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_,-,I Iv) 3::rc: f Copyrightby ©EditorialGustavoGili. S.A.. Rosellón87-89.Barcelona,1987. Título original '- De losmediosa Iasmediaciones.Comunicación,culturae hegemonia FichaCatalográficaelaboradapelaDivisão deProcessamentoTécnico- SIBIfUFRJ M 379m Martín-Barbero.Jesús Dos meiosàsmediações:comunicação.culturae hegemoniaI JesúsMartín-Barbero;PrefáciodeNéstor GarcíaCanclini;TraduçãodeRonaldPolito e Sérgio Alcides.Rio deJaneiro:EditoraUFRJ. 1997. 360p.; 15X 20.5cm 1.Comunicaçãodemassa2. Sociedadedemassa , L Título CDD 302.23 Para meuspais e minhafilha alga ISBN 85-7108-208-1 Capa Tita Nigrí Revisão CecíliaMoreira J osetteBabo Maria Guimarães Projeto Grdfico e Editoração Eletrônica EditotaUFRJ UniversidadeFederaldo Rio deJaneiro ForumdeCiênciaeCultura EditoraUFRJ Av. Pasteur.250 I sala106 Rio deJaneiro- RJ CEP 22295-900 Te!': (021)295 1595r. 124a 127 Fax:(021)5423899 Apoio: "b. Fundação Universitária1II José Bonirácio J: ()..JU.U. - LO O .•... ~ ('f) c.oCI) O:i OOOtn O>O~ N..J <CCwC I Prefácio Introdução Capítulo 1 SUMÁRIO PRIMEIRA PARTE POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE 11 15 Afirmação e negaçãodo povo como sujeito 23 opovo-mito:românticosversusilustrados 23 Povoe classe:do anarquismoaomarxismo 31 Emergênciadopopularnosmovimentosanarquistas 32 Dissoluçãodopopularnomarxismo 36 Capítulo 2 Nem povo nem classes:a sociedadede massas 43 A descobertapolíticadamultidão A psicologiadasmultidões Metaflsicadohomem-massa Antiteoria:a mediação-massacomocultura Capítulo 3 Indústria Cultural: capitalismo e legitimação BenjaminversusAdornoou o debatedefundo Do lagosmercantilà artecomoestranhamento 44 47 52 57 63 64 65 A experiênciae a técnicacomomediaçõesdas massascoma cultura Da críticaà crise Capítulo 4 Redescobrindoo povo: a cultura como espaço de hegemonia opovona outrahistória Cultura,hegemoniae cotidianidade SEGUNDA PARTE MATRIZES HISTÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE MASSA Capítulo 1 O longo processo de enculturação Estado-Naçãoe os dispositivosdehegemonia Centralizaçãopolítica e unificaçãocultural Rupturasno sentidode tempo Transformaçõesnosmodosdo saber Culturapolíticada resistênciapopular A dimensãopolítica da economia A dimensãosimbólicadaslutas Capítulo 2 Do folclore ao popular Uma literaturaentreo orale o escrito O quedispõeo mercado O quedispõeopovo 71 80 90 91 104 127 127 128 130 132 135 136 138 142 142 143 148 f i " Uma iconografiaparausosplebeus Melodrama:o grandeespetáculopopular Entre o circoe opalco Estrutura dramdticae operaçãosimbólica Capítulo 3 Das massasà massa Inversãodesentidoe sentidosdainversão Memórianarrativae indústriacultural O aparecimentodo meio Dispositivosde enunciação Dimensõesdo enunciado Formatoe símbolo Continuidadee rupturasnaeradosmeios TERCEIRA PARTE MODERNIDADE E MEDIAÇÃO DE MASSA NA AMÉRICA LATINA Capítulo 1 Os processos:dos nacionalismos às transnacionais Uma diferençaquenãoserestringeaoatraso O descompassoentreEstadoe Nação Massificação,movimentossociaise populismo Os meiosmassivosna formaçãodasculturasnacionais Um cinemaà imagemde umpovo Do circocriolloao radioteatro 152 157 159 162 167 167 169 171 173 185 189 191 213 213 215 220 228 231 234 A legitimaçãourbana da músicanegra O nascimentode uma imprensapopular de massas Desenvolvimentismoe transnacionalização O novosentidoda massificação A não-contemporaneidadeentretecnologiase usos Capítulo 2 Os métodos:dos meios às mediações Críticadarazãodualista,ou asmestiçagens quenosconstituem A impossívelpureza do indígena A misturadepovo e massano urbano A comunicaçãoa partirdacultura O que nemo ideologismonemo injórmacionismo permitempensar Cultura epolítica: as mediaçõesconstitutivas Mapanoturnoparaexploraro novocampo Sobrea cotidianidade,o consumoe a leitura A televisãoa partir dasmediações Alguns sinaisde identidadereconhecíveisno melodrama O popularquenosinterpelaa partirdo massivo Bibliografia 238 242 247 248 252 258 258 260 265 277 278 282 287 288 291 303 308 335 PREFÁCIO Se achamosque os livrosmaisnecessáriossãoos nãocom- placentes,esteéumdosindispensáveisnosanosnoventa.Ao sepropor a entenderessasindústriasdasrespostase da consolaçãoque sãoos meiosdemassa,nãos6asassediacomperguntaseperguntas;dedica- sea trocarasinterrogaçõesquehaviamorganizadoosestudossobrea comunicaçãonosanosprecedentes. Os primeirosinvestigadoresdosmeiosbuscavamsabercomo elesfazemparamanipularsuasaudiências.A súbitaexpansãodo rádio, do cinemae da televisãolevoua crerquesubstituíamastradições,as crençasesolidariedadeshist6ricas,pornovasformasdecontrolesocial. Estelivro seafastadetaissupostos.Com umavisãomenosingênuade comosealteramassociedadesedoquefazemcomseupassadoquando irrompemtecnologiasinovadoras,indagacomosefoi desenvolvendo a massificaçãoantesque surgissemos meioseletrônicos:atravésda escolae da igreja,da literaturadecordele do melodrama,daorgani- zaçãomassivada produçãoindustriale do espaçourbano. Ao estabelecerqueassociedadesmodernasforamtendoos traçosatribuídosaosmeiosmuitoantesqueestesatuassem,desmoro- naramvárioslugares-comunsdo aristocratismoe do populismo.A cultura contemporâneanão pode desenvolver-sesem os públicos massivos,nemanoçãodepovo-que nascecomopartedamassificação social- podeserimaginadacomoumlugarautônomo.Nem acultura de elite, nem a popular,há temposincorporadasao mercadoe à comunicaçãoindustrializada,sãoredutosincontaminadosapartirdos quaissepudesseconstruiroutramodernidadealheiaao carátermer- cantileaosconflitosatuaispelahegemonia.Ao estudarareformulação DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES ..• daauraartísticanagrandecidadeeoprocessodeformaçãodopopular nasnovelasdefolhetim,na imprensaenatelevisão- comexplicações inauguraissobreas transformaçõeseuropéiase latino-americanas- ofereceumadasrefutaçõesteóricasmaisconsistentesàsilusõesromân- ticas, ao reducionismo de tantos marxistase ao aristocratismo frankfurtiano. Paracumprirestesobjetivos,a obradeMartín-Barberoper- correváriasdisciplinas.Dadoquedeslocaaanálisedosmeiosdemassa atéas mediaçõessociais,não é só um textode comunicação.Bem informadosobrea renovaçãoatualdosestudossociológicos,antropo- lógicosepolíticos,pareceumlivroescritoparaconfundirosbibliotecá- rios.Não estásituadoexclusivamenteemnenhumadessasdisciplinas, porémservea todas,por exemplo,seuoriginalexameda~noçõesde povoeclasse,decomosecomplexificamestascategor.iasnasociedade de massae as alteraçõesque isto geranos estadosmodernos.Sua explicaçãodecomoo rádioe o cinemacontribuíramparaunificaras sociedadeslatino-americanaseconformaramaidéiamodernadenação mostraquanto necessitamosdos estudosculturaispara entendera política e aindaa economia. Já Tocqueville,relembraMartín-Barbero,seperguntavaseé possívelsepararo movimentopela igualdadesocial e política do processode homogeneizàçãoe uniformizaçãocultural.A democrati"' zaçãodassociedadescontemporâneassó é possívela partirda maior circulaçãodebensemensagens.Estafacilidadedeacessonãogarante queasmassascompreendamo quesepassa,nemquevivamepensem melhor.A modernidade,e o contraditóriolugarquenelaocupamos povos,sãomaiscomplicadosqueo quesupõemasconcepçõespeda- gógicase voluntaristasdo humanismopolítico. Não sãofreqüenteshojelivrostãoeruditosedesconstrutores queaomesmotempocontinuemacreditandonapossívelemancipação dos homens.Onde encontraratualmenteos argumentospara esse otimismo?Martín-Barberoseafastado nativismoe do populismo,e 12 PREFÁCIO consideraqueasesperançasnovasseenraízambemmaisnossetores popularesurbanos.Nas "solidariedadesduradourasepersonalizadas" da culturade bairroe dosgruposartísticos,nosgrafitese na música jovem,nosmovimentosdemulheresedepopulaçõespobres,vêasfon- tesde uma "institucionalidadenova,fortalecendoa sociedadecivil". É possívelfazera essesgruposcríticassemelhantesàquelasdestinadas aosmovimentospopularestradicionais,porquetambémreproduzem estereótiposehierarquiasinjustasdaculturahegemônica.Todavia,o conhecimentodeseushábitosdeconsumoeapropriaçãodasindústrias culturais,assimcomodasformasprópriasde organizaçãoda cultura cotidiana,são algunsdos caminhospara passardas respostasque fracassaramàsperguntasquerenovemasciênciassociaiseaspolíticas libertadoras. NéstorGarcÍaCanclini 13 í I i INTRODUÇÃO oqueseencontraaquitrazaspegadasdeumlongopercurso. Vinha eudafilosofiae,peloscaminhosdalinguagem,medepareicom aaventuradacomunicação.E daheideggerianamoradadoserfui parar commeusossosnachoça-faveladoshomens,feitadepau-a-piquemas comtransmissoresderádioeantenasdetelevisão.Desdeentãotraba- lho aqui, no campoda mediaçãode massa,de seusdispositivosde produçãoeseusrituaisdeconsumo,seusaparatostecnológicosesuas encenaçõesespetaculares,seuscódigosde montagem,depercepçãoe reconhecimento. Duranteum certotempoo trabalhoconsistiuem indagar comonosmanipulaessediscursoqueatravésdosmeiosmassivosnos faz suportara impostura,como a ideologiapenetraas mensagens impondo-sea partirdaí a lógicada dominaçãoà comunicação.Per- corri sociolingüÍsticasesemióticas,leveiacaboleiturasideológicasde textose depráticas,e dei contadetudo issonum livro queintitulei, semocultarasdúvidas,Comunicaçãomassiva:discursoepoder.Mas já então- estoufalandodedezanosatrás- algunspesquisadorescome- çarama suspeitardaquelaimagemdo processona qual não cabiam maisfigurasalémdasestratégiasdo dominador, na qualtudo trans- corria entre emissores-dominantese receptores-dominadossem o menorindíciodeseduçãonemresistência,enaqual,pelaestruturada mensagem,nãoatravessavamosconflitosnemascontradiçõesemuito menosaslutas.Logopor essesanosalgonosestremeceua realidade- por estaslatitudesosterremotosnãosãoinfreqüentes- tãofortemente que trouxe à tona e tornou visívelo profundo desencontroentre métodoesituação:tudoaquiloque,do modocomoaspessoasprodu- DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES •.. zemO sentidodesuavidaecomosecomunicameusamosmeios,não cabiano esquema.Dito em outraspalavras:os processospolíticose sociaisdessesanos-, regimesautoritáriosemquasetodaAméricado Sul,diversaslutasdelibertaçãonaAméricaCentral,amplasmigrações de homensda política,da artee da investigaçãosocial- destruindo velhascertezaseabrindonovasbrecha':nosconfrontaramcomaverda- deculturaldestespaíses:amestiçagem,quenãoésóaquelefatoracial do qualviemos,masa tramahojedemodernidadeedescontinuidades culturais,deformaçõessociaiseestruturasdosentimento,dememórias e imagináriosquemisturamo indígenacomo rural,o ruralcomo ur- bano,o folclorecom o populare o popularcom o de massivo. Assima comunicaçãosetornouparanósquestãode media- çõesmaisque de meios,questãode culturae, portanto,não só de conhecimentosmasdere-conhecimento.Um reconhecimentoquefoi, de início, operaçãodedeslocamentometodológicoparare-vero pro- cessointeirodacomunicaçãoapartirdeseuoutrolado,o darecepção, o dasresistênciasqueaí têmseulugar,o daapropriaçãoapartirdeseus usos.Porém, num segundomomento,tal reconhecimentoestáse transformando,justamenteparaqueaqueledeslocamentonão fique emmerareaçãooupassageiramudançateórica,emreconhecimentoda história: reapropriaçãohistóricado tempo da modernidadelatino- americanae seudescompassoencontrandouma brechano embuste lógicocomqueahomogeneizaçãocapitalistapareceesgotararealidade do atual.Pois na AméricaLatina a diferençaculturalnão significa, comotalveznaEuropaenosEstadosUnidos,adissidênciacontracul- turalou omuseu,masavigência,adensidadeeapluralidadedascultu- raspopulares,o espaçodeum conflitoprofundoeumadinâmicacul- turalincontornável.E estamosdescobrindonestesúltimosanosqueo popularnãofalaunicamentea partirdasculturasindígenasou cam- ponesas,mastambéma partirda tramaespessadasmestiçagense das deformaçõesdo urbano, do massivo.Que, ao menosna América Latina,econtrariamenteàsprofeciasdaimplosãodo social,asmassas 16 ~. \) INTRODUÇÃO aindacontêm,no duplo sentidode controlarmastambémde trazer dentro,o povo.Não podemosentãopensarhojeo popularatuanteà margemdoprocessohistóricodeconstituiçãodomassivo:o acessodas massasà suavisibilidadee presençasocial,e da massificaçãoem que historicamenteesseprocessosematerializa.Não podemoscontinuar construindouma críticaqueseparaa massificaçãoda culturado fato políticoquegeraaemergênciahistóricadasmassasedo contraditório movimentoquealiproduzanão-exterioridadedo massivoaopopular, seuconstituir-seemumdeseusmodosdeexistência.Atenção,porque o perigoestátantoemconfundiro rostocoma máscara- a memória popularcomo imagináriodemassa- comoemcrerquepossaexistir umamemóriasemum imaginário,a partirdo qualsepossaancorar no presenteealimentaro futuro.Precisamosdetantalucidezparanão confundi-Ioscomoparapensarasrelaçõesquehoje,aqui, fazemsua mestiçagem. Estaé a apostae o objetivodestelivro: mudaro lugardas perguntas,paratornar investigáveisos processosde constituiçãodo massivoparaalémdachantagemculturalistaqueosconverteinevita- velmenteemprocessosdedegradaçãocultural.E paraisso,investigá-Ios a partir dasmediaçõese dossujeitos,isto é, a partirdasarticulações entrepráticasde comunicaçãoe movimentossociais.Daí suastrês partes- a situação,osprocessos,o debate- esuacolocaçãoinvertida: pois,sendoo lugardepartida,a situaçãolatino-americanaterminará naexposiçãoconvertendo-seemlugardechegada.Emboraespereque os marcosdeixadosao longo do percursoativema cumplicidadedo leitor e permitamdurantea travessiareconhecê-Ia. Falei no começodaspegadasquedeixouo longopercurso quesefazlivro aqui,eprecisoassinalaralgumas.Tais comoasdificul- dades,naprimeiraparte,paraarticularumdiscursoque,sendoreflexão filosóficae histórica,não sedistanciedemasiadonemsoeexteriorà problemáticae à experiênciaque setratade iluminar. E em certos momentos,a sensaçãoduplamenteinsatisfatóriadeterficadoa meio 17 DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES ••. caminhoentreaquelaeesta.Alémdoinegávelsabordeajustedecontas queconservamcertaspáginas.A aparentesemelhançadasegundaparte com o traçadode umaarqueologia,que buscano passado,em seus estratos,a feiçãoautênticade algumasformase algumaspráticasde comunicaçãohojedesaparecidase degradadas.Quandonaverdadeo quebuscamosé algoradicalmentediferente:nãoo quesobrevivede outro tempo,maso que nohojefazcomquecertasmatrizesculturais continuemtendovigência,oquefazcomqueumanarrativaanacrônica se conectecom a vida das pessoas.E na terceiraparte,enganosa impressãode que, ao investigaras formasde presençado povo na massa,estivéssemosabandonandoa críticaàquilo queno massivoé mascaramentoedesativaçãoda desigualdadesocialeportantodispo- sitivodeintegraçãoideológica.Masétalvezopreçoquedevemospagar por nos atrevermosa rompercom uma razãodualistae afirmaro entrecruzamentono massivodelógicasdistintas,apresençaaí nãosó dos requisitosdo mercado,masde uma matriz cultural e de um sensoriumqueenojaaselitesenquantoconstituium "lugar"de inter- pelaçãoe reconhecimentodasclassespopulares. Sãomuitasaspessoaseinstituiçõesqueprestaramseuapoio à pesquisaemquesebaseiaestelivro. Dentreelasdevoum especial reconhecimentoà UniversidaddelValle, em Cali, queme concedeu umabolsadeestudosparamontaroprojetoerecolheradocumentação necessária,emefacultoutempoduranteváriosanosparalevaradiante a investigação.Aos professorese pesquisadoresem comunicaçãoda Universidadde Lima e daAutónomaMetropolitanadeXochimilco, no México, quereconheceramo valorda propostadesdequandoera sóum esboçoemeconvidaramváriasvezesadiscutireconfrontarseu desenvolvimento.Ao IPAL, que tornou possívelum percursopor várioscentrosdeinvestigaçãoparaadiscussãoe reuniãoatualizadada informação.Meu agradecimentosinceroparaaquelaspessoa~quenãosómeajudaramcomseudebateintelectual,masquemeapoia~amcom seuafeto:PatriciaAnzola, Luis Ramiro Beltrán,Héctor Schmucler, 18 fNTRODUÇÃO Ana María Fadul, RosaMaría Alfaro, Néstor GarCÍaCanclini, Luis Peirano.E paraElvira Maldonadoqueagüentoue acompanhoudia a dia o trabalho. 19 PRIMEIRA PARTE POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE Osconceitosbásicos,dosquaispartimos,deixamrepentinamentede serconceitosparaconverterem-seemproblemas;nãoproblemasanalí- ticos,masmovimentoshistóricos,quecontudonãoforamresolvidos. RaymondWilliams Fazerhistóriadosprocessosimplicafazerhistóriadascate- goriascom queos analisamose daspalavrascom queosnomeamos. Lentamasirreversive1nenteviemosaprendendoqueo discursonão é um meroinstrumentopassivona construçãodo sentidoquetomam osprocessossociais,asestruturaseconômicasou osconflitospolíticos. E queháconceitostãocarregadosdeopacidadeeambigüidadequesó a sua historicizaçãopodepermitir-nossaberde queestamosfalando maisalémdo quesupomosestardizendo.O que buscaremosnesta primeiraparteserápois des-cobrir,no sentidomaisgenéricodeste verbo,o movimentodegestaçãodealguns"conceitosbásicos":istoé,o duplotecidodesignificadose referênciasdequesãofeitos.Historicizar os termosem queseformulamos debatesé já umaformade acesso aoscombates,aosconflitose lutasqueatravessamos discursose as coisas.Daí que nossaleituraserátransversal:maisque perseguira coerênciadecadaconcepção,questionaráo movimentoqueaconstitui emposição. CAPíTUL01 AFIRMAÇÃO E NEGAÇÃO DO POVO COMO SUJEITO Em sua"origem"o debateseachaconfiguradopordoisgran- desmovimentos:o quecontraditoriamentepõeemmarchao mito do povo na política (os ilustrados)e na cultura(românticos);e o que fundindo política e cultura afirmaa vivênciamodernado popular (anarquistas)ou a negapor sua"superação"no proletariado(marxis- tas). O POVO-MITO: ROMÂNTICOS VERSUS ILUSTRADOS Historicamenteo Romantismoéreação,masnãonecessaria- mentereacionária.Reaçãodedesconcertoefugafrenteàscontradições brutaisdanascentesociedadecapitalista:é tambémreaçãodelucidez ecríticafrenteaoracionalismoilustradoesualegitimaçãodos"novos horrores".Em todocasonãosepodecompreenderosentidodopopular naculturaquesegerano movimentoromântico,senãopor relaçãoao sentidoque adquire opovonapolíticatal e como é elaboradopela Ilustração. Desdeo iníciodaReforma,edemaneiraexplícitanosDiscorsi deMaquiavel,vemosorganizar-seemtornodafiguradopovoabusca deumnovosistemadelegitimaçãodopoderpolíticoque,nostratados deErasmo,VictoriaeLasCasa'seligaráinclusiveàdefesapioneirade certosdireitosevalorespopularesquepassandoo temposechamariam anticolonialistas.Mas uma ambivalênciafundamentalatravessaesse discurso.Maquiavelchegajá a pensarque "boas leis surgemdos tumultos"eque"emboraignoranteopovosabedistinguiraverdade";! DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES mas,ao mesmotempo,vêno povoa ameaçamaisinsidiosae perma- nentecontraas instituiçõespolíticas.E é precisamenteessaameaça constantede desordemcivil quevemda multidão,e a tentaçãotota- litáriaqueessadesordemprovoca,o queHobbesconverteno centro de suareflexãosobreo Estadomoderno.Reflexãoqueé semdúvida o pensamento-matriza partir do qual constroemos ilustradossua filosofiapolítica. À noçãopolítica do povo como instâncialegitimantedo Governocivil, comogeradordanovasoberania,correspondeno âm- bito da cultura uma idéia radicalmentenegativado popular, que sintetizaparaos ilustradostudo o que estesquiseramver superado, tudo o quevemvarrer a razão:superstição,ignorânciae desordem. Contradiçãoquetemasuafontenaambigüidadequea figuramesma do povo tememsuaacepçãopolítica.Mais quesujeitode um movi- mentohistórico,maisqueatorsocial,"o povo" designano discurso ilustradoaquelageneralidadequeéacondiçãodepossibilidadedeuma verdadeirasociedade.Pois é pelopacto"queo povoé um povo (...) verdadeirofundamentode umasociedade".2De modoqueo povoé fundadordademocracianãoenquantopopulação,senãosóenquanto "categoriaquepermitedarparte,enquantogarantia,donascimentodo Estadomoderno".3Uma sociedademodernanãoépensável,segundo Rousseau,senãoé constituídaa partirda "vontadegeral",e por sua vezessavontadeé a queconstituio povo comotal.A racionalidade queinaugurao pensamentoilustradosecondensainteiranessecircuito e na contradiçãoque encobre:estácontra a tirania em nome da vontadepopularmasestácontrao povoemnomeda razão.Fórmula queresumeo funcionamentodahegemonia.Dadoque,forada"gene- ralidade",o povoéanecessidadeimediata- o contráriodarazãoque pensaamediação-, nãoseresponderácomleisàdescobertado povo como produtor de riqueza,mas com filantropia:como fazerpara sermosjustoscomsuas"necessidadeshumanas"semestimularnopovo aspaixõesobscurasqueo dominam,esobretudo"essainvejarancorosa quesedisfarçade igualitarismo".Assim,na passagemdo político ao 24 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE econômicosefaráevidenteo dispositivocentral:deinclusãoabstrata e exclusãoconcreta,querdizer,a legitimaçãodasdiferençassociais. A invocaçãodo povo legitimao poder da burguesiana medidaexataemqueessainvocaçãoarticulasuaexclusãoda cultura. E é nessemovimentoque se geramascategorias"do culto" e "do popular".Isto é, do popularcomoin-culto,do populardesignando, no momentodesuaconstituiçãoemconceito,um modoespecíficode relaçãocomatotalidadedo social:adanegação,a deumaidentidade reflexa,adaquelequeseconstituinãopeloqueémaspeloquelhefalta. Definiçãodo povopor exclusão,tantoda riquezacomodo "ofício" político e da educação.Quanto à primeiranão faltamargumentos. Quanto à segunda,Habermassepergunta:"por quenãochamasim- plesmenteRousseauopiniãoà opiniãopopularsoberana;por que a identificacoma opiniãopública"?Porqueareconduçãorousseauniana da soberaniareal à soberaniapopularnão foi capazde superaro dilema:a transformaçãoda voluntasem ratio acabatraduzindoo interessegeralemargumentosprivados,essesquedelimitame cons- tituem o "verdadeiro"espaçodo político que é o espaçopúblico burguês.4Sobrea relaçãodo povocoma educação- queé o modo ilustradodepensaracultura-, trata-sedarelaçãomais"exterior"das três,poissóapartirdeforapodearazãopenetraraimediatezinstintiva damentalidadepopular.À qualnadaajuda,nesseaspecto,a bondade ou essasvirtualidadesnaturaisquesobrevivemàcorrupçãodoscostu- mes.A relaçãonão poderásersenãovertical:desdeos quepossuem ativamenteo conhecimentoatéos que,ignorantes,isto é, vazios,só podemdeixar-sesatisfazerpassivamente.E de um conhecimentoao qualemúltimainstânciasemprepermaneceramestranhos...excetoem seusaspectosprdticos.Voltaire o dirá sem evasivas:são outros os prazeres- diferentesdaquelesdo saber- e "maisadequadosa seu caráter"os queo governodevebuscarparao povo. Acusa-seo Romantismode haver-nosdeformadoa Idade Média, maspoucosperíodospor suavez foram tão preconceituo- samentevistosa partir da modernidadequanto esteRomantismo, 25 DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES reduzidoa "escola"literáriaou musical,eemdefinitivoaum adjetivo queseconfundecomo melodramáticoesentimental.Hoje surgeoutra leitura históricaque permitevalorizara rupturaque o movimento românticointroduzno espaçodapolíticae dacultura.Mas alémdas modas- esabemosqueaindústriaculturalpodehojevender-nosaté isso,pondo em modauma épocahistórica- o interesseatualpelo movimentoromânticoestáligadoàcrisedeumaconcepçãodapolítica comoespaçoseparado,separadodavidae da cultura,convertidaem atividadedesapaixonada,um espaçosemsujeitos. O românticoschegampor trêsvias,nemsempreconvergen- tes, à "descoberta"do povo. A da exaltaçãorevolucionária,ou ao menosdeseusecos,dotandoachusma,o populacho,deumaimagem empositivoqueintegraduasidéias:a de uma coletividadequeunida ganhaforça,um tipo peculiarde força,e a do heróiqueselevantae fazfrenteaomal.Umasegundavia:o surgimento,eexaltaçãotambém, do nacionalismoreclamandoumsubstratoculturaleuma"alma"que dêvidaà novaunidadepolítica,substratoealmaqueestariamno povo enquantomatrize origemtelúrica.E por último, umaterceiravia:a reaçãocontraaIlustraçãoapartirdeduasfrentes:apolíticaeaestética.Reaçãopolíticacontraaféracionalistaeo utilitarismoburguêsqueem nomedo progressotêmconvertidoo presenteem um caos,em uma sociedadedesorganizada.Logo:idealizaçãodo passadoerevalorização do primitivoeirracional.Mas nãosedeveesquecerquenessavoltaao presenteo movimentoromânticotemnãopoucoslaçoscom o socia- lismo utópico e seu protestocontraa ausênciade uma verdadeira sociedade."Os românticosquiseramvivera imagemdo possívelque projetavasobreo futuroo socialismoutópico.Opuseramsuasocieda- deidealà sociedaderealeprática.Justapuseram,à sociedadeburguesa real,ado desprezoedaseparação,adacomunidadeedacomunhão".5 E reação,ou melhor,rebeliãoestética,contraa artereale o classicista princípiodeautoridade,revalorizandoo sentimentoeaexperiênciado espontâneocomoespaçode emergênciada subjetividade. 26 POVO E MASSA NA CU •..TURA: OS MARCOS DO DEBATE Com essestrêsingredienteso Romantismoconstróiumnovo imagináriono qualpelaprimeiravezadquirestatusdeculturao que vemdo povo.Mas isto foi por suavezpossívelna medidaemquea noçãomesmade culturamudoudesentido.Da relaçãoentrea mu- dançana idéiadeculturae o acessodo popularaoespaçoquea nova noçãorecobre,é bom exemploo fatode queHerder,queem 1778 publicaos Volkslieder,nosquaisapresentacomoautênticapoesiaaque emergedo povo, "comunidadeorgânica",só uns anosdepois,em 1784,escreveIdéiasparaumafilosofiadahistóriadahumanidade,onde estabelecea impossibilidadedecompreendera complexidadeda evo- luçãodahumanidadeapartirdeumsóprincípio,etãoabstratocomo a "razão", e a necessidadeentão de aceitara existênciade uma pluralidadedeculturas,istoé,d,ediferentesmodosdeconfiguraçãoda vida social.A mudançana idéiadeculturavai nessemovimentoem duasdireções.Umaqueaseparadaidéiadecivilizaçãonummovimen- to de interiorizaçã06quedeslocao acentodo resultadoexteriorpara o modo específicode configuração,sejade um "sistemadevida" ou deuma"realidadeartística".E outra,queaore-conhecerapluralidade do cultural propõea exigênciade um novo modo de conhecer:o comparativo.Foi apartirdessanovaidéiaedométodoqueaíseorigina queHerderchegaacolocarempédeigualdade,istoé,emposiçãode relacionáveis,apoesialiteráriaeapoesiadoscantospopulares.Daí que aimportânciahistóricadaposiçãoromânticanestedebate- sejanos trabalhosde Herder sobreas canções,dos irmãosGrimm sobreos contosedeArnim sobreareligiosidadepopular- residanaafirmação dopopularcomoespaçodecriatividade,deatividadeeproduçãotantoou maisquena atribuiçãoa essapoesiaou a essesrelatosdeumaauten- ticidadeou umaverdadequejá nãoseachariaemoutraparte.Frente a tantacríticafácile recorrenteda concepçãoromânticado popular, naqualsefaztãodifícil separaro quevemdeumapercepçãohistórica dosprocessosdaquiloqueé propostopor um obstinadopreconceito racionalista,énecessárioafirmarcomCireseque"aposiçãoromântica 27 DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES fazprogredirdefinitivamenteaidéiadequeexiste,paraalémdacultura oficial e hegemônica,outra cultura.A noçãoromânticado "povo", cujautilizaçãoconceitualé hoje refutada,foi entãoum instrumento positivo parao alargamentodo horizontehistóricoe da concepção humana".?Segueessalinha a releituraefetuadapor Hobsbawmao estudarasrelaçõesentreromânticose revolucionários,8releituraque começaa abrircaminhotambémnaAméricaLatina.Assim,Morande propõeque,emsuarelaçãocomo povo,a renovaçãodo conceitode culturapassapor um reestudodo conceitode Naçãocom a qual os românticospõememjogo- frenteaoracionalismoiluminista- "a valorizaçãodoselementossimbólicospresentesna vidahumana"e a partirdosquais"aperguntapelaculturaseconvertenaperguntapela sociedadecomosujeito".9Dimensãoqueadquirehojeumrelevoespecial na horade pensara crisepolíticae o sentidodosnovosprocessosde democratizaçãona América Latina e a necessidadeentãode "uma aprendizagemna dimensãoda estruturaçãosimbólicado mundo, assegurandoa intersubjetividadedasdiversasexperiênciaspossíveis".10 Uma pistadeacessoaoconteúdoda idéiado populartraba- lhadapelosromânticosacha-senatopologiatendencialqueassinalao usodosnomese oscampossemânticosquea partirdaí seconstituem. Três nomes-folk, volkepovo- que,parecendofalardo mesmo,no movimento"traiçoeiro"das traduções,impedemde ver o jogo das diferençase ascontradiçõesentreos diversosimagináriosquemobi- lizam.11De um ladofolk e volkserãoo pontodepartidado vocábulo comquesedesignaráanovaciência- folkloreevolkskunde-,enquan- to peuplenãoseligaráa um sufixonobreparaengendraro nomede um saber,massim a umamodalizaçãocarregadade sentidopolítico e pejorativo:populismo.E enquantofolk tenderáa recortar-sesobre um toposcronológico,volko farásobreum geológicoepeuple,sobre um sociopolítico.Folklorecaptaantesde tudo um movimentode separaçãoe coexistênciaentredois"mundos"culturais:o rural, con- figurado pela oralidade,as crençase a arte ingênua,e o urbano, configuradopelaescritura,asecularizaçãoeaarterefinada:querdizer, 28 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE nomeiaa dimensãodo tempona cultura,a relaçãona ordem das práticasentre tradiçãoe modernidade,sua oposiçãoe às vezessua mistura. Volkskundecaptaa relação- superposição- entredois extratosou níveisnaconfiguração"geológica"dasociedade:um exte- rior, superficial,visível,formadopela diversidade,a dispersãoe a inautenticidade,tudo isto resultadodasmudançashistóricas,e outro interior,situadodebaixo,naprofundidadeeformadopelaestabilidade e pela unidade orgânicada etnia, da raça.Nos usos românticos, enquantofolkloretenderiaa significarantesdetudoa presençaperse- guida e ambíguada tradição na modernidade, volk significaria basicamente.a matriztelúricada unidadenacional"perdida"e por recuperar.Entre o povo-tradiçãoe o povo-raçanãodeixaráde haver notranscursohistóricolaçosetramasqueosaproximameconfundem, masdetodo modoestesdois imagináriosnospermitemdiferenciaro idealismohistórico,o historicismoquesituano passadoaverdadedo presente,de um racismo-nacionalismotelúricoem sua negaçãoda história.E frentea estesdois imaginários,o usoromânticodepeuple _ deHugo aMichelet- falaantesdetudodaoutrafacedasociedade constituída.Campesinatoe massasoperáriasformamo universodo povoenquantouniversodesofrimentoedemiséria- "acanalhaé o começodolorosodo povo",dirá Hugo -, essereversodasociedade quea burguesiaocultae temeporqueéapermanenteameaçaqueao assinalaro intoleráveldo presenteindicao sentidodo futuro. A travessiados imagináriospermitecompreendermelhoro queaconcepçãoromânticado popularnosimpededepensar,eo que temfeito atéhoje quasesemprealiadae componenteideológicodas políticasconservadoras.Em primeirolugara mistificaçãona relação povo-Nação.Pensadocomo"alma"ou matriz,o povoseconverteem entidadenãoanalisávelsocialmente,nãotrespassávelpelasdivisõese pelosconflitos, uma entidadeabaixoou acimado movimentodo social.O povo-Naçãodos românticosconformauma "comunidade orgânica",istoé,constituídapor laçosbiológicos,telúricos,por laços naturais,querdizer,semhistória,comoseriama raçae a geografia. 29 DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES Analisando a persistênciadessaconcepçãona cultura política dos populismos,GarcíaCanclini resumeassimaoperaçãodemistificação: "osconflitosemmeiodosquaisseformaramastradiçõesnacionaissão esquecidosou narradoslendariamente,comosimplestrâmitesarcaicos paraconfigurarinstituiçõeserelaçõessociaisquegarantamdeumavez por todasa essênciada Nação"Y Em segundolugar,a ambigüidade da suaidéiade "culturapopular",Seos românticosresgatama ativi- dadedo povo na cultura,no mesmomovimentoem que essefazer cultural é reconhecido,se produzseuseqüestro:a originalidadeda culturapopularresidiriaessencialmenteemsuaautonomia,naausência decontaminaçãoedecomérciocoma culturaoficial,hegemônica.E aonegaracirculaçãocultural,o realmentenegadoéoprocessohistórico deformaçãodopopular e o sentidosocialdasdiferençasculturais:a exclusão,acumplicidade,adominaçãoeaimpugnação.E aoficarsem sentidohistórico,o queseresgataacabasendoumaculturaquenão pode olhar senãopara o passado,cultura-patrimônio,folclore dearquivooudemuseunosquaisconservaapurezaoriginaldeumpovo- menino,primitivo.Os românticosacabamassimencontrando-secom seusadversários,os ilustrados:culturalmentefalando,o povo é o passado!Não no mesmosentido,massim emboaparte.Paraambos o futuro é configuradopelasgeneralidades,essasabstraçõesnasquais a burguesiaseencarna,"realizando-as":um Estadoque reabsorvea partir do centro todasas diferençasculturais,já que resultamem' obstáculosaoexercíciounificadodopoder,eumaNaçãonãoanalisável em categoriassociais,não divisívelemclasses,já queseachaconsti- tuída por laçosnaturais,de terrae sangue. Assim começaa "operaçãoantropológica"13queuneo tra- balhodosfolcloristascomo projetodosantropólogosqueseiniciaem Taylor ea transformaçãoconceitualdassuperstiçõesem"sobrevivên- cias"- survival- culturais.14Em um duplo plano.É medianteo contatocom as sociedadesprimitivasnão-européiasque a idéia da diversidadedasculturasadquireestatutocientífico.De formaquea ruptura do exclusivismocultural só se fará operanteagorae não 30 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE unicamentepor fora - civilizados/bárbaros-, mas tambémpor dentro- entreculturahegemônicaeculturassubalternas:"Sóatravés do conceitode 'culturaprimitiva'é quesechegoua reconhecerque aquelesindivíduosoutroradefinidosdeformapaternalistacomo' ca- madasinferioresdospovoscivilizados'possuíamcultura".15Mas, por suavez,"o primitivo",designandooselvagemnaÁfrica ou opopular na Europa,continuaráobstinadamentesignificando,a partirde uma concepçãoevolucionistada diferençacultural dominanteaté hoje, aquiloqueolhaparatrás,um estágiotalvezadmirávelporématrasado dodesenvolvimentodahumanidadee,poressarazão,expropriávelpor aquelesquejá conquistaramo estágioavançado.Assimcomoo inte- ressepelopopularnoprincípiodoséculoXIX racionalizaumacensura política16_ idealiza-seo popular,suascanções,seusrelatos,sua religiosidade,justono momentoemqueo desenvolvimentodo capi- talismona forma do Estadonacionalexigesuadesaparição-, na scgundametadedo XIX a antropologiaintroduz-secomodisciplina, racionalizandoe legitimandoa expoliaçãocolonialista. POVO E CLASSE: DO ANARQUISMO AO MARXISMO -4idéia de,povoqUe:geraoQoIIlovimentoromânticovai sofrer ~IO longodo séculoXDCumadissoluçãocompleta:pelaesquerda,nQ , ~onceitode classesocial,epe:1adireita,no de massa.Abordaremosesse duplo deslocamentoanalisandoseparadamenteos modósem que se ef(-waa operaçãode dissolução. A transformaçãodo conceitodepovono declasseapartirda M'I',lIndametadedoséculoXIX temumlugardeacessoprivilegiadono debateentreanarquistase marxistas.Debateem que, enquantoo ;lllarquismoinscrevecertostraçosdaconcepçãoromânticanum pro- ;,'(0 c emalgumaspráticasrevolucionárias,o marxismopelocontrário ef(-tlIaráuma rupturacompletacom o romântico,recuperandonão poucostraçosdaracionalidadeilustrada.Mas o quetantoanarquistas I 111110 marxistasefetuarãode início seráa rupturacomo culturalismo 31 DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES dos românticosaopolitizarema idéiadepovo.Politizaçãoquesigni- fica a explicitaçãoda relaçãodo modode serdo povocom a divisão da sociedadeem classes,e a historicizaçãodessarelaçãoenquanto processode opressãodas classespopularespela aristocraciae pela burguesia.Em síntese,marxistase anarquistascompartilhamde uma concepçãodo popular que tem como basea afirmaçãoda origem social,estruturaldaopressãocomodinâmicadeconformaçãodavida do povo. Frenteaos ilustrados,isso significaque a ignorânciae a superstiçãonãosãomerosresíduos,senãoefeitosda "misériasocial" dasclassespopulares,misériaquepor suavezconstituia contraparte vergonhosaeocultáveld<i"novasociedade".E frenteaosromânticos, issoimplicadescobrirna poesiae na artepopularesnão uma"alma" atemporal,masaspegadascorporaisdahistória,osgestosdaopressão e da luta, a dinâmicahistóricaatravessandoe fendendoo enganosa- mentetranqüilogerar-seda tradição. A partir daí a concepçãodo popularnasesquerdasvai se dividirprofundamente:osanarquistasconservarãoo conceitodepovo porquealgoseenuncianelequenãocabeou nãoseesgotano declasse oprimida, e os marxistasrechaçamseu uso teóricopor ambíguoe mistificador substituindo-opelode proletariado. Emergência do popular nos movimentos anarquistas A concepçãoanarquistado popularpoderiasituar-setopo- graficamente"a meio caminho"entre a afirmaçãoromânticae a negaçãomarxista.Porque,de um lado,parao movimentolibertário o povosedefinepor seuenfrentamentoestruturale sualuta contraa burguesia,mas,deoutro,osanarquistassenegama identificá-lo com oproletariadonosentidorestritoqueo termotemnomarxismo.E isso porquea relaçãoconstitutivado sujeitosocialdo enfrentamentoe da luta é paraoslibertáriosnão umadeterminadarelaçãocom os meios de produção,masa relaçãocoma opressãoemtodasassuasformas. Aí estáo núcleodapropostabakuniniana:entendero proletariadonão 32 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE comoum setorou umapartedasociedadevitimadapeloEstado,mas como "a massados deserdados".17E nessesentidoPiu Riverspôde ;lf-lrmarque o conceitode povo se converteuna pedraangularda políticaanarquista.18E nessecasoo sujeitodaaçãopolíticaseimpreg- nará de algunstraçosromânticos,só que agoraa partir de uma ~ignificaçãodiferente:averdadeeabelezanaturaisqueosromânticos descobriramnopovosetransformamagoranas"virtudesnaturais"que ~ãoseu"instintodejustiça",suafé na Revoluçãocomoúnico modo de conquistar"suadignidade". A conexãodo movimentolibertáriocom os românticosse produz sobre vários registros. Há um componente romântico indubitávelnarealizaçãodasvirtudesjusticeirasdo povo.Ele éaparte ~ãdasociedade,aqueemmeiodamisériatemsabidoconservarintacta -;I exigênciadejustiçaeacapacidadedeluta.Mas igualmenteclaraserá ;1 ruptura:o quetemsabidoconservaro povonãoéalgovoltadopara o passado,maspelocontráriosuacapacidadedetransformaropresente e construiro futuro.Tocamosaí um pontonevrálgiconasdiferenças entreanarquistase marxistas:o referenteà memóriadopovoe em particularàmemóriadesuaslutas.19Os libertáriospensamseusmodos de luta em continuidadediretacomo longoprocessodegestaçãodo povo.Os marxistasemtrocapõememprimeiroplanoasrupturasnos llIodosdelutaquevêmexigidaspelasrupturasintroduzidaspelonovo Illodo de produção.A continuidadeé paraos anarquistasnão uma Illeratática,masa fontede suaestratégia:aquelaquepensaa ação políticacomo uma atividadede articulaçãodasdiferentesfrentese 11IOdosdelutaqueopovomesmosedá.Alémdeimplicarnalutatodos os que estãosujeitosà opressãoenquantocapazesde resistênciae illlpngnação,desdeas criançase os velhos,até as mulherese os delinqüentes.É a relaçãodaopressãoea resistênciaà cotidianidadeo que os libertáriosestavampioneiramenterelevandoao valorizardo POlltodevistada transformaçãosocial"a luta implícitae informal", .1 luta cotidiana,paraa qual o marxismo,segundoCastoriadis,tem (Oll~ervadoumaespecialcegueira.20 33 DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES E atravésda memóriadas lutasos anarquistasse ligam à culturapopular.Não restadúvidade que a visãodessaculturaestá impregnadade uma concepçãoinstrumental- que em nenhum momentotratarãodeocultar- mastambémécertaavalorizaçãoque aí se produz. Poderíamosdizer que num primeiro momento a instrumentalizaçãofoi aúnicaformadevalorizaçãopossível,já queem suaambigüidadeoqueoslibertáriospercebiamobscuramascertamen- te é que,sea luta políticanãoassumiaasexpressõese os modosdo popular,o próprio povo é queacabariasendousado. O interessedos anarquistaspela culturapopular, embora tenhasidoexplícitodesdeo início, demoroumuito tempoa atrairo interessedoshistoriadoresoudossociólogosdacultura.Sónosúltimos anostem-secomeçadoaestudaro modocomoosanarquistasassumi- ram ascopIase os romancesdefolhetim,os evangelhos,a caricatura ou a leitura coletivados periódicos,quer dizer, a nova idéia que começama forjar da relaçãoentrepovo e cultura.21E um primeiro traço-chavedessaimageméalúcidapercepçãodaculturacomoespaço não só de manipulação,masde conflito, e a possibilidadeentãode transformaremmeiosdeliberaçãoasdiferentesexpressõesoupráticas culturais.Isso se materializaem uma política cultural que não só promoveinstituiçõesdeeducaçãooperáriaquecanalizema "fomede saber",22masemumasensibilidadeespecialparaa transformaçãodos modelospedagógicos.23E em umapercepçãoda continuidadeentre leituracoletivado folhetime a tradiçãodas vigíliasenquantoespaço deexpressãoeparticipaçãopopular.Ou nadiferençaqueestabelecem entrea lutacontraa religiãooficial- um anticlericalismoradical- eo respeitopelasformasefiguraspopularesdoreligioso,tantono nível dascrençasquantono damoral,emquepercebemprofundasrelações entrecertasvirtudespopularesealgumasexigênciascristãs,queligam a libertaçãode que falao Evangelhocom a libertaçãosocial. Uma segundalinha de trabalhoa resgataré a preocupação por elaborarumaestéticaanarquista,enaqualo traçoprimordialserá, por suavez,e por paradoxalquepossasoar,populare nietzschiano: 34 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE a continuidadeda artecom a vida, encarnadano projetode lutar contratudoo quesepareaartedavida.24Já quemaisdo quenasobras, aarteresideé naexperiência.E nãonadealgunshomensespeciais,os artistas-gênios,masaténa do homemmaishumildequesabenarrar ou cantarou entalhara madeira.Os anarquistasestãocontraa obra- prima e os museus,masnão que sejam"terroristas",nem por um "insano amor de destruição"como pensamseuscríticos,mas por militarememfavorde umaarteemsituação,concepçãodecorrenteda transposiçãoparao espaçoestéticodo seuconceitopolíticode "ação direta".De ProudhoneKropotkin,mastambémdeT olstói,aestética anarquistaretiraseuprojetodereconciliaraartecomasociedade,com o melhor da sociedadeque é a sedede justiçaque latejano povo. Romântica,essaestéticaproclamaumaarteantiautoritária,baseadana espontaneidadee na imaginação.Mas anti-romântica,essamesma estéticanão crênumaarteque selimite a expressara subjetividade individual:o quefazautênticaumaarteésuacapacidadedeexpressar avoz coletiva.E nessesentidoé "realista",aocolocara cotidianidade em relaçãocom o conflito, que a levaa escolhera facevisível da experiência,a realidadeftsicada miséria.O que do ponto de vista plásticoegráficosetraduzemum "impressionismoácrata",25próximo aodeSeuratePisarro,eno campoliterárioaumexpressionismoà Sué ou Gorki. E apartirdaestética,masapontandoparamuitomais"lon- ge", está a percepçãoanarquistada nova problemáticacultural estabelecidapelasrelaçõesentrearteetecnologia,queconstituiráanos depoisum aspectofundamentalda reflexãode Benjamin.Em um primeiromomentotrata-sedatecnologiacomotema,daafirmaçãodo (ecnológicono espaçodasartesmediantea introduçãorecorrentedas Ilovasferramentaseaparatostécnicos:asfábricas,asestaçõesdetrem, :1 iluminaçãoelétrica,ospostescomosfiosdo telégrafo.Mas emum segundomomento"já nãosetratasódainclusãodeelementosmecâ- lIicosfigurativosna esferada arte,masqueessestemastestemunham ;1 mudançade estruturasociale sugeremnovoscaminhosao mesmo 35 DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES temposociaiseplásticos.O mundodaindústriaincluíaaparticipação artísticado homemnãosócomoespectador,mastambémcomoator, pois o conceitodebelezanaobradearteé substituídopelodesejode significar".26E dessedesejoparticipam,sim, asclassespopularesem luta contraaqueleconceitodeartequeacabaexcluindoo popularda cultura.Em umcomentárioaocinemadeChaplin,intituladoO pobre e o proletariado,Barthesanalisao sentidodessatransformaçãoda belezaemdesejodesignificaredapeculiaridadequeissointroduzna estéticaanarquista."Chaplinviu sempreo proletáriosobostraçosdo pobre,dali surgea forçahumanadesuasrepresentaçõesmastambém suaambigüidadepolítica".Em um filme,cujamáximaexpressãoserá Temposmodernos,éapresentadoumproletário"pré-político",homem com fome, torpe,golpeadocontinuamentepelapolítica, e contudo dotadode uma capacidadedesignificar,de umaforçarepresentativa imensa,tantaque"suaanarquia,discutívelpoliticamente,talvezrepre- senteem artea formamaiseficazde Revolução"Y Dissolução do popular no marxismo Dessaoriginaleambíguaadoçãoqueosanarquistasfazemda idéia de povo, o marxismo"ortodoxo"28negaráa validadetanto teóricacomopolítica.Há na reflexãomarxistaquedá contadaexpe- riênciado movimentooperáriodefinaisdo séculoXIX ecomeçosdo séculoXX um ponto que a distanciaespecialmentedo pensamento libertário:aconsciênciadanovidaderadicalqueo capitalismoproduz, convertidaem expressãodo saltoqualitativono modo de luta do movimentooperário.O proletariadosedefinecomoclasseexclusiva- mente pela contradiçãoantagônicaque a constitui no plano das relaçõesde produção:o trabalhofrenteao capital.Daí que não se poderá falar de classetrabalhadorasenãono capitalismo,nem de movimentooperárioantesdaapariçãodagrandeindústria.A explica- çãodaopressãoeaestratégiadalutasesituamassimemumsóeúnico plano:o econômico,o daprodução.Todos osdemaisplanosou níveis 36 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE ou dimensõesdo socialseorganizame adquiremseusentidoa partir dasrelaçõesdeprodução.E todaconcepçãodelutasocialquenãose centreaí,quenãopartadessecentronemaelesedirija,émistificadora c enganosa,desviaeobstaculiza.A certezateóricaeaclaridadepolítica sereforçarãomutuamente,já queo queo marxismoaspiraa transbor- dar os limites do pensamentoe se apresentacomo o movimento mesmoda história,feito consciênciana classecapazde realizarseu sentido.29Frenteà multiplicidadedeníveise planosde luta, frenteà "ambigüidade"políticaemquesemoviamosanarquistas,o marxismo possuíaunidadedecritérioeumacréscimodeclaridadequevinhaem última análisea sujeitara experiênciado movimento- que era o primordialentreosanarquistas- à análise-confrontaçãodasituação com a doutrina.O componenteracionalistarompiadefinitivamente comosresíduosderomanticismoquearrastavamoslibertários,eque lhes impossibilitavampensara especificidadedo políticocomo um terrenodemarcáveleseparado,aquelejustamenteemqueerapensável c efetuávela respostaà dominaçãoeconômica.Nessecontextoteórico a idéiade povonão poderiaresultarsenãoretóricae perigosa,e em Iermoshegelianossuperada. Que implicou todavia,quaisforamos custosdessasupera- ~:;l0?No planomaisvisíveleexterioro fatodequedurantemuitosanos o apelo ao conceitode povo ficaráreservadoà direita política e adjacências.Já desdealgunsanosa questão,contudo,voltou a ser propostaa partir da esquerda.Na Europa, atravésda reescritada história do movimento operário que, como no caso de E. P. Thompson,3opropõeexplicitamentea impossibilidadehistóricade separartaxativamentealutaoperáriadas"lutasplebéias",demodoque f:tzera história da classeoperáriaimplica necessariamentefazer a ilistóriadaculturapopular.Ou emA experiênciadomovimentooperá- rio, deCastoriadis,emquesemapelarexplicitamenteparao conceito de popularseefetuacontudoumareelaboraçãodo conceitode pro- letariadoquefazentrarnareflexãonãopoucodoqueaquelesignificava 37 DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES no pensamentoanarquistade finaisde século.Na AméricaLatina a questãodo povoé retomadacomforçanosúltimosanosligadatanto a umareleituradosmovimentospopulistasquantoà revalorizaçãoda culturano interiordos projetosde transformaçãodemocrática.31 Em linhas gerais o que começa a ser proposto como impensável,apartirdanegaçãoefetuadapelomarxismoortodoxodos conceitosde povo, é em primeiro lugar essaoutra "determinação objetiva",esseoutropólo dacontradiçãodominanteque,segundoE. Laclau,sesituanão no planodasrelaçõesde produção,masno das formaçõessociais,equeseconstitui"no antagonismoqueopõeo povo aoblocono poder".32Esseantagonismodálugaraum tipo específico deluta,aluta"popular-democrática".Comentandoo texrodeLaclau, E. de Ipola particularizao terrenoe ascaracterísticasdessaluta. Seu lugar de exercíciose'situa predominantementeno ideológicoe no político:nainterpretação-constituiçãodossujeitospolíticos.Seuscon- teúdoshistóricossãoaomesmotempomaisconcretos- já quevariam segundoasépocaseassituações- e maisgeraisqueosconteúdosda lutadeclasses,poispossuemumacontinuidadehistóricaqueseexpres- sa "na persistênciadastradiçõespopularesfrenteàdescontinuidade que caracterizaas estruturasde classe",33Ainda que "superada",a questãodo popularnãotemdeixadosemdúvidadeteruma'represen- tação no marxismo. Uma análise particularmentelúcida dessa representaçãotem sido realizadapor O. Sunkel.Duas seriamsuas linhasdeforça:umaidéiadopolitizável naqualnãocabemmaisatores popularesqueà classetrabalhadora,nem maisconflitosque os que provêmdo choqueentrecapitale trabalho,nemmaisespaçosqueos da fábricaedo sindicato;eumavisãoheróicadapolítica,masnãono sentido dos românticos, e sim deixando de fora o mundo da cotidianidadee da subjetividade. A partirdaí seproduzumaduplaoperaçãode negação,ou melhor,estaseconfiguraemdoismodosdeoperação:anão-represen- taçãoe a repressão.O popular não-representado"seconstituicomoo 38 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE conjuntodeatores,espaçoseconflitosquesãoaceitossocialmentemas quenãosãointerpeladospelospartidospolíticosdeesquerda".34Sur- gemassimatorescomoamulher,o jovem,osaposentados,osinválidos enquantoportadoresdereivindicaçõesespecíficas;espaçoscomoacasa, asrelaçõesfamiliares,o segurosocial,o hospital,etc.E um segundo tipodepopularnãorepresentado,constituídopelastradiçõesculturais: práticassimbólicasdareligiosidadepopular,formasdeconhecimento oriundasde suaexperiência,comoa medicina,a cosmovisãomágica ou asabedoriapoética,todoo campodaspráticasfestivas,asromarias, aslendase, por último, o mundo dasculturasindígenas. Opopular reprimido"seconstituicomoo conjuntodeatores, espaçose conflitosquetêmsido condenadosa subsistiràsmargensdo social,sujeitosa umacondenaçãoéticae política".35Atorescomo as prostitutas,oshomossexuais,osal~ólatras,osdrogados,osdelinqüen- tesetc.;espaçoscomoosreformatórios,osprostíbulos,oscárceres,os lugaresde espetáculosnoturnosetc. Mas a negaçãodo popularnãoé só temática,nãoselimita adesconhecerou condenarum determinadotipo detemasou proble- mas,masrevelaa dificuldadeprofundado marxismoparapensara questãoda pluralidadede matrizesculturais,a alteridadecultural. Reduzidajá em Marx ao problemados modos pré-capitalistasde produção,cujoparadigmaestariano "mododeproduçãoasiático"- reduçãoqueR. Bahronãoduvidaemcolocarcomoum problemade ctnocentrism036-, aquestãoperdeseusentidoeaperspectivateórica, quandose introduz, ficaráancoradano evolucionismoprimário de Morgan.Certo queháemLenin umareferênciaexplícitaàquestãoa propósitoda análiseda formaçãosocialsoviética,na qual distingue limaculturadominanteburguesa,algumasculturasdominadas- as do campesinatotradicional-, e"elementosdeumaculturademocrá- t ica socialista"no proletariado.37Mas o afã de referire explicara diferençaculturalpela diferençade classeimpediráde se pensara l'specificidadedosconflitosquearticulaaculturaedosmodosdeluta 39 ) DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES quea partirdaí seproduzem;"o papeldasidentidadessocioculturais como forçasmateriaisno desenvolvimento'dahistória".38E portanto suacapacidadedeconverterem-seemmatrizesconstitutivasdesujeitos sociaise políticos,tantono intercâmbioou no enfrentamentoentre formaçõessociaisdiferentescomono interiordeumaformaçãosocial. Em últimainstância,trata-seda impossibilidadede remetertodosos conflitos a uma só contradiçãoe de analisá-losa partir de uma só lógica:alógicainternaàlutadeclasses.O quenãosignificaquealuta de classesnãoatravesse,e emdeterminadoscasosarticule,asoutras. O problemaé pensá-Iacomoexpressãode umapretendida"unidade dahistória".ParaMarx issonãooferecedúvida,eo livro I d'O Capital afirma,precisamenteparajustificaradestruiçãodasociedadeatrasada: "O capitalismoindustrialfundaahistóriamundialaofazercadanação ecadaindivíduoedependentes,paraasatisfaçãodesuas'necessidades, do mundo inteiro".Mas a unificaçãoimpostapelocapitalnãopode todaviaescaparà rupturadaunidadedesentido.O capitalismopode destruirculturasmasnãopodeesgotara verdadehistóricaqueexiste nelas.E o marxismonãoescapaa essalógicaquandopretendepensar associedades"primitivas"dopassadoou asoutrasculturasdo presente a partir de uma particularconfiguraçãoda vida social erigidaem modelo.Paraum etnólogocomoP. Clastres,essa"pretensão"a ditar a verdadede todasasformaçõessociaisquebalizama histórialevou o marxismoa "reduzir-sea si mesmoreduzindoa espessurado social a um só parâmetro",pois com essa medidao que se produz é "a supressãopuraesimplesdasociedadeprimitivacomosociedadeespe- cífica".39Estudandoo tratamentoquea estéticamarxistadá àsartes plásticasdasculturasdominadas,Mirko Lauerexplicitaasduasope- raçõesem que se traduzo desconhecimentoda alteridadecultural: "indiferençageneralizada"frenteà especificidadedasculturasmargi- nais, e "incapacidadepara apreenderessasculturasem seu duplo caráterdedominadasedepossuidorasdeumaexistênciapositivaaser desenvolvida".40 40 POVO E MASSA NA CU!. TURA: OS MARCOS DO DEBATE Uma questãomaisgeral,masqueestáprofundamenteligada à "negação"do popularno marxismo:a equiparaçãoentreo conceito de culturae o de ideologia.Refiro-memaisuma vezao marxismo ortodoxo, a esseque tem desconhecidoou deformadoo conceito gramscianodehegemonia"recuperando-o"no interiorde umacon- cepçãoquecontinuasendodominante.Foi no debatedosanos3041 'que começarama se fazerpatenteso significadoe os efeitosdessa equiparação.A impossibilidadede assumire dar contada complexi- dadeedariquezaculturaldessemomentosematerializaránatendência a idealizara "culturaproletária"42e a encararcomo decadentea pro- duçãoculturaldasvanguardas.A críticadessaequiparaçãotemhojejá bemdelimitadosos impasses,tantoo quesesituana predominância do sentidonegativo- falsificaçãoda realidade- sobreos outros sentidose efeitosda ideologia- concepçãodemundo,interpelação dossujeitos43- comoo queresultadepensarasrelaçõesdeprodução comoum espaçoexterioraosprocessosde constituiçãodo sentido.44 Por issomeparecefundamentalretomaraquestãoapartirdasrelações entreculturae modernidade.Como demonstrouRezsler,a teseda decadênciadaartemodernanãofalasódaestreitezadeummarxismo vulgar,masde um impassede fundo na teoriamarxistaortodoxa. Claro que a argumentaçãode Idanov não é a de Lukács, mas o significadodateseeosefeitospolíticosforamosmesmos.Em ambos ~*' o quesecondenacomoa-socialpor serindividualista,ou anti-social por serburguês,é o experimentalismo:acapacidadedeexperimentare a partir daí questionaras "pretensõesde realidade"que encobriao realismo.Realismoqueéassumidocomoo gostoprofundoeo modo deexpressãodasclassespopulares.O paradoxotocafundo:ainvocação do povo é só paraopor o conservadorismode seugosto,"seubom sentido",à revoluçãoqueestátransformandoa arte.E a continuidade que se reclamacom o passadoé "a continuidadecom os valores culturaisda épocaburguesasolapadospelosmovimentosmodernis- tas".45Apela-seao povo no sentidomaispopulistae maisnegativa- 41 DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES menteromântico:paraexaltarcomocritériosbásicosda "verdadeira" obradearteasimplicidadeecompreensibilidadeporpartedasmassas. Em outronívelcertamente,masemumadireçãobempróxima,acha- seacondenaçãoquefazLukácsdamodernidadepor dissolvera forma e misturar,confundiros gêneros.Os queestãopróximosda apocalí- ptica e conservadorateoriada decadênciaculturalna sociedadede massas,quevamosestudaradiante,configuramumaestranhacoinci- dência. 42 CAPíTULO 2 NEM POVO NEM CLASSES: A SOCIEDADE DE MASSAS A idéiadeuma"sociedadedemassas"é bemmaisvelhado que costumamcontaros manuaisparaestudiososda comunicação. Obstinadosemfazerda tecnologiaa causanecessáriae suficienteda nova sociedade- e decertoda novacultura-, a maioriadesses manuaiscolocao surgimentoda teoriada sociedadede massasentre osanos30/40,desconhecendoasmatrizeshistóricas,sociaisepolíticas de um conceitoque em 1930tinha já quaseum séculode vida, e pretendendocompreendera relaçãomassas/culturasema maismíni- ma perspectivahistóricasobreo surgimentosocialdasmassas.Para começara contaressahistória,queé a únicamaneiradefazerfrente à fascinaçãoproduzidapelo discursodostecnólogosdamediaçãode massa,talvezsejaboaumaimagem:o acionamentoduranteo século XIX da teoriadasociedade-massaé o de um movimentoquevai do j medoà decepçãoe daí ao pessimismo,masconservandoo asco.Em seuponto departida- a desencantadareflexãode liberaisfranceses einglesesno convulsivoperíodopós-napoleônicoquevaidarestaura- çãoà Revoluçãode 1848- fica bem difícil separaro que há de decepçãopelocaossocialquetemtrazidoo "progresso"do medodas perigosasmassasqueconformamasclassestrabalhadoras.46 Até 1835começaa gerar-seumaconcepçãonovado papel e do lugar dasmultidõesna sociedade,concepçãoque guardasem dúvida,emsuasdobras,rastrosevidentesdo "medodasturbas"e do desprezoqueasminoriasaristocráticassentempelo "sórdidopovo". Os efeitosda industrializaçãocapitalistasobreo quadrode vida das classespopularessãovisíveis.E vãomaislongedo queasburguesias talvezesperassem.É todaatramasocialquesevêafetada,transbordada DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÓES emseuleitopormovimentosdemassasquepõememperigo"ospilares da civilização".As mudançasseproduziamdeformaque,"à medida que as técnicaseram mais racionaise as riquezasmateriaismais abundantes,asrelaçõessociaiserammaisirracionaise a culturado povo,maispobre(...). Em meadosdo séculoXIX autopiaprogressista já sehaviaconvertidoem umaideologia.Era umainterpretaçãodo mundo emevidentecontradiçãocomo estadorealdasociedade"YE então,junto aosnovosmodosdecontroledosmovimentospopulares seporáemmarchaum movimentointelectualquea partirda direita políticatratadecompreender,dedotardesentidoo queestáaconte- cendo.A teoriasobreasnovasrelaçõesdasmassascom a sociedade constituiráum dospivôsfundamentaisda racionalizaçãocom quese recompõea hegemoniae sereadequao papelde umaburguesiaque, de revolucionária,passanessemomentoa controlare frearqualquer revolução.O quenãoimplicadenenhummodoainvocaçãodo velho fantasmadateoriaconspirativa,pois"ateoriadasociedade-massatem fontesdiferenteseumapaternidademistacompostadeliberaisdescon- tentes e conservadoresnostálgicos, além de alguns socialistas desiludidose uns tantosreacionáriosabertos".48 A DESCOBERTA POLíTICA DA MULTIDÃO A novavisãosobrea relaçãosociedade/massasencontrano pensamentode Tocqueville49seuprimeiroesboçode conjunto. Se antessituavam-sefora, comoturbasqueameaçamcomsuabarbáriea "sociedade",asmassasseencontramagoradentro:dissolvendoo tecido das relaçõesde poder, erodindo a cultura, desintegrandoa velha ordem.Estãosetransformandodehordagregáriae informeemmul- tidão urbana,transformaçãoque,emborasejapercebidaem ligação com os processosde industrialização,é atribuídaantesde tudo ao igualitarismosocial,no qualsevêogermedodespotismodasmaiorias. Trocando em miúdos:Tocquevilleolha a emergênciadas massassemnostalgia,inclusiveconseguepercebercomnitidezquenela 44 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE resideumachavedo início dademocraciamoderna.lv1asademocracia de massasportaemsi mesmao princípiode suaprópriadestruição. Se democráticaé uma sociedadena qual desaparecemas antigas distinçõesde castas,categoriase classes,e na qualqualquerofício ou dignidadeé acessívela todos, uma sociedadeassimnão pode não relegara liberdadedos cidadãose a independênciaindividuala um planosecundário:o primeiroocuparásempreavontadedasmaiorias. E dessemodoo quevematerverdadeiraimportâncianãoéaqueleem quehá razãoevirtude,masaquelequeéqueridopelamaioria,istoé: o queseimpõeunicamentepelaquantidadedepessoas.Dessamaneira o queconstituio princípiomodernodo poderlegítimoacabarálegi- timando a maior das tiranias.A quem poderáapelar,pergunta-se Tocqueville,umhomemou umgrupoquesofreinjustiça?,eresponde: "àopiniãopública?Não, poisestaconfiguraavontadedamaioria.Ao corpolegislativo?Não, esterepresentaamaioriaeaobedececegamen- te.Ao poderexecutivo?Não, o executivoé nomeadopelamaioriae a servecomo instrumentopassivo".50 O quefazmaisopressivoessepoderadquiridopelamaioria, équesobreelaTocquevilleprojetaaimagemdeumamassaignorante, semmoderação,quesacrificapermanentementealiberdadeemaltares daigualdadeesubordinaqualquercoisaaobem-estar.Estamosdiante de uma sociedadecompostapor "uma enormemassade pessoas semelhanteseiguais,queincansavelmentegiramsobresimesmascom o objetivode poder dar-seos pequenosprazeresvulgarescom que satisfazemsuasalmas"Y É a sociedadedemocráticaquevê gerar-se rapidamenteenaformamaisclaranosEstadosUnidos:essanaçãona qualjá nãoháprofissãoemquenãosetrabalhepor dinheiro,naqual "atéo presidentetrabalhapor umsalário(...) quedáatodosum arde família".E na qualaAdministraçãotendea invadi-Iotodo, todasas atividadesdavida,uniformizandoasmaneirasdevivereconcentrando a gestãono vértice. A justificaçãodo pessimismosocialfaz dessediscursouma misturaquaseinextricáveldeumacertaanálisedasnovascontradições 45 DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES coma expressãodo desencantodo aristocrata.Na linhaabertapor La Boetieem Da servidãovoluntdria, na qual já no séculoXVI o pessi- mismoculturalemtermosdefracassomoraltraçavaumaradiografia desoladoradacumplicidadedo povocom a tirania,Tocquevillepro- põequeaconvergênciadamecanizaçãointroduzidapelaindústriacom a"enfermidadedemocrática"conduzeminevitavelmenteà auto-degra- daçãodasociedade.Um estudiosoatualdo temapensaqueo queesse esquecidoautordo séculoXIX estavafazendoerapropor profetica- mente "a deterioraçãoda qualidadeda açãoe da experiêncianas sociedadesigualitárias",com o que Tocquevilleacabariasendoum "crítico utópicodo quehoje sechamao problemapós-revolucioná- rio".52Sem ir tão longe, o que de fato é necessárioreconhecerna reflexãodeTocquevilleé queelepropôsumaperguntafundamental sobreo sentidoda modernidade:pode-sesepararo movimentopela igualdadesocialepolíticadoprocessodehomogeneizaçãoeuniformi- zaçãocultural?Mas tal e como é propostaem seu momentopor Tocquevilleessacontradiçãoacabareveladoraantesdetudo do medo produzidopelasmudanças.Analisandoemboaparteosmesmosfatos masolhando-ossemessemedo,Engels,emAs condiçõesda classetraba- lhadora na Inglaterra, vê na massificaçãodas condiçõesde vida o processode homogeneizaçãoda exploraçãoa partir da qual se faz possíveluma consciênciacoletivada injustiçae da capacidadedas massastrabalhadorasparagerarumasociedadediferente.Daí que,por maislúcidoquesequeira,o conceitodemassaqueiniciasuatrajetória no pensamentodeTocquevilleracionalizatodaviao primeirogrande desencantodeumaburguesiaquevêemperigoumaordemsocialpor elaeparaelaorganizada.O qualnãoimplicadesconhecerquecomo nomedemassasedesignaaípelaprimeiravezummovimentoqueafeta aestruturaprofundadasociedade,aomesmotempoemqueéo nome comquesemistificaaexistênciaconflitivadaclassequeameaçaaquela ordem. Menosbeligerantementepolítico,edeempenhomaisfilosó- fico, o pensamentode StuartMill, já situadona segundametadedo 46 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE séculoXIX, continuae complementao de Tocqueville,elaborando umaconcepçãodo processosocial,na quala idéiademassaseafasta de umaimagemnegativado povoparapassara designara tendência da sociedadea converter-senumavastae dispersaagregaçãode indi- víduos isolados.De um lado a igualdadecivil pareceriapossibilitar umasociedademaisorgânica,masaoromper-seo tecidodasrelações hierarquizadaso queseproduzéumadesagregaçãosócompensadapela uniformização. Massaé então"a mediocridadecoletiva"quedomina culturalepoliticamente,"poisosgovernosseconvertememórgãodas tendênciase dos instintosdasmassas".53 A PSICOLOGIA DAS MUL TIDÓES Depois da Comuna de Paris, o estudoacercada relação massa/sociedadetomaumrumodescaradamenteconservador.Mas no último quarteldo séculoXIX as massas"se confundem"com um proletariadocujapresençaobscenadeslustrae entravao mundobur- guês.E entãoo pensamentoconservador,maisquecompreender,o quebuscaráa seguirserácontrolar.Em 1895,o mesmoanoem que os irmãos Lumiere põem em funcionamentoa máquinaque dará origemà primeiraartedemassas,o cinema,GustaveLe Bon publica Ia psychologiedesfoules,54o primeirointento"científico"parapensara irracionalidadedasmassas.Podemosmedira importânciadesselivro naressonânciaqueencontrarámesmoemFreud,queemPsicologiadas massase andlisedo euo situacomoo pontodepartidainevitávelpara suaprópria reflexão. L~Bonpartedeumaconstatação:acivilizaçãoindustrialnão é possívelsemaformaçãodemultidões,eo mododeexistênciadestas éa turbulência:um mododecomportamentono qualafloraà super- fície fazendo-sevisívela "almacoletiva"da massa. Mas queé umamassa?É umfenômenopsicológicopelo qual os indivíduos,por maisdiferenteque sejaseumodo de vida, suas ocupaçõesouseucaráter,"estãodotadosdeumaalmacoletivaquelhes 47 DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES fazcomportar-sedemaneiracompletamentedistintadecomoo faria cadaindivíduo isoladamente.Alma cuja formaçãoé possívelsó no descenso,na regressãoatéum estadoprimitivo,no qual as inibições moraisdesapareceme a afetividadee o instintopassama dominar, pondo a "massapsicológica"à mercêda sugestãoe do contágio. Primitivas,infantis,impulsivas,crédulas,irritáveis... asmassasseagi-o tam, violam leis,desconhecema autoridadee semeiama desordem ondequerqueapareçam.Sãoumaenergiamassemcontrole:e nãoé esseprecisamenteo ofício daciência?O psicólogosepropõeentãoo estudodo modo comoseproduza sugestionabilidadeda massapara assimpoderoperarsobreela.A chaveseencontrariana constituição dascrençasqueemsuaconfiguração"religiosa"permitemdetectaros doisdispositivosdeseufuncionamento:o mitoqueasuneeo líderque celebraos mitos. Le Bon nãoéumnostálgico,já nãoguardanenhumanostal- gia por outrostemposmelhores.Ao contrário,o que o assustanas massasé a espéciederetornoaopassadoobscurantistaqueelasrepre- sentam:o retornodassuperstições.E essatendênciaéidentificadapor Le Bonpuraesimplesmentecomo retrocessopolítico.A operaçãotem sua lógica. Reduzidosa "movimentosde massas",os movimentos políticosdasclassespopularessãoidentificadoscomcomportamentos irracionaisecaracterizadoscomorecaídasemestágios"primitivos".E a essalógica se devemafirmações"científicas"do calibredesta:o movimentosocialistaé essencialmenteinimigo da civilização,que pode se ler no seguintelivro de Le Bon, intitulado A psicologiado socialismo. DizíamosqueFreudapóiaseuestudodasmassassobreaobra de Le Bon, maselemesmoseencarregade marcarclaramentesuas distâncias.O quelhe interessouprofundamenteno estudodeLe Bon é a importânciaqueaí adquireo inconsciente.Mas, "paraLe Bon, o inconscientecontémantesde tudo os maisprofundoscaracteresda alma e da raça,o qual não é propriamenteobjeto da psicanálise. 48 POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE Reconhecemosdesdejá que o nódulo do eu, ao qual pertence'a herançaarcaica'da almahumana,é inconsciente,maspostulamos alémdissoa existênciado 'reprimidoinconscientemente'surgidode umapartedetalherança.Esteconceito'do reprimido'faltana teoria deLe Bon".55As duasdiferençasassinaladassãofundamentais.Rechaço à confusãodo inconscienteestudadopelapsicanálisecomessamemó- ria biológica da raça que de Le Bon nos conduz diretamenteà racionalizaçãopsicológicado nazismoou ao substancialismodos ar- quétiposjunguianos.O inconscienteestáconformadobasicamente pelo reprimido,queé o que,ao faltarna teoriadeLe Bon, induz ao segundodesacordoimportante:oqueacontecenamassatalveznãoseja tãoradicalmentediferentedoquesepassacomo indivíduo.Poiso que explodena massaestáno indivíduo,porémreprimido.O queequivale a dizerquea massanão estásubstancialmentefeitade outramatéria pior que a dos indivíduos.Mas com essaconcepçãoFreud estava arrebentando,nadamaisnadamenos,o substratodo pensamentoque racionalizao individualismoburguês.E o queapartirdaíficaránítido équea teoriaconservadorasobreasociedade-massanãoémaisquea outrafacedeumasóemesmateoria,aquefazdo indivíduoo sujeito e motor da história. O terceirodesacordoestárelacionadocoma obsessãode Le Bonpelafaltadelíderesnassociedadesmodernas,frenteaoqualFreud propõenãosóaestreitezaesuperficialidadedaconcepçãoqueLe Bon temdafiguraedafunçãodo líder,comotambémareduçãodo social quetodaessateoriasustenta."LeBonreduztodasassingularidadesdos fenômenossociaisa dois fatores:a sugestãorecíprocadosindivíduos eo prestígiodo caudilho".56 Com o quesefazmaisnítidaa lógicada operaçãoquedescrevíamosmaisatrás.A teoriadasociedadedemassas, tal e comoemergedasproposiçõesdeLe Bon, temnabaseanegação mesmadosocialcomoespaçodedominaçãoedeconflitos,espaçoquenos abre ao único modo de recuperaçãoda história sem pessimismos metafísicosnemnostalgias.E quepermitecompreendero comporta- 49 ",'J' DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES mentodasmassasnãosóemsuadimensãopsicológica,mas- escân- dalo!- emseufazercultural.PoissegundoFreudnasmassashá não só instintos,masprodução:"Tambéma almacoletivaé capazde dar vida a criaçõesespirituaisde umaordemgenialcomoo provam,em primeirolugar,o idioma,edepoisoscantospopulares,o folcloreetc. Serianecessário,alémdisso,precisarquantodevemo pensadore o poetaaosestímulosda massa,e se sãorealmentealgo maisque os aperfeiçoadoresde um laboranímicono qualos demaistêmcolabo- rado simultaneamente".57 Wilhelm Reich continuaráessadesmistificaçãoda teoria sobreasmassas.Em umaobraescritanão a posteriori,masempleno 1934,58o autor desmontaa operaçãode "intoxicaçãopsíquicadas massas"que,iniciadaemLe Bonesuaidentificaçãoda"almacoletiva" com o inconscienteda raça,encontrarásuaplenitude"na fidelidade aosangueeà terra"daideologianacional-socialista.Reichtransforma as perguntaspsicológicasde Freud - que é uma massa?em que consistea modificaçãopsíquicaque impõe ao indivíduo? - nas perguntassociológicasque, segundoele afirma, fez pessoalmentea Freudem1937:"Como épossívelqueumHitler ouumDjungashsvili [Stalin]possamreinarcomoamossobreoitocentosmilhõesde indi- víduos?Como é possívelisso?".59Perguntasquenãosãorespondidas nem a partir de umapsicologiado líder, do caudilhoe seucarisma, nem a partirdasmaquinaçõesdoscapitalistasalemães.Porque "não existenenhumprocessosócio-econômicodealgumaimportânciahis- tóricaquenãoestejaancoradonaestruturapsíquicadasmassase que nãosetenhamanifestadoatravésdeum comportamentodessasmas- sas".60E entãoo verdadeiroproblemaqueumapsicologiadasmassas deveenfrentaré "o problemadasubmissãodo homemà autoridade", de suadegradação,já que"ondequerquegruposhumanose frações dasclassesoprimidaslutem 'pelopãoe pelaliberdade',o grupo das massassemantémà margeme reza,ou simplesmenteluta pelaliber- dadeno bandode seusopressores".61 50 li J! li , POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE Com a viradado século,aparecepublicadoum livro que, retomandoasquestõesdeLe Bon, daráa elasumainflexãodiferente, inaugurandoa "psicologiasocial"com que o funcionalismonorte- americano dos anos 30-40 iria temperara primeira teoria da comunicação.Trata-sedeL 'Opinion etIa Foule,62noqualaquestãodas crençasé objetode um deslocamentofundamental:em lugarde ter como espaçode compreensãode seuestatutosocialo religioso,as crençasserecolocamno espaçoda comunicação,desuacirculaçãona imprensa.A massaé convertidaempúblico e ascrenças,em opinião. O novo objetodeestudoserápoiso públicocomoefeitopsicológico da difusãode opinião, isto é: aquelacoletividade"cujaadesãoé só mental".É a únicapossívelem umasociedadereduzidaa massa,a conglomeradodeindivíduosisoladosedispersos.Mas comoseproduz essaadesão?A respostadeTarderevelasuasdívidascomLe Bon: por sugestão.Só queagoraessasugestãoé "a distância".No pensamento de Tarde faz-seespecialmenteclaraa inadequaçãoentreo novo do problemaque sebuscapensare o "velho"dascategoriasem que é formulado. E isso apesarda renovaçãodo léxico. Sem dúvida, o relacionamentopostoentremassaepúbliconosinteressaenormemen- te,já que,maisalémdaquiloqueesseautortematiza,apontaatépara a novasituaçãoda massana cultura:a progressivatransformaçãodo ativo - ruidosoe agitado- públicopopulardasfeirase dosteatros nopassivopúblicodeumaculturaconvertidaemespetáculopara"uma massasilenciosae assustada".63 Formuladaem termosdas idealidadesde Max Weber, é desenvolvidaporFerdinandTõnies uma reflexãoque combinaele- mentosdasociologiadeTocquevillecomoutrosdapsicologiaproposta porLe Bon.64ParaTõniesamudançaquesignificaapresençamoderna dasmassasdeveserpensadaa partirda oposiçãode dois "tipos" de coletividade:a comunidadee a sociedade(associação).A comunidade sedefinepelaunidadedopensamentoedaemoção,pelapredominân- cia dos laços estreitose concretose das relaçõesde solidariedade, 51 DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES lealdadee identidadecoletiva.A "sociedade",pelo contrário, está caracterizadapelaseparaçãoentremeiosefins,compredominânciada razãomanipulatóriaeaausênciaderelaçõesidentificatóriasdo grupo, com a conseguinteprevalênciado individualismoe a meraagregação passageira.A faltadelaçosqueverdadeiramenteaunemserácompen- sadapelacompetênciaepelocontrole.A propostadeTünies,embora formuladaemtermosquepretendemdescreversemvalorar,nãopôde escaparàcargadepessimismoquesuas"idealizações"arrastam,eapar- tir do qualserálido pelamaioriadosautoresqueseocupamdo tema. Metafísica do homem-massa Os acontecimentosquese"precipitam"noprimeiroterçodo séculoXX vãoconduziro pensamentosobreasociedadeaoparoxismo. PrimeiraGuerraMundial, RevoluçãoSoviética,surgimentoe avanço do fascismo,tudo vemcorroborarna direitaliberalou conservadora suasensaçãodedesastredefinitivoe exacerbaro pessimismocultural. Dois livrosrecolhemesintetizamessaexacerbação,convertendo-seem "clássicos"empoucosanosdepublicados:A rebeliãodasmassas,deJosé Ortegay Gasset,e A decadênciado Ocidente,de OswaldSpengler.65 Propostaumasociologia(Tocqueville)eumapsicologia(Le Bon, Tarde), já não faltavasenãoo saltona metafísica.É o queleva a caboOrtega,com suateoriado homem-massa,na qual, como ele mesmoexplicaemumalinguagemtãopoucometafísicacomoa sua, trata-sedeir "d<ipele"dessehomemasuas"entranhas".O quesignifica caminhardo fatosocialdasaglomerações--"amultidãoimediatamen- te se fez visível.Antes, se existia,passavadesapercebida,ocupavao fundo do cenáriosocial;agoraseadiantouàsbaterias,é elao perso- nagemprincipal"66- atéa dissecaçãode suaalma:mediocridadee especialização.O exterior,ou seja,a história,estáformadopelocres- cimento demográfico e pela técnica,que têm seu lado bom "no crescimentodavida"- avidamédiasemovea umaalturasuperior, pois tem-seampliadoo repertóriode possibilidadesda maioria- e 52 li 1.1·.'i il I, "",I t' ~ .,., POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE seulado mauna aglomeração- "essainvasãopelasmassasde todos os lugares,inclusivedos reservadosàs minoriascriativas"- e na especializaçãoque desalojade cadahomem de ciênciaa "cultura integral".O interior nos é descritoatravésde uma longae sinuosa viagemaocoraçãodo homem-meio,do homem-massa,no qualsóhá vulgaridadeeconformismo.É comoseosdetritosdohomemocidental tivessemtomadoseucoração.No final daviagemOrteganos espera com umafórmulaqueo resumeinteiro:"A rebeliãodasmassasé a mesmacoisaqueRathenauchamavaa invasãoverticaldosbárbaroi'.67 Ou seja,o retornodaqueladefinitivaIdadeMédia quenãoé a histó- rica,poisnãoestáno passado,masno futuro-presenteeseusbárbaros invadindo-nosagoraverticalmente,querdizer, debaixopara cima. Creioqueéo momentoderecordaraimagemcomqueabria epretendiasintetizaro sentidodo movimentoquesubjazaolongode todoo desenvolvimentodestateoria:do medoaodesencantoconser- vandoo asco.E por maisqueOrteganosrepitaqueo homem-massa não pertencea uma classe,mashabitatodas,sua referênciasócio- históricaseachanosdebaixo,dadoqueelessão,naatrasadaEspanha do começodo século,osqueconformamamaioria,amassaobscena, amultidãoquenessesanosjustamenterealizadiaapósdiainsurreições, levantamentosatravésdosquaissealça- verticalmente!- contraa espessacapado feudalismopolíticoe econômicoenrijecido,e invade os sagradose aristocráticosespaçosda cultura.Frenteà insurreição popular,quenosanos30alcança,tantonopolíticocomonocultural,68 o momentomaisaltoefecundodaEspanhamoderna,Ortegaescreve um livro comprólogoparafranceses,epílogoparainglesese cheiode piscadelasdeolhosparaa filosofiaalemã,masdo qualestáprofunda- menteausenteaprópriareferênciahistóricaespanhola.Há umponto, semdúvida, no qual Ortegatoca a história,e sãoas referênciasà cumplicidadedasmassascom o Estadofascistae suanecessidadede segurança.Mas aindaaí acríticaseresolveemumaanálisemaismoral que política: o Estadoaparecesemraíz no econômicoe o conflito deslizaparao cultural.Vejamo-Iomaisde perto. 53 DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES A relaçãomassa/culturaé tematizadapor Ortega de um modo especialem A desumanizaçãoda arte,masos dois traços,que paraeledefinememprofundidadeacultura,formampartesubstancial da argumentaçãoquesedesdobraem A rebeliãodasmassas.Um: a "culturaintegral"definidapor oposiçãoà ciênciae à técnica,reafir- mandoaquelehumanismoquedelimitaa culturapor suadiferença com a civilização. Propõe-se uma teoria para compreender a modernidade,maso espaçodo quesepensacomoculturaapresenta- seseparadodo trabalhocientíficoe técnico,e aferradoa umamistura do clássicocultivodo espiritualcomelementosda éticaburguesado esforçoe do autocontrole.Dois: a culturaé antesde tudo normas. Quantomaisprecisa,quantomaisdefinidaanorma,maioréacultura. E com esseconceitose"enfoca"a artequesefaznessetempo! Qual éentãoparaOrtegao tipo derelaçãoqueamassatem com a cultura?Paradizê-Iosemrodeios:nãosó a massaé incapazde cultura- issovemsendodito dopovoháséculos- senãoqueo que salvaa artemoderna,amonstruosaartequefazemDebussy,Cézanne ou Mallarmé, é que serveparapôr a descobertoessaincapacidade radicaldasmassasagora,quandoelaspretendemesecrêemcapazesde tudo, atéda cultura.O melhordessaarteé quedesmascaracultural- menteasmassas:frentea elanãopodemfingir quegozam,tantolhes aborreceeirrita.Culturacriativa,anovaarteéavingançadaminoria que,em meioda igualitarismosociale da massificaçãocultural,nos tornapatenteque aindahá "classes':E nessadistinçãoque separaé onde residepataOrtegaa possibilidademesmada sobrevivênciada cultura. A artemodernaresultasim essencialmenteimpopularpor- queseerguecontraaspretensões- osdireitos- comquesecrêem as massas,produzindo sua incomprensãoou repugnância,incom- preensãoa queo artistarespondeexacerbandosuahostilidadee sua distância.Com o quearelaçãoentrearteesociedadeserompe.E des- integradaa artenãopodenãodes-humanizar-se:a figuradesbota,os 54 I, "~ ~ ,~ ~: POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE gênerosseconfundem,a harmoniaseperde.Mas tambémo quese ganhaémuito,pensaOrtega,porquenestaprovadefogoqueatravessa a artesepurificade todo o magmadesentimentalismoe melodrama queaindaarrastava.Debussydesumanizaamúsicamas"nospossibilita escutarmúsicasem desfalecimentonem lágrimas".No fundo, ao separar-sedavida,o quesepassacomaarteéqueseencontraconsigo mesma:apoesiasefazpurametáforaeapinturapuraformaecor.Ante a ameaçaquevemda barbárievertical,antea ameaçaqueatormenta por dentro,a culturaredescobresuasessências.E o paradoxotocará fundo então.Ao defendera novaarte,Ortegachegaa seuponto de máximoenfrentamentocomo fascismo."Hitler, Goebbelseosporta- vozesda cultura'nazificada'atribuemao 'homem-nazi'o reflexode- fensivotão claramentediagnosticadopor Ortega".69 Porqueparaos nazisa artemodernaé degeneração,à qual só sepodefazerfrente resgatandoasessênciasdaverdadeiraartequepermanecena tradição popular.O modernonãoseriaarteporquerenegasuaorigemétnica e suarelaçãocomo nacional.SeucosmopolitismoéparaGoebbelso maisclarosinalde suadecomposição. Mas o paradoxodeveser lido. Tanto o aristocratismode Ortega,paraquema verdadeúltimada desumanizadaartemoderna resideem humilharaspretensõesdasmassase demonstrar-Ihessua insuperávelvulgaridade,como o nauseabundopopulismonazi com sua defesade uma artepara o "autêntico"povo-raça,mascarame mistificamos processoshistóricosde transformaçãoda culturae os conflitos e contradiçõesque essatransformaçãoarticula.O mérito indubitávelde Ortegaestáem nos ter feito compreendero graude opacidadeeambigüidadepolíticacomqueserevesteemnossoséculo
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