Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO CASOS DE ÍNDIO Algumas destas histórias me foram contadas por minha mãe, Maria Costa, e por meu pai, Miguel Costa. A eles, minha gratidão. Agradeço a Heloisa Prieto mais esta oportunidade de contar as histórias da nossa gente; a Lucas Nemeth, a boa companhia que foi em nossa viagem à aldeia Katõ; ao prefeito de Jacareacanga, Eduardo Azevedo, por seu apoio logístico em nossa viagem; ao povo Munduruku, por sua acolhida calorosa durante nossa estada na aldeia. Dedico esta obra aos meus irmãos e irmãs, Ângela, Helena, Raimundo, Toninha, Zeca, Graça, Socorro, Robson Marcelo e Luis Guilherme, pelo grande apoio e carinho que dispensam a este irmão distante. A todos vocês, meu profundo amor. Sumário APRESENTAÇÃO O CAMINHO MAIS SEGURO É AQUELE QUE FOI PISADO MUITAS VEZES ............................................................................ 11 PREFÁCIO ..................................................................................... 13 I o ESPÍRITO DA NOITE .............................................. 17 2 O MATINTAPERERA NA JANELA ............................ 23 3 TERROR NO PÁSSARO DE FERRO ............................ 27 4 A CAMINHO DA A L DELA ........................................... 31 5 UM ENCONTRO COM A MÃE-D'ÁGUA ...................... 35 6 O FUNERAL ................................................................ 41 7 A COBRA-GRANDE .................................................... 51 8 UM ESTRANHO NA ALDEIA ...................................... 55 9 UM DIA NA ALDEIA ................................................... 59 1 0 MEDO DE ÍNDIO ......................................................... 65 11 LUCAS PESCADOR ...................................................... 69 }2 UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO ....................... 75 13 UM REENCONTRO COM A TRADIÇÃO ..................... 83 }4 AS PEGADAS DO CURUPIRA ..................................... 89 }5 ONZE DE SETEMBRO ................................................. 95 16 RETORNO PARA CASA ............................................... 99 F in a 1 As coNsEQüÊNciAs DA viAGEM ............................ 105 UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO O CAMINHO MAIS SEGURO É AQUELE QUE FOI PISADO MUlTAS VEZES Conhecer Daniel Munduruku foi um marco em minha vida. Eu o encontrei por meio de uma amiga querida, Lilia Moritz, que me apresentou a Daniel para que eu o acompanhasse duran- te a escritura de seu primeiro livro. Durante o encontro logo per- cebi que estava diante de um mestre, um jovem cuja sabedoria e sensibilidade se traduziam nos menores comentários, na risa- da solta, na simplicidade para decifrar as pessoas, e principal- mente no bom humor e talento para apreciar a vida. Desde então fizemos muitos projetos literários juntos e nos- sa amizade cresce a cada dia. Com os anos, Daniel e sua famí- lia passaram a fazer parte da minha e assim foi que ele levou • meu pai, Luiz Prieto, para passar um tempo entre seu povo e depois meu filho Lucas, cuja viagem inesquecível ele narra nes- te livro. A viagem durou quase um mês e, depois dela, pegadas de ani- mais, o vôo das aves, os sinais secretos dos sonhos passaram a habitar a fala de Lucas, que àté hoje se beneficia desta expe- riência que todo jovem deveria ter. D A N I E L M U N D U R U K U D i z i a o a n t r o p ó l o g o C l a u d e L é v i - S t r a u s s q u e s ó s e c o n h e c e a p r ó p r i a c u l t u r a a p a r t i r d o c o n t a t o c o m o u t r a . E a l é m d a s a v e n - t u r a s n a f l o r e s t a , d o s b a r c o s e a n i m a i s , d o s n o v o s a m i g o s i n d í - g e n a s , a c o n t e c e u t a m b é m u m a a v e n t u r a i n t e r n a , p e s s o a l e i n - t r a n s f e r í v e l . S o n h o s p a s s a r a m a t e r a m e s m a i m p o r t â n c i a q u e o s f a t o s , a s r e f l e x õ e s c o n t e s t a n d o a i m p o r t â n c i a d a s i n f o r m a ç õ e s , a d o e c e r é s i n ô n i m o d e p e r d e r a c o n e x ã o c o m o s e s p í r i t o s a n c e s t r a i s , o c o n t a t o c o m o u t r a t r a d i ç ã o a j u d a n d o - o a d e s c o b r i r u m m a p a i n - t e r n o , o m e s m o q u e a u x i l i a a s a v e s m i g r a t ó r i a s e m s e u s v ô o s d e m o d o q u e e l a s s e m p r e e n c o n t r e m s e u d e s t i n o . D i z e m o s a n t i g o s m u n d u r u k u : " O c a m i n h o s e g u r o é a q u e l e q u e f o i p i s a d o m u i t a s v e z e s " . E n t ã o , q u e e s t e t r a j e t o q u e u n i u t e m p o r a r i a m e n t e u m j o v e m u r b a ' n o a o u n i v e r s o a n c e s t r a l d o p o v o i n d í g e n a s e j a t r i l h a d o i n ú m e r a s v e z e s a t é t o r n a r - s e u m a r o t a s e g u r a p a r a o c o n h e c i m e n t o , a a m i z a d e e a i g u a l d a d e e n t r e t o d o s . H e l o i s a P r i e t o UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO PREFÁCIO Este livro é uma ficção, mas partiu de um fato verdadeiro. O menino Lucas existe e ele foi comigo a uma viagem até minha aldeia no Estado do Pará. Alguns dos fatos aqui narrados são verdadeiros, ocorreram nos vinte dias que passamos viajando. Outros fatos são narrados apenas para mostrar como é o dia- a- dia em uma aldeia Munduruku e como o universo deste povo é recheado de histórias mágicas e crenças que o ajudam na orga- nização de seu estar no mundo. A viagem foi muito gostosa e cheia de aventura e alguns con- tratempos também. Como o acesso é bastante difícil, tivemos que esperar algum tempo até concluí -la. Saímos de São Paulo rumo a Santarém. Antes passamos por Belém, onde ficamos dois dias. Chegando a Santarém, tomamos um barco que nos levou para Itaituba, uma cidade que cresceu muito na década de 1960 devido à descoberta de grandes jazi- das de ouro na região. O crescimento trouxe também a violência e a pobreza. Embora fosse rica, Itaituba continuou amargando uma triste estatística de cidade mais violenta do Brasil. Era co- nhecida como a cidade faroeste por ocorrerem nela autênticas cenas de bangue-bangue, semelhantes às dos filmes america- , _ , D A N I E L M U N D U R U K U n o s . Q u a n d o a f e b r e d o o u r o d i m i n u i u , I t a i t u b a e s t a v a a i n d a m a i s e m p o b r e c i d a e s u a p o p u l a ç ã o t e v e q u e s e a d a p t a r a o s n o - v o s t e m p o s . P o r i s s o a c i d a d e i n v e s t i u n a a g r o p e c u á r i a , n a p e s - c a e n o t u r i s m o . É n a c i d a d e d e I t a i t u b a q u e f i c a a s e d e r e g i o n a l d a F u n d a ç ã o N a c i o n a l d o Í n d i o ( F u n a i ) . P a s s a m o s p o r l á p a r a d a r s a t i s f a ç ã o a o a d m i n i s t r a d o r ; d e p o i s s e g u i m o s , d e a v i ã o , p a r a a c i d a d e d e J a c a r e a c a n g a , m u n i c í p i o d o q u a l f a z e m p a r t e t o d a s a s a l d e i a s M u n d u r u k u d o P a r á . E s s e m u n i c í p i o , r e l a t i v a m e n t e n o v o , f o i e m a n c i p a d o n o i n í - c i o d o s a n o s 1 9 9 0 , q u a n d o s e t o r n o u i n d e p e n d e n t e d e I t a i t u - b a . A t é d e z a n o s a t r á s a c i d a d e n ã o t i n h a s e q u e r e n e r g i a e l é - t r i c a p ú b l i c a . A p e n a s a l g u n s c o m e r c i a n t e s t i n h a m a c e s s o a e s s e l u x o e i s s o o s f a z i a e x p l o r a r a p o p u l a ç ã o i n t e i r a , i n c l u s i - v e a i n d í g en a . C o m o t o d a s a s c i d a d e s d a r e g i ã o , J a c a r e a c a n g a f o i c r i a d a p o r g a r i m p e i r o s . P e s s o a s v i n d a s d e d i v e r s o s e s t a d o s b r a s i l e i r o s a c o r r e r a m p a r a l á a t r á s d a r i q u e z a r á p i d a . M u i t o s d e s s e s h o - m e n s e m u l h e r e s a c a b a r a m t o r n a n d o - s e e s c r a v o s d o s g r a n d e s d o n o s d o s g a r i m p o s e p e r m a n e c e r a m p o b r e s p a r a o r e s t o d a v i d a . C o m o s e t r a t a v a d e u m a c i d a d e s e m p o p u l a ç ã o f i x a , J a c a - r e a c a n g a n ã o t i n h a m u i t a e x p e c t a t i v a d e f u t u r o , v i v e n d o d o o u r o q u e , e v e n t u a l m e n t e , p o r a l i s e e n c o n t r a v a . S o m e n t e d e p o i s d e s u a e m a n c i p a ç ã o a c i d a d e p a s s o u a r e c e b e r m a i o r a t e n ç ã o e h o j e t e m u m d e s e n v o l v i m e n t o m a i s v i s í v e l . A p o p u l a ç ã o d e J a c a r e a c a n g a é c o m p o s t a , e m s u a m a i o r i a , p e - l o s h e r d e i r o s d o s p r i m e i r o s g a r i m p e i r o s e m i n e r a d o r e s d a r e - g i ã o . N o e n t a n t o , f a z e m _ p a r t e d e l a a p r o x i m a d a m e n t e d e z m i l M u n d u r u k u , q u e h a b i t a m p e r t o d e c e m a l d e i a s n u m a á r e a r e c e n - t e m e n t e h o m o l o g a d a d e q u a s e d o i s m i l h õ e s e m e i o d e h e c t a r e s . P o r s e r u m a c i d a d e d i s t a n t e d o s g r a n d e s c e n t r o s , J a c a r e a c a n - g a t e m u m c u s t o d e v i d a m u i t o a l t o e , à s v e z e s , f a l t a m g ê n e r o s d e p r i m e i r a n e c e s s i d a d e p a r a a p o p u l a ç ã o l o c a l . Q u a n d o c h e g a - m o s , h a v i a f a l t a d e g a s o l i n a p a r a s u b i r m o s o r i o a t é a m i n h a a l - d e i a . I s s o a t r a s o u u m p o u c o n o s s a v i a g e m . . . UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO Outro fato bastante marcante foi o ataque ao World Trade Center, nos Estados Unidos, no dia 11 de setembro de 2001. Fi- camos sabendo do ocorrido ali em Jacareacanga, no hotel onde estávamos hospedados. Embora tenha sido chocante, não hou- ve nenhum impacto maior no cotidiano daquelas pessoas. Queria dizer, para concluir, que o jeito de narrar estes acon- tecimentos é como memória buscando refletir os fatos. Algu- mas vezes preferi colocar ponto de vista ou opinião numa ten- tativa de comparar a sociedade-indígena com a não-indígena, mostrando as qualidades e os defeitos de uma e de outra. Sei que algumas vezes fui parcial, favorável à sociedade indígena. Espero que entendam. Lembrem que quem narra os fatos é um indígena, portanto é a partir dessa ótica que deve ser lido este pequeno livro. I O ESPÍRITO DA NOITE D A N I E L M U N D U R U K U - A l ô , a q u i é d e S ã o P a u l o , p r e c i s o f a l a r c o m o c a c i q u e A r n a l - d o , c â m b i o . - S ó u m i n s t a n t e q u e v o u c h a m á - l o , c â m b i o . - V o u e s p e r a r n a l i n h a . O t e m p o p a s s o u b e m l e n t a m e n t e e n q u a n t o e u a g u a r d a v a n a l i n h a a v i n d a d o c a c i q u e . F i q u e i p e n s a n d o p o r u m m o m e n t o s o - b r e o m o t i v o d a q u e l e c h a m a d o . S e r á q u e a v i s i t a d e u m e s t r a - n h o à a l d e i a i r i a c a u s a r m u i t o a l v o r o ç o p o r l á ? T e r i a e u f e i t o b e m e m c o n v i d a r m e u a m i g o L u c a s p a r a i r à a l d e i a ? M e u s p e n s a m e n t o s f o r a m i n t e r r o m p i d o s q u a n d o u m a v o z d o o u t r o l a d o d a l i n h a m e d e s p e r t o u p a r a a r e a l i d a d e . E a g o r a , o q u e p o d e r e i d i z e r a o c a c i q u e ? - X i p a t , o b o r é D a n i e _ l ? O q u e e s t á a c o n t e c e n d o p o r a í ? - X i p a t , A r n a l d o . E c o m , o v e l h o a m i g o , c o m o a n d a m a s c o i s a s ? - P o r a q u i e s t á s e m p r e d o m e s m o j e i t o e s ó p i o r a n d o . C o n t i - n u a m i n v a d i n d o n o s s a s t e r r a s . M a s t u d o i s s o v o c ê j á s a b e , n ã o é m e s m o ? - I n f e l i z m e n t e , s e i . M a s o m o t i v o d e t e r l i g a d o p a r a v o c ê é p a r a l h e p e d i r a u t o r i z a ç ã o p a r a l e v a r u m a m i g o a t é n o s s a a l - d e i a . E l e q u e r n o s c o n h e c e r . . . . . al- UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO - Quantos anos tem este pariwat? -Ele é ainda jovem, não deve ter mais que catorze anos. -E você acha que ele agüenta passar algum tempo por aqui? Você sabe que aqui a gente tem que caçar, pescar, coletar. Além disso, tem os mosquitos, os carapanãs, os piuns ... -Eu sei, capitão. Tudo isso já foi dito a ele e ainda assim está disposto a ir. - Então não tenho nada a opor. Só peço que você conte a ele a história do pariwat que veio até aqui e se encontrou com o Es- pírito da Noite e ficou meio maluco. Você se lembra? -Lembro sim', Arnaldo, e vou contar para ele, prometo. Dito isso, desliguei o rádio e fiquei pensando no que o caci- que me disse. Procurei na minha memória a tal história e lem- brei de uma vez que um estrangeiro chegou a nossa aldeia com os olhos arregalados, cheios de medo. Veio remando uma canoa velha. Estava cansado e cambaleava. O cacique o aco- lheu com algum receio de que se tratasse de um garimpeiro invasor que tinha se perdido, mas como ele não conseguia falar e não tirava do rosto o espanto que havia chegado, Arnaldo preferiu deitá-lo na rede e chamar o pajé para ver o estrangeiro. Depois de algum tempo o pajé estava ao lado do paciente, examinando-o. Acendeu seu cigarro de tauari e tocou a testa febril do homem, que continuava suando como nunca. Em se- guida lançou algumas baforadas do cigarro e cantou uma can- tiga ancestral. Muita gente começou a chegar na casa do caci- que para acompanhar o "tratamento" que o curador fazia. Com a sala já cheia de gente, o velho homem depositou ervas numa vasilha e lançou sobre elas água fervendo. Ia molhando um ve- lho pano e passando na testa e no peito do moribundo. De re- pente- o homem começou a gemer e falar coisas que ninguém entendia direito. O pajé não deu importância às palavras desencontradas do doente e continuou a cuidar dele durante a noite toda, sempre acompanhado de uma platéia que se avolumava na sala. D A N I E L M U N D U R U K U A n t e s d e o d i a a m a n h e c e r p o r c o m p l e t o , o p a j é d e i t o u - s e n a r e d e a o l a d o e a d o r m e c e u . E l e p r e c i s a v a s o n h a r c o m a d o e n ç a q u e t i n h a a c o m e t i d o o r a p a z . D e p o i s d e u m a h o r a , o c u r a d o r a c o r d o u u m p o u c o a t o r d o a d o . F o i a t é o i g a r a p é e t o m o u u m b a n h o f r i o d a m a n h ã . P r e c i s a v a l a v a r o c o r p o p a r a m a n t e r s u a m e m ó r i a v i v a a f i m d e f a z e r o r e - m é d i o c e r t o p a r a o d o e n t e . D u r a n t e o t e m p o t o d o e s t e v e e m s i - l ê n c i o c o m o s e e s t i v e s s e p r o c u r a n d o e n t e n d e r o s o n h o q u e h a - v i a t i d o . E m s e g u i d a , d i r i g i u - s e a t é a m a t a q u e ci r c u n d a v a a a l - d e i a e a p a n h o u u m p o u c o d e e r v a e u m a r a i z . F o i a t é s u a c a s a e p r e p a r o u u m c h á q u e t r o u x e p a r a a c a s a d e A r n a l d o . C o m a a j u d a d e v á r i a s p e s s o a s , o p a j é l e v a n t o u o p a c i e n t e e l h e a p l i c o u u m a m a s s a g e m n o c o r p o , s e g u i d a d e u m g o l e d o c h á q u e h a v i a p r e p a r a d o . O d o e n t e t o m o u e q u a s e v o m i t o u t o d o o c o n t e ú d o p o r q u e o r e m é d i o e r a m u i t o a m a r g o . O p a j é , p o r é m , c o n s e g u i u f a z ê - l o s e g u r a r e e n g o l i r t u d o . E m s e g u i d a v o l t o u a d e i t á - l o n a r e d e p a r a q u e p u d e s s e d o r m i r n o v a m e n t e . L e m b r o q u e s e p a s s a r a m a l g u m a s h o r a s a t é o d o e n t e c o m e - ç a r a s e m e x e r e a b r i r o s o l h o s . F i c o u u m p o u c o a s s u s t a d o a o v e r t a n t o s r o s t o s e s t r a n h o s d i a n t e d e s i . A o s p o u c o s f o i , n o e n - t a n t o , s e r e c o m p o n d o e s e n t o u - s e n a r e d e . O l h o u a o r e d o r e p e r - g u n t o u o n d e e s t a v a , a o q u e f o i r e s p o n d i d o q u e h a v i a s i d o e n c o n - t r a d o q u a s e d e s f a l e c i d o e q u e t i n h a s i d o r e c o l h i d o à a l d e i a . - N ã o s e i c o m o v i m p a r a r a q u i , m a s r e c o r d o q u e c o r r i p o r u m l o n g o t e m p o p e l o m a t o a d e n t r o . - D o q u e v o c ê c o r r i a ? - N ã o s e i d i r e i t o , m a s l e m b r o q u e s e n t i u m a r r e p i o m u i t o g r a n - d e n o c o r p o . O l h e i p a r a t~ás, m a s n a d a v i . O u p e l o m e n o s n ã o a c h o q u e t e n h a v i s t o a l g o i m p o r t a n t e . - O q u e v o c ê e s t a v a f a z e n d o a q u i , e m n o s s a á r e a ? - S o u p e s c a d o r . F a ç o p e s c a e s p o r t i v a . V i m d e S ã o P a u l o j u n t o c o m u m g r u p o d e a m i g o s p a r a p r a t i c a r . H o j e r e s o l v i s a i r s o z i - n h o . P o r i s s o p e g u e i u m b a r c o e f u i a t é u m a á r e a q u e , s e g u n d o d i z e m , t e m m u i t o s p e i x e s . M a s n ã o s a b i a q u e s e t r a t a v a d e u m a á r e a i n d í g e n a . D A N I E L M U N D U R U K U a s p e s s o a s , o m e d o a s t o r n a m u i t o f r á g e i s . F o i i s s o q u e v i n o s o n h o q u e t i v e . O p a j é n ã o q u i s c o n t i n u a r a q u e l a c o n v e r s a e d i s p e r s o u t o d o m u n d o , s u g e r i n d o q u e l e v á s s e m o s o e s t r a n g e i r o e m b o r a p a r a q u e n i n g u é m a c h a s s e q u e e l e t i n h a m o r r i d o n a f l o r e s t a e c o m e - ç a s s e m a p r o c u r á - l o e m n o s s a s t e r r a s . L e m b r o q u e o m o ç o a g r a d e c e u d e m a i s a o v e l h o p a j é , q u e o t i - n h a m a n t i d o v i v o . A c h o q u e f o i p o r i s s o q u e o c a c i q u e A r n a l d o s u g e r i u q u e e u c o n t a s s e a o m e u a m i g o L u c a s e s s a h i s t ó r i a , p a r a l h e m o s t r a r q u e h a v i a m u i t o s m i s t é r i o s e m n o s s a c u l t u r a . E m b o r a e u n ã o q u i s e s s e a s s u s t a r m e u j o v e m a m i g o , c o n t e i a h i s t ó r i a p a r a e l e e p a r a s u a m ã e . I s s o g e r o u u m c e r t o r e c e i o n e l a , q u e j á n ã o e s t a v a m u i t o c o n v e n c i d a q u e e s t a v i a g e m s e r i a b o a a o s e u m e n i n o . T e n t o u , i n c l u s i v e , c o n v e n c ê - l o a n ã o s a i r d e S ã o P a u l o e q u e d e i x a s s e p a r a i r n u m o u t r o m o m e n t o . F e l i z m e n t e L u c a s j á t i n h a d e c i d i d o v i a j a r e f i c o u a t é m u i t o e x c i t a d o p a r a c o n f e r i r a v e r a c i d a d e d a h i s t ó r i a . C o u b e à s u a m ã e c o n f o r m a r - s e e a c e i t a r a s u a d e c i s ã o . P r e f e r i n ã o m e e n v o l v e r n o a s s u n t o . P a r a m i m , o q u e e l e s r e s o l v e s s e m e s t a r i a b o m d e m a i s . . , O MATIN D A N I E L M U N D U R U K U M e u a m i g o L u c a s s e m p r e f o i m u i t o t í m i d o e e n t r e n ó s h a v i a p o u c a c o i s a e m c o m u m . E l e é d e s c e n d e n t e d e e s p a n h o l , e u s o u i n d í g e n a ; e l e é b e m j o v e r r i , e u j á t e n h o m u i t o t e m p o d e e s t r a d a ; t e m o s v i s õ e s d e m u n d o e m o d e r n i d a d e d i f e r e n t e s . M a s t e m o s a l g o e m c o m u m : n a s c e m o s n o m e s m o d i a , s e i s d e f e v e r e i r o . S e - g u n d o a t r a d i ç ã o o c i d e n t a l , s o m o s d o s i g n o d e a q u á r i o , a m b o s v i v e m o s n o m u n d o d a s n u v e n s ; a m b o s c r i a m o s u n i v e r s o s e m n o s s a m e n t e . E l e o f a z a t r a v é s d a m ú s i c a e d o d e s e n h o , e u , a t r a - v é s d a l i t e r a t u r a . E f o i d e s s a s c o i s a s e m c o m u m q u e s u r g i u a i d é i a d e j u n t o s v i v e r m o s e s t a e x p e r i ê n c i a . Q u a n d o e u e r a c r i a n ç a , o u v i a m u i t a s h i s t ó r i a s q u e m e u s p a i s e a v ó s c o n t a v a m . A g e n t e s e r e u n i a n o i n í c i o d a n o i t e , a p ó s a n o s s a r e f e i ç ã o , e o s m a i s v e l h o s s e p u n h a m a c o n t a r h i s t ó r i a s . M u i t a s d e l a s e r a m v e r d a d e i r a s , t i n h a m s i d o v i v e n c i a d a s p o r e l e s m e s m o s ; o u t r a s h i s t ó r i a s e r a m m a i s a n t i g a s , f a l a v a m d e u m m u n d o q u e e r a h a b i t a d o p o r s e r e s f a n t á s t i c o s , d e u m t e m - p o m u i t o a n t e r i o r a o n o s s o . E a i n d a h a v i a a s h i s t ó r i a s q u e a g e n - t e m e s m o v i v i a e m n o s s o c o t i d i a n o n a a l d e i a . A q u e a g o r a n a r r o f o i c o n t a d a p o r m i n h a a v ó , n u m a d e s s a s t a r d e s d e i n v e r n o d a A m a z ô n i a , q u a n d o c h o v i a t o r r e n c i a l m e n - . . UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO te. Era uma época que não tinha energia elétrica e nossa única iluminação era uma velha lamparina acesa à base de querose- ne, que a gente comprava na cidade. Minha avó era uma senhora com mais de oitenta anos de idade, mas estava bem lúcida, cb~ lembranças claras dos acon- tecimentos. Ela nos disse que numa determinada noite de mui- to calor havia deixado a única janela da casa aberta para en- trar um vento que refrescasse seu sono. Ainda assim teve uma noite bastante difícil, pois acordava de vez em quando, so- bressaltada pelo calor e por sonhos estranhos. É claro que isso a assustava, pois nossa tradição diz que os sonhos trazem mensagens do outro mundo. Quando os sonhos são muito fre- qüentes numa mesma noite, é porque algo de muito ruim pode acontecer. A cada flash entre o sono e a vigília minha avó acordava e as- sentava-se na rede para respirar fundo. Num desses momentos, ela despertoue voltou seu olhar para a janela. O susto que le- vou foi enorme. Sentada na janela estava uma grande ave que a mirava fixamente. Minha avó esfregou os olhos várias vezes na tentativa de confirmar sua visão. A ave ficou alguns instantes no batente da janela e depois alçou vôo para a floresta. Minha avó correu até a janela, deu duas olhadas de relance e a fechou rapidamente com receio de que a estranha ave voltas- se. Depois se assentou na rede e disse algumas palavras na lín- gua de nossa gente e deitou-se. Dessa vez dormiu até a manhã seguinte sem nenhum sobressalto. Tão logo levantou, contou tudo o que tinha visto aos outros moradores de sua casa. Meu avô, que era um homem muito sábio, ouviu tudo em silêncio e disse que aquela estranha ave era, na verdade, a matintaperera pedindo fumo para não mandar doença sobre alguém daquela casa. Na mesma noite minha avó colocou fumo ralado numa cuia e deixou perto da mata. No dia seguinte tudo havia desapareci- do e o perigo de doença tinha sido afastado da aldeia. Depois de ouvir a história, quis saber de minha avó como era a ave. Ela não soube me dizer, pois estava com muito medo e não D A N I E L M U N D U R U K U f o i c a p a z d e r e p a r a r d i r e i t o . A p e n a s m e d i s s e q u e a p a r t i r d a - q u e l e d i a n u n c a m a i s d o r m i u d e j a n e l a a b e r t a . L u c a s c o n t o u c o m a a j u d a d e s e u a v ô p a r a a r r u m a r a s m a l a s . S e u L u í s é u m e x p e r i e n t e c a ç a d o r . V i a j o u p a r a m u i t o s l u g a r e s d o B r a s i l . E m a l g u m a s d e s u a s v i a g e n s e n t r o u e m c o n t a t o c o m o s X a v a n t e d o M a t o G r o s s o . P a s s a v a d i a s e d i a s l o n g e d e S ã o P a u l o , e m b r e n h a d o p e l a s m a t a s e r i o s d e n o s s o p a í s . F o i p o r t u d o i s s o q u e s e u L u í s q u i s e m p r e s t a r s u a e x p e r i ê n c i a a o j o v e m n e t o , q u e i r i a f a z e r s u a p r i m e i r a v i a g e m p a r a u m l u g a r d i s t a n t e . A c o n s e l h o u , c o n v e r s o u , a d m o e s t o u , d e u d i c a s d e c o m o s e c o m p o r t a r n o c a m p o , o q u e d e v e r i a f a z e r e m s i t u a ç õ e s d i f í - c e i s , e t c . . . E u f i c a v a o b s e r v a n d o t u d o d e l o n g e , o u v i n d o a a p r e e n - s i v a m ã e t r a z e r s e u s r e c e i o s e o u v i n d o t a m b é m c o n s e l h o s d e c o m o c u i d a r d o " m e n i n o " . D e m i n h a p a r t e , f i q u e i p e n s a n d o q u e n a n o s s a t r a d i ç ã o i n d í - g e n a a s m ã e s t a m b é m l a m e n t a m m u i t o q u a n d o o s f i l h o s s a e m p a r a f a z e r s e u r i t u a l d e p a s s a g e m . L e m b r e i q u e f o i a s s i m q u e a c o n t e c e u c o m i g o q u a n d o s a í p a r a f i c a r s e t e d i a s n o m a t o . M i - n h a m ã e , a s s i m c o m o t o d a s a s o u t r a s m ã e s , c h o r o u . C h o r o u p o r d o i s m o t i v o s : u m , p o r q u e a g e n t e p o d e r i a n ã o m a i s v o l t a r , s e r a t a c a d o p o r u m a f e r a d a f l o r e s t a ; d o i s , p o r q u e q u a n d o r e t o r n á s - s e m o s j á n ã o s e r i a m a i s u m m e n i n o , s e r i a u m h o m e m e t e r i a q u e s e r t r a t a d o c o m o t a l . P a r a a s m ã e s é s e m p r e u m m o m e n t o d e l i - c a d o . P o r i s s o t u d o c o m p r e e n d i a a a p r e e n s ã o d e m i n h a c a r a a m i - g a . P o r o u t r o l a d o , n ã o p o d i a i n t e r f e r i r p o r s e t r a t a r d e u m m o - m e n t o e s p e c i a l e d e e x e r c í c i o d e l i b e r d a d e . Q u a n d o v o l t a m o s d a m a t a , s o m o s t r a t a d o s c o m o a d u l t o s , r e c e b e m o s o r e s p e i t o d e t o - d o s , o o l h a r d a s m o ç a s d a ' a l d e i a e a p e r m i s s ã o d e n o s c a s a r , c a s o a g e n t e q u e i r a . I m a g i n a v a q u e i s s o t u d o e s t a v a a c o n t e c e n - d o c o m o m e n i n o L u c a s . . . TERROR NO PÁSSARO DE FERRO D A N I E L M U N D U R U K U O a v i ã o é a l g o n o v o n o i m a g i n á r i o i n d í g e n a . A l i á s , é n o v o t a m b é m p a r a o n ã o - í n d i o , u m a v e z q u e é u m a i n v e n ç ã o r e c e n - t e , s e p e n s a r m o s n o t e m p o q u e o s e r h u m a n o l e v o u p a r a i n v e n - t á - l o . N o c a s o i n d í g e n a , e n t ã o , h á t o d o u m e s p a n t o c a u s a d o p e l a c h e g a d a d e s s e a p a r e l h o q u e t o m a c o n t a d o s c é u s c o m o u m g r a n - d e p á s s a r o . O p o v o X a v a n t e - q u e f o i c o n t a t a d o h á 5 0 a n o s - c o n t a q u e q u a n d o v i u u m a v i ã o p e l a p r i m e i r a v e z a c h o u q u e e s t a v a s e n d o i n v a d i d o p o r g r a n d e s p á s s a r o s d e f e r r o e i m e d i a t a m e n t e p a s - s a r a m a t e n t a r a c e r t á - l o c o m s u a s p o d e r o s a s f l e c h a s . A s m u - l h e r e s e c r i a n ç a s f i c a r a m d e n t r o d a s c a s a s e s p e r a n d o q u e a q u a l q u e r m o m e n t o f o s s e m e x t e r m i n a d a s p o r a q u e l e s e s t r a n h o s a p a r e l h o s c e l e s t e s . M a s t u d o n ã o p a s s o u d a c h e g a d a d o s h o m e n s b r a n c o s e m s u a a l d e i a . N o e n t a n t o , i s s o m a r c o u p r o f u n d a m e n - t e o c o r a ç ã o d e s s e p o v o , q u e p o r l o n g o t e m p o f o i s e n h o r a b s o l u - t o d o c e r r a d o . A t e c n o l o g i a i n d í g e n a é b a s t a n t e s i m p l e s , ú t i l . O n a t i v o d e - s e n v o l v e u m a f o r m a m u i t o p r ó p r i a d e r e l a c i o n a r - s e c o m a n a t u - r e z a , d e l a t i r a n d o t u d o o q u e p r e c i s a p a r a o d i a - a - d i a . E s s a t r o - c a e x i g e u m a t e c n o l o g i a q u e n ã o e s t á b a s e a d a e m c r i a r c o i s a s p a r a a c u m u l a r b e n s . A o c o n t r á r i o , i n v e n t a m o s o s o b j e t o s q u e n o s a j u d a m a n o s t o r n a r c a d a v e z m a i s l i v r e s . . . os as que UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO Com a chegada do homem branco, os povos indígenas tiveram que se adaptar a essa nova realidade, inclusive utilizando esses mesmos recursos para sobreviver e mostrar- se ao mundo. Hoje, muitos desses grupos já estão criando páginas na internet, pro- duzindo documentários, indo para~ universidade, escrevendo livros, entre outras coisas. O avião tem sido um instrumento usado por muitos grupos para poder se locomover para participar de eventos no mundo todo, mas não é sem nenhum medo, não. Ao contrário, dentro das aldeias há muitas histórias que falam sobre a presença do avião na vida dos povos indígenas. Alguns pesquisadores chegaram a encontrar desenhos antigos nas cavernas que registraram a pre- sença de objetos voadores, tais como o próprio avião. Chegar na aldeia Katõ é uma grande aventura. Para ganhar tempo é preciso tomar um avião em São Paulo rumo a Belém, a bela capital paraense. Em seguid'a, pega- se outro que nos leva até Santarém. Isto em uma grande companhia aérea. Quando se chega em Santarém, é precisomudar de transporte. Tomamos um barco a motor e seguimos até a cidade de Itaituba, uma an- tiga localidade que cresceu em função do garimpo descoberto na década de 1960. Em função desse ouro, Itaituba ocupou mui- tas manchetes nacionais como a cidade mais violenta do país. Como era uma área indígena, houve muito confronto entre ín- dias e garimpeiros. Depois ela cresceu, desenvolvendo uma eco- nomia baseada no comércio de gêneros alimentícios para outras áreas de garimpos que foram aparecendo com o passar dos anos. Ainda hoje ela abriga aldeias indígenas em seu território. De Itaituba temos que tomar um avião para outra cidade de nome Jacareacanga. Ela abrange toda a área indígena Mundu- ruku. Pertencia a Itaituba até 15 anos atrás, quando se eman- cipou tórnando- se um município independente e assumindo uma identidade própria, buscando uma economia auto-sustentável. Nesse município habitam cerca de sessenta mil pessoas, sendo dez mil do grupo Munduruku. E também não é tão fácil viver num lugar como esse. Meu amigo Lucas sentiu isso na pele, es- D A N I E L M U N D U R U K U p e c i a l m e n t e q u a n d o e n t r a m o s n a b a r r i g a d o p á s s a r o d e f e r r o , i n d o d e I t a i t u b a a J a c a r e a c a n g a . C h e g a m o s a o p e q u e n o a e r o p o r t o d a c i d a d e c o m u m c e r t o a t r a - s o . U m a c h u v a j á s e f o r m a v a n o h o r i z o n t e . T i v e m o s q u e n o s a p r e s s a r u m p o u c o m a i s , p o i s a p e q u e n a a e r o n a v e q u e r i a p a r - t i r a n t e s d a c h u v a , c a s o c o n t r á r i o s ó s a i r i a n o d i a s e g u i n t e , o q u e p a r a n ó s n ã o e r a u m a b o a i d é i a . P o r i s s o n o s a p r e s s a m o s e r e s o l v e m o s e m b a r c a r i m e d i a t a m e n t e . O b i m o t o r - q u e e m g e r a l l e v a a p e n a s c i n c o p a s s a g e i r o s - e s - t a v a l o t a d o . C o n t a n d o a s p e s s o a s e a s m a l a s , e r a q u a s e i m p o s - s í v e l c a b e r s e q u e r m a i s u m a ú n i c a m o s c a . N ó s n o s a c o m o d a m o s d o j e i t o q u e f o i p o s s í v e l . T ã o l o g o n o s a s s e n t a m o s , o p i l o t o d e u p a r t i d a e c o l o c o u a a e r o n a v e e m m o v i m e n t o . L á f o r a o v e n t o j á a p r e s e n t a v a s u a m a j e s t a d e e a l g u n s p a s s a g e i r o s d e m o n s t r a v a m c e r t o r e c e i o n a q u e l a v i a g e m . O a v i ã o t o m o u v e l o c i d a d e d e d e c o l a g e m e l o g o a l ç o u v ô o . D e i n í - c i o s e n t i m o s q u e a v i a g e m n ã o s e r i a d a s m e l h o r e s , p o i s o b i m o t o r b a t i a c o n t r a o v e n t o e e r a j o g a d o o r a p a r a u m l a d o o r a p a r a o u t r o . O p i l o t o t e n t a v a c o n t r o l a r o a p a r e l h o , m a s n ã o c o n s e g u i a . T o d o s n o s s e g u r á v a m o s d o j e i t o q u e e r a p o s s í v e l . M a s o p i o r a i n d a e s t a - v a p o r v i r . U m a g r o s s a c h u v a c o m e ç o u a b a t e r c o n t r a o p á r a - b r i s a d o a p a r e l h o , f a z e n d o - n o s e n t r e v e r u m b r e v e a c i d e n t e a é r e o . H a v i a u m r a p a z q u e v i a j a v a p r ó x i m o a o L u c a s . C o m o d e c o r - r e r d o s f a t o s , o j o v e m f o i s e d e s e s p e r a n d o d e t a l m o d o q u e p a s - s o u a g r i t a r , d i z e n d o q u e n ã o q u e r i a m o r r e r , q u e a i n d a e r a j o - v e m , t i n h a m u i t a s c o i s a s a r e a l i z a r , e t c . S e u s g r i t o s a p a v o r a v a m a t o d o s , p r o v o c a n d o d e s c o n f o r t o . O p i l o t o p e d i u p a r a qu~ o r a p a z s e c o n t r o l a s s e p a r a e v i t a r o p â - n i c o e n t r e o s p a s s a g e i r o s . S ó e n t ã o o j o v e m s e c o n t e v e . A c h u v a c o m e ç o u a f i c a r c a d a v e z m a i s f o r t e , l a n ç a n d o t o r r e n t e s s o b r e a p e q u e n a a e r o n a v e , q u e r e s i s t i a b r a v a m e n t e . O p i l o t o f e z u m a m a - n o b r a r a d i c a l e l e v o u o a p a r e l h o p a r a a s a l t u r a s , t e n t a n d o f i c a r a c i m a d a s n u v e n s d e c h u v a . F e l i z m e n t e e l e c o n s e g u i u , d i m i n u i n - d o o p a v o r d e q u e a a e r o n a v e c a í s s e . M a s o a l í v i o s ó f o i t o t a l n o m o m e n t o e m q u e o a v i ã o a t e r r i s s o u e m J a c a r e a c a n g a . 4 A CAMINHO DA ALDEIA D A N I E L M U N D U R U K U D e p o i s d e t e r p a s s a d o t a n t o s u f o c o n o p á s s a r o d e f e r r o , L u c a s e e u s ó q u e r í a m o s u m l u g a r p a r a d e s c a n s a r . P o r é m , t ã o l o g o c h e - g a m o s , j á h a v i a u m a u t o m ó v e l p a r a n o s l e v a r d i r e t o p a r a a b e i r a d o r i o , o n d e u m b a r c o a m o t o r n o s e s p e r a v a . N o e n t a n t o , e x i s t i a u m p r o b l e m a : a c i d a d e e s t a v a s e m c o m b u s t í v e l . O u s e j a , n ã o t í - n h a m o s c o m o s a i r d a l i p o r p e l o m e n o s d o i s d i a s . I s s o n o s o b r i g o u a f i c a r n a c i d a d e . M a s n e m t u d o f o i p e r d i d o , p o i s i n i c i a m o s u m t r a - b a l h o d e r e c o n h e c i m e n t o n o m u n i c í p i o . F o i a o p o r t u n i d a d e q u e p r e c i s á v a m o s p a r a c o n h e c e r m e l h o r a r e a l i d a d e d o l o c a l . A a p a r ê n c i a d o L u c a s c a u s o u u m c e r t o a l v o r o ç o e n t r e a s m o - ç a s d a l i . E l e é u m j o v e m c o m u m r o s t o b e m d e l i n e a d o , d e p e l e a l v í s s i m a , c a b e l o s q u e i a m a t é o m e i o d a s c o s t a s . E s t e t i p o d e g e n t e n ã o é m u i t o c o m u l ! l n a r e g i ã o , p o r i s s o t o d o s v o l t a r a m s o - b r e e l e o o l h a r . - S e n h o r L u c a s , o q u e o t r o u x e a n o s s a c i d a d e ? - E u v i m p a r a c o n h e c e r a r e a l i d a d e d a q u i . - O s e n h o r n ã o t e m m e d o d o q u e v a i e n c o n t r a r p o r a q u i ? - A c h o q u e n ã o t e n h o p o r q u e t e r m e d o . N ã o v i m a q u i p a r a b r i g a r o u f a z e r q u a l q u e r t i p o d e d i s c u s s ã o . P e l o c o n t r á r i o , e s - t o u a q u i p a r a c o n h e c e r o p o v o M u n d u r u k u . cas h e- ::ra- que o - ele de -o - a "S - UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO - Por que o senhor resolveu conhecer este povo e não outro qualquer? -Porque conheci um Munduruku, de quem fiquei amigo, e re - solvi vir conhecer como vive a gente dele. Foi assim que correu a pequena entrevista que Lucas teve que dar para a única rádio da cidade. Pelas ·perguntas se podia sentir que havia certa inquietude nas pessoas, pois em cidades pequenas sempre há alguma desconfiança e insegurança, sobretudo se quem vem se parece com um europeu e está acompanhado por um índio. Quase sempre as pessoas acham que está havendo algum tipo de movimento para acabar com elas, destruí-las. Apesar disso, a po- pulação local tem uma vida cordial com a comunidade indígena. Também Lucas teveque se encontrar com o prefeito da cida- de e foi, inclusive, por conta dessa conversa que conseguimos combustível para prosseguir a viagem para a aldeia . D A N I E L M U N D U R U K U N o s s a i d a p a r a a a l d e i a i n i c i o u - s e t ã o l o g o o d i a r a i o u . L e v a n - t a m o s p o r v o l t a d a s c i n c o h o r a s e f o m o s d i r e t o p a r a o p o s t o d e g a - s a l i n a s u s p e n s o , q u e f i c a a t r ê s q u i l ô m e t r o s d a c i d a d e . E m b a r c a - m o s n u m v e l h o c a m i n h ã o c o m o u t r a s s e i s p e s s o a s q u e i r i a m a p r o - v e i t a r n o s s a e m b a r c a ç ã o p a r a i r j u n t o . T ã o l o g o c h e g a m o s , N i c o - l a u , o p i l o t o q u e n o s l e v a r i a , a b a s t e c e u o b a r c o e d e u o r d e m d e p a r t i d a . T o d o s n o s a s s e n t a m o s d o m e l h o r j e i t o p o s s í v e l e i n i c i a - m o s a v i a g e m , q u e d u r a r i a a p r o x i m a d a m e n t e o i t o h o r a s , c o r - t a n d o o i g a r a p é c a b i t u t u q u e n o s l e v a r i a a t é a a l d e i a K a t õ . A f l o r e s t a a m a z ô n i c a é a l g o s u r p r e e n d e n t e . E u a c o n h e ç o b e m e s e m p r e m e e x t a s i o d i a n t e d e s u a g r a n d i o s i d a d e e b e l e - z a . E m m u i t o s l u g a r e s s ó s e c h e g a a p é o u d e c a n o a . A l g u n s b r a ç o s d o s s e u s r i o s s ã o t ã o s i n u o s o s q u e n e m m e s m o o m a i s e x p e r i e n t e p i l o t o s e a v e n t u r a a d e s o b e d e c e r a s o r d e n s q u e e s s a n a t u r e z a i m p õ e . N i c o l a u , n o e n t a n t o , j á h a v i a f e i t o t a n t a s v e z e s a q u e l e c a m i - n h o q u e o c o n h e c i a d e c o r e s a l t e a d o e , a i n d a a s s i m , s e g u i a u m r i t u a l d o q u a l n ã o a b r i a m ã o . P r e f e r i a s a i r b e m c e d i n h o p a r a e v i t a r s u r p r e s a s c o m o a c h u v a , o m a u t e m p o e o u t r o s p e q u e n o s i n c i d e n t e s q u e s e m p r e a c o n t e c e m . U m d e s s e s " i n c i d e n t e s " e l e n o s c o n t o u q u a n d o j á e s t á v a m o s e m p l e n o T a p a j ó s . UM ENCONTRO ami- D A N I E L M U N D U R U K U N i c o l a u a s s e n t o u - s e a o n o s s o l a d o , m a s s e m p r e d e o l h o s v o l - t a d o s p a r a o c a m i n h o d a s á g u a s . M e s m o a t e n t o f o i n o s c o n t a n - d o o e n c o n t r o q u e e l e j u r o u q u e t e v e c o m a M ã e - d ' á g u a n u m d i a e m q u e e l e t e i m o u d e s o b e d e c e r e d e s c u m p r i u o s e u r i t u a l . " E r a u m a n o i t e s e m l u a e p r e c i s á v a m o s v i r p a r a a c i d a d e t r a - z e r u m d o e n t e p a r a o h o s p i t a l l o c a l . N i n g u é m e s t a v a m u i t o d i s - p o s t o a s a i r d e c a s a p o r q u e , e m n o i t e s c o m o a q u e l a , m u i t a c o i - s a p o d e r i a a c o n t e c e r . E u t a m b é m n ã o e s t a v a c o m m u i t a v o n t a - d e d e i r p a r a a q u e l a v i a g e m p o r q u e e l a f o i a r r a n j a d a e m c i m a d a h o r a e e u n u n c a v i a j o d e s s a m a n e i r a . M a s n a q u e l a n o i t e h a - v i a u m a e m e r g ê n c i a : u m a c r i a n ç a t i n h a s i d o m o r d i d a p o r u m a c o b r a c a s c a v e l d a s m a i s v e n e n o s a s . S e e l a n ã o f o s s e c a r r e g a d a i m e d i a t a m e n t e a o h o s p i t a J , a c a b a r i a m o r r e n d o . E c o m o o m e n i - n o e r a m e u s o b r i n h o e o c a c i q u e f o i p e s s o a l m e n t e m e p e d i r p a r a i r , e u n ã o p u d e r e c u s a r . C o n s e g u i q u e u m o u t r o p r i m o f o s s e c o - m i g o m a i s a m ã e d o m e n i n o . N o t o t a l é r a m o s q u a t r o p e s s o a s . E m b a r c a m o s p o r v o l t a d a m e i a - n o i t e , h o r a d o s e s p í r i t o s e s - t a r e m r o n d a n d o o s r i o s . L i g u e i o m o t o r d a v o a d e i r a e l a n c e i u m o l h a r p a r a c i m a , p e d i n d o a p r o t e ç ã o d o s a n c e s t r a i s . N a p r i m e i - r a h o r a f o i t u d o m u i t o t r a n q ü i l o , s e m s o b r e s s a l t o s . M e u s o b r i - UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO n ho e sua mãe cochilavam no barco e meu primo ia clareando o caminho com uma lanterna de mão. De repente o motor começou a falhar, até que parou totalmente e ficamos à deriva. Falei para meu primo que era preciso remar até a aldeia Taperebá para que pudéssemos pedir auxílio. Ele pegou o remo e se pôs a im- pulsionar a canoa, enquanto eu olhava o motor para ver se ti- nha acontecido algum problema de fácil solução. No entanto, por mais que eu procurasse, não conseguia encontrar o local onde tinha ocorrido a avaria. Minha sensação era de que algo muito estranho tinha acontecido ao motor, porque eu não havia percebido nada de anormal pelo caminho. Mesmo assim, tenta- va encontrar o problema. Abaixado, não percebi que meu primo havia sumido da proa do barco. Levantei apenas quando ouvi um estranho barulho na água, como se alguém tivesse mergulha- do. Quando percebi que meu primo não estava ali, me deu um de- sespero e achei que ele tinha cochilado e caído n'água. Corri para a proa gritando por ele, acordando, inclusive, os outros passagei- ros. Quando ali cheguei, meu primo pedia para que eu o pegasse rapidamente porque a Mãe-d'água estava querendo levá-lo para o fundo do rio. Estendi meu braço para ele e o agarrei com força, alçando-o para dentro da canoa. Ele estava todo encharcado e ti- ritando de frio. Joguei uma toalha sobre ele a fim de aquecê-lo. Como a noite estava muito escura, não pude ver nada a nossa frente. Todos estávamos com muito medo e nos sentamos junti- nhas, pois nossos velhos dizem que a Mãe-d'água nunca desis- te quando quer levar alguém consigo. Ela precisa, vez ou outra, encontrar um homem para morar com ela no seu lugar de des- canso. Existem muitas histórias de nosso povo que falam do su- miço misterioso de rapazes. Ninguém sabe para onde foram ou se met~ram. Existe até a história de um que sumiu e voltou de- pois de algum tempo, não se sabe de onde. Ele apareceu na al- deia muito pálido e sem conseguir mais falar. Passou a comu- nicar-se por meio de sinais, pois não sabia ler nem escrever. Al- guns acham que ele fora enfeitiçado pela Mãe-d'água para nun- ca revelar o segredo de sua casa. D A N I E L M U N D U R U K U P o i s b e m , q u a n d o o p r i m o r e c u p e r o u o f ô l e g o , p e r g u n t e i a e l e o q u e h a v i a v i s t o . E l e d i s s e , e n t ã o , q u e v i u u m a m u l h e r m u i t o b o n i t a n o m e i o d a s á r v o r e s . E l a o c h a m a v a a t r a v é s d e u m a m ú - s i c a q u e , a p a r e n t e m e n t e , s ó e l e e s c u t a v a . T e n t o u f i r m a r o o l h a r p a r a p o d e r e n x e r g a r m e l h o r , m a s v i u a p e n a s u m a s o m b r a . A l - c a n ç o u a l a n t e r n a q u e e s t a v a n o f u n d o d o b a r c o , e q u a n d o t e n - t o u c l a r e a r o l a d o d a f l o r e s t a o n d e e s t a v a a m u l h e r , f o i p u x a d o p a r a d e n t r o d o r i o . N o e n t a n t o , c o m oe s t á v a m o s p e r t i n h o d a m a r g e m , e l e a g a r r o u - s e a u m a á r v o r e . F o i n e s s e m o m e n t o q u e p r e s t e i a t e n ç ã o e c o r r i p a r a a p r o a , s e g u r a n d o - o . C a s o c o n t r á - r i o e l e t e r i a s i d o s u g a d o p a r a d e n t r o d o r i o , d e o n d e n ã o s a i r i a n u n c a m a i s . " T e n d o d i t o i s s o , N i c o l a u c a l o u - s e u m i n s t a n t e . L u c a s , c o m u m a r i n c r é d u l o , n ã o p e r d e u a c h a n c e d e f a z e r p e r g u n t a s a N i c o l a u . - V o c ê a c h a q u e r e a l m e n t e f o i a M ã e - d ' á g u a q u e f e z i s s o ? N ã o t e r i a s i d o u m c o c h i l o q u e s e u p r i m o d e u e a c a b o u c a i n d o n a á g u a ? UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO -Tenho certeza de qúe não foi um cochilo, pariwat. Todos nós estamos acostumados a viajar por muitas horas nestes rios to- dos. Conhecemos cada palmo a nossa frente. Depois, ninguém cochila enquanto rema um barco. - Mas se ele não sabe o que viu, coll?-o pode afirmar que era a Mãe-d'água? - Ele sabe o que viu. Nós da floresta temos nossos sentidos muito treinados para poder sobreviver aqui. Quem não sabe o que vê não sobrevive também. Além disso, oboré, tem coisas que a gente só enxerga bem quando está de olhos fechados. -Isso parece apenas mais uma lenda, um mito para assustar as pessoas ... - Talvez seja assim que as pessoas pensem na cidade porque elas estão rodeadas de claridade por todos os lados. Por isso os espíritos que habitam a cidade não se manifestam e as pessoas acabam tendo medo umas das outras, verdadeiros fantasmas. Aqui nós não temos medo uns dos outros que vemos, temos medo do que não vemos, mas sabemos que existe. D A N I E L M U N D U R U K U A s s i s t i p a s s i v a m e n t e à c o n v e r s a d o s d o i s . N a v e r d a d e , e s t a v a a d m i r a d o c o m a d e s e n v o l t u r a d e N i c o l a u e m e x p l i c a r a s c o i s a s d a t r a d i ç ã o p a r a L u c a s , q u e , c l a r o , a p e s a r d e s e r n o s s o a m i g o , t i n h a u m a f o r m a ç ã o m e n t a l d a g r a n d e c i d a d e , o n d e a s -p e s s o a s s ã o c r i a d a s q u a s e s e m n e n h u m a f a n t a s i a o u p r e f e r e m e s c o n d e r s u a s c r e n ç a s c o m m e d o d e p a r e c e r e m r i d í c u l a s . E n q u a n t o p e n s a v a n i s s o , N i c o l a u r e t o m o u a p a l a v r a e t e r m i - n o u s u a n a r r a t i v a , l e m b r a n d o p o r q u e , a p a r t i r d a q u e l e d i a , d e - c i d i u n u n c a m a i s v i a j a r d e n o i t e e s e g u i r s e u p r ó p r i o r i t u a l d e e m b a r c a r s e m p r e p e l a m a n h ã , q u a n d o o s o l a n u n c i a v a s e u s p r i - m e i r o s r a i o s . E n q u a n t o i a o b s e r v a n d o o s o l s e p r o j e t a r s o b r e a s á r v o r e s c r i a n d o p r i s m a s n a á g u a r e v o l v i d a s p e l o m o t o r d o b a r c o f i q u e i i m a g i n a n d o o q u e L u c a s e s t a v a p e n s a n d o n a q u e l e m o m e n t o . T a l - v e z e l e p e n s a s s e e m c o m o o p o v o i n d í g e n a é s u p e r s t i c i o s o p o r a c r e d i t a r e m e s p í r i t o s q u e v a g a m p e l a f l o r e s t a a t r á s d a s v í t i - m a s ; o u t a l v e z e s t i v e s s e i m a g i n a n d o q u a l s e r i a s u a r e a ç ã o c a s o o c o r r e s s e c o m e l e u m e v e n t o d e s s a n a t u r e z a ; o u , a i n d a , i m a g i - n a s s e c o m o s e r i a m o r a r n o r e i n o d a M ã e - d ' á g u a . . . e n f i m , t a l v e z e s t i v e s s e a p e n a s q u e r e n d o c o m p r e e n d e r e s t e s m i s t é r i o s q u e c i r - c u n d a m o s p o v o s i n d í g e n a s d o B r a s i l . . . t a l v e z . isas go, soas :::~.der O F. 6 UNERAL D A N I E L M U N D U R U K U D e p o i s d a q u e l a h i s t ó r i a q u e N i c o l a u n o s c o n t o u , f i c a m o s u m t e m p ã o s e n t a d o s , q u i e t o s , o b s e r v a n d o o s m o v i m e n t o s a o n o s s o r e d o r . V e z e m q u a n d o u m g r a n d e m u t u m b a t i a a s a s a s s o b r e n ó s , f u g i n d o d o b a r u l h o d a v o a d e i r a . V i m o s t u c a n o s , a r a r a s , j a c a r é s , q u e n o s v i g i a v a m a d i s t â n c i a . L u c a s , c o m o u m b o m t u r i s t a h e r - d e i r o d o a v ô , p r o c u r a v a r e g i s t r a r t u d o c o m s u a c â m e r a f i l m a - d o r a e s u a m á q u i n a f o t o g r á f i c a . E r a m s e u s o u t r o s o l h o s , e l e d i - z i a . A s s i m p a s s a r a m - s e m a i s a l g u m a s h o r a s d a v i a g e m . D e r e p e n t e N i c o l a u n o s c h a m o u e a p o n t o u p a r a c i m a . L u c a s o l h o u c o m a t e n ç ã o , m a s n a d a e n t e n d e u . N i c o l a u g r i t o u l á d o s e u l u g a r : - E s t e s p á s s a r o s e s t ã o d i z e n d o d u a s c o i s a s . P r i m e i r a : m a i s t a r d e v a i c h o v e r ; s e g u n d a : a c o n t e c e u a l g u m f a t o t r i s t e p o r a q u i . D a q u i a p o u c o i r e m o s s a b e r o q u e é , p o i s e s t a m o s c h e g a n d o n a a l d e i a T e r r a P r e t a . C e r t a m e n t e e l e s t e r ã o u m c a f é c o m m e l a n c i a p a r a n ó s . Q u a n d o N i c o l a u c a l o u - s e , L u c a s n ã o s e c o n t e v e e v e i o m e f a - z e r u m a s é r i e d e p e r g u n t a s . - C o m o e l e s a b e d i s s o ? - D i s s o o q u ê ? - f a l e i q u e r e n d o p r o v o c a r o m e n i n o . - D o s p á s s a r o s . C o m o e l e s a b e q u e o s p á s s a r o s e s t ã o f a l a n d o i s s o ? E l e é , p o r a c a s o , u m a e s p é c i e d e b r u x o ? UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO - Claro que não, Lucas- disse sorrindo.- A gente acredita que os pássaros são mensageiros dos espíritos do tempo. Eles são capazes de ver além do que vemos e sempre nos falam o que vai acontecer. -Mas como é possível aprender isso, essa linguagem? - O vôo deles é como uma escrita; um texto que a gente vai aprendendo a ler. É claro que para isso a gente precisa treinar bastante. -Quem é que ensina essa escrita? - Normalmente são os velhos. Meu avô mesmo me ensinava esses códigos deitado no chão e apontando para os pássaros. Para nós que vivemos na floresta é importante saber esses có - digos para que a gente não se perca quando está sozinho. - E todos os pássaros são mensageiros? - Não, Lucas, apenas aqueles que voam alto. Lucas pareceu se satisfazer com as minhas respostas, pois virou para o lado e ficou procurando pássaros no alto do céu. Queria registrar com seus outros olhos. Enquanto nos aproximávamos da aldeia Terra Preta, vimos que ali também chegava um outro barco vindo do lado oposto. Ele trazia o motivo do vôo dos pássaros a que Nicolau se refe- ria. Trazia um caixão todo fechado. Do barco saíram alguns pa- rentes do falecido. Ficamos curiosos para saber o que havia acontecido e saltamos imediatamente do barco no ancoradouro da aldeia, que estava já cheio de gente. A atenção estava toda voltada para o caixão e seu ocupante, de modo que as pessoas nem nos notaram direito. Nicolauencostou a embarcação e aproximou-se para especu- lar o que havia ocorrido. Ninguém sabia direito. Disseram ape - nas q~e havia morrido por ingestão da raiz do timbó, um conhecido veneno para pescaria coletiva. As hipóteses ali eram várias: alguns diziam que ele se matou porque tinha ciúmes da mulher com outros homens; outros falavam que ele ficou enfeitiçado por algum espírito da floresta e queria morrer para juntar-se a ele; havia quem dissesse que ele não estava muito b e m d a c a b e ç a d e p o i s q u e s e u f i l h o d e s e i s a n o s m o r r e r a a o c a i r d e u m a á r v o r e ; o u a i n d a q u e a m o r t e d a c r i a n ç a o f i z e r a c a i r n u m a b e b e d e i r a l a s c a d a q u e o l e v a r a a o s u i c í d i o . T u d o i s s o , p o - r é m , e r a m a p e n a s e s p e c u l a ç õ e s d a s p e s s o a s , u m a v e z q u e n i n - g u é m s a b i a a o c e r t o o q u e o c o r r e r a . C o m o a c o n t e c e e n t r e o s M u n d u r u k u , o s p a r e n t e s d o m o r t o e s t a v a m m u i t o t r i s t e s e c h o r o s o s . E n t r a m o s n a c a s a o n d e s e r i a r e a l i z a d o o f u n e r a l e o e n t e r r o e v i m o s u m g r u p o d e m u l h e r e s a s s e n t a d a s d e c ó c o r a s , c h o r a n d o , d a n d o p e q u e n o s g r i t o s d e d o r e f a l a n d o e m s u a l í n g u a q u e i r i a m s e n t i r m u i t a s a u d a d e d e l e e q u e l h e d e s e j a v a m u m a b o a v i a g e m p a r a a t e r r a d o s a n t e p a s s a - d o s , o n d e u m d i a t o d o s i r i a m s e e n c o n t r a r . L u c a s n ã o e s t a v a e n t e n d o n a d a d a q u i l o . A p r o x i m o u - s e m a i s d e m i m e f u i e x p l i c a n d o a e l e c a d a m o m e n t o d o r i t u a l q u e o c o r - r i a n a q u e l a h o r a . C o n f o r m e a s p e s s o a s q u e v i s i t a v a m o l o c a l v i a m o c a d á v e r , s a í a m p a r a d a r v e z a o s o u t r o s q u e q u e r i a m e n t r a r . S a í m o s t a m - b é m p a r a o t e r r e i r o . S o m e n t e n e s s e m o m e n t o a p r o x i m o u - s e d e n ó s o c a c i q u e d a a l d e i a . C u m p r i m e n t o u p r i m e i r o N i c o l a u , p o r UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO ser o mais velho do nosso grupo. Em seguida cumprimentou-me e a Lucas. Contei ao cacique Pedrinho o motivo de nossa viagem e que teria desejado chegar num momento menos triste para po- der conversar assuntos mais alegres. Ele entendeu e nos condu- ziu até sua residência. Nisso foi se'guJdo por sua esposa, que logo providenciou café, água, farinha de tapioca e melancia para to- dos nós. É claro que comemos tudo com muito gosto, pois está- vamos com fome. Na versão que Pedrinho nos ofereceu, o jovem pai realmen- te não agüentou conviver com a morte do seu único filho, pre- ferindo a morte através da ingestão do veneno do timbó. Oca- cique nos lembrou que esse veneno tem um efeito muito longo, de modo que a pessoa que o toma tem possibilidade de voltar atrás caso queira. O jovem sofreu, no dizer do cacique, antes de morrer. Pedi para que ele falasse um pouco sobre morrer para nosso povo, a fim de que o menino Lucas pudesse entender nossos rituais. Imediatamente Pedrinho assumiu um ar professora!, como se fosse dar uma aula, e dirigiu- se a todos os presentes lançando um olhar instigador. - Morrer - iniciou ele- é para nós um momento de muita tris- teza. Quando um dos nossos morre, todos morremos um pouco. Mas morrer para nós não é uma coisa ruim. Não é ruim para quem morre, é ruim para quem fica porque sente saudade du- rante um longo tempo. Morrer é ir encontrar-se com nossos an- tepassados, que vivem bem longe daqui, na nascente do grande rio Tapajós. Lá, segundo nossa tradição, é a casa dos nossos pri- meiros pais e é o local onde nos reunimos com eles. Pedrinho fez uma pausa para respirar e tomar um gole de chi- bé - uma bebida feita de água e farinha - , além de comer uma boa fatia de melancia com farinha de tapioca. - Nosso avô ancestral - retomou - conta que seus primeiros pais viviam dentro da terra. Era um lugar muito bonito, cheio de coisas boas; ninguém sentia fome, nem dor, nem morria nun- ca, todos eram muito felizes. Um dia, um jovem caçador esta- D A N I E L M U N D U R U K U v a p a s s e a n d o n u m l o c a l n u n c a a n t e s v i s i t a d o e v i u u m g r a n d e t a t u , q u e p a s s o u a p e r s e g u i r . Q u a n t o m a i s p r ó x i m o e s t a v a , m a i s o t a t u s e e s c o n d i a e e s c a p a v a d e s u a s m ã o s . A t é o m o - m e n t o e m q u e o c a ç a d o r v i u o t a t u a b r i r u m g r a n d e b u r a c o n o c é u p a r a p o d e r e s c a p a r . O m o ç o , q u e n u n c a d e s i s t i a d e u m a c a ç a , f o i a t é a f l o r e s t a , a p a n h o u u m b o c a d o d e c i p ó s e c o n s - t r u i u u m a g r a n d e c o r d a c o m a q u a l l a ç o u o b u r a c o . C o m o p e r - c e b e u q u e e l a h a v i a s e p r e n d i d o , s u b i u n a c o r d a e v i s i t o u a q u e - l e m u n d o q u e e l e d e s c o n h e c i a . N o e n t a n t o , f i c o u c o m m e d o e r e s o l v e u c h a m a r m a i s g e n t e p a r a c o n h e c e r s u a d e s c o b e r t a . V e i o g e n t e d e t u d o q u e e r a l u g a r . A l g u n s q u i s e r a m s u b i r i m e d i a t a - m e n t e , m e s m o c o n t r a o s c o n s e l h o s d o s a n c i ã o s , q u e i n s i s t i a m p a r a q u e t o m a s s e m c u i d a d o s p a r a n ã o f a z e r n e n h u m a b o b a - g e m p o r l á e q u e a l i e r a o l u g a r d a f e l i c i d a d e . C o m o o n ú m e r o d e p e s s o a s q u e q u e r i a s u b i r a u m e n t a v a , a c o r d a f o i a o s p o u c o s c e d e n d o . N o e x a t o m o m e n t o e m q u e i r i a m s u b i r t o d o s o s h o - m e n s e m u l h e r e s m a i s f o r m o s o s e s á b i o s , a c o r d a r o m p e u - s e e UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO o buraco fechou -se quase que imediatamente, separando os dois grupos. Os que estavam no lado de cima estavam tão dis- traídos com a beleza do lugar que não se deram conta da ca- tástrofe que havia acontecido. Foram se distanciando do local da fenda. Quando perceberam ' o ?corrido, quiseram voltar e descer, mas qual não foi a surpresa deles ao descobrir que não havia mais volta. Tiveram que construir casas e encontrar um jeito de viver naquele novo lugar. O mais interessante é que as casas que fizeram aqui repetiam o mesmo jeito das casas do fundo da terra. Repetiam os mesmos rituais para que nunca perdessem a memória do lugar de onde tinha vindo. Os primei- ros sábios daquele lugar ajudavam para que o povo não os es - quecesse e diziam que voltariam para ali quando morressem. É por isso que eu digo que quando a gente morre volta para aquele lugar. Lucas não se conteve e quis s'aber mais coisas sobre a morte. - Se já sabem para onde vai, por que choram então? D A N I E L M U N D U R U K U - P o r q u e s o m o s t o d o s h u m a n o s e s e n t i m o s s a u d a d e d a s p e s - s o a s q u e v i v e r a m p e r t o d a g e n t e . E s s e m o ç o q u e m o r r e u , p o r e x e m p l o , e s c o l h e u m o r r e r p a r a e s t a r m a i s p e r t o ~o s e u f i l h o ú n i c o . A g e n t e c h o r a , L u c a s , p o r q u e a g e n t ea c r e d i t a q u e n o s s o c h o r o a j u d a a p a s s a r n o s s a t r i s t e z a e p o r q u e f a z c o m q u e a s p e s s o a s s e l i b e r t e m d o p a r e n t e m o r t o , a j u d a n d o - o a f a z e r a v i a - g e m a t é o l u g a r d o s a n t e p a s s a d o s . - E d e p o i s q u e p a s s a e s s e m o m e n t o d o c h o r o ? - D u r a n t e u m m ê s i n t e i r o o s p a r e n t e s d o m o r t o c h o r a m e d e p o i s n u n c a m a i s p e n s a m n e l e . É c o m o s e h o u v e s s e u m a l i b e r - t a ç ã o , c o m o s e a g e n t e t i v e s s e c e r t e z a q u e e l e c h e g o u n o l u g a r d o s n o s s o s a n t e p a s s a d o s . E n t ã o e l e e s t á m e l h o r l á d o q u e a q u i e d e l á e l e v a i o l h a r p a r a a g e n t e e v a i v i r n o s v i s i t a r n o s s o n h o s . F i q u e i b a s t a n t e a d m i r a d o c o m a c o n v e r s a d e P e d r i n h o . N ã o é m u i t o c o m u m a b r i r e s s a s c o n s i d e r a ç õ e s p a r a e s t r a n h o s , m a s p o r a l g u m m o t i v o o c a c i q u e s e s e n t i u à v o n t a d e c o m o m e n i n o L u c a s . N a v e r d a d e , a c h o l q u e e l e a p r o v e i t o u p a r a f a l a r p a r a t o - d a s a s p e s s o a s q u e h a v i a m s e r e u n i d o a l i . F i c a m o s c o n v e r s a n d o a l g u m a s a m e n i d a d e s , c o n t a n d o a l g u n s f a t o s d a c i d a d e , e n q u a n t o a g u a r d á v a m o s a s p e s s o a s v i s i t a r e m a c a s a d o f a l e c i d o . P e d r i n h o f e z q u e s t ã o d e n o s m o s t r a r t o d a a a l d e i a e o q u e e s t a v a n o s a r r e d o r e s , c o m o a s p l a n t a ç õ e s d e m i - l h o , a r r o z e m a n d i o c a . F i c a m o s a d m i r a d o s c o m o g r a u d e o r g a - n i z a ç ã o d a a l d e i a e d e c o m o a s c r i a n ç a s e s t a v a m t o d a s m u i t o b e m d e s a ú d e . P e d r i n h o n o s c o n t a v a c o m o r g u l h o t o d o s e u t r a - b a l h o c o m o a g e n t e d e s a ú d e n a c o m u n i d a d e . E n q u a n t o convers~vamos, u m j o v e m v e i o n o s c o m u n i c a r q u e e r a h o r a d o e n t e r r o e q u e o p a j é M i m i j á h a v i a c h e g a d o p a r a f a - z e r o r i t u a l . P e d r i n h o a p r e s s o u o p a s s o e s e g u i u a t r á s d o m e n i - n o ; n ó s t e n t á v a m o s a c o m p a n h a r o s p a s s o s d e l e . T o d o s e s t á v a m o s n o c e n t r o d a c a s a . A l i t i n h a m f e i t o u m b u r a - c o o n d e o c o r p o s e r i a c o l o c a d o . À fr~nte, o p a j é M i m i - q u e e r a c o m 6 c h a m a v a m o v e l h o A r g e m i r o - s e g u r a n d o u m m a r a c á e u m a p e n a d o p á s s a r o m u t u m . E l e e x a m i n o u o l o c a l e s e p ô s a f a l a r n a :la - - - - --------, UM ESTRA N HO SONHO DE FUTURO língua dos espíritos. Dizia que a hora tinha chegado e pedia aos espíritos dos antepassados que levassem o parente para o lugar de onde tinha saído para esperar a todos nós. Em seguida balançou fortemente o maracá para purificar o ambiente. Deu algumas voltas em to~no do buraco no chão e mandou que colocassem o corpo lá dentro. Alguns parentes o t iraram de sobre a mesa onde estava e o desceram na cova. Jun- t o com ele foram colocados os objetos pessoais: rede, arco e fle- cha, uma cabaça cheia d'água, um pouco de farinha e pimenta, alguns nacos de mandioca, milho e arroz. Como o buraco era re- lativamente fundo, não houve problema de espaço. Depois disso os parentes jogaram terra até ficar nivelado novamente. Saímos da casa e nos encaminhamos para a de Pedrinho. Ao longe ou- víamos os choros dos parentes. Lucas tinha observado tudo num silencioso respeito. Repara- va em cada detalhe, nas palavras, rio rosto das pessoas, no res- peito que guardavam, nos rituais . Depois ele me confidenciou que ficou surpreso com a participação das crianças no funeral. Elas viam tudo com muito respeito. Procurei explicar a ele que para nós a morte não era um bicho-papão assustador. Ao con- trário disso, ela representa para nossa gente a oportunidade de nos unirmos com os antepassados. -Vocês acreditam que ele volta um dia? Reencarna?- per- guntou-me de chofre. - A gente acredita que podemos voltar sim, mas eu não sei como se chama isso, que nome se dá a esse fenômeno. A gente acredita que é possível retornar. -E por que o morto é enterrado de pé e com a comida? - Porque a gente acredita que ele irá fazer uma viagem e pre- cisa de a_limento para ela. Quanto a ser enterrado assim, é para facilitar sua caminhada. - Achei estranho o fato de ser enterrado dentro da própria casa. Não há cemitérios? - Sua casa é seu lugar preferido. É uma forma de homenagear o lugar onde ele viveu. Além do mais, seus parentes irão chorar D A N I E L M U N D U R U K U d u r a n t e t r i n t a d i a s p a r a a j u d á - l o a a t r a v e s s a r o c a m i n h o q u e o s e p a r a d o l u g a r d o s a n t e p a s s a d o s , c o n f o r m e v o c ê o u v i u d o c a c i - q u e P e d r i n h o . O s c e m i t é r i o s d i s t a n c i a m o s v i v o s d o s _ m o r t o s . - V i q u e a s c r i a n ç a s p a r t i c i p a m d e t u d o . N i n g u é m m a n d o u q u e e l a s s a í s s e m d a l i . . . - N ó s n ã o t e m o s m e d o d a m o r t e , a m i g o L u c a s . E d e s d e c r i a n - ç a n o s d i z e m q u e e l a é u m a f o r m a d e n o s e n c o n t r a r m o s c o m o e s p í r i t o d o s n o s s o s a n t e p a s s a d o s . A s c r i a n ç a s a p r e n d e m i s s o p a r t i c i p a n d o d e t o d o s o s r i t u a i s d a a l d e i a . Q u a n d o c r e s c e m , j á s a b e m q u e i s s o f a z p a r t e d a n o s s a v i d a s o c i a l . - N a c i d a d e é m u i t o d i f e r e n t e . . . Q u a n d o L u c a s t o c o u n o a s s u n t o , a l g u m a s p e s s o a s o o l h a r a m c o m o s e q u i s e s s e m q u e e l e e x p l i c a s s e c o m o é q u e a s p e s s o a s e n - c a r a m a m o r t e n a s g r a n d e s m e t r ó p o l e s . E l e f i c o u u m p o u c o c o n s - t r a n g i d o , m a s n ã o s e f e z d e r o g a d o . S e n t o u - s e n o m e i o d e l a s e f i c o u e x p l i c a n d o c o m o o t e m a e r a t r a t a d o n a c i d a d e . D e i x e i m e u a m i g o f a l a n d o s o b r e a m o r t e e f u i a t é o n d e o c a - c i q u e e o p a j é e s t a v a m . F i q u e i c o n v e r s a n d o , à e s p e r a d o m o m e n - t o d e c o n t i n u a r n o s s a v i a g e m p e l o s i g a r a p é s q u e n o s l e v a r i a m p a r a K a t õ . 7 A COBRA- D A N I E L M U N D U R U K U N i c o l a u d e u - n o s a o r d e m p a r a e m b a r c a m o s i m e d i a t a m e n t e , p o i s o s o l j á e s t a v a b e m a l t o n o c é u e o c a m i n h o a i n d a e r a l o n - g o a t é n o s s o d e s t i n o f i n a l . i L u c a s f o i o ú l t i m o a e n t r a r . H a v i a e s t a b e l e c i d o u m c o n t a t o b e m i n t e r e s s a n t e c o m a s c r i a n ç a s , q u e o a c o m p a n h a v a m p a r a t o d o s o s l u g a r e s q u e e l e ia . E l a s h a v i a m g o s t a d o d o j e i t o d e l e e t a m b é m a d m i r a v a m s e u s l o n g o s c a b e l o s q u e d e s c i a m p e l a s c o s - t a s . E l a s d i z i a m q u e e l e s e p a r e c i a c o m u m a m u l h e r . R i a m a v a - l e r d e s s a b r i n c a d e i r a q u e o p a r i w a t c u r t i a t a m b é m . A t a r d e j á e s t a v a c o m e ç a n d o q u a n d o a v a n ç a m o s p a r a n o s s o d e s t i n o . V i a j a m o s u m b o m m o m e n t o s e m t r o c a r n e n h u m a p a l a - v r a . E s t á v a m o s m u i t o i m p r e s s i o n a d o s c o m o s a c o n t e c i m e n t o s d a a l d e i a T a p e r e b á . A p r o v e i t e i p a r a d e i t a r u m p o u c o n o e s t r a d o d o b a r c o . N e s s a p o s i ç ã o p o d i a c o n t e m p l a r o c é u a z u l a d o d a A m a - z ô n i a . O c a n s a ç o e r a t ã o g r a n d e q u e c o c h i l e i . F o i o b a s t a n t e p a r a t e r u m s o n h o . L e m b r o q u e s o n h e i q u e t i n h a m o r r i d o e q u e e s - t a v a a c a m i n h o d a s t e r r a s d o s a n t e p a s s a d o s . L e v a v a c o m i g o m e u s p e r t e n c e s m a i s u s a d o s e m v i d a . C a m i n h a v a s o z i n h o . D e r e p e n t e f u i a t a c a d o p o r u m b a n d o d e p á s s a r o s s e l v a g e n s q u e v i n h a m b i c a r m i n h a c a b e ç a . C o r r i p a r a d e b a i x o d a s á r v o r e s UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO para tentar me livrar deles, mas continuaram me perseguindo. Continuei correndo desesperadamente até encontrar uma pe- quena abertura de pedra, onde me enfiei. Imediatamente colo- quei minha rede na entrada e os pássaros não puderam mais entrar e me deixaram em paz. Depo~s que eles foram embora, sentei e só então percebi que aquela entrada era uma gruta mui- to grande, cujo final não conseguia enxergar tamanha era a es- curidão. Fiquei em dúvida sobre entrar nela ou não. Como não tinha certeza, acabei saindo dali e retomando o caminho para o lugar dos antepassados . Lembro que esse sonho me deixou pensativo durante algu- mas horas. Será que era um aviso? Será que eu estava para mor- rer? O que meus antepassados queriam dizer com aquilo? Por que vieram visitar-me em sonhos? Meio perdido nesses pensament os, não notei que Nicolau es- tava um tanto agitado. Ele esticava o pescoço querendo ver al- guma coisa no meio da água. Diminuiu a velocidade e passou a ficar mais atento. Lucas e eu ficamos apreensivos . - O que você está procurando, Nico? -perguntei. Ele apenas me olhou, sem se mover do lugar. Na expectativa do que iria acontecer, ficamos atentos ao lo- cal que Nicolau apontava sempre. O barco singrava lentamen- te seguindo o fluxo das águas, enquanto o piloto dava o rumo usando um remo de madeira. De repente ouvimos um barulho vindo de mais longe e notamos uma pequena elevação que pa- recia ser uma cobra. Olhamos para o piloto, que também obser- vava o local. Parecendo que estava lendo meu pensamento ex- clamou: -É uma cobra e das grandes . Acho que é uma sucuriju, tam- bém ch_amada de cobra-grande. Temos que ter cuidado e ver o que ela está querendo, ou se está com fome. Se estiver por aqui atrás de comida, ela pode virar nosso barco e daí não vai sobrar nenhum de nós para contar história. Lucas ficou apreensivo com as palavras do piloto, mas resol- veu disfarçar seu temor mirando a lente de sua filmadora na D A N I E L M U N D U R U K U t e n t a t i v a d e r e g i s t r a r a q u e l e m o m e n t o p r e c i o s o . I n f e l i z m e n t e n a d a g r a v o u , t a l v e z p o r c a u s a d o m e d o . N i c o l a u c o n t i n u o u a t e n t o , m a s c o m o n a d a m a i s viu ~ s o s s e g o u n o s e u l u g a r . M a i s r e l a x a d o , e v i t a n d o l i g a r o m o t o r p o r p r e c a u - ç ã o , e l e n o s c o n t o u q u e a s h i s t ó r i a s s o b r e a c o b r a - g r a n d e s ã o m u i t a s e q u e o s r i s c o s q u e s e c o r r e m a o v ê - l a s ã o t a n t o s q u e é m e l h o r n e m l e m b r a r . D e p o i s d o s u s t o , p a r a b r i n c a r c o m L u c a s , e u l h e c o n t e i s o b r e a s h i s t ó r i a s d a b o i ú n a q u e c o r r e m p e l a A m a z ô n i a . F a l e i s o b r e o s h a b i t a n t e s d a f l o r e s t a , q u e , e n t r e n ó s , e s s a s h i s t ó r i a s n ã o s ã o t r a t a d a s c o m o l e n d a s o u c o n v e r s a s p a r a a s s u s t a r c r i a n c i n h a s ; a o c o n t r á r i o , e l a s s ã o c o n t a d a s j u s t a m e n t e p o r q u e f o r a m e x p e - r i m e n t a d a s p e l a s p e s s o a s . Q u a n d o a g e n t e t r a t a e s s a s h i s t ó r i a s c o m o f o l c l o r e , l e n d a s o u h i s t ó r i a s d a c a r o c h i n h a , e s t a m o s p e r - d e n d o o m e d o d o d e s c o n h e c i d o e a p a g a n d o e m n ó s a f a n t a s i a q u e d á s e n t i d o à n o s s a e x i s t ê n c i a . A c h o q u e L u c a s n ã o e n t e n d e u n a d a d o q u e l h e f a l e i . A o m e - n o s a c h e i q u e f o i a s s i m , u i n a v e z q u e e l e a p e n a s b a l a n ç o u a c a - b e ç a , a p r o v a n d o o q u e e u h a v i a d i t o . . . a ca- 8 UM ESTRANHO NA ALDEIA D A N I E L M U N D U R U K U F i n a l m e n t e c h e g a m o s a t é o K a t õ , a l d e i a q u e m e v i u c r e s c e r . E s t á v a m o s c a n s a d o s e d e s e j a n d o u m p o u c o d e s o s s e g o . A o m e - n o s e r a i s s o q u e t o d o s e s p e r á v a m o s , m a s n o s s a s u r p r e s a f o i g r a n d e q u a n d o v i m o s m u i t a g e n t e n o p o r t o , a n o s s a e s p e r a . N ã o t a n t o p o r m i n h a c a u s a , m a s p o r q u e a s n o t í c i a s s o b r e o L u c a s j á h a v i a m n o s p r e c e d i d o e t o d o s q u e r i a m v e r o p a r i w a t d e c a b e l o s l o n g o s . F o i s u c e s s o i m e d i a t o . A s c r i a n ç a s i m e d i a t a m e n t e r o d e a r a m o r a p a z , q u e n ã o s a - b i a c o m o p r o c e d e r n a q u e l e m o m e n t o . S e n t i q u e l a n ç o u u m o l h a r p e d i n d o S O S . F u i a t é e l e e d i s p e r s e i a m e n i n a d a , q u e m e s m o a s s i m o s e g u i u a t é a c a s a o n d e í a m o s n o s h o s p e d a r . T o d o s f a z i a m u m g r a n d e a l v o r o ç o , q u e b r a n d o o s i l ê n c i o q u e s e m p r e acompanha~ a l d e i a . L á , e r a m o s a d u l t o s q u e m n o s e s p e r a v a m . C u m p r i m e n t a m o s o c a c i q u e A r n a l d o e m p r i m e i r o l u g a r , p o i s n o s s a t r a d i ç ã o e n s i - n a q u e d e v e m o s s a u d a r p r i m e i r o o c a c i q u e d a a l d e i a e d e p o i s o s o u t r o s , i n i c i a n d o p e l o s m a i s v e l h o s . A p r e s e n t e i o m e n i n o p a r a o s a d u l t o s , q u e o c r i v a r a m d e p e r g u n t a s . L u c a s r e s i s t i a a t u d o d e f o r m a h e r ó i c a , s e m r e c l a m a ç õ e s . O v e l h o B i b o y , u m l í d e r c a - r i s m á t i c o d a q u e l a a l d e i a , c o l o c o u - n o s a p a r d o s a s s u n t o s q u e --- --- ---- - -- -· - -- UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO haviam
Compartilhar