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Ética e Política Maquiavel

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ética do príncipe e do cives
Fernando Quintana
Abordar o problema da fundação da ordem política, bem como o de uma ordem capaz de assegurar neste mundo o bem comum, logo de transcorrida a Idade Média, é falar do reino, Principatibus, e da república, Discorsi de Maquiavel. Ou seja, uma situação de anormalidade, silentium legibus - momento extraordinário - e outra de normalidade, boas leis e instituições - momento ordinário. 
Tais situações, por sua vez, remetendo a dois tipos de virtude: a do príncipe, que toma a forma de “destruição criativa” (Wolin, 2001: 250) e a do povo que, respeitoso das leis e instituições, vive em liberdade no sentido republicano da palavra, isto é, um ideal social, equivalente da cidadania, e um valor subjetivo que capacita à pessoa que a goza adquirir um sentido de segurança (Pettit, 1999: 11). 
No primeiro caso, estamos diante de um argumento ex parte principis, de cima para baixo, uma visão descendente do poder, que gira em torno da criação e manutenção do estado, no segundo, diante de um argumento ex parte populi, de baixo para cima, uma visão ascendente do poder, que gira em torno dos direitos e deveres do cidadão. Em termos éticos, a virtude de um só, principado, e a virtude de muitos, república: 
	
Nos períodos em que a ordem social é relativamente estável, todas as questões morais podem ser colocadas dentro do contexto das normas compartilhadas pela comunidade (república); nos períodos de instabilidade, pelo contrário, as normas mesmas são questionadas e submetidas à prova diante os critérios representados pelas necessidades humanas (principado) (MacIntyre: 1994: 129).
As virtudes pagãs ou mundanas (coragem, honra, etc) assumindo um viés individual ou coletivo: “prefiro salvar minha pátria que a minha alma” ou “a república deu mostras de grandeza porque (os cidadãos) amam e defendem a liberdade”, respectivamente. A presença destes dois tipos de virtudes (fortes) dando lugar ao seguinte comentário de Rousseau: querendo dar lições aos reis, Maquiavel, acabou dando grandes lições aos povos. Avaliação que encontra eco no secretário florentino quando afirma - as repúblicas são melhores que os reinos, pois o povo é mais sábio e mais constante do que um príncipe.[1: Frase atribuída por Maquiavel ao ganfalioneri (alto magistrado) da família Médici Cosme o Velho tido como o “pai da pátria” (Florença). ][2: Ideia que percorre grande parte do Discurso ou comentário sobre a primeira década de Tito Lívio.]
Para entender a ética maquiaveliana convém fazer um comentário sobre o ambiente intelectual do quattrocento italiano, isto é, o humanismo renascentista. Uma tradição do pensamento que postula, dentre outras coisas, a afirmação do homem na cidade não mais voltado para o mundo do além, a cidade celeste (Idade Média), e a crença de que os seres humanos têm mais qualidades do que aquelas atribuídas pela fé cristã, a qual insiste no peso do pecado diante da graça divina. Tal mudança trazendo como consequência a centralidade da política diante do papel secundário ocupado no medievo. Uma mudança que se estende ao comportamento dos homens: o triunfo da vida ativa, o compromisso com o mundo terrestre, diante da vida contemplativa, passiva, voltada para o mundo celeste.
Segundo Peter Burke, A cultura do renascimento na Itália, uma importante obra sobre esta época, o mérito do renascimento é ter enxergado a descoberta do mundo e do homem, que implica uma profunda inflexão em relação ao período anterior: 
O Renascimento é uma época de ruptura com o obscurantismo medieval que deve localizar-se por volta do quattrocento em Itália. Um período de renovação cultural: a recuperação e a aproximação aos clássicos, a aparição de um individualismo vitalista e pagão que faz um uso novo e original da razão, rompem com um passado de religiosidade a través de um forte processo de secularização e colocam os fundamentos do pensamento e a política modernos (Tejerina, 2002: 72). 
 
De fato, uma das características do humanismo renascentista é mostrar a importância da vida ativa diante da vida passiva - o que em termos políticos faz com que o homem se volte para os negócios da cidade, para a conquista de bens temporais, que requerem, por sua vez, a estabilidade da ordem política e a possibilidade de se levar uma vida boa. A mudança do indivíduo-espectador para o indivíduo-ator, da cidade do além para a cidade do aquém (não mais percebida apenas como momento de transição: o cristianismo), as virtudes teológicas cristãs cedem às virtudes mundanas. As virtudes suaves, secundum divinum, infundidas por Deus (fé, esperança, caridade) são substituídas por virtudes fortes, secundum rationem, criadas pelo homem (coragem, prudência, honra) indispensáveis para enfrentar com êxito as contingências do mundo. [3: A este respeito, cabe lembrar Santo Agostinho, A cidade de deus (XX), quando diz: com a encarnação de Cristo, começam os mil anos do seu reinado terrestre seguidos do Julgamento geral e da chegada da cidade eterna. ]
Do ponto de vista maquiaveliano, as virtudes seculares são úteis tanto para o príncipe realizar gran cose (a conquista ou conservação do estado) quanto para o cive que não deseja viver na cidade aguardando tempos melhores (o mundo do além), mas viver bem, em liberdade, sob uma boa forma de governo: a república. Em outros termos: as virtudes cristãs suaves (soft) sendo desbancadas por virtudes políticas duras (hard). Tais virtudes dando lugar a dois modelos de homem: o crente, que procura salvar sua alma, o príncipe e o cidadão, que procuram salvar a pátria ou viver em liberdade com boni armi e boni ordini (exércitos próprios e boas leis e instituições).
Um dos traços importantes do humanismo renascentista é valorizar a capacidade dos homens de fundar e conservar cidades, bem como de criar leis e instituições compatíveis com virtudes e valores mundanos. Assim sendo, o humanismo volta-se para o passado, a experiência e o pensamento da Antiguidade Clássica, contudo, vale esclarecer, não para copiá-lo, mas para imitá-lo. A fórmula para apropriar-se do passado pode ser resumida na frase do poeta renascentista Petrarca, que diz: apraz-me a imitação (similitudo), mas não a cópia (identitas). Trata-se, portanto, de uma imitação não servil: uma imitação através da qual fica explícito o talento do imitador, a imitação como o aparecimento de uma identidade no presente, e não elogio nostálgico do acontecido (Bignotto, 2001: 67-68). Ou, como sustenta o mesmo autor em relação à importância do passado e do papel dos homens na história: 
Na Idade Média, a providência divina era o fator explicativo de quase todas as transformações ocorridas, que não podiam ser diretamente relacionadas a causas visíveis. O enaltecimento das faculdades criativas dos homens, feito pelos filósofos renascentistas, teve um reflexo direto na estrutura narrativa dos historiadores na medida em que alterou a percepção do papel dos atores nos acontecimentos históricos (Bignotto, 2006: 32).
Na análise da ética maquiaveliana nos deteremos em primeiro lugar em O príncipe, na medida em que seu objetivo é conquistare e mantenere o stato, e também no Discurso, na medida em que mostra o comportamento virtuoso do cidadão na res publica, o qual deseja viver em liberdade. Em ambos os casos, o humanismo mostra-se importante porque ensina a necessidade do compromisso político com a vida ativa e virtudes seculares para enfrentar com êxito os obstáculos que se apresentam na consecução desses objetivos. 
Falar de O príncipe é afirmar a ideia de começo, isto é, o de ter provocado uma forte inflexão depois de um longo período (Idade Média) marcado pelo predomínio da moral e ética cristã que molda por completo o mundo e ignora ou deixa em segundo plano qualquer ética ou moral que não seja a inspirada nas Escrituras. Tal inflexão dá-se pelo fato que, do ponto de vista maquiaveliano, ambas podem ser um obstáculo ou empecilho para o príncipe realizar gran cose ou, dito em outras palavras, no momento extraordinário da fundação do estadopode-se lançar mão de expedientes ou recursos que, apesar de condenáveis desde a moral e ética cristãs, são eficazes para o sucesso do resultado desejado. Trata-se, portanto, de uma - nova - ética em que as ações, decisões, etc, são julgadas em virtude das consequências (MacIntyre: 1994: 128), como mostra a seguinte passagem em que aparece implícito o famigerado princípio - o fim justifica os meios:[4: Aspecto destacado por vários autores que, em relação à ética maquiaveliana, afirmam o seguinte: “A ética de Maquiavel é a primeira em que as ações se julgam não como ações, mas somente em virtude das consequências” (MacIntyre: 1994: 128). ]
Como não há tribunal onde reclamar das ações de todos os homens, e principalmente dos príncipes, o que conta por fim são os resultados. Cuide pois o príncipe de vencer e manter o estado: os meios serão sempre julgados honrosos e louvados por todos” (Maquiavel, 2001: 85).
Máxima esta que mostraria uma “ética feroz” no sentido de que se o efeito da ação é bom, a criação de uma ordem estável e segura, ela se justifica apenas por suas consequências. Neste contexto, o valor inerente da ação não é vital na avaliação, diferentemente da tradição cristã (Chisholm, 1998: 53-54). 
Tal postura rompe, então, com a crença de pensadores medievais que concebem a moral e a ética cristã, que leva à salvação da alma, como superior e até fora da política: a “ética transpolítica” agostiniana. Assim, o secretário florentino dá um passo decisivo na libertação ou autonomia da política com respeito à moral religiosa que era ainda dominante na época: 
 
(Maquiavel) tem ainda um pie no mundo da Idade Média: ele é incapaz de representar-se uma moralidade que não tenha nenhuma relação com a religião. Mesmo liberando o Estado da tutela da Igreja, ele coloca a política fora da moral, e nega que uma lei moral qualquer consiga se impor diante da lutas dos Estado por poder (Derathé, 1992: 40). 
Tal posição faz com que as expressões maquiavelismo e maquiavélico fiquem atreladas à pecha de imoral. Maquiavel, o responsável da fase demoníaca do poder, o destruidor da moral, etc, enquanto alguns saem na defesa, a “ação maquiavélica” convém mal ao autor, é um mau renome. Maquiavel defende a amoralidade dos príncipes (Ribeiro, 2006: 145). 
A avaliação pejorativa, a demonização de Maquiavel, a devemos, em grande parte, a representantes do catolicismo como o cardeal Jerônimo Osório que relaciona o autor de O príncipe a uma atitude imoral: perfídia, dolo, má-fé (1559). Esta ideia é também partilhada por jesuítas da época que empregam os seguintes termos para falar do secretário florentino: “parceiro do diabo no crime”, “escritor sem honra e incrédulo”. Atitude adotada também por anglicanos da era elisabetana que criam a expressão Old Nick (Velho Diabo) e pelo cardial inglês Reginald Pole, que, indignado pelos “propósitos diabólicos” de O príncipe, acredita ter sido escrito “pela mão de Satã”. 
A condenação de corifeus católicos e protestantes de outrora não acaba por aí, ela continua presente em destacados filósofos racionalistas, como Bertrand Russel, que se referem a essa obra como um “manual para gângster”, ou em filósofos católicos, como Jacques Maritain, L´Homme et l´État, quando este afirma que “a máxima segundo a qual a política deve ser indiferente ao bem e à moral é um erro fatal”, ademais arremata:
Existem dois modos opostos de compreender a promoção da vida política. O mais fácil - e que não conduz a nada de bom - é o modo hábil, esperto e violento. O mais difícil e exigente, mas de valor construtivo e progressista - é o modo moral, ético ou humanista. São duas concepções em choque, que devem ser nitidamente caracterizadas. O maquiavelismo nos propõe uma concepção puramente hábil, personalista ou técnica da política, que se torna, por definição uma política amoral (Montoro, 1997: 18-19). 
Tais avaliações contrastam com outras menos sectárias que consideram Maquiavel um “humanista angustiado” (Croce) por combater sem êxito a política corrupta da Santa Sé sob a roupagem ideológica da fé; “grande appassionato” (Ridolfi); por defender sua pátria, “pai da Staatsräson” (Razão de Estado) (Meinecke); por defender um interesse maior que é a existência do reino, “supremo realista” (Bacon); por evitar fantasias utópicas, “humanista sério, responsável de uma verdadeira moral”; por defender a necessidade de assumir as consequências dos atos (Merlau-Ponty), “primeiro pensador político autenticamente moderno”; por fazer uma abordagem pragmática no estudo do poder (Wolin), “maior que Cristovão Colombo” (Strauss); por pisar um continente que ninguém antes pisou: o continente da política, etc.
Com base em autores do “espelho de príncipes”, que indicam o comportamento a ser seguido pelos governantes, importa insistir na profunda inflexão que se dá com o secretário florentino:[5: Por exemplo, Erasmo de Roterdã: A formação do príncipe cristão (1515). Para uma comparação entre ambos os autores (Maquiavel e Erasmo) QUINTANA, F. Ética e política: lembrança de um confronto, Escola da Magistratura Regional Federal, n.1, Rio de Janeiro, 2010, p.107-123.]
Se examinarmos os tratados morais dos contemporâneos de Maquiavel encontraremos argumentos (morais) incansavelmente reiterados. Mas, quando nos voltamos para O príncipe, encontramos uma súbita e violenta subversão deste aspecto da moral humanista (grifo do autor) (Skinner, 1981: 61). 
Efetivamente, se tomamos as principais qualidades do príncipe ou condottiere (líder) maquiaveliano, tal mudança pode ser apreciada na conhecida figura animalesca do leão e da raposa, virtudes por excelência, para ele realizar gran cose:
Visto que um príncipe, se necessário, precisa saber usar a natureza animal, deve escolher a raposa e o leão, porque o leão não tem defesa contra os laços, nem a raposa contra os lobos. Precisa, portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos (Maquiavel, 2001:84). 
Ardil e força são meios ou expedientes que se tornam necessários para obter sucesso no resultado (a criação e manutenção do estado), duas formas de agir: a bamabalina (bamboozle: iludir) e o bambo (vara) que, em perspectiva maquiaveliana, representam uma junção inédita porque não está sujeita a uma avaliação moral, mas pragmática. Neste sentido, podemos dizer que o autor se afasta da tradição cristã, que julga tais recursos de forma maniqueísta. Assim, por exemplo, Agostinho quando em Cidade de Deus dá a entender sobre os diferentes modos de manter a segurança que existem melhores e piores: os que se comportam como “ovelhas e pombas” ou como “feras cruéis: raposa e leão”. 
O contraste entre o bispo de Hipona e Maquiavel pode ser observado também no dualismo frui e uti: “dizemos gozar (frui), quando o objeto nos deleita por si mesmo, sem necessidade de referi-lo a outra coisa, e usar (uti), quando buscamos um objeto por outro” (Agostinho, 1990: 401), sendo que para o teólogo medieval ambos podem caminhar juntos, honestas e utilitas, ou seja, o útil é honesto e vice-versa, enquanto para o secretário florentino dificilmente aquilo que é útil é honesto. Neste sentido, podemos dizer que a ética agostiniana não admite dicotomia entre valores ou fins internos e externos, em contraste com a ética maquiavelina em que os valores ou fins internos raramente caminham juntos com os valores ou fins externos, em particular, quando o que está em jogo é a salvação do estado. 
De um lado, a moral em nível interno inseparável da praticada no “mundo lá fora”, ambas servindo para a salvação da alma (Agostinho), de outro lado, a moral em nível interno, que não necessariamente coincide com a do “mundo lá fora” já que neste caso há de se “fazer aos outros aquilo que fariam a ti”.
Força e astúcia são meios que, em in extremis casu, permitem evitar o pior dos males: a morte do reino. A estabilidade interna, ingroups, e a segurança externa, outgroups, é a preocupação central do príncipe, o qual jamais deve abrir mão da máxima que o norteia: salus civitatis suprema lex. Umpríncipe, diz o secretário florentino, tem dois grandes temores, um de dentro, referente a seus sujeitos, outro de fora, referente às potências vizinhas. Ademais entende que, em ambos os casos, o príncipe deve defender-se com boni armi (não mercenárias), única maneira, a fim de se alcançar estabilidade tanto interna quanto externamente. Tal máxima, que inspira o líder ou condottiere, faz que não só os homens, mas também os estados tenham medo de morrer. 
Importa esclarecer que o entendimento de Maquiavel em relação à atuação do príncipe obedece à situação particular em que se encontra Florença, bem como toda a Península Itálica, na época, dividida, esfacelada, num mosaico de pequenas cidades: república de Veneza, ducado de Milão, Estados papais, república de Florença, reino de Nápoles, agravada ainda mais pelas investidas de potências estrangeiras (França e Espanha) que ameaçam seu território. Assim, vale recordar a dedicatória de O príncipe: “Nicolaus Maclavellus ad Magnificum Laurentium Medice” - que irá salvar Florença; e também quando faz um apelo dramático sobre a necessidade de ter-se um novo líder na península, que consiga unificar a Itália (Capítulo XXVI). 
Para tanto, o príncipe precisa recorrer a meios que, apesar de reprovados moralmente, são eficazes para atingir o resultado. Em relação a um dos expedientes, o uso da força, importa fazer um esclarecimento, mais especificamente, remeter-nos àquela importante frase do secretário florentino sobre a crueldade bem ou mal empregada (Capítulo VIII). Trata-se de uma avaliação neutra/objetiva na medida em que o uso da força está ligado ao êxito ou fracasso do resultado. Tal avaliação, bom/mau, não é, portanto, subjetiva/valorativa, mas objetiva porque se afasta do binômio “moral-imoral” (cristão) para incluir um outro tipo de juízo, amoral, que supõe, vale sublinhar, a suspensão provisória desse binômio em relação aos meios empregados pelo príncipe, que passam a ser avaliados em função da eficácia com o fim a ser obtido. [6: Em reforço deste entendimento, cabe trazer o seguinte comentário: durante muito tempo se falou que a moral deve guiar a política, contudo o bem do estado é diferente da moral dos indivíduos - o estado tem sua existência concreta e esta exigência não depende de ideias morais subjetivas (Hegel, 1940: 363, § 337). ]
Assim sendo, a “crueldade bem empregada”, decerto um uso legítimo ou justificado da mesma, obedece ao fato do condottiere salvar e conservar o principado. Tal avaliação positiva, dada pela eficácia dos meios, do uso da força aparece, por exemplo, no elogio de Maquiavel a César Borgia pelo fato de quase ter conseguido unificar a Itália servindo-se desse recurso (Capítulo VII). Contudo, importa esclarecer que o emprego da força não implica o abuso da mesma: a força crua e nua que destrói ou que serve apenas a um só, o tirano ou déspota. 
Deste modo, estaríamos diante do uso parcimonioso da força, uma economia da violência que, in extremi casu, é necessária, em contraste com a “crueldade mal empregada”, ou seja, a violência desmedida, que não consegue objetivo algum e que não diminui, mas recrudesce no tempo. Prova disso, quando em Discurso Maquiavel sustenta que só devem ser reprovadas as ações cuja violência tem por objetivo destruir e também quando em O príncipe diz que as crueldades mal empregadas são aquelas que crescem com o tempo em vez de se extinguir.
Tal distinção leva Maquiavel a condenar, por exemplo, Liverotto pelo uso interrompido que faz da violência sem atingir resultado (salvar Fermo), em contraste do elogio a Agátocles que usou a violência “uma só vez” e conseguiu o objetivo (salvar Siracusa) (capítulo VIII). Daí também a distinção maquiaveliana entre “novos principados” e “principados despóticos”, isto é, a justificativa do uso da força no momento - extraordinário - da criação do reino e o uso abusivo da mesma que fortalece o poder absoluto de um só. Tese que é confirmada quando o secretário florentino declara: “os que fizerem simplesmente a parte do leão não serão bem sucedidos” (Maquiavel, 2001: 84). 
Assim, haveria dois tipos de príncipes: aqueles dignos de louvor, que conseguem fundar reinos, se for o caso através da violência, e aqueles inglórios, que não conseguem resultados e usam a força só para benefício próprio. Segundo o Discurso, trata-se do contraste entre bons e maus imperadores: os primeiros dão segurança e paz aos súditos, os segundos não vão além da ambição e crueldades inumeráveis sem resultado algum. Ideia também defendida pelo bispo de Hipona quando elogia, por um lado, os imperatur christianissimus e condena, por outro, os imperadores ímpios que usam a força em benefício próprio, por orgulho ou concupiscência. Distinção que se estende, em terminologia agostiniana, à “paz dos justos” (a guerra justa) e “paz dos pecadores” (a guerra injusta). No primeiro caso estamos diante da “legítima defesa” em contraste com o uso ilegítimo da violência: a ambição imperial (pessoal) daquele que detém o poder.
Com respeito ao segundo expediente maquiaveliano, astúcia, fraude ou engano, ele remete, dentre outras coisas, a um tema clássico da teoria política: os arcana imperii (segredos guardados nas arcas do império), ou seja, ao “fenômeno do poder oculto” - não fazer aparecer aquilo que é, a dissimulação - e ao “fenômeno do poder que oculta” - fazer aparecer aquilo que não é, a simulação. A mentira impiedosa (impia fraus), a simulação, para o príncipe realizar grandes coisas é destacada até hoje como um dos traços inerentes da atividade política: “a veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas, mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis nestes assuntos” (Arendt, 1973:15).
Ambas, dissimulação e simulação, em perspectiva maquiaveliana, devem ser avaliadas objetivamente, ou seja, em relação ao êxito ou fracasso do resultado. Neste sentido, contrasta com o ponto de vista agostiniano, que, coerente com o moralismo extremado que defende, entende que é preferível calar/dissimular (ocultar a verdade) do que mentir/simular (tergiversar a verdade). Ocultar a verdade, afirma o bispo de Hipona em Contra a mentira, não é o mesmo que proferir uma mentira, todo mentiroso escreve para encobrir a verdade, mas nem sempre quem a encobre é um mentiroso, pois é possível fazê-lo não só mentindo, mas guardando silêncio. E arremata: é permissível para aquele que se envolve em questões religiosas ocultar num momento oportuno algo que pode ser aconselhável ocultar (Fortin, 1992: 180). E isso à diferença de Maquiavel em que ambos os recursos (dissimulação e simulação) podem ser úteis em função das circunstâncias. 
Força e astúcia podem ser relacionadas à fórmula do jurista italiano Giovanni Botero, della ragione di Stato (1589), que pode ser resumida ao seguinte: o governante não está obrigado a seguir os preceitos da moral dominante, mas deve conhecer os meios necessários para fondare, conservare ed ampliare um domínio. Tal ideia é endossada em Discurso: “Quando é necessário deliberar sobre uma decisão da qual depende a salvação do Estado, não se deve deixar de agir por considerações de justiça. Deve-se seguir o caminho que leva à salvação do Estado e à manutenção da sua independência rejeitando-se tudo mais” (Maquiavel, 1994: 419) e, no escrito de 1513: o príncipe não está obrigado a observar as coisas à semelhança dos homens bons, sendo forçado, para conservar a ordem, agir contra a caridade, a fé e a humanidade (Capítulo XVIII). A expressão razão de Estado implica então lançar mão de “vícios úteis” (força e ardil) para salvar o reino - o que provoca tensão com os ideais defendidos pela religião:
[...] a autoridade da igreja no só se apoiava na autoridade e no dogma, mas também na sua doutrina ética e axiológica, que cobria toda a vida e unia harmonicamente o mandato divino com o Direito natural, era absolutamente inevitável o conflito entre esta ética cristiano-jusnaturalista e o naturalismo radical da axiologia e ética maquiavélicas. Os ânimos, por isso, se sentiampresos entre as exigências da política prática [...] e as doutrinas do púlpito e do confessionário, que condenava a mentira, o engano e a deslealdade (Meinecke, 1983: 121-122).
A intenção de Maquiavel é substituir a moral e ética à “moda cristã”, forte ainda na época, por uma ética neutra, objetiva, amoral, que as circunstâncias e necessidades exigem. Uma mudança dos valores da moral cristã, julgados legítimos na vida privada, pelas exigências da prática política que implica o exame racional dos meios a serem empregados, bem como das capacidades ou virtudes do governante. A este respeito cabe o seguinte comentário: para o cristão pouco importa que a ação do príncipe traga beneficio, ela é condenável se sua intenção é perversa enquanto para Maquiavel pouco importa a virtude do príncipe se seu efeito é perder o estado (Lefort, 1986: 403). 
Segundo a visão antropológica do secretário florentino: os homens são maus, ingratos, falsos, não cumprem a palavra dada, são dissimuladores e simuladores, ávidos de ganho, podemos inferir que “a ímpia natureza humana impõe uma moralidade pública que não se identifica e pode colidir com as virtudes dos homens que professam acreditar nos preceitos cristãos e tentam agir segundo essas normas” (Berlin, 2002: 329). Ou seja, diante da imperfeição da natureza humana alguém tem que assumir a responsabilidade - mesmo ao preço de ferir princípios morais. 
As virtudes maquiavelianas se encontram na antípoda daquelas defendidas pelo cristianismo. Máximas associadas a Maquiavel do tipo: “prefiro salvar minha pátria que minha alma”; “não se governa com pater noster”, etc, servem para mostrar a ruptura que se dá com o autor de O príncipe em relação às virtudes defendidas pelos “pais da igreja” que convidam não apenas a adotar uma atitude passiva frente ao mundo, mas também de que é necessário o respeito rigoroso dos dogmas cristãos mesmo que isso leve à impotência política. Prova disso, as palavras dirigidas por Maquiavel ao frade dominicano Girolamo Savanorala, que fracassa redondamente no intento de governar Florença com pater noster: “Oh Profeta desarmado! Quanto equivocado estais. O homem de estado na sua relação com outros estados não pode ser governado pelas mesmas regras que regem as relações entre particulares, se assim o fizer é muito provável que não consigas realizar grandes coisas”. [7: O gonfaloniere Savanarola, “pai espiritual e político de Florença”, que governou essa cidade (1494-98) “apenas com palavras” denunciando a tirania dos Médicis (1389-1494), a corrupção do papado e a necessidade de “purificar” a cidade, acabou excomungado pelo Papa Alexandre VI por heresia, foi preso, enforcado e queimado na Piazza della Seignoria. ]
Quanto à honra/glória ou fama, outra virtude maquiaveliana, cabe dizer que ela supõe um bônus e um ônus, ou seja, o fato de ser reconhecido, sobressair sobre os demais, está em relação direta com o príncipe manter ou salvar o reino. Trata-se, portanto, de uma “dupla glória”, que, como se lê em O príncipe, consiste não só em criar um novo principado, mas também em fortalecê-lo por meio de boas armas e boas leis. Contudo, os boni armi são mais relevantes que os boni ordini porque “não pode haver boas leis onde não há boas armas”, isto é, o príncipe deve contar com milícias próprias, leais, não com mercenários infiéis, se o objetivo é estabelecer também as bases de uma boa ordem política.
 
A honra do príncipe nada mais é que a virtude recompensada ou em outros termos: se o príncipe deseja alcançar resultados (criar o estado e fortalecê-lo com boas armas) deve conduzir-se o mais virtuosamente possível. A honra é tão relevante para o secretário florentino ao ponto de que um príncipe fundador de um reino não por isso mereça glória, não por isso seja virtuoso. É o caso (mais uma vez) de Agátocles, que, apesar de ter usado “bem a crueldade” (salvar Siracusa), não foi “celebrado entre os homens excelentes”, uma vez que não contou com exército próprio nem conseguiu instaurar boas leis e instituições. 
A honra, virtude demasiadamente humana, é justamente a que Maquiavel admira e quer resgatar pelo efeito salutar que traz. Para isso mostra a importância da história, dos “líderes admiráveis” que, para usar uma expressão weberiana, teriam “colocado os dedos nos raios da história” (deixado sua marca). Assim, por exemplo, Rômulo, que, segundo o secretário florentino: “nenhum espírito esclarecido reprovará que se tenha valido de uma ação extraordinária (o assassinato de Remo) para instituir um reino” (Maquiavel, 1994: 48) - o que significa que os crimes cometidos por atores políticos correspondem ao juízo da história e não da moralidade (Wolin, 2012: 226).
Em relação às figuras “incomparáveis da história” (Licurgo, etc.) que, por sua reflexão e atuação, conseguiram não apenas salvar povos, mas também dotá-los de boas leis e instituições, convém citar o famoso “sonho de Maquiavel”:
[Que] disse ter visto um grupo de homens malvestidos, de aparência miserável e sofredora. Ao indagar quem eram, recebeu a seguinte resposta: “Somos os santos e os bem-aventurados, vamos para o Paraíso”. Em seguida, avistou uma multidão de homens de nobre e grave aspecto, vestidos com roupas majestosas, que discutiam solenemente sobre importantes problemas políticos. Reconheceu os grandes filósofos e historiadores da Antiguidade que haviam escrito obras fundamentais sobre política e sobre os Estados. [E] perguntou também a eles quem eram e para onde se dirigiam: “Somos os condenados ao Inferno”, responderam. [E] termina [o sonho dizendo]: antes preferia ir para o inferno discutir sobre política com os grandes homens da Antiguidade do que mandado ao paraíso, para morrer de tédio na companhia dos beatos e santos (Virolli, 2002: 17). 
Quanto à prudência, reconhecer a natureza dos inconvenientes e adotar o menos pior, significa que a escolha ou decisão do governante, optar pela menos prejudicial, está sujeita a avaliações descritivas, baseadas em juízos a posteriori, relativos (revisáveis ou mutáveis), condicionais ou hipotéticos (se quero x devo fazer y), em contraste com avaliações ou juízos morais a priori, absolutos, incondicionais (devo fazer X). 
A prudência, escolher o “menos pior”, implica dizer que o governante que age dessa forma deve ter um conhecimento apurado das vantagens ou desvantagens do resultado decorrente de sua decisão. Neste sentido, a prudência, se afasta do entendimento dado pelo pensamento da Antiguidade Clássica (Aristóteles) quanto pelo pensamento da Idade Média (Agostinho). No primeiro caso, ela é uma mistura de bom sentimento e reto raciocínio que traz felicidade; no segundo caso, ela se relaciona com o amor a Deus permitindo discernir quais ações são favoráveis ou contrárias para se chegar a Ele.
 
Em Maquiavel, pelo contrário, a prudência significa enfrentar pragmaticamente, com base naqueles juízos, os obstáculos que possam trazer mais prejuízos - mais ainda se o que está em jogo é a salvação do estado. Assim sendo, a prudência, centrada na figura do príncipe, toma distância do “bom sentimento” e “bom resultado” que norteia a atividade do polités em prol da felicidade (Aristóteles), bem como da “caritás ou amor” que guia a conduta do crente (Agostinho) e também da ética estoica, segundo a qual: uma coisa pode ser moralmente certa sem ser conveniente e conveniente sem ser certa, contudo a conveniência não pode entrar em conflito com a moral porque só podemos achar as coisas úteis na honestidade. Tal postura contrastando com a opinião maquiaveliana, já que a conveniência, utilitas, tem prioridade diante do certo ou correto, honestas. 
No primeiro caso, a tradição clássica e medieval, trata-se de um conjunto de preceitos e formas de agir encaminhados à eliminação do mal na sociedade política; no segundo caso, a tradição maquiaveliana, trata-se da nova ciência política baseada na premissa de que a quantidade de mal no mundo é mais ou menos constante e de que a natureza da ação política não podeser dissociada de más consequências (Wolin, 2001: 225) ou, parafraseando Maquiavel, do príncipe não ser o suficientemente prudente para evitar os vícios que podem causar a perda do estado (Capítulo XV). 
 
O elogio ao comportamento do príncipe fica evidente quando Maquiavel compara o elemento “subjetivo”, as qualidades do príncipe, a virtù, e a fortuna, a sorte ou acaso – as circunstâncias “objetivas” em que atua. Neste ponto, tomando distância mais uma vez com autores do “espelho de príncipes” pelo fato de não admitir que o governante ceda às circunstâncias (Erasmo de Roterdã), mas, pelo contrário, quanto mais adversas elas são, com mais firmeza há que enfrentá-las. Assim, vale lembrar, a famosa metáfora de Maquiavel: a fortuna é mulher e por isso gosta de jovens para batê-la (Capítulo XXV) - isso significa dizer que o governante deve agir de maneira a não ser dominado pelo acaso.
A relação virtù-fortuna significa também que o príncipe fica submetido a uma ética específica conhecida a partir de Max Weber como ética da responsabilidade, a qual, em contraste com a “ética da renúncia” defendida pelo cristianismo, impele o condottiere a fazer aquilo que não pode deixar de fazer, não transferir a outro aquilo que deve decidir - com o bônus e ônus que isso traz consigo. Trata-se, portanto, de uma ética heroica cujo aparecimento se dá de forma mais dramática diante dos “maus ventos da fortuna”.
Para concluir com a ética maquiaveliana de O príncipe, que se encontra submetido a “ditames da necessidade”: conquistare e mantere o stato, podemos dizer que a prática da coragem, honra, prudência torna-se fundamental para o êxito do resultado. Tais virtudes sendo importantes porque desvendam a vulnerabilidade dos valores morais e permitem lidar eficazmente com a impiedosa realidade. 
O legado ético de O príncipe não pode ficar reduzido a uma visão maniqueísta: virtudes seculares boas versus virtudes cristãs ruins. O legado é outro - comungar com algo que não seja o divino ou sagrado, isto é, comungar com a salvação do estado é abraçar outro tipo de ética destinada a ter melhor sorte neste mundo:
[...] na Idade Média, o quadro moral dava conta do lugar tanto do príncipe quanto do súdito, que deviam ambos obedecer à religião. Em tese, bastava isso para fazer um bom rei ou um bom cristão. Maquiavel mostra que o príncipe não está mais submetido - nem protegido - por esse quadro. É a insegurança que lhe dá a liberdade (para criar a sua própria ética: a dos resultados) (Ribeiro, 2006: 149).
Com base na assertiva de que Maquiavel “valoriza a ética na polis” convém abordar, a continuação, um tipo de ética que, à diferença do herói-fundador, o príncipe, diz respeito ao comportamento do cive (cidadão), que participa de uma boa forma de governo: a república. A reflexão do secretário florentino sobre esta forma de governo fazendo dele, segundo estudiosos, “o grande inovador do pensamento republicano no começo da modernidade”, segundo o filósofo Espinosa: o “campeão da liberdade”.
A abordagem deste aspecto da ética maquiaveliana implica ir além do estado como força física e incluir outros elementos que dizem respeito ao “processo de qualificação do estado moderno”. Um processo não linear nem acumulativo, mas que depende das circunstâncias: o estado - força física, poder legal e poder legítimo (Entraves, 1969: 9). Ou seja, criada à ordem pela força, estado-potentia, este pode ser dotado de leis que autorizam o uso da força, estado-potestas, e instituições que legitimam ambas, estado- auctoritas.
Para abordar a ética republicana, há que remeter-nos ao Discorsi: outra prova de como o humanismo renascentista volta sua atenção ao pensamento e experiência do passado para imitá-la no tempo presente (Petrarca). Para o secretário florentino a história é fonte de aprendizado para o presente: para quem estuda os acontecimentos pretéritos é fácil prever o que o futuro reserva a cada estado, propondo os remédios já utilizados pelos antigos ou imaginando novos remédios baseados na semelhança dos acontecimentos (Maquiavel, 2008: 129). Trata-se, portanto, de apreender com os bons exemplos da história: [8: Em 1512, os Médici voltam ao poder em Florença. Maquiavel é preso por ter apoiado o ganfaloniere Piero Soderini à frente da república (1498-1512) e conspirado contra os Médici. Privado do seu emprego como secretário da Segunda Chancelaria e obrigado ao exílio se refugia em sua casa, no burgo de Santa Andréia, em Percussina, onde escreve o Discorsi (1513-17). A este respeito, cabe ilustrar como era dia-a-dia de Maquiavel, segundo carta enviada ao seu amigo Francesco Vettori: “Junto do taberneiro há geralmente um açougueiro, um moleiro e dois caixeiros. É com essas pessoas que sempre depois do meio-dia eu me envileço jogando triquetraque. É uma miséria como essa que tenho mergulhar para impedir que meu cérebro não se cubra completamente de mofo; é dessa forma que eu me defendo da maldade da Fortuna com relação a mim, quase contente por ela ter me jogado tão baixo” (em contraste com atividade noturna) “Eu entro no meu gabinete e, desde a soleira da porta, me despojo do espólio de todos os dias, coberto de lodo e lama, para vestir novamente os hábitos da corte real e pontifical; dessa forma honradamente fantasiado, eu entro nas cortes antigas dos homens da Antiguidade. Lá, acolhido com afabilidade por eles, eu como do alimento que por excelência é o meu, e para o qual nasci. Lá, nenhuma vergonha em falar com eles e em interrogá-los sobre os motivos de suas ações, e eles, em virtude de sua humanidade, me respondem. E durante quatro horas, eu não sinto o menor tédio, esqueço totalmente meus tormentos, deixo de recear a pobreza, a própria morte não me assusta”. ]
 
(...) a história é para (Maquiavel) o que tinha sido registrado pelos grandes historiadores, os escritores a quem mais admira, os romanos, os gregos, os autores do Velho Testamento. Onde os homens atingiram sua plena estatura? Na Atenas de Péricles e no maior período da história humana - a República Romana antes de seu declínio (...) Não sente necessário demonstrar que esses foram tempos dourados na vida da humanidade; isso, acredita, deve ser evidente para qualquer um que considere essas épocas e as compare com os períodos ruins - o últimos anos da República Romana, o colapso que se seguiu, a invasão bárbara, a escuridão medieval (...), as divisões da Itália, a fraqueza, a pobreza, a miséria, o desamparo dos principados italianos de seu próprio tempo dominados por facões diante dos exércitos destruidores dos grandes e bem organizados Estados nacionais do Norte e do Oeste (Berlin, 2002: 312). 
 
Contudo, importa frisar que a volta ao passado não é um exercício nostálgico, tentativa arqueológica de exumação da antiguidade clássica, mas um programa de governo para o futuro (Moreira, 2005: 20-21). Para os autores renascentistas: o passado era uma poderosa arma contra as forças desagregadoras do presente em decadência e não uma simples miragem que não resistia a mais simples análise histórica (Bignotto, 2006: 25). 
Dentre os exemplos do passado, Maquiavel elogia a república romana (século V-I a.C.). Uma forma de governo que suscita sua admiração por ter leis e instituições que fizeram possível a liberdade. “É maravilhoso como cresceu a grandeza de Atenas durante os anos que se seguiram à tirania (mas) mais maravilhoso ainda é a grandeza alcançada pela república romana depois que foi libertada de seus reis” (Maquiavel, 1994: 197). 
O aprecio pela república romana prendia-se ao fato da função pedagógica que podia exercer no presente. Um exemplo, o mais acabado, que conseguiu conciliar liberdade individual e política, além de dar mostras de virtude, simplicidade, patriotismo, integridade e amor pela justiça. Neste sentido, haveria que mostrar alguns aspectos da república romana a partir dos escritos de um dos principais autores da antiguidade: Marco Túlio Cícero, que adota como método a imitação, o mesmo de autores renascentistas que procuram pôr em prática regrasaprendidas pelos antigos (Bignotto, 2006: 30). 
Na sua principal obra política, De re publica, o termo, no sentido amplo da palavra, é sinônimo de Estado (parágrafo 39 do livro I): a república é a coisa do povo (res populi) e por povo é necessário entender não qualquer agrupamento de homens reunidos como um simples rebanho, mas um grupo de homens associados através de uma mesma lei (iuris consensu) e comunhão de interesses (utilitatis communione) (Cícero, s/d: 40). 
Desta definição, podemos extrair duas ideias de justiça: um consenso acerca do que é justo ou injusto que implica, por sua vez, um tipo de comportamento baseado na principal virtude ciceroniana (a justiça) “impedir um homem de prejudicar outro”; e que os membros do corpo político devem aceitar o poder das leis e devem submeter seus interesses privados em prol do bem comum (Adverse, 2013: 31; 32). 
Já em sentido restrito, o termo re publica designa uma forma específica de governo, uma forma mista, que durou mais de quatrocentos anos (a república romana). A preferência de Cícero pela república prende-se, como acontece com outros autores da Antiguidade, ao fato de ter resistido à prova do tempo: a estabilidade. Apesar de admitir que das três formas boas de governo a “monarquia é preferível”, entende que é ainda mais aquela forma composta equilibradamente pelas três: “é bom que exista no governo alguma coisa de real (monarquia), que outros poderes sejam atribuídos aos melhores (aristocracia), e que certas questões fiquem reservadas ao povo (governo popular)”. O inconveniente das formas boas e simples de governo é que não duram no tempo e degeneram rapidamente no oposto: “o rei se converte em tirano, os melhores em facção, e o povo em turba”, sendo que o mesmo não acontece no governo misto: a república.
A vantagem da constituição romana é de ter conseguido retardar o ritmo circular da anaciclose polibiana (formas retas seguidas de formas más). Trata-se, portanto de uma - quarta - forma não coincidente com as três formas simples porque é composta, nem com as três formas corrompidas porque é reta. Além do mais, na opinião do orador romano, é um regime cuja composição (patrícios e plebeus) é suficientemente forte - o que permite evitar os “germes funestos da corrupção”.
A república romana, no dizer de Maquiavel “regime admirável”, combina uma série de instituições, como resulta da observação do historiador grego Políbio: os romanos julgavam impossível afirmar se o sistema era monarquia, aristocracia ou democracia, já que ao examinar os poderes dos cônsules era uma monarquia, os poderes do senado uma aristocracia e os direitos do povo uma democracia. 
O poder na república romana era dividido entre dois magistrados (hereditários depois eleitos), os cônsules, em número de dois, um vigiando o outro, evitando que um só tivesse o poder supremo. Seguindo o princípio: auctoritas in senato potestas in populo, o poder era exercido também por cidadãos eminentes, o senado ou conselho de anciãos, órgão máximo de deliberação - na opinião de Cícero, o mais importante porque “qualquer alteração nos cidadãos eminentes vai seguida de alterações no povo” - e também pelo povo, os tribunos da plebe, que podiam vetar as leis que os desagradavam, além de convocar assembleias para fazer suas próprias leis (Holland, 2006: 26; 50). 
Tratar-se-ia de um governo equilibrado, temperatum, em que os principais grupos que o compõem, patrícios e plebeus, conseguem moderar seus interesses através de boni ordini em prol do bem comum. Para ilustrar as vantagens desta forma de governo, cabe trazer, também, a famosa metáfora montesquiana, em Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência, na qual elogia a constituição romana: 
O que se chama união em um corpo político é uma coisa muito dúbia: a verdadeira é uma união de harmonia, que faz com que todas as partes, por mais opostas que nos pareçam, concorram para o bem geral da sociedade, tal como as dissonâncias na música concorrem para a harmonia global. Pode haver união em um estado em que se acredite ver somente distúrbios, isto é, uma harmonia da qual resulta a felicidade, que é a única paz verdadeira. É como acontece com as partes deste Universo, eternamente ligadas pela ação de umas e pela reação de outras, etc. (Montesquieu, 2002:74). 
Assim, combinando instituições (cônsules, senado, tribunos, etc), tal regime conseguia a um só tempo refletir a pluralidade, os interesses de aristocratas e povo, além da unidade: o bem comum. A resolução dos conflitos entre ambos os grupos requerendo um comportamento virtuoso do cidadão (cive virtu), que supõe o controle dos apetites imediatos em prol do interesse comum, ou seja, os aristocratas não reclamarem tanta riqueza e o povo não exigir mais liberdade ao ponto de converter-se em licença total, viver cada um como quer. 
Quanto à propriedade, a república romana visa estabelecer regras que tornem possível a “livre disposição das pessoas” (Rosenfield, 2008: 44), um regime baseado em muitos proprietários - o que evita a dependência à vontade daquele que tudo pode (oligarca ou tirano). Quanto à liberdade, ela diz respeito à participação do cidadão nos negócios públicos e também à independência e segurança individual, ambas as dimensões da liberdade se reforçam mutuamente, como diz o orador romano: para aqueles que patrocinam a virtude, essa busca não se opõe ao autointeresse, pois ao ocupar-se da finalidade natural, o homem realiza sua natureza e alcança a ventura (Cícero, 1999: XXIV). 
A liberdade como autointeresse significa que o cidadão romano luta por proteção: uma garantia pública e institucionalizada por ter segurança, mas também para “desposar quem quiser, criar os filhos sem temer por sua honra nem por seu próprio bem-estar; ser livre era (também) possuir livremente a sua propriedade”. Em contrapartida, a liberdade como autogoverno significa que um povo livre é um povo que não tem um senhor ou, como diz Cícero, que pode votar em qualquer pessoa para ocupar qualquer cargo (Holland, 2006: 49); bem como que está submetido a boas leis e instituições. 
Para a tradição republicana, como apontamos no início, ser livre significa ao mesmo tempo a não-interferência arbitrária de outros e desfrutar de um sentido de segurança e a não-dominação que implica boas leis e instituições que atendam os interesses do povo. Trata-se de um tipo de liberdade, a liberdade republicana, que procura conciliar a liberdade individual e um corpo político livre (Pettit, 1999: 12; 57; 58). Parafraseando o autor - a liberdade enquanto “ausência de interferência” e “ausência de dominação”. 
A república, para Cícero, exige comportamentos virtuosos como a justiça, “senhora e rainha de todas as virtudes”, que se confunde com a ideia do bem comum, no sentido dos homens não agirem em benefício próprio à custa de outros. “Não existe, diz o orador, algo de mais estranho à justiça, a uma sociedade visando ao bem comum, o homem que rapina outro homem”. Quanto à coragem, ela significa que o homem deve abandonar desejos imediatos e trabalhar em favor do interesse comum. 
No que tange à honra, ela é importante não só em tempos de guerra, mas também, como destaca o autor, durante o normal funcionamento da república: “se quisermos julgar com propriedade muitas foram as empresas civis, mais grandiosas e gloriosas que as militares, os que governam a república experimentam as maiores façanhas”. 
Quanto à sabedoria, ela aparece associada aos aristocratas - os membros do conselho de anciãos ou senado -, isto é, os mais senis ou sábios (ottimati) que, por seu preparo/ experiência, diz Cícero, são os mais capazes de antever as coisas futuras no momento crítico e resolver os problemas tomando a decisão correta. Daí, então, que o senado seja tido como a instituição mais importante da república. Finalmente, o decoro, que não é outra coisa senão a escolha de uma forma de vida apropriada aos talentos individuais, bem como à posição social que cada um tem na cidade. 
A reflexão maquiaveliana sobre a repúblicase inscreve num quadro comparativo em que aparece de um lado a “mais gloriosa forma de governo da história” (a república romana) e, de outro lado, as repúblicas italianas de sua época (de Florença e Veneza). Tal forma de governo, quando comparada à monarquia, leva o secretário florentino dizer, em Discuro, que as repúblicas têm mais germes de vida e sorte duradoura, que as repúblicas se acomodam melhor à variedade das circunstancias, dada a diversidade de gênio dos cidadãos que as compõem, etc.
No elogio à república, Maquiavel questiona a “ideologia da pobreza do cristianismo”, uma vez que a riqueza é um componente indissociável da vida boa, o qual contribui para a consecução do bem mais importante: a liberdade. Sem esquecer a importância dada à educação na formação do cidadão, bem como da necessidade da república ter exércitos próprios para defender e expandir “para fora” a liberdade.
Seguindo a tradição da Antiguidade, Maquiavel entende que a república romana foi uma forma boa de governo porque conseguiu resistir à prova do tempo (quase cinco séculos) e também por assentar-se na virtude dos cidadãos, que, através de boas leis e instituições, conseguem canalizar seus interesses em favor de todos.
Com respeito à virtude do cidadão na república, encontramos um tipo de argumento em que o secretário florentino é mestre: o método realista. De fato, tomando como base Roma, observa que em todas as cidades existem dois tipos de humores opostos: o povo que não quer ser comandado nem oprimido pelos grandes, e os grandes que desejam comandar e oprimir o povo. E conclui: desses dois apetites diferentes nascem efeitos salutares - a liberdade. 
Assim, um regime de liberdade supõe interesses contrapostos que, através de boni ordini, podem ser ajustados em favor do interesse de todos, ou seja, que nenhum dos grupos do corpo político fique sujeito, ao menos em direito, ao outro. Dessa maneira, o conflito, inerente à vida em sociedade, não é ignorado nem suprimido, mas assumido, explorando ao máximo seu efeito salutar. É o que se depreende da seguinte afirmação, muito ousada, do secretário florentino: “os que criticam as contínuas dissensões entre aristocratas e povo parecem justamente desaprovar as causas que permitem que a liberdade fosse conservada em Roma”. E arremata: 
Todas as leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião [...]. Não se pode de forma alguma acusar de desordem uma república que deu tantos exemplos de virtude, pois os bons exemplos nascem da boa educação, a boa educação das boas leis, e estas das desordens [conflitos] que quase todos condenam irrefletidamente (Maquiavel, 1994:31)
Em relação ao conflito, podemos então afirmar o seguinte: se o conflito é inevitável, faz parte da natureza do homem e da vida em sociedade, não há, portanto, que suprimi-lo, mas evitar que destrua a convivência - o importante, em perspectiva maquiaveliana, é ter instituições capazes de oferecer uma arena na qual seja possível a ocorrência de embates de forma civilizada (Bignotto, 2003:50). Efetivamente, diante de interesses de grupos contrapostos - os aristocratas, que desejam mais poder (riqueza), e o povo, que luta por não ser oprimido e por mais liberdade (licencia total),, o regime misto, a república, teria a vantagem de evitar o triunfo dos extremos, e isso porque ambos os grupos conseguem canalizar seus interesses através de instituições que se vigiam mutuamente.
Se o secretário florentino é o “campeão da liberdade” (Espinosa) deve-se ao fato da defesa que faz da insociabilidade da liberdade, autogoverno e autointeresse, isto é, liberdade como participação nos assuntos públicos, e liberdade como ausência de impedimentos externos e proteção do indivíduo mediante a submissão de todos à lei, respectivamente.
 [...] Maquiavel, herdeiro direto dos humanistas, concebeu a liberdade como liberdade negativa, mas acrescentou uma reflexão em torno das condições objetivas que tornam essa liberdade possível. Ora, foi justamente ao pensar a relação do indivíduo com a cidade, que ele foi capaz de mostrar que a máxima liberdade, ou a única verdadeira, é aquela que permite a todos exercer suas potencialidades. Isso não pode ser pensado sem colocar a questão da melhor forma de governo, pois segundo o pensador italiano, não há liberdade que não possa se exercer numa arena povoada e reconhecida como legítima pelos participantes de uma comunidade (Bignotto, 2000: 56-57). 
No entanto, a liberdade maquiaveliana diz respeito também ao momento da fundação da república, que acontece sem interferências externas (Roma). Neste contexto, ser livre é não sofrer controle externo, não depender da intervenção de outros estados (Skinner, 1996:28-29). A exemplaridade da civitas romana obedeceu então, não só ao fato de ter conhecido a liberdade nas duas dimensões assinaladas, mas também ao fato de ter-se libertado no momento da fundação. Estas diferentes dimensões da liberdade sendo destacada por outros humanistas da época como Coluccio Salutati: 
[...] uma cidade livre é, portanto, aquela que se mantém livre do jugo de senhores externos, mas também aquela capaz de permitir aos cidadãos o exercício da justiça baseada em leis promulgadas segundo a concordância dos cidadãos, expressa nos diversos conselhos que deveriam estruturar a vida política da cidade (Bignotto, 2001: 105). 
Seguindo Montesquieu, cabe dizer que a mola que anima a república-democrática, ou segundo Maquiavel: o governo largo (Roma) é a “virtude política”, isto é, a presença de um sentimento coletivo que se traduz pelo amor à pátria, à igualdade e o respeito às leis. Como diz em Espírito: “ama-se a pátria como algo que é de todos, (quando) ela é percebida como pertencente a todos que se consideram iguais entre si e frente à lei”. Este princípio ou mola, que dá vida à república-democrática, requer por sua vez a contenção do bem particular em prol do interesse geral. A virtude política, lembra o filósofo francês, é uma renúncia penosa: ela exige a preferência contínua do interesse público em relação ao interesse privado. 
Contudo, importa dizer que o secretario florentino não vê o interesse privado e público como incompatíveis, mas como complementares: a procura da riqueza sempre que praticada de forma moderada contribui ao fortalecimento de instituições livres, bem como para “a grandeza da cidade”, defender e expandir a liberdade. E isso, sobretudo, tendo em conta as duas repúblicas"s eja, que kado, iva de que odo criitos consagrados em 1776. da época (Veneza e Florença), que se assentam no comércio e na riqueza material/em comércio e riqueza material.
Não se trata do elogio da riqueza pela riqueza, mas que acúmulo limitado de bens é compatível com a virtude. Uma combinação que dará lugar a outra: a procura de bens particulares e valores cívicos, retomada pelo pensamento republicano, que pode ser resumida na afamada expressão - l´intérêt bien entendu (século XIX) - segundo a qual cada um seguindo seu interesse e se organizando para tal fim, a prática associativa, faz com que o interesse privado se transforme em geral (Tocqueville, 1961: 173). 
Cumpre reiterar que a procura pela satisfação dos desejos particulares não pode ser de tal sorte que represente um empecilho à manutenção da liberdade. De fato, seguindo autores da Antiguidade, Maquiavel entende que um dos principais males da república é que a re privata, o desejo pelo lucro ilimitado, se impunha diante da re publica. Ou, como diz em Discurso: a riqueza sem moderação é causa da corrupção cívica, tal situação sendo ainda mais grave quando toma conta do corpo político que se encontra em situação mais propensa para isso. 
Em tal contexto, Maquiavel prevê, in extremis, o apelo à figura extraordinária de um só que, com seu exemplo, pode acabar com a corrupção. Contudo, acredita, também ser possível combater a corrupção com boas leis e instituições: “uma república deve incluir entre suas ordini àquelas que permitam que os cidadãos se mantenham sobre vigilância para que não possam, sob o pretexto do bem, fazer o mal”.E acrescenta: “é essencial que cada um permaneça de olhos abertos e se mantenha alerta não só para identificar tais tendências corruptas como também para empregar a força da lei para eliminá-las”. Em definitivo: um regime não corrupto exige a continua vigilância dos cidadãos. 
Para Maquiavel existe ainda outro remédio para induzir o povo a adquirir a virtude e afastar-se da corrupção: o culto religioso. As repúblicas, afirma, que querem impedir a corrupção dos estados devem manter sem alterações os ritos religiosos e o respeito que inspiram. O índice mais seguro da ruína de um país, destaca, é o desprezo pelo culto dos deuses. E conclui: onde reina a religião se acredita na prevalência do bem, pela mesma razão se deve supor a presença do mal nos lugares onde ela desapareceu (Maquiavel, 1994:61-62). Com base em exemplos da religião pagã, a república romana, critica a Igreja Católica de sua época, que, sob a roupagem da fé, pratica a corrupção. E, de forma bem pragmática, como é de hábito, defende o bom uso dos cultos religiosos, uma vez que permitem manter os homens bons e induzem o povo a preferir o bem da comunidade a qualquer outro (Skinner, 1988: 98). 
No relativo à educação, ela é apreciada não só em função de promover o bem comum: as boas leis, diz Maquiavel, dependem da boa educação, mas também para promover a “potência da cidade” - manter e expandir a liberdade. A formação do cidadão com grandeza de espírito e força do corpo, a fibra ou coragem republicana, implica então potencializar ao máximo os impulsos, canalizando-os para a república expandir sua grandeza: a liberdade para fora das fronteiras. Assim, a honra do cidadão - uma das virtudes mais importantes - se confunde com o termo virtù: virilidade ou coragem. 
Tal parece ser a opinião de outros humanistas da época que, apesar de guardar certa reserva em relação a gloria ou honra associada à expansão da liberdade para fora (Roma), entendem que a verdadeira e completa virtude é alcançada não apenas com a participação dos cidadãos na vida política, mas também com a virtude militar, isto é, o “cidadão-soldado”, parafraseando Petrarca: a cidadania militar. Tal virtude, a coragem, devendo ser praticada não só para defender a república contra inimigos externos e internos, mas, também, como insiste Maquiavel, para irradiar para fora das fronteiras os valores associados à república: a liberdade. 
Cabe dizer que a maioria dos pensadores renascentistas entendia que era preferível a república ter “milícias próprias” do que forças mercenárias, tal meio sendo mais confiável para a república proteger a liberdade. A vantagem de contar com cidadãos armados e independentes (economicamente) era importante porque fortalecia a disciplina, que passa também pelo serviço militar. Quanto à relação valores cívico-militares-benefícios particulares, a opinião não era unânime: alguns entendiam que eram incompatíveis, enquanto Maquiavel entendia como compatíveis (Bignotto, 1991: 43). 
Com respeito às repúblicas da época, importa dizer que Florença era mais democrática, um Gran Consiglio e um pequeno senado, à diferença de Veneza, mais aristocrática, com o Conselho dos Dez, que intervinha em quase tudo (tesouro, exército, etc.), para muitos: a encarnação viva do regime misto, e por isso durou mais no tempo. 
Ademais, Florença não tinha exército próprio, durante muito tempo sobre o comando de condottieris irresponsáveis, tornando-a presa fácil de outras cidades ou estados, daí o interesse de Maquiavel, seguindo o exemplo de Roma, de reviver em Florença uma milícia formada por cidadãos que fossem fiéis à república. 
Já Veneza, com exército próprio, teria conseguido defender melhor seu território e instituições, porém, segundo avaliação do secretário florentino, com limitações porque foi incapaz de expandir para fora a liberdade. Sendo assim, Veneza estava mais voltada para a conservação da liberdade, “manter o statu quo” como se lê em Discurso, do que propagar a liberdade a outros lugares.
A diferença entre ambas as repúblicas responde também ao fato de Veneza revelar certo atraso no plano cultural: faltava-lhe aquele entusiasmo pela Antiguidade Clássica, não assim para o comércio e negócios, enquanto Florença, além do avanço da indústria e comércio, tinha mais consciência política, berço das doutrinas políticas, da escrita da história, que lhe serviu para admirar Roma (Burckhardt, 2003: 69; 71), etc. 
Para concluir, podemos dizer, com base em Principatibus e Discorsi que existem duas maneiras de entender a ética e a política, respectivamente. A primeira é da “janela do palácio”, visão vertical do poder, baseada no argumento ex parte principis, na lógica da raison d’État, que gira em torno da seguinte pergunta: que situações permitem a quebra de limites impostos pela moral comum à atuação do príncipe? Resposta: a conservação do estado. A segunda é da “praça pública”, visão horizontal do poder, baseada no argumento ex parte populi, nos direitos e deveres dos cidadãos, que gira em torno de outra pergunta: que condições são necessárias para que os limites impostos pela moral comum não sejam transgredidos pelo governante? Resposta: criar boas leis e instituições - a república. De um lado, de “jogos estratégicos do poder”, de outro lado, da “preocupação ética por instituir a liberdade individual” (Foucault 2012: 278). 
Diante da assertiva arendtiana de que “a negação deliberada da verdade dos fatos, a capacidade de mentir, e a faculdade de mudar os fatos, a capacidade de agir estão interligadas”, cumpre dizer, com base nos escritos maquiavelianos, que além da lógica ofensiva do príncipe, baseada na dissimulação, “não fazer aparecer aquilo que é”, resta a possibilidade da lógica defensiva do cive, que, através de boas leis e instituições, pode (re)agir para “fazer aparecer aquilo que é”. 
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