-saxônica das liberdades, cuja principal característica é a constatação de que o reconhecimento dos direitos se dá mediante processo histórico que se confunde com o próprio common law. 3.1.1 A jurisprudência como elemento fundamental do common law autorizar restrição a direitos fundamentais Página 2 O modelo historicista desenvolve-se juntamente com o common law, cujo maior expoente a ser apontado é a própria Inglaterra. O modelo inglês/historicista é essencialmente distinto dos demais por conter elementogenuíno e dinâmico: a jurisprudência. A jurisprudência é o verdadeiro fator de unidade e coesão da história nacional constitucional inglesa. Nesse modelo, são os juízes – e não os Príncipes ou os Legisladores – os responsáveis pela construção do direito comum inglês ( common law). Assim, ela é o instrumento principal de elaboração das regras de tutela das liberdades que foram evoluindo desde a Idade Média até a Idade Moderna. Desse modo, formou-se, no modelo inglês, a convicção de que o tema das liberdades, enquanto expressão da jurisprudência e manifestação das regras do common law, é substancialmente indisponível por parte do Poder Público, seja ele Executivo ou Legislativo. Vale dizer que a Inglaterra, ao contrário da França, não admitiu a figura do Legislador Absoluto, mesmo a partir da Glorious Revolution. Isso porque a soberania parlamentária surgiu para limitar o Poder Real, não tendo nunca se desvirtuado a fim de se transmudar em poder soberano e ilimitado. 8 Ademais, a posição do Poder Legislativo a partir da Carta Magna ( LGL 1988\3 ) inglesa de 1215 também é peculiar em relação aos demais países europeus. Na Inglaterra, o Parlamento inglês aparece em confronto com o rei como o sujeito da unidade nacional (política) na luta contra os demais estamentos medievais. 9 O papel da jurisprudência como o principal elemento de criação e fundamentação dos direitos fundamentais confere ao modelo historicista uma limitação ao Legislativo, ainda que o órgão legiferante seja o próprio Poder Constituinte, órgão este que é desconhecido nos demais paradigmas (estatalista e individualista). Na realidade, foi mérito de Coke 10 e Selden 11 terem conseguido estabelecer uma aliança orgânica entre os juristas e os parlamentares. A partir desse cenário, a vitória do constitucionalismo na Inglaterra se explica a partir dessa aliança orgânica, conforme será tratado no item subsequente. 12 3.1.2 A intangibilidade dos direitos fundamentais no constitucionalismo inglês – Revolução Gloriosa e a Petition of Right O constitucionalismo inglês desconfia de uma concepção radical do Poder Constituinte. 13 Nesse sistema, o citado poder, ainda que originário, não possui legitimidade para iniciar a partir do zero sua ação. A sua atuação, em última instância, está limitada pelo catálogo de direitos fundamentais que foram historicamente garantidos pela própria jurisprudência. Com efeito, a doutrina de John Locke 14 assegura ao povo o direito de resistência, em caso de tirania e de dissolução do governo. Trata-se de direito concebido como instrumento de restauração da legalidade violada e não como instrumento de projeção de uma nova e melhor ordem política. 15 A própria essência da revolução gloriosa consistia em solucionar o problema da limitação do Poder Público pelo próprio direito, de modo que, para deslindar esse conflito, a obra de John Locke foi essencial. 16 Em que pese ter sido John Locke o principal teórico a conceber a existência de núcleo intangível de direitos fundamentais que não poderiam ser alcançados nem pelo próprio Poder Público, 17 foi o desenvolvimento do common law inglesa, principalmente em virtude da revolução gloriosa e da atuação de Coke que, na prática, ficou garantida a intangibilidade dos direitos fundamentais. A consolidação da revolução gloriosa constitui acontecimento histórico fundamental para a colocação dos direitos fundamentais como elemento jurídico estruturante e legitimador do Estado Democrático de Direito (Estado Constitucional). Na revolução gloriosa, Thomas Cromwell realizou uma revolução governamental, por meio de racionalização burocrática da administração central para fazê-la mais eficiente e forte. 18 A partir da revolução gloriosa, passou-se a admitir determinado limite instransponível para o Poder Público em relação aos direitos fundamentais. Esse limite consistia justamente no próprio common law. Assim, dizer common law era dizer também supremacia da lei, reconhecer, portanto, que esta representava algo fundamental, já que garantiria o direito dos ingleses, de que nenhum poder do mundo poderia usurpar. 19 O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO A dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos necessários para se Página 3 Nesse ponto, principalmente em razão da atuação de Coke e do advento da Petition of Right de 1628, 20 passa a ocorrer forte restrição ao Poder Público. Ou seja, o poder real em nenhuma hipótese poderia sobrepor-se à legalidade posta para violar ou restringir direitos fundamentais. Sobre esse ponto, Nicola Matteucci destaca que a política de Coke pode ser sintetizada em uma célebre afirmação. O common law tem redimensionado tanto as prerrogativas do rei, que estas não podem usurpar nem prejudicar o patrimônio de ninguém e o melhor patrimônio que alguém pode ter é a lei de seu reino. 21 Assim, pode-se concluir que, no modelo historicista, as liberdades civis (negativas, patrimoniais e civis) ocupam posição extremamente privilegiada, inclusive em relação às liberdades políticas. Nesse sistema, as liberdades políticas são acessórias em relação às civis. Destarte, a possibilidade de participar da formação da lei está em função de se poder controlar e equilibrar as forças, para manter-se incólume a proteção dos direitos já conquistados. Dessa maneira, no constitucionalismo inglês não se consegue precisar o momento constituinte puramente originário, entendido como poder absoluto do povo ou da nação para projetar uma nova ordem constitucional dependente da vontade dos cidadãos. A esta premissa se opõe a dimensão irrenunciável do governo moderado e equilibrado como forma que a história o tem apresentado: que o indivíduo não pode perturbar outrem sem que concomitantemente seja perturbada toda a ordem política e social. 22 Em síntese, pode-se afirmar que o modelo historicista [inglês] confere especial importância às liberdades civis (direitos fundamentais), tendo sido seu principal elemento diferenciador – a jurisprudência – a responsável pela construção e proteção desses direitos. Dessa forma, historicamente, a atuação do Poder Executivo e a atividade do Legislativo foram limitadas pela manutenção e garantia dessas liberdades conquistadas/asseguradas pela jurisprudência, de modo que o constitucionalismo inglês não admite a figura do Poder Constituinte ilimitado, porquanto mesmo esse poder somente pode atuar para resgatar o governo limitado e moderado respeitador dos direitos fundamentais. Destarte, toda atuação, ainda que do Poder Constituinte de maneira contrária, deverá ser prontamente rechaçada pelo direito de resistência, a fim de que seja restaurada a legalidade anterior que era respeitadora das liberdades civis. 3.2 O modelo individualista O modelo individualista está presente, de alguma forma, tanto na tradição continental como na tradição anglo-saxônica, como produto próprio dos processos de transformações sociais, culturais e do saber que se operaram na modernidade e foram, de alguma forma, aquilo que possibilitou o rompimento com o modelo político-jurídico-social predominante no Medievo. O modelo individualista também, a seu modo, orienta-se para tutelar o binômio liberdade e propriedade. 23 3.2.1 Revolução Francesa e a Declaração de Direitos No continente, a expressão maior do modelo individualista se manifesta a partir da experiência revolucionária da França e da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. 24 Na tradição individualista, o poder é transferido do monarca absoluto para o povo, enquanto fruto da inspiração jacobina da democracia. Assume relevância aqui o conteúdo revolucionário deste modelo e a influência que as teorias contratualistas exerceram sobre ele. 25 No modelo individualista o Poder Constituinte pressupõe o povo como uma unidade política existencial. A palavra nação designa um povo capaz de atuar com consciência política. O povo se converte em nação no exato momentoem que passa a ter consciência política. 26 Com efeito, a forma de garantia dos direitos, à moda do jusnaturalismo racionalista moderno, dá-se pelo reconhecimento, pelo Estado, de direitos preexistentes ao pacto social pós-revolucionário. A doutrina do Poder Constituinte do Povo também merece destaque, pois admite um poder autônomo, reportado ao povo, que precede e determina os poderes estatais constituídos. Neste modelo, a sociedade é composta de indivíduos politicamente ativos, com sua autônoma subjetividade distinta e precedente ao Estado, que impõe respectivamente a presunção geral de liberdade e a presença de um poder constituinte já estruturado. 27 O modelo individualista tem como premissa fundamental a primazia do indivíduo exclusivamente autorizar restrição a direitos fundamentais Página 4 perante o poder estatal. Ponto marcante que o distingue do modelo historicista diz respeito ao lugar ocupado pela revolução em cada um deles. Em resumo, o modelo historicista preconiza primordialmente a ideia do governo limitado. O individualista, por sua vez, sustenta em primeiro lugar, uma revolução social que elimine os privilégios e a ordem estamental que os fundamenta. 28 No paradigma individualista, a Constituição não é apenas um pacto entre o príncipe e o povo ou qualquer outra organização estamental. Nesse modelo, a Constituição consiste na decisão política adotada pela nação, que é uma instituição una, indivisível e capaz de fixar seu próprio destino. Para o modelo individualista, toda a Constituição pressupõe essa unidade. 29 O paradigma historicista critica o modelo individualista, porque esse admitiria excessivamente a necessidade de instrumento coletivo, o Estado ou a vontade geral da nação que poderia eliminar totalmente a ordem jurídico-social vigente. Já para o modelo individualista, o defeito principal do historicista seria o excesso de timidez e moderação ao estender os novos valores do individualismo liberal e burguês contra privilégios já estabelecidos. 30 3.2.2 A posição da sociedade civil e do Poder Constituinte no modelo individualista O modelo individualista é fundamentado no contratualismo 31 e reivindica como premissa a presunção de liberdade, portanto, defende que o exercício das liberdades não pode ser guiado ou dirigido pela autoridade pública, mas tão somente delimitado pelo legislador. 32 A sociedade civil ocupa posição de destaque no paradigma individualista, diferenciando-se do modelo estatalista justamente por defender a preeminência da sociedade civil em relação ao Estado. A existência da sociedade civil anterior ao Estado não implica desnecessidade do Estado. A sociedade civil necessita do Estado e de sua legislação para consolidar posições e garantir direitos, porém, tanto as posições quanto os direitos existem antes do próprio Estado político, podendo ser encontrados no próprio estado de natureza, tal como preconizam as doutrinas contratualistas dos séculos XVII e XVIII. 33 Por consequência, no modelo individualista, o Estado é criado para aperfeiçoar a tutela dos direitos, bem como para delimitar com mais precisão e segurança as esferas de liberdade de cada um e assim prevenir o nascimento de conflito radical. Dessa forma, o Estado nunca é concebido para fundar ou criar esses direitos individuais, mas tão somente para melhor resguardá-los. 34 O modelo individualista sustenta a total primazia e anterioridade dos direitos fundamentais em relação à figura do Estado, que surge como instrumento para garantir e aperfeiçoar a tutela dos referidos direitos. No modelo individualista, o Poder Constituinte também é elemento diferenciador. Nesse paradigma, o Poder Constituinte é tratado como o fundamental e originário poder dos indivíduos de decidir sobre a forma e o rumo da estrutura política, ou seja, o Estado. Este Poder Constituinte será o pai do todas as liberdades políticas. 35 Nesse ponto, o modelo individualista também se diferencia do estatalista, na medida em que o Poder Constituinte é com ele incompatível. Essa incompatibilidade ocorre porque, nesse modelo, a sociedade de indivíduos politicamente ativos nasce somente com o Estado e através do Estado, antes desse momento não existe nenhum sujeito politicamente significativo. O estatalista não reconhece a qualidade de sujeito político ao povo ou à nação antes da existência do próprio Estado. 36 Assim, somente a partir da visão individualista é que se consegue conceber a existência de Poder Constituinte autônomo que precede e determina os poderes estatais constituídos. Com efeito, a perspectiva individualista preconiza que antes de se produzir o pactum subiectionis, por meio do qual os indivíduos se submetem à autoridade comum, existe anterior a essa sujeição, um ato precedente e distinto que é o pactum societatis. A partir desse pacto, nasce a sociedade civil dos indivíduos que é também a sociedade dos indivíduos politicamente ativos, o povo ou nação da Revolução Francesa, que tem total autonomia para exercer o Poder Constituinte para decidir e fundar o tipo de Estado desejado. 37 Historicamente, os modelos individualista e historicista disputam qual a melhor forma de se tutelar os direitos individuais. A visão individualista, ainda que em menor escala, também possui diferenças em O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO A dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos necessários para se Página 5 relação à historicista. Em conformidade com o exposto, os individualistas postulam que o melhor modo de garantir as liberdades é confiá-las à autoridade da lei do Estado, dentro dos limites rigidamente fixados pela presunção de liberdade e a condição sine qua non de que o Estado seja posterior à sociedade civil, por consequência, fruto da vontade constituinte dos cidadãos. Já os historicistas preconizam que não existem garantias sérias e estáveis de manutenção das liberdades – uma vez que o poder político já tenha se apoderado da capacidade de defini-las. Assim, para o historicista, a melhor forma de se tutelar e garantir essas liberdades é mediante a atuação da jurisprudência em virtude de sua natureza mais prudente e ligada ao transcurso natural do tempo e à evolução da sociedade. 38 Contudo, a figura do Poder Constituinte é elemento diferenciador fundamental entre o paradigma individualista e o historicista. O segundo defende que as liberdades (positivas) devem ser gradualmente ampliadas e asseguradas na esfera legislativa. Ocorre que o historicista desconfia da manifestação interna e com forte participação da liberdade política de decidir das Assembleias Constituintes. Por isso, na história constitucional inglesa, não existem as Assembleias Constituintes, presentes na história constitucional francesa. O modelo historicista considera perigosa a manifestação ilimitada do Poder Constituinte originário, em virtude da total instabilidade que é ínsita a essas formas de manifestação. Essa instabilidade do Poder Constituinte pode acarretar sérias distorções no momento de determinar a nova forma política do Estado. Ou seja, a atuação do Poder Constituinte ilimitado escapa das prudentes leis da história e do controle da jurisprudência, ficando totalmente sujeito à vontade flutuante e mutável da maioria eventual dos cidadãos. 39 3.3 O modelo estatalista O modelo estatalista é o que se forma na Europa continental a partir do século XIX, no período exatamente posterior à chamada codificação dos ideais jusnaturalistas com os Códigos Civis francês e alemão e que coincide com o aparelhamento burocrático do Estado de Direito liberal e a formação do Direito Público europeu. 3.3.1 O modelo estatalista e sua confrontação com o modelo individualista A melhor forma de compreender a doutrina estatalista é confrontá-la com aquilo que ela pretende superar: o individualismo revolucionário que a antecede. Quanto ao modelo historicista, o estatalismo não o rechaça completamente.Pelo contrário, acaba se aproximando dele em alguns pontos, embora discorde em relação ao modo de fundamentação do próprio poder. Em primeiro lugar, é preciso destacar que também o modelo individualista-revolucionário reveste-se de certo caráter estatalista na medida em que a fundamentação das liberdades se encontra dada a partir de Declarações estatais que reconhecem os direitos dos cidadãos existentes antes da formação do Estado. Como afirma Fioravanti, o modelo estatalista se difere do individualista porque neste, ao contrário daquele, presume-se a existência da sociedade civil dos indivíduos como anterior ao Estado. Mas o elemento estado e o sentimento de descontinuidade histórica – que também se manifesta no modelo estatalista – afigura-se presente já neste primeiro período pós-revolução. É interessante notar que, historicamente, o modelo estatalista é possibilitado por aquilo que ele mesmo pretende superar. Com efeito, as principais estruturas estatalistas já estavam presentes na forma de fundamentar as liberdades do individualismo revolucionário. Há apenas uma “mudança de rota” com a radicalização do papel que o direito posto pelo Estado exerce em relação aos indivíduos. Neste ponto, Castanheira Neves é extremamente perspicaz ao demonstrar a íntima relação que o iluminismo racionalista possui com o positivismo jurídico que se forma exatamente no ambiente de estruturação do Estado de Direito do século XIX. 40 Em outros termos, há uma estreita relação entre a consolidação do positivismo jurídico e o modelo estatalista de fundamentação das liberdades. Para pontuar essa primeira diferença, podemos dizer que, se no modelo individualista, a fundamentação das liberdades se dava através de uma situação pré-estatal que justificava o reconhecimento pelo Estado de direitos inalienáveis do indivíduo, no modelo estatalista, é o fato da própria positivação da lei que fará a função de fundamento. Ou seja, tecnicamente é certo dizer que, no interior do modelo estatalista só há um direito: o de ser tratado conforme as leis postas pelo autorizar restrição a direitos fundamentais Página 6 Estado. De forma elucidativa, o modelo individualista sempre pressupôs uma dualidade entre liberdade e poder – como sabemos, antes do Estado existe a sociedade civil dos indivíduos dotados de direitos naturais e, ao mesmo tempo, a sociedade dos indivíduos politicamente ativos dotados da liberdade fundamental de querer uma ordem política organizada: o Estado. 41 Todo século XIX, por sua vez, está marcado principalmente pela atuação de juristas, por uma reação frente ao individualismo e ao contratualismo da revolução. Para a doutrina estatalista do Estado Liberal europeu do século XIX, não existe nenhuma liberdade e nenhum direito individual anterior ao Estado, mais precisamente, antes da força imperativa e autorizante das normas do Estado que são as únicas capazes de organizar a sociedade e de fixar as posições jurídicas subjetivas de cada um. 42 3.3.2 A posição do indivíduo e da sociedade civil no modelo estatalista Conferindo continuidade à exposição do paradigma estatalista, passar-se-á ao exame que esse modelo confere à fundamentação das liberdades. No paradigma estatalista, o Estado político organizado nasce da vontade dos indivíduos, principalmente em virtude da necessidade e do desejo de segurança. Ocorre que no estatalismo, o Estado político não se estrutura a partir de contrato estabelecido entre os cidadãos e o Estado que contenha recíprocas vantagens. No modelo estatalista, a formação do Estado ocorre mediante um pacto de subordinação, cujo conteúdo é inegociável, pelo qual os sujeitos se submetem, simultaneamente, ao monopólio do imperium. Essa sujeição é realizada para que o soberano possa, com sua capacidade de governar, moderar os conflitos sociais e assim, propiciar aos governados condições mais seguras para viver em sociedade, e para preservação dos direitos fundamentais. 43 Fioravanti prossegue seu raciocínio asseverando que na lógica estatalista, entidades coletivas como povo ou sociedade não são impensáveis antes e fora do Estado. No modelo estatalista, a sociedade dos indivíduos politicamente organizada somente se converte em povo ou não mediante sua representação unitária por parte do Estado soberano. Para o estatalismo, pouco importa se a referida representação seja dada por monarca absolutista ou por assembleia mais ou menos democraticamente eleita. Com efeito, o que interessa é o fato de que um ou outro, na cultura estatalista, não é o resultado de uma construção contratualista desde a base. Desse modo, a partir do Poder Constituinte que é atribuído à sociedade originária de indivíduos politicamente ativos, cria-se a condição absolutamente necessária para a existência de um corpo político unitário, que de outro modo seria uma mera multidão desagregada e politicamente incapaz de se expressar. 44 Nos moldes estatalistas, quando o cidadão elege seus representantes, não lhes transmite os poderes que tem originariamente, mas tão somente exerce uma função: a de designar, com fundamento no interesse público e sobre a base exclusiva do direito estatal, os representantes políticos que deveriam expressar a soberania do Estado na forma da lei. 45 3.3.3 Conclusão sobre o modelo estatalista e a posição da jurisprudência Em resumo, no paradigma estatalista todas as liberdades se fundam única e exclusivamente sobre as normas impostas pelo próprio Estado. Assim, forçosamente se deve admitir que nesse modelo, apenas existe um único direito fundamental, qual seja, de ser tratado conforme as leis do Estado. Ou seja, toda a problemática das liberdades se reduz ao problema da actio, 46 em virtude das soluções jurídicas que poderão ser invocadas quando alguém lesione direito fundamental de outrem fundado e garantido na legislação vigente. No modelo estatalista, faz-se necessário ressaltar o relativo desprestígio que a jurisprudência (Judiciário) sofre quando o paradigma estatalista é comparado principalmente ao modelo historicista. Em sistema político erigido sobre princípios de caráter estatalista, é difícil que o juiz [ordinário ou administrativo] seja completamente livre para tutelar direitos individuais no momento em que se chocarem com razões de autoridade. Nesses momentos críticos, o Estado não pode atuar como terceiro neutro perante conflitos estabelecidos entre as razões individuais dos particulares e as razões da autoridade pública da burocracia do Estado. 47 4. A DIMENSÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO A dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos necessários para se Página 7 4.1 Direitos fundamentais e Constituição Federal Atualmente, na maior parte dos Estados Democráticos, os direitos fundamentais estão catalogados e assegurados em textos constitucionais. Por consequência, os direitos fundamentais possuem absoluta normatividade, devendo ser aplicados imediatamente. Nesse sentido, Friedrich Müller pontua que, a partir do momento em que são positivados no texto constitucional, os direitos fundamentais passam a ser considerados direito vigente, adquirindo caráter estatal-normativo, por consequência, sua obediência significa respeitar o próprio direito positivo. 48 Assim, a positivação dos direitos fundamentais nos textos constitucionais é importante para a respectiva concretização desses direitos. Todavia, ainda que tenham sua normatividade diretamente proveniente do texto constitucional, a existência dos direitos fundamentais é fruto do desenvolvimento histórico de cultura de cada sociedade (historicismo). Nesse ponto, passar-se-á a examinar a insuficiência do paradigma estatalista para tutelar os direitos fundamentais. Em conformidade com o que expusemos, Fioravanti demonstra que o modelo individualista e o historicista concordam que o primeiro dever do constitucionalismo é realizaro controle e a limitação do poder em nome das liberdades e dos direitos fundamentais que o precedem. 49 4.2 A importância do elemento historicista para a proteção dos direitos fundamentais Hodiernamente, a Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) , principalmente em seu art. 5.º, elenca extenso rol de direitos fundamentais e também assegura diversos instrumentos processuais para garantir sua efetividade. Entretanto, diante de situação de exceção (anormalidade), quais garantias o cidadão possui para que continuem sendo respeitados e assegurados seus direitos fundamentais? Fioravanti aponta diversos questionamentos a que o modelo estatalista é insuficiente para responder. Quais garantias pode oferecer uma lei do Estado desligada de toda a referência externa? Quem pode garantir que os direitos e liberdades fixados na lei não sejam no instante seguinte anulados pela mesma autoridade, por meio de seu poder soberano? Responder a essas indagações é algo extremamente complexo. Contudo, pode-se afirmar que o modelo estatalista é totalmente insuficiente para retorquir essas questões. A solução desses questionamentos deve partir do paradigma individualista e principalmente do historicista, porquanto ambos submetem o soberano (seja rei, presidente ou assembleia legislativa) a vínculos superiores, e.g., força dos costumes, direitos radicados na história, ou mesmo Constituição escrita que pretende impor-se como norma fundamental superior até mesmo ao soberano (cláusulas pétreas). 50 Nessa perspectiva é que se apresenta importante a elaboração de uma teoria referente às restrições aos direitos fundamentais. Em conformidade com o que expusemos, a evolução do constitucionalismo tem como um de seus escopos principais a regulação [controle] do poder e, consequentemente, a preservação dos direitos fundamentais. 51 4.3 A judicial review como direito fundamental Para a citada valorização dos direitos fundamentais, o pensamento de Coke foi essencial, uma vez que foi ele quem conferiu, ainda que no common law, status superior à Constituição. Para Coke, a Carta Magna ( LGL 1988\3 ) constituiu um colosso de estatura tal que não pode suportar nenhum soberano acima dela. Essa é a premissa sustentada por Coke para defender a supremacia do parlamento, não a sua soberania. 52 Depois de proceder à limitação do poder do rei e restringir a soberania do parlamento, Coke passa a demonstrar a importância fundamental que a atuação do Judiciário deve desempenhar para a implementação dos direitos fundamentais. Assim, os juízes eram verdadeiros leões que deveriam custodiar, frente ao rei, os direitos dos cidadãos. 53 4.3.1 A origem histórica da judicial review O controle de constitucionalidade tem sua origem no processo Bonham. Esse processo, que teve Coke como seu protagonista, muito provavelmente contém uma das mais famosas e discutidas sentenças judiciais, uma vez que ela constitui precedente da moderna instituição conhecida como controle de constitucionalidade. 54 4.3.1.1 Bonham’s case. A contribuição de Edward Coke para a estruturação da judicial review autorizar restrição a direitos fundamentais Página 8 O caso Bonham ( Bonham’s case – The College of Physicians vs. Dr. Thomas Bonham) 55 figura entre os casos mais importantes em que atuou Sir. Edward Coke. Esse caso é considerado o antecedente mais importante para a formação e consolidação da técnica da judicial review consagrada no caso Marbury vs . Madison. Além da judicial review, o caso Bonham também traria os antecedentes históricos necessários para a estruturação do preceito judicial da razoabilidade. 56 Antes de se examinar o que foi decidido no caso Bonham, faz-se necessário examinar seu antecedente histórico que é a doutrina Jenkins ( Jenkins Doctrine). 57 Tanto o caso Jenkins quanto o Bonham são oriundos de conflitos judiciais envolvendo o Colégio de Médicos da Inglaterra, instituição criada pelo Lord Canciller Card Wolsey em 1518 sob o reinado de Enrique VIII. O Colégio de Médicos era a instituição responsável pela concessão de licença para se praticar a medicina. Em 1540 foi promulgada pelo Parlamento Inglês lei ( Act of Parliament) que concedeu amplos poderes para o Colégio. A partir dela, o Colégio de Médicos além de admitir e expulsar sócios, passou a poder apenar com prisão os infratores que praticassem medicina sem licença ou fizessem mal uso dela – mantendo-os presos durante o tempo que considerasse oportuno. 58 O Colégio de Médicos era uma instituição que não possuía vínculo com nenhuma Universidade e durante o século XVI utilizou de seus generosos poderes, conferidos pelo Act of Parliament de 1540, para perseguir diversos médicos. Um desses médicos foi Roger Jenkins que havia recusado se submeter a autoridade do Colégio que imediatamente determinou sua prisão. Em seguida, Jenkins impetrou habeas corpus a fim de obter sua liberdade provisional para o Tribunal ( Common Pleas). O mérito do habeas corpus foi julgado pelo Chief Justice Popham que decidiu a favor do Colégio de Médicos, afirmando que ele teria competência suficiente para decretar a prisão dos infratores, afirmando ainda que os tribunais não podem decidir sobre a liberdade dos infratores, mas tão somente apreciar as formalidades da decisão do Colégio dos Médicos. 59 Desse modo, antes de surgir o caso Bonham, o Tribunal ( Common Pleas) já havia corroborado a autoridade regulatória e sancionatória do Colégio de Médicos de Londres. Tal situação mudaria radicalmente com o caso Bonham. No ano de 1605, o médico Thomas Bonham, que havia estudado medicina em Cambridge, submeteu ao Colégio petição solicitando o direito de administrar medicamentos. O Colégio de Médicos negou o pedido. Em seguida, Thomas Bonham, quando convocado, apresentou respostas que foram consideradas impertinentes pelo Colégio e exerceu a medicina por algum tempo e sem autorização para tanto. A atitude de Bonham lhe rendeu multas impostas pelo Colégio de Médicos. Além das multas, após comparecer perante o Presidente do Colégio ( Henry Atkins), Bonham contestou a autoridade do Colégio e afirmou que essa instituição não teria poder contra os universitários graduados em medicina. Em seguida, Bonham foi preso por desacato em Newgate. Após a prisão, em menos de uma semana, o advogado de Bonham conseguiu obter habeas corpus no Tribunal ( Common Pleas), presidido então pelo Chefe de Justiça, Edward Coke. Entretanto, a concessão desse habeas corpus contrariava o que havia sido estabelecido na Jenkins Doctrine. O Colégio de Médicos após consultar comitê seleto de juízes e por estar plenamente confiante no precedente Jenkins, resolveu levar o assunto para os tribunais do common law. 60 A lide travada entre Bonham e o Colégio de Médicos foi instaurada no Tribunal ( Common Pleas) com a presidência de Coke. Nesse processo, Bonham reclamava 100 libras a título de danos particulares em razão de false imprisonment por parte do Colégio de Médicos. Ocorre que o texto da Lei de 1540 era claro em estabelecer possibilidade de o Colégio de Médicos apenar quem exercesse medicina sem licença (prática ilícita) ou fizesse mau uso dela ( malpraxis). A lei também outorgava ao Colégio a possibilidade de realizar prisões. Por sua vez, Bonham defendia seu ponto de visto com fundamento no espírito da lei. Afirmava que a lei tinha a intenção de prevenir práticas medicas incorretas que seriam as realizadas por impostores. Todavia, ele era médico formado na Universidade de Cambridge e, por possuir título universitário, estaria isento da jurisdição do Colégio de Médicos. O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO A dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos necessários para se Página 9 Paralelamente ao julgamento no Tribunal do common law, o caso foi decidido pelo Tribunal do King’s Bench no dia 03.02.1609. Bonham foi condenado por prática ilícita de medicina e condenado a pagar 60 libras. Pornão ter essa quantia, foi decretada sua prisão. Após um ano, o caso foi decidido a favor de Thomas Bonham pelo Tribunal ( Common Pleas). A votação foi por maioria, três votos favoráveis e dois contras. 61 A tese favorável a Bonham prevaleceu em virtude da sofisticada decisão proferida por Edward Coke. A decisão de Coke começava com a seguinte premissa: de que a autoridade dada pelo rei ao Colégio de Médicos concedia dois poderes distintos com fundamento em duas cláusulas distintas. A primeira referia-se à prática ilícita que permitia ao Colégio multar quem exercesse a medicina sem sua licença. A segunda dizia respeito ao exercício da má (errônea) prática médica, a qual poderia ser apenada com a prisão. 62 Para Coke, não era lícito ao Colégio apenar com prisão quem praticava a medicina sem a licença do colégio, mas, de maneira adequada. Essa conduta somente poderia ser multada. Coke afirmava que existiria grande diferença entre praticar a medicina sem licença e praticá-la de maneira incorreta. Fernando Rey Martinez ao interpretar a decisão de Coke afirma que ela teria realizado uma distinção entre infração administrativa (exercer medicina sem licença) e infração penal (exercer medicina de forma incorreta). A segunda infração, tendo em vista a gravidade do dano que poderia provocar, seria a única que poderia acarretar pena de prisão. 63 Nesse sentido, além da importância para a construção da judicial review, Coke teria antecipado princípios fundamentais do direito sancionador no Estado de Direito, e.g., o direito penal figurar como a última ratio para o Estado agir e a obrigatoriedade de se examinar a proporcionalidade (razoabilidade) das penas. 64 4.3.1.2 A influência do Bonham’s case na formação da judicial review A questão constitucional ínsita ao Bonham’s case não constitui o núcleo dessa decisão, caracterizando-se como obiter dictum. Coke realiza sua argumentação afirmando que a cláusula que permitia ao Colégio apenar a prática de medicina sem licença, consistiria em cláusula contraditória e absurda ( repugnant), 65 uma vez que permitiria que o Colégio de Médicos fosse ao mesmo tempo juiz e parte no processo. 66 Desse modo, a lei que permitia ao Colégio de Médicos a um só tempo sancionar o exercício de medicina sem licença por meio de procedimento no qual ele seria ao mesmo tempo parte (acusadora e beneficiária de eventual sanção) e juiz seria contraditória, absurda ( repugnant), porque iria contra o preceito já consolidado no common law de que ninguém pode ser a um só tempo juiz e parte no mesmo processo. 67 Assim, Coke, ainda que de maneira marginal ( dictum), admite a correção e a limitação da legislação vigente com fundamento em preceitos jurídicos consagrados historicamente pelo common law. 68 No mesmo diapasão, Nicola Matteucci destaca que a interpretação exata do caso Bonham pode ser controvertida, contudo, é inegável que tanto para a Inglaterra quanto para os Estados Unidos, o Bonham’s case constitui o início do desenvolvimento da máxima que admite a revisão da lei pelo Poder Judiciário, qual seja, o próprio controle de constitucionalidade das leis. 69 Na referida decisão, Coke destacou que o common law regula e controla os atos do Parlamento, e em ocasiões os julga todos nulos e sem eficácia, uma vez que, quando um ato do Parlamento é contrário ao direito e à razão comum, o common law o controlará e o julgará nulo e sem eficácia. Coke destaca a existência de um direito superior à lei do Parlamento e que estaria contido na própria historicidade; uma lei tem validade formal quando deriva do Parlamento, contudo, somente adquire validade substancial quando é racional, e o controle de seu conteúdo corresponde aos juízes do common law.70 O racional referido por Coke pode ser entendido como o estar de acordo com a historicidade. Assim, ao Judiciário caberia exercer o controle dos demais atos de poder público que fossem violadores dos direitos fundamentais historicamente assegurados aos cidadãos, ainda que parte desses atos estivesse em consonância com a legislação vigente, mas em confronto com a historicidade ( autorizar restrição a direitos fundamentais Página 10 common law). Desse modo, faz-se evidente a partir das assertivas de Coke – e do desenvolvimento posterior dessa tecnologia pelo constitucionalismo estadunidense – a importância da judicial review (controle difuso de constitucionalidade) como direito fundamental do cidadão. Da mesma maneira que a atividade do parlamento impõe limites ao poder real, a supremacia do parlamento não pode ser interpretada como absoluta soberania. Assim, o Judiciário, principalmente, por meio da judicial review, tem a função primordial de limitar os dois outros poderes a fim de resguardar os direitos fundamentais dos cidadãos. 4.3.2 O caso Marbury vs. Madison. Aplicação da Constituição como regra jurídica A judicial review, 71 propriamente dita como a conhecemos, tem sua origem no célebre caso Marbury vs. Madison. A revisão das leis através do processo constitui garantia fundamental (elemento essencial) para a existência, preservação e concretização de uma Constituição escrita, 72 cujas normas devem ser consideradas sempre superiores às emanadas pelo Poder Legislativo. A sentença Marbury vs. Madison concretiza mudanças profundas no constitucionalismo. A partir dela, fica institucionalizada a influência direta que a Constituição escrita impõe ao processo democrático. 73 Christopher Wolfe pontua a importância da Constituição escrita para a consolidação da judicial review nos Estados Unidos. Isso ocorre porque se o povo americano optou por ter Constituição escrita, por consequência, essa Constituição deverá controlar e rechaçar todos os atos legislativos contrários ao seu teor. Do contrário, caso se admitisse que os atos legislativos inconstitucionais pudessem ter o mesmo valor e igual eficácia em relação aos constitucionais, a real distinção entre governo limitado e ilimitado estaria desfeita, na medida em que qualquer ato legislativo poderia alterar a Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) , o que impediria que ela usufruísse do status de lei fundamental. 74 Pode-se afirmar, assim, que a partir de 1803 tem-se por construída a ideia da Constituição como regra jurídica (de se salientar que os modelos de direito próximos à Europa continental, somente conhecerão o conceito de Constituição como regra jurídica a partir do segundo pós-guerra). Portanto, o caso Marbury vs. Madison tem como grande inovação selar a Constituição com o caráter da normatividade. A partir do caso Marbury vs. Madison fica expressamente registrado que o judicial review constitui elemento fundamental para garantir a concretização da Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) . Nesse sentido, asseveramos que a judicial review (controle difuso de constitucionalidade) possui a natureza de direito fundamental. Do contrário, ter-se-ia de admitir a existência de situações em que o cidadão ficaria obrigado a submeter-se a situações e atos formalmente legais, mas em desconformidade com o que está previsto na Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) . 4.3.3 A importância de se conferir natureza de direito fundamental à judicial review Assim, se a Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) consagra rol de direitos e garantias fundamentais ao cidadão, por consequência, faz-se necessário garantir ao particular todos os meios para fazer valer seus direitos constitucionalmente previstos. Desse modo, diante de restrições aos direitos fundamentais do cidadão por algum ato do Poder Público formalmente legal, somente por meio da judicial review seria possível ao particular corrigir a ilegalidade e preservar seu direito fundamental. Ou seja, sem a existência da judicial review, o direito de ação (acesso à justiça) fica seriamente prejudicado. É mister frisar que a atribuição de status de direito fundamental à judicial review tem por escopo, impedir que essa garantia fundamental docidadão (controle difuso de constitucionalidade) seja suplantada pelo próprio Judiciário, principalmente pelo recrudescimento das decisões de efeito vinculante do STF. Ademais, a defesa do controle difuso de constitucionalidade, enquanto garantia fundamental do O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO A dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos necessários para se Página 11 cidadão, justifica-se, principalmente, porque é a judicial review que permite a observância das particularidades de cada caso concreto, ou seja, sem o controle difuso de constitucionalidade o acesso à justiça (art. 5.º, XXXV, CF/1988 ( LGL 1988\3 ) ) não seria concretizado em sua plenitude. Nesse sentido, Christopher Wolfe destaca que, por meio da judicial review, o Judiciário não anula simplesmente o ato legislativo, pelo contrário, o Judiciário interpreta e esclarece o teor da legislação, inclusive afastando-a a fim de não se permitir a violação a direitos fundamentais perante o caso concreto. O controle difuso de constitucionalidade legitima-se até mesmo porque a proteção desses direitos é o principal escopo do Poder Público. 75 Daí que o controle difuso de constitucionalidade não pode sofrer restrições legislativas, ou do próprio Poder Judiciário. Todavia, não se está aqui defendendo nenhuma supremacia ou ativismo do Poder Judiciário. 76 Pelo contrário, a própria valorização do controle difuso de constitucionalidade é que possibilita em dimensão máxima o controle de constitucionalidade 77 dos atos do Poder Público e permite que seja evitada a supressão de algum direito fundamental em decorrência de decisão com efeito vinculante do próprio Judiciário, e.g., súmula vinculante. 78 Dessarte, o historicismo 79 acima destacado, permite depreender a importância que a preservação dos direitos fundamentais e o controle do poder possuem para a construção do constitucionalismo. Assim, os direitos fundamentais são atualmente os elementos fundantes e legitimadores do Estado Democrático de Direito. O Judiciário possui papel fundamental para a defesa dos direitos fundamentais, isso porque, conforme ressalta Coke, é função do Judiciário garantir a supremacia dos direitos fundamentais perante a ingerência do Poder Público (real ou parlamentar) e também averiguar e controlar a adequabilidade dos atos do Poder Público ao historicismo. Ou seja, o Judiciário teria a função de examinar se atos do poder público ainda que formalmente válidos não estão em dissonância em relação aos da tradição histórica de determinada sociedade que em sua formação, assegurou histórica e progressivamente direitos fundamentais, cuja grande parte está, atualmente positivada no texto constitucional. Dessa forma, é evidente a importância que a judicial review (controle difuso de constitucionalidade) conferiu para a elaboração e a garantia dos direitos fundamentais. Em conformidade com o que foi demonstrado até o presente momento, a limitação do poder e a preservação dos direitos fundamentais constituem o principal mote perseguido pela evolução do constitucionalismo. Assim sendo, os direitos fundamentais não podem ser violados pelo Poder Público, porquanto sua preservação é o ponto fundante da legitimidade do próprio Poder Público (Estado). 4.4 Os fundamentos dos direitos fundamentais 4.4.1 O fundamento normativo: a Constituição Federal Em última instância, a soberania do Estado não está limitada nem pode ser restringida por outro direito, por norma de ordem constitucional, por conjunto de princípios racionalmente fixados em uma Declaração de direitos ou por controle de constitucionalidade confiado aos juízes. A soberania do Estado está sim limitada pelos fatos e pela história, pelo lugar que o poder político ocupa na sociedade liberal do século XIX. 80 Atualmente, é cada vez mais difícil reconhecer no legislador o espelho fiel da nação e de sua história. Portanto, recrudesce a necessidade de se colocar limite positivo ao legislador, de vinculá-lo à observância de certos valores constitucionais e também de obrigá-lo à realização daqueles valores em sociedade. Depois de largo domínio da soberania pura estatal, aumenta a importância da Constituição como a máxima garantia contra o arbítrio dos Poderes Públicos e também como norma diretiva fundamental a cumprir sobre a base dos valores por ela estabelecidos. 81 Assim sendo, é possível conceituar a Constituição como ato de fundação dos direitos e liberdades – uma verdadeira norma jurídica – e não como mero manifesto ideológico ou político como era das Declarações de direitos dos períodos revolucionários. Por conseguinte, faz-se necessário suprimir o absolutismo do dogma da primazia da lei, sendo necessária a existência de controle de constitucionalidade, seja difuso ou concentrado, para permitir a inaplicação de toda lei que for substancialmente contrária aos dispositivos constitucionais. 82 4.4.2 O fundamento histórico: o processo civilizador autorizar restrição a direitos fundamentais Página 12 Frise-se que a preservação dos direitos fundamentais não deve ocorrer tão somente porque atualmente gozam de status constitucional, mas sim porque eles constituem conquista histórica da formação política e jurídica dos Estados cuja observância é obrigatória pelo Poder Público e pelos demais particulares. 83 Assim, essa conquista histórica não representa o carreamento para dentro do texto constitucional da mera vontade do sujeito histórico que é o arquiteto de uma metanarrativa (o sujeito do iluminismo; do comunismo etc.). 84 Ao contrário, a positivação dos direitos fundamentais nos textos constitucionais é que, de algum modo, espelha algo que é fruto de um processo histórico que, não é nem racional (no sentido de ter sito planejado por um sujeito arquiteto das metanarrativas), nem irracional (no sentido de que tenham surgido de uma maneira incompreensível). Na verdade, essa positivação acontece na esteira daquilo que Nobert Elias chamou de “processo civilizador”. 85 Ou seja, eles nascem de uma espécie de tecido básico que sustenta o universo humano da cultura e que aponta para sua configuração enquanto verdadeiras conquistas civilizatórias. Desse modo, a atual positivação dos direitos fundamentais no texto constitucional lhes garante, de maneira incontestável, plena normatividade, o que é distinto de se afirmar que a sua existência está atrelada tão somente a sua positivação. Porque tal concepção retiraria todo o caráter de conquista histórica desses direitos e ficaríamos à mercê de, na ausência de um Texto Constitucional como o atual, não podermos invocar ou exercer qualquer um destes direitos. Vale dizer, nesta quadra da história, não podemos aceitar a máxima kelseniana 86 de que “qualquer conteúdo pode ser direito”, na medida em que tal afirmação seria contrária ao processo civilizador, verdadeiro instituinte e instituidor dos direitos. Numa palavra: quando afirmamos que os direitos fundamentais estão insertos no processo civilizador e que, portanto, constituem uma conquista histórica, estamos amparados em Renato Janine Ribeiro que ao analisar a obra de Norbert Elias afirma que o processo civilizador carrega uma dimensão ética; a convicção de que o homem se civiliza, e de que isto constitui um valor positivo. 87 A não observância dos direitos fundamentais na atuação do Poder Público, além de padecer de flagrante inconstitucionalidade, estará eivada de absoluta falta de legitimidade. Daí que tendo em vista a importância que os direitos fundamentais possuem na estruturação e legitimação do atual Estado Constitucional, é facilmente perceptível que toda restrição a algum desses direitos deverá ocorrer sempre de maneira excepcional e preencher diversos requisitos legais. E justamente acerca de quais seriam os requisitos autorizadores para que se realize restrição a direitos fundamentais que nos dedicaremos no próximo tópico. 5. O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSEPÚBLICO SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS No Estado Constitucional não se deve mais distinguir entre Estado e sociedade. O Estado Constitucional caracteriza-se não apenas pelo princípio da legalidade formal, que subordina os Poderes Públicos às leis gerais e abstratas, mas também pela legalidade substancial que vincula o funcionamento dos três poderes à garantia dos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana. 88 Tal como demonstramos, os direitos fundamentais e sua respectiva preservação constituem um dos principais objetivos da evolução do constitucionalismo, a tal ponto que hoje não se pode conceber o Estado Constitucional sem a preservação dos referidos direitos. Na realidade, os direitos fundamentais são direitos subjetivos que o cidadão pode fazer valer contra o Poder Público e contra a própria sociedade, não possuem caráter meramente privado, assim, faz-se necessário revisitar o postulado do direito administrativo que preconiza a supremacia do interesse público sobre o interesse privado. 89 Os direitos fundamentais apresentam duplo âmbito de vinculação, posto que, ao mesmo tempo em que os particulares são os sujeitos ativos desses direitos, em determinados momentos, eles poderão ser os sujeitos passivos (destinatários) diretos deles. Assim, os direitos fundamentais pertencem aos particulares permitindo sua oponibilidade contra o Poder Público, bem como contra outros particulares, estabelecendo entre eles verdadeiras relações jusfundamentais. 90 A fórmula que postula a sempre primazia do interesse público sobre o particular é uma simplificação O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO A dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos necessários para se Página 13 errônea e frequente do problema que existe entre o interesse público e os direitos fundamentais. 91 O erro consiste justamente porque os direitos fundamentais são constitutivos tanto para o indivíduo como para a comunidade. Portanto, são constituídos não apenas em favor do indivíduo, porquanto cumprem uma função social e constituem o fundamento funcional da democracia. Disso se conclui que a garantia e o exercício dos direitos fundamentais estão caracterizados por um entrecruzamento de interesses públicos e interesses individuais. A tutela da vida, da liberdade e da propriedade no Estado Constitucional é uma exigência legítima tanto do indivíduo como da comunidade, ou seja, existe no interesse público e no interesse privado. Esta conclusão é de fundamental importância para se impedir que a restrição a direito fundamental possa ser realizada com fundamento no interesse público. Desse modo, se nos direitos fundamentais estão fundidos interesses públicos e interesses privados, disso se obtém que tão logo uma liberdade constitucional seja restringida, é também afetada a coletividade. Tão logo algum direito fundamental seja lesionado também e sempre será afetado o interesse público. Exemplo marcante é o direito de propriedade no caso da desapropriação que diante da ponderação de interesses estão em jogo interesses públicos de ambos os lados. Os direitos fundamentais são como garantia dada à coletividade, componente de ordem pública e são ao mesmo tempo para o indivíduo proteção de bens jurídicos, na ponderação de interesses. 92 5.1 A dimensão constitucional e histórica dos direitos fundamentais: a primazia dos direitos fundamentais sobre o interesse público Em assim sendo, ao contrário do que preconiza grande parcela da doutrina administrativista, a condição de existência e legitimidade do Estado Constitucional passa necessariamente pela submissão do interesse público aos direitos fundamentais. 93 Tal submissão deve ocorrer, justamente, porque os direitos fundamentais possuem natureza constitucional e não são meros interesses privados, ficando desse modo, vedada toda restrição a eles com justificativa no interesse público. Em consonância com o que afirmamos, os direitos fundamentais constituem conquista histórica da sociedade oriunda do desenvolvimento do próprio constitucionalismo. Assim, a não observância dos direitos fundamentais caracterizaria, verdadeiramente, retrocesso no próprio processo civilizador de cada sociedade. Dessa maneira, não é a simples alegação de supremacia do interesse público sobre o privado que constitui a base do Estado Constitucional. 94 Pelo contrário, é justamente a obrigatoriedade de se resguardar os direitos fundamentais que caracteriza a existência do Estado Constitucional. A primazia dos direitos fundamentais sobre o interesse público configura a premissa fundamental para a caracterização do Estado Constitucional. Os direitos fundamentais, na linguagem de Dworkin, representam direitos, no sentido forte, contra o governo. Além de constituir limitação contra o próprio governo, a intangibilidade dos direitos fundamentais que permite a proteção do particular contra eventuais maiorias. 95 A obra de Dworkin é essencialmente esclarecedora no que tange à demonstração da indevida inversão que muitos setores da doutrina fazem ao preconizar a supremacia do interesse público sobre os direitos individuais, muitas vezes por meio da utilização da proporcionalidade. 96 Com a devida vênia, discordamos do referido posicionamento. Conforme será tratado no item 6 do trabalho não coadunamos com a premissa de que o interesse público garante a preservação dos direitos fundamentais, bem como inadmitimos restrição a direito fundamental com base no interesse público. Ademais, no que diz respeito à técnica da ponderação, cremos ser inadequada sua utilização tal como proposto pela autora. O interesse público não é direito fundamental, consequentemente, não deve ser utilizado para sopesar outro direito fundamental sob pena de descaracterização da tese de Robert Alexy. 97 Dworkin constrói diversos argumentos que ressaltam a importância dos direitos fundamentais e a impossibilidade de restringi-los com base no argumento de que a restrição traria benefício geral (argumentos que o jusfilósofo chama de utilitaristas). 98 Os direitos fundamentais são essencialmente direitos contra o Poder Público (governo). A própria existência dos direitos fundamentais seria colocada em risco, caso fosse admitida restrição contra autorizar restrição a direitos fundamentais Página 14 eles, sob o argumento de que tal restrição traria benefício geral para a maioria da sociedade ou então para o próprio governo, ou ainda viabilizaria a preservação do interesse público. 99 Do mesmo modo, não se pode admitir restrição a direito fundamental com embasamento apenas na primazia do interesse público sobre o privado. A própria existência dos direitos fundamentais seria colocada em risco nessa hipótese, uma vez que esses direitos são essencialmente contramajoritários, e oponíveis contra o Poder Público. Portanto, caso fosse admitida a restrição de direito fundamental com fundamento na suposta primazia do interesse público, de uma única vez, seriam retiradas as duas principais funções dos direitos fundamentais: (a) oponibilidade contra o Poder Público; e (b) proteção do cidadão contra formação de eventuais maiorias, ou da atuação governamental supostamente embasada na vontade da maioria. Hodiernamente, tendo em vista a supremacia que usufruem os direitos fundamentais, não se pode admitir como legítima qualquer restrição a direitos fundamentais com fundamento tão apenas na suposta supremacia do interesse público. Pelo contrário, o Estado (Poder Público) tem o dever constitucional de respeitar os direitos fundamentais e enveredar todos seus esforços para garantir a concretização desses direitos. A Constituição suíça em seu art. 35, basicamente, estabelece que qualquer um que estiver exercendo função estatal deverá respeitar os direitos fundamentais e contribuir para sua realização. 100 Diante do exposto, não se pode coadunar com a supremacia do interesse público na atuação da AdministraçãoPública, suprimindo assim os direitos fundamentais, o interesse público “não é o único critério da ação administrativa, nem tem um valor ou alcance ilimitado. Há que prosseguir, sem dúvida, o interesse público, mas respeitando simultaneamente os direitos subjectivos e os interesses legalmente protegidos dos particulares”. 101 A proclamada “supremacia do interesse público” cede diante dos direitos fundamentais, porque estes constituem limites à atuação dos três poderes tanto na sua defesa como na sua promoção. 102 A lesão aos direitos fundamentais acarreta lesão ao próprio interesse público, afinal a defesa dos direitos fundamentais interessa tanto ao cidadão como à própria comunidade; uma possível restrição a um direito fundamental pode ocorrer diante da ponderação do caso concreto desde que prevista na própria Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) ou autorizada por ela, ou ainda que não autorizados no texto constitucional a restrição tiver o objetivo de salvaguardar outros direitos fundamentais. 103 Contudo, não se legitimam restrições aos direitos fundamentais meramente porque existiria prima facie uma supremacia do interesse público sobre o particular. Destarte, os direitos fundamentais vinculam a atuação estatal no âmbito dos três poderes, são limites inclusive ao Poder Constituinte, com maior razão não podem ser suprimidos por uma suposta primazia do interesse público. Por conseguinte, no Estado Constitucional a atividade da Administração Pública não se limita mais apenas pelo princípio da legalidade, mas sua atuação também encontra limites nos direitos fundamentais. Obviamente que não se pretende aqui sustentar a impossibilidade de ocorrer alguma restrição a direito fundamental. Muito pelo contrário, o que se objetiva demonstrar é justamente que o interesse público não constitui argumento jurídico, político ou técnico apto a justificar e legitimar qualquer restrição a algum direito fundamental. Em sendo assim, resta aclarar quando, e em que hipóteses, pode ser restringido direito fundamental. Ademais, deve-se destacar que os direitos fundamentais asseguram ao cidadão não apenas a imposição de limites em relação ao Estado, mas garantem também proteção contra perigos gerados pela própria sociedade, ou seja, são plenamente oponíveis contra os demais particulares. 104 6. ROL DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA SE ADMITIR RESTRIÇÃO A DIREITO FUNDAMENTAL A doutrina suíça constitui importante ponto de partida doutrinário para estruturamos rol de requisitos mínimos que obrigatoriamente precisam ser atendidos para se admitir restrição a direito fundamental. 6.1 Requisitos apontados pela doutrina suíça O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO A dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos necessários para se Página 15 A partir da interpretação da Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) suíça, a doutrina 105 tem identificado basicamente quatro requisitos necessários para que seja admitida restrição a direito fundamental. Os requisitos são os seguintes: (a) a restrição deve estar fundada em uma base legal; (b) a restrição deve ser feita em prol do interesse público ou então com o intuito de proteger outros direitos fundamentais; (c) a limitação deve ser proporcional; e (d) o direito fundamental não pode ser totalmente aniquilado em sua essência ( Kerngehalt). 106 6.2 Requisitos necessários para se admitir restrição a direito fundamental no Estado Constitucional A partir dos requisitos traçados pela doutrina constitucional suíça, de nossa parte, passaremos a evidenciar os requisitos que consideramos necessários para se admitir qualquer limitação a direito fundamental. Nossos requisitos são os seguintes: (a) a restrição deve estar constitucionalmente autorizada; (b) a limitação deve ser proporcional; (c) restrição deve atender ao interesse social, privilegiando assim outros direitos fundamentais; (d) o ato do poder público que restringe direito fundamental deve ser exaustivamente fundamentado; (e) o ato do poder público que restringe direito fundamental pode ser amplamente revisado pelo Poder Judiciário. 6.2.1 Restrição deve estar constitucionalmente autorizada Na realidade, a obrigatoriedade de previsão legal/constitucional para se autorizar restrição a direito fundamental constitui a continuidade do princípio da supremacia da lei consolidada no Medievo. O desenvolvimento do preceito da supremacia da lei consiste na afirmação de que todo poder político deve ser essencialmente limitado, esse ensinamento é a maior contribuição do Medievo para a evolução do constitucionalismo. 107 Atualmente, a mera afirmação de supremacia da lei não assegura, por si só, a limitação do poder devendo ser conjugada com outros preceitos do constitucionalismo, mormente no que diz respeito à supremacia dos direitos fundamentais perante a atuação do Poder Público. Assim, hodiernamente, a Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) é, por excelência, o texto normativo que consagra os direitos fundamentais do cidadão. Da mesma forma que ela confere e assegura do ponto de vista jurídico os direitos fundamentais, com maior razão, não se pode admitir que ocorra qualquer restrição a esses direitos que não esteja autorizada no próprio texto constitucional. A doutrina suíça determina que qualquer limitação a direito fundamental precisa, obrigatoriamente, ter base legal. Nesse passo, a referida restrição deve ser altamente precisa indicando detalhadamente qual a restrição instituída e a imediata consequência de sua violação. 108 Em nosso entendimento, tendo em vista o caráter analítico de nossa Carta Magna ( LGL 1988\3 ) , asseveramos que qualquer restrição a direito fundamental necessariamente precisa ter fundamento constitucional, não basta apenas o fundamento legal infraconstitucional. Ainda que a restrição possa ser feita legislativamente, seu fundamento, necessariamente, deverá ser algum dispositivo constitucional que autoriza a referida restrição. Desse modo, qualquer limitação realizada por ato administrativo ou por legislação ordinária que não tenha previsão constitucional será nula, na medida em que estará eivada de inconstitucionalidade. 6.2.2 A restrição a direito fundamental deve ser proporcional [Übermassverbot e Untermassverbot] Toda restrição a algum direito fundamental, precisa ser proporcional. 109 Do ponto de vista jurídico, discordamos da aplicação da proporcionalidade como simples juízo de ponderação que permite ao Judiciário proferir decisões discricionárias. Pelo contrário, entendemos que a proporcionalidade aplica-se a partir de uma bipartição: proibição de proteção deficiente [ Untermassverbot] e a proibição de excesso [ Übermassverbot]. 110 Sobre a segunda aplicação do princípio da proporcionalidade que dedicaremos nossos estudos. Isso porque a violação do ato restritivo a direito fundamental, caso transgrida a proporcionalidade, em regra será em decorrência da proibição de excesso. autorizar restrição a direitos fundamentais Página 16 A restrição a direito fundamental deve, necessariamente, observar o princípio da proibição de excesso [ Übermassverbot]. Esse princípio também é identificado com o princípio da proporcionalidade em sentido lato, sua existência é ínsita ao Estado Constitucional. A principal função do princípio da proibição de excesso consiste em possibilitar o controle da atuação dos Poderes Públicos no Estado Constitucional, assumindo, mormente no que se refere aos direitos fundamentais o papel de principal instrumento de controle da atuação restritiva da liberdade individual. 111 A obrigatoriedade da restrição estar presente no texto constitucional também consta na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia em seu art. 52, destacando que a restrição sempre deverá ser proporcional e necessária a fim de preservar interesse geral reconhecido pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros. 112Para a doutrina, esse princípio comporta subdivisão em três elementos ou subprincípios: idoneidade (ou adequação), necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Na sua atribuição mais comum, o princípio da idoneidade consiste em que as medidas restritivas em causa sejam aptas a realizar o fim visado com a restrição ou contribuam para alcançá-lo; o princípio da necessidade preconiza que de todos os meios idôneos disponíveis e igualmente aptos a prosseguir o fim visado com a restrição, deve-se escolher o meio que produza efeitos menos restritivos; por sua vez, o princípio da proporcionalidade diz respeito à justa medida ou a relação de adequação entre os bens e interesses em colisão ou, mais especificamente, entre o sacrifício imposto pela restrição e o benefício por ela almejado. 113 Destarte, toda limitação a direito fundamental deverá ser proporcional, mas especificamente precisará observar a proibição de excesso, a fim de impedir que a restrição ao direito fundamental culmine no aniquilamento daquele direito. 6.2.3 A restrição deve atender ao interesse social, e não pode se fundamentar na preservação do interesse público A restrição dos direitos fundamentais pode estar constitucionalmente autorizada e fundamentada em interesse social, mas não no interesse público. A restrição deve ocorrer para amparar e conferir maior tutela e proteção para a sociedade civil, ao passo que o interesse público novamente nos remete a uma doutrina estatalista que subjuga a sociedade (autonomia social). Daí que a restrição fundada no interesse social somente pode ocorrer a partir da explicitação de que direitos fundamentais da sociedade estarão sendo privilegiados. Ao passo que, se fosse admitida a restrição com fundamento no interesse público, bastaria tão somente ao Estado afirmar que a mencionada restrição contribuiria para a coletividade como um todo. No mesmo sentido, Nelson Nery Junior 114 é enfático em asseverar que não pode haver restrição a direito fundamental com fundamento apenas no interesse público. Tal restrição não seria legítima e muito menos constitucionalmente autorizada. Os direitos fundamentais são limites para a atuação de qualquer Poder Público, inclusive o Poder Constituinte, com maior razão não podem ser suprimidos ou restringidos com fundamento em uma suposta primazia do interesse público. Em outras palavras: a decretação do “interesse público” é um ato arbitrário do Estado que, como um Midas, coloca o selo de “público” em tudo o que toca. Assim, do ponto de vista prático seria complicado conseguir demonstrar que determinada restrição não atende o interesse público contra justamente o instituidor e o principal beneficiário da restrição. Ao contrário, o interesse social demanda uma justificativa exaustiva por parte do Poder Público no instante em que determinar a restrição a algum direito fundamental, haja vista que terá de demonstrar, pormenorizadamente, quais os direitos fundamentais que serão beneficiados com a medida e qual o dispositivo constitucional que autoriza a referida restrição. 6.2.4 A restrição deve estar exaustivamente fundamentada Todo ato do poder público que restringe direito fundamental deve ser exaustivamente fundamentado. Tal assertiva encontra absoluto respaldo no art. 93, IX, da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) . No Estado Constitucional, não há mais espaço para o ato administrativo puramente discricionário. A discricionariedade não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, uma vez que todo ato do Poder Público, principalmente aquele restritivo de direitos, deve ser amplamente fundamentado, O MITO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO A dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos necessários para se Página 17 expondo com exaustão os fundamentos fático-jurídicos a fim de demonstrar porque aquela escolha da Administração Pública é a melhor possível. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia positivou o direito subjetivo (fundamental) a uma boa administração. No bojo desse direito estão previstas as garantias de o cidadão ser previamente ouvido pela Administração Pública antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual desfavorável, o direito de ter acesso aos processos que lhe sejam referentes e a obrigação por parte da Administração de fundamentar suas decisões. 115 O problema envolvendo o mérito do ato administrativo discricionário esteve ligado – ao menos em seu contexto originário – a uma questão de judicial self restraint. A discricionariedade do administrador apresentava-se como uma dimensão em que não caberiam intervenções do Judiciário no que se refere ao questionamento das escolhas realizadas pelo administrador. Isto quer dizer: nos casos de ato administrativo discricionário – em que a escolha do administrador encontra um paralelo de legitimação na própria lei – a vontade do administrador não pode ser contestada pela vontade do julgador. Portanto, quando se fala atualmente em judicialização do ato administrativo discricionário, é preciso ter cuidado para não se transferir a esfera de discricionariedade do administrador para o âmbito de decisão judicial. 116 No mesmo diapasão, Pedro Machete afirma expressamente a exigência que a atividade da Administração Pública esteja vinculada aos direitos fundamentais e às leis; para tanto, faz-se necessário, que todos os atos da administração destinados à produção de efeitos jurídicos possuam um dado fundamento normativo, uma vez que, de outro modo, não seria possível estabelecer as aludidas vinculações. 117 O fundamento normativo destacado por Pedro Machete para se realizar a restrição a algum direito fundamental deve ser concebido como fundamento normativo-constitucional, conforme já afirmamos. Destarte, o ato proveniente do direito público que busque restringir qualquer direito fundamental deve ser amplamente fundamentado, não bastam mais simples alegações de que a restrição beneficiaria o interesse público. No Estado Democrático de Direito, a mera alegação de preservação do interesse público não permite a realização de qualquer restrição a direito fundamental. Atualmente, a legalidade do ato administrativo sofre imediata e direta limitação constitucional. A Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) , enquanto texto normativo, constitui fundamento direto e imediato da atuação administrativa. 118 Por conseguinte, qualquer ato da Administração Pública ou do Judiciário que configure restrição a direito fundamental precisa ser exaustivamente fundamentado, ou seja, precisa evidenciar que a única possibilidade para a resolução da questão posta passa necessariamente pela restrição ao direito fundamental. 119 Assim, fica evidenciada a inexistência de qualquer discricionariedade da Administração Pública ou do Judiciário, porquanto qualquer restrição a direito fundamental, passa pela demonstração de que não poderia ter sido adotado qualquer outro caminho, e essa demonstração é evidenciada na fundamentação da decisão judicial ou na motivação do ato administrativo. 6.2.5 O ato do Poder Público que restringe direito fundamental pode ser amplamente revisado pelo Poder Judiciário Em consonância com o que já pontuamos, toda restrição a direito fundamental, necessariamente, precisa ter embasamento em texto constitucional. Assim, todo ato restritivo de direitos fundamentais oriundo da Administração Pública deverá, ao menos em última instância, encontrar seu fundamento na Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) . A revisão judicial do ato administrativo constitui, inclusive, conquista da evolução do constitucionalismo europeu. O controle da atividade da administração pública se sustenta para garantir a submissão de um órgão do Estado a outro, permitindo assim, controlar a execução das leis, bem como para garantir e tornar eficazes as liberdades jurídicas, ou melhor, os interesses legítimos do cidadão. 120 Desse modo, todo ato da Administração Pública que
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