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RELEITURAS DE INÊS DE CASTRO (SÉC. XX) JORGE DE LIMA (1893-1953) A invenção de Orfeu (―Canto IX: A permanência de Inês‖) Estavas, linda Inês, nunca em sossego, e por isso voltaste neste poema, louca, virgem Inês, engano cego, ó multípara Inês, sutil e extrema, ilha e mareta funda, raso pego, Inês desconstruída, mas eurema, chamada Inês de muitos nomes, antes, depois, como de agora, hoje distantes. (...) Queimada viva, logo ressurrecta, subversiva, refeita das fogueiras adelgaçada como início e meta; as palavras e estrofes sobranceiras narram seus gestos por um seu poeta ultrapassado às musas derradeiras da sempre linda Inês, paz, desapego, porta da vida para os sem-sossego. IVAN JUNQUEIRA (1934 - 2014 ) A rainha arcaica (XIV. Inês: o nome) Inês é nome que se pronuncia Para instigar ou seduzir prodígios, É senha que as sibilas balbuciam Ao decifrar enigmas cabalísticos. É mais do que isso: códice da língua, Raiz da fala, bulbo do lirismo. É gênese da raça e do suplício, Arché do amor e substância prima. É mais ainda: tálamo do espírito, Dessa alquimia de morrer em vida E retornar na antítese do epílogo. E quem disser que Inês é apenas mito – mente. E faz dela inútil pergaminho. E da poesia um animal sem vísceras. FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO (1938-2007) Inês de manto Teceram-lhe o manto para ser de morta assim como o pranto se tece na roca Assim como o trono e como o espaldar foi igual o modo de a chorar Se a morte trouxe todo o veludo no corte da roupa no cinto justo Também com o choro lhe deram um estrado um firmal de ouro um corpo exumado O vestido dado como a choravam era de brocado não era escarlata Também de pranto a vestiram toda era como um manto mais fino que a roupa TATIANA ALVES No rastro de Inês I Inês de Castro Inês no claustro Inês de quatro Inês no rastro Inesquecível Inesgotável Inexplorável Inesperada Inebriante Inevitável Inexplicável Inestimável Que lastimável! Inês é Marta? Inês é morta E coroada. Rainha Inês, Coroa a nós, Funestas musas, De insensatez II Em seu colo de alabastro Não há quem não se conforte Esta foi Inês de Castro Do amor fez seu suporte Pelas armas de Cupido Pedro a ela se transporta Ao amor já convertido Nada mais já lhe importa Quis Fortuna que a cilada Levasse Pedro em seu rastro Descuidando da amada Não há mais Inês de Castro Pedro volta da jornada E chora por sua rainha A bela, de joias ornada, Rege o tom da ladainha Coroada após a morte Num futuro que se aborta Uma póstuma consorte Já é tarde: Inês é morta. HERBERTO HELDER (1930- ) Teorema El-rei D. Pedro, o Cruel, está à janela, sobre a praça onde sobressai a estátua municipal do marquês de Sá da Bandeira. Gosto deste rei louco, inocente e brutal. Puseram-me de joelhos, com as mãos amarradas atrás das costas, mas endireito a cabeça, viro o pescoço para o lado esquerdo, e vejo o rosto violento e melancólico do meu pobre Senhor. Por baixo da janela aonde assomou há uma outra, em estilo manuelino, uma relíquia, delicada obra de pedra que resiste ao tempo. D. Pedro deita a vista distraída à praça fechada pelos soldados. Contempla um momento a monstruosa igreja do Seminário, retórica de vidraças e nichos, as pombas pousadas na cabeça e nos braços do marquês, e detém-se em mim, em baixo, em mim que me ajoelhei no meio de um grupo de soldados. O rei olha-me com simpatia. Fui condenado por assassínio da sua amante favorita, D. Inês. Alguém quis defender-me, alegando que eu era um patriota. Que desejava salvar o Reino d a influência castelhana. Tolice. Não me interessa o Reino. Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o. Ele diz um gracejo. Toda a gente ri. — Preparem-me esse coelho, que tenho fome. O rei brinca com o meu nome. O meu apelido é Coelho. O que este homem trabalhou pela nossa obra! Fez transportar o cadáver da amante de uma ponta à outra do país, às costas do povo, entre tochas e cânticos. Foi um espetáculo sinistro e exaltante através de cidades, vilas e lugarejos. Alguém ordena que me levante e agradeça ao meu Senhor. Fico em pé, defronte do edifício. Distingo no rés-do-chão o letreiro da Barbearia Vidigal e o barbeiro de bigode louro que veio à porta assistir ao meu suplício. Distingo também a janela manuelina e o rei esmagado entre os blocos dos dois prédios ao lado. — Senhor — digo eu - agradeço-te a minha morte. E ofereço-te a morte de D. Inês. Isto era preciso para que o teu amor se salvasse. — Muito bem — responde o rei. – Arranquem-lhe o coração pelas costas, e tragam-mo. De novo me ajoelho entre os pés dos carrascos que andam de um lado para outro. Ouço as vozes do povo, a sua ingênua excitação. Escolhem-me um sítio nas costas para enterrar o punhal. Estremeço. Foi o punhal que entrou na carne e me cortou algumas costelas. Uma pancada de alto a baixo, um sulco frio ao longo do corpo — e vejo o meu coração nas mãos de um carrasco. Um moço do rei espera com a bandeja de prata batida junto à minha cabeça, e nela depõem o coração fumegante. A multidão grita e aplaude; só o rosto de D. Pedro está triste, embora nele brilhe uma súbita luz interior de triunfo. Percebo como tudo está ligado, como é necessário as coisas se completarem. Não tenho medo. Sei que vou para o inferno, visto eu ser um assassino e o meu país ser católico. Matei por amor do amor — e isso é do espírito demoníaco. O rei e a amante são também criaturas infernais. Só a mulher do rei, D. Constança, é do céu. Pudera, com a sua insignificância, a estupidez, o perdão a todas as ofensas. Detesto a rainha. O moço sobe a escada com a bandeja onde o meu coração parece um molusco sangrento. D. Pedro volta-se, a bandeja aparece junto ao parapeito da janela. O rei sorri. Ergue o coração na mão direita e mostra-o ao povo. O sangue escorre- lhe entre os dedos e pelo pulso abaixo. Ouvem-se aplausos. Somos um povo bárbaro e puro, e é uma grande responsabilidade encontrar-se alguém à cabeça de um povo assim. Felizmente o rei está à altura do cargo, entende a nossa alma obscura, religiosa, tão próxima da terra. Somos também um povo cheio de fé. Temos fé na guerra, na justiça, na crueldade, no amor, na eternidade. Somos todos loucos. Tombei com a face direita sobre a calçada e, movendo os olhos, posso aperceber-me de um pedaço muito azul de céu acima dos telhados. Uma pomba passa diante da janela manuelina. O cláxon de um automóvel expande-se liricamente no ar. Estamos nos começos de junho. Ainda é primavera. A terra está cheia de seiva. A terra é eterna. À minha volta dizem obscenidades. Alguém sugere que me cortem o pênis. Um moço vai pedir autorização ao rei, mas ele recusa. — Só o coração — diz. E levanta-o de novo, e depois trinca-o ferozmente. A multidão delira, aclama-o, chama-me assassino, cão, encomenda-me a alma ao Diabo. Eu gostaria de poder agradecer a esta gente bárbara e pura as suas boas palavras violentas. Um filete de sangue escorre pelo queixo de D. Pedro, os maxilares movem-se devagar. O rei come o meu coração. O barbeiro saiu do estabelecimento e está agora a meio da praça, com a bata branca, o bigode louro, vendo D. Pedro comer o meu coração cheio de inteligência do amor e da eternidade. O marquês de Sá da Bandeira é que ignora tudo, verde e colonialista no alto do plinto de granito. As pombas voam em redor, pousam-lhe na cabeça e nos ombros, e cagam-lhe em cima. D. Pedro retira-se, depois de dizer à multidão algumas palavras sobre crime e justiça. O povo aclama-o mais uma vez, e dispersa. Os soldados também partem. E eu fico só para enfrentar a noite que se aproxima.Esta noite foi feita para nós, para o rei e para mim. Meditaremos. Somos ambos sábios à custa dos nossos crimes e do comum amor à eternidade. O rei estará insone nos seus aposentos, sabendo que amará para sempre a minha vítima. Talvez lhe não termine aí a inspiração. O seu corpo ir-se-á reduzindo à força de fogo interior, e a paixão há-de alastrar pela sua vida, cada vez mais funda e mais pura. E eu também irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do rei que cometi o meu coração. D. Inês tomou conta das nossas almas. Liberta-se do casulo carnal, transforma-se em luz, em labaredas, em nascente viva. Entra nas vozes, nos lugares. Nada é tão incorruptível como a sua morte. N o crisol do inferno havemos de ficar os três perenemente límpidos. O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração em geração. Que ninguém tenha piedade. E Deus não é chamado para aqui. (HELDER, Herberto. Os passos em volta. Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2005, pp. 93-7.)
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