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Dos meios as mediacoes - Jesus Martin-Barbero

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_,-,I
Iv) 3::rc: f
Copyrightby ©EditorialGustavoGili. S.A.. Rosellón87-89.Barcelona,1987.
Título original
'- De losmediosa Iasmediaciones.Comunicación,culturae hegemonia
FichaCatalográficaelaboradapelaDivisão
deProcessamentoTécnico- SIBIfUFRJ
M 379m Martín-Barbero.Jesús
Dos meiosàsmediações:comunicação.culturae
hegemoniaI JesúsMartín-Barbero;PrefáciodeNéstor
GarcíaCanclini;TraduçãodeRonaldPolito e Sérgio
Alcides.Rio deJaneiro:EditoraUFRJ. 1997.
360p.; 15X 20.5cm
1.Comunicaçãodemassa2. Sociedadedemassa
, L Título
CDD 302.23
Para meuspais
e minhafilha alga
ISBN 85-7108-208-1
Capa
Tita Nigrí
Revisão
CecíliaMoreira
J osetteBabo
Maria Guimarães
Projeto Grdfico e
Editoração Eletrônica
EditotaUFRJ
UniversidadeFederaldo Rio deJaneiro
ForumdeCiênciaeCultura
EditoraUFRJ
Av. Pasteur.250 I sala106
Rio deJaneiro- RJ
CEP 22295-900
Te!': (021)295 1595r. 124a 127
Fax:(021)5423899
Apoio:
"b. Fundação Universitária1II José Bonirácio
J:
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c.oCI)
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O>O~ N..J <CCwC
I
Prefácio
Introdução
Capítulo 1
SUMÁRIO
PRIMEIRA PARTE
POVO E MASSA NA CULTURA:
OS MARCOS DO DEBATE
11
15
Afirmação e negaçãodo povo como sujeito 23
opovo-mito:românticosversusilustrados 23
Povoe classe:do anarquismoaomarxismo 31
Emergênciadopopularnosmovimentosanarquistas 32
Dissoluçãodopopularnomarxismo 36
Capítulo 2
Nem povo nem classes:a sociedadede massas 43
A descobertapolíticadamultidão
A psicologiadasmultidões
Metaflsicadohomem-massa
Antiteoria:a mediação-massacomocultura
Capítulo 3
Indústria Cultural: capitalismo e legitimação
BenjaminversusAdornoou o debatedefundo
Do lagosmercantilà artecomoestranhamento
44
47
52
57
63
64
65
A experiênciae a técnicacomomediaçõesdas
massascoma cultura
Da críticaà crise
Capítulo 4
Redescobrindoo povo: a cultura como
espaço de hegemonia
opovona outrahistória
Cultura,hegemoniae cotidianidade
SEGUNDA PARTE
MATRIZES HISTÓRICAS DA
MEDIAÇÃO DE MASSA
Capítulo 1
O longo processo de enculturação
Estado-Naçãoe os dispositivosdehegemonia
Centralizaçãopolítica e unificaçãocultural
Rupturasno sentidode tempo
Transformaçõesnosmodosdo saber
Culturapolíticada resistênciapopular
A dimensãopolítica da economia
A dimensãosimbólicadaslutas
Capítulo 2
Do folclore ao popular
Uma literaturaentreo orale o escrito
O quedispõeo mercado
O quedispõeopovo
71
80
90
91
104
127
127
128
130
132
135
136
138
142
142
143
148
f
i
"
Uma iconografiaparausosplebeus
Melodrama:o grandeespetáculopopular
Entre o circoe opalco
Estrutura dramdticae operaçãosimbólica
Capítulo 3
Das massasà massa
Inversãodesentidoe sentidosdainversão
Memórianarrativae indústriacultural
O aparecimentodo meio
Dispositivosde enunciação
Dimensõesdo enunciado
Formatoe símbolo
Continuidadee rupturasnaeradosmeios
TERCEIRA PARTE
MODERNIDADE E MEDIAÇÃO DE
MASSA NA AMÉRICA LATINA
Capítulo 1
Os processos:dos nacionalismos
às transnacionais
Uma diferençaquenãoserestringeaoatraso
O descompassoentreEstadoe Nação
Massificação,movimentossociaise populismo
Os meiosmassivosna formaçãodasculturasnacionais
Um cinemaà imagemde umpovo
Do circocriolloao radioteatro
152
157
159
162
167
167
169
171
173
185
189
191
213
213
215
220
228
231
234
A legitimaçãourbana da músicanegra
O nascimentode uma imprensapopular de massas
Desenvolvimentismoe transnacionalização
O novosentidoda massificação
A não-contemporaneidadeentretecnologiase usos
Capítulo 2
Os métodos:dos meios às mediações
Críticadarazãodualista,ou asmestiçagens
quenosconstituem
A impossívelpureza do indígena
A misturadepovo e massano urbano
A comunicaçãoa partirdacultura
O que nemo ideologismonemo injórmacionismo
permitempensar
Cultura epolítica: as mediaçõesconstitutivas
Mapanoturnoparaexploraro novocampo
Sobrea cotidianidade,o consumoe a leitura
A televisãoa partir dasmediações
Alguns sinaisde identidadereconhecíveisno melodrama
O popularquenosinterpelaa partirdo massivo
Bibliografia
238
242
247
248
252
258
258
260
265
277
278
282
287
288
291
303
308
335
PREFÁCIO
Se achamosque os livrosmaisnecessáriossãoos nãocom-
placentes,esteéumdosindispensáveisnosanosnoventa.Ao sepropor
a entenderessasindústriasdasrespostase da consolaçãoque sãoos
meiosdemassa,nãos6asassediacomperguntaseperguntas;dedica-
sea trocarasinterrogaçõesquehaviamorganizadoosestudossobrea
comunicaçãonosanosprecedentes.
Os primeirosinvestigadoresdosmeiosbuscavamsabercomo
elesfazemparamanipularsuasaudiências.A súbitaexpansãodo rádio,
do cinemae da televisãolevoua crerquesubstituíamastradições,as
crençasesolidariedadeshist6ricas,pornovasformasdecontrolesocial.
Estelivro seafastadetaissupostos.Com umavisãomenosingênuade
comosealteramassociedadesedoquefazemcomseupassadoquando
irrompemtecnologiasinovadoras,indagacomosefoi desenvolvendo
a massificaçãoantesque surgissemos meioseletrônicos:atravésda
escolae da igreja,da literaturadecordele do melodrama,daorgani-
zaçãomassivada produçãoindustriale do espaçourbano.
Ao estabelecerqueassociedadesmodernasforamtendoos
traçosatribuídosaosmeiosmuitoantesqueestesatuassem,desmoro-
naramvárioslugares-comunsdo aristocratismoe do populismo.A
cultura contemporâneanão pode desenvolver-sesem os públicos
massivos,nemanoçãodepovo-que nascecomopartedamassificação
social- podeserimaginadacomoumlugarautônomo.Nem acultura
de elite, nem a popular,há temposincorporadasao mercadoe à
comunicaçãoindustrializada,sãoredutosincontaminadosapartirdos
quaissepudesseconstruiroutramodernidadealheiaao carátermer-
cantileaosconflitosatuaispelahegemonia.Ao estudarareformulação
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES ..•
daauraartísticanagrandecidadeeoprocessodeformaçãodopopular
nasnovelasdefolhetim,na imprensaenatelevisão- comexplicações
inauguraissobreas transformaçõeseuropéiase latino-americanas-
ofereceumadasrefutaçõesteóricasmaisconsistentesàsilusõesromân-
ticas, ao reducionismo de tantos marxistase ao aristocratismo
frankfurtiano.
Paracumprirestesobjetivos,a obradeMartín-Barberoper-
correváriasdisciplinas.Dadoquedeslocaaanálisedosmeiosdemassa
atéas mediaçõessociais,não é só um textode comunicação.Bem
informadosobrea renovaçãoatualdosestudossociológicos,antropo-
lógicosepolíticos,pareceumlivroescritoparaconfundirosbibliotecá-
rios.Não estásituadoexclusivamenteemnenhumadessasdisciplinas,
porémservea todas,por exemplo,seuoriginalexameda~noçõesde
povoeclasse,decomosecomplexificamestascategor.iasnasociedade
de massae as alteraçõesque isto geranos estadosmodernos.Sua
explicaçãodecomoo rádioe o cinemacontribuíramparaunificaras
sociedadeslatino-americanaseconformaramaidéiamodernadenação
mostraquanto necessitamosdos estudosculturaispara entendera
política e aindaa economia.
Já Tocqueville,relembraMartín-Barbero,seperguntavaseé
possívelsepararo movimentopela igualdadesocial e política do
processode homogeneizàçãoe uniformizaçãocultural.A democrati"'
zaçãodassociedadescontemporâneassó é possívela partirda maior
circulaçãodebensemensagens.Estafacilidadedeacessonãogarante
queasmassascompreendamo quesepassa,nemquevivamepensem
melhor.A modernidade,e o contraditóriolugarquenelaocupamos
povos,sãomaiscomplicadosqueo quesupõemasconcepçõespeda-
gógicase voluntaristasdo humanismopolítico.
Não sãofreqüenteshojelivrostãoeruditosedesconstrutores
queaomesmotempocontinuemacreditandonapossívelemancipação
dos homens.Onde encontraratualmenteos argumentospara esse
otimismo?Martín-Barberoseafastado nativismoe do populismo,e
12
PREFÁCIO
consideraqueasesperançasnovasseenraízambemmaisnossetores
popularesurbanos.Nas "solidariedadesduradourasepersonalizadas"
da culturade bairroe dosgruposartísticos,nosgrafitese na música
jovem,nosmovimentosdemulheresedepopulaçõespobres,vêasfon-
tesde uma "institucionalidadenova,fortalecendoa sociedadecivil".
É possívelfazera essesgruposcríticassemelhantesàquelasdestinadas
aosmovimentospopularestradicionais,porquetambémreproduzem
estereótiposehierarquiasinjustasdaculturahegemônica.Todavia,o
conhecimentodeseushábitosdeconsumoeapropriaçãodasindústrias
culturais,assimcomodasformasprópriasde organizaçãoda cultura
cotidiana,são algunsdos caminhospara passardas respostasque
fracassaramàsperguntasquerenovemasciênciassociaiseaspolíticas
libertadoras.
NéstorGarcÍaCanclini
13
í
I
i
INTRODUÇÃO
oqueseencontraaquitrazaspegadasdeumlongopercurso.
Vinha eudafilosofiae,peloscaminhosdalinguagem,medepareicom
aaventuradacomunicação.E daheideggerianamoradadoserfui parar
commeusossosnachoça-faveladoshomens,feitadepau-a-piquemas
comtransmissoresderádioeantenasdetelevisão.Desdeentãotraba-
lho aqui, no campoda mediaçãode massa,de seusdispositivosde
produçãoeseusrituaisdeconsumo,seusaparatostecnológicosesuas
encenaçõesespetaculares,seuscódigosde montagem,depercepçãoe
reconhecimento.
Duranteum certotempoo trabalhoconsistiuem indagar
comonosmanipulaessediscursoqueatravésdosmeiosmassivosnos
faz suportara impostura,como a ideologiapenetraas mensagens
impondo-sea partirdaí a lógicada dominaçãoà comunicação.Per-
corri sociolingüÍsticasesemióticas,leveiacaboleiturasideológicasde
textose depráticas,e dei contadetudo issonum livro queintitulei,
semocultarasdúvidas,Comunicaçãomassiva:discursoepoder.Mas já
então- estoufalandodedezanosatrás- algunspesquisadorescome-
çarama suspeitardaquelaimagemdo processona qual não cabiam
maisfigurasalémdasestratégiasdo dominador, na qualtudo trans-
corria entre emissores-dominantese receptores-dominadossem o
menorindíciodeseduçãonemresistência,enaqual,pelaestruturada
mensagem,nãoatravessavamosconflitosnemascontradiçõesemuito
menosaslutas.Logopor essesanosalgonosestremeceua realidade-
por estaslatitudesosterremotosnãosãoinfreqüentes- tãofortemente
que trouxe à tona e tornou visívelo profundo desencontroentre
métodoesituação:tudoaquiloque,do modocomoaspessoasprodu-
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES •..
zemO sentidodesuavidaecomosecomunicameusamosmeios,não
cabiano esquema.Dito em outraspalavras:os processospolíticose
sociaisdessesanos-, regimesautoritáriosemquasetodaAméricado
Sul,diversaslutasdelibertaçãonaAméricaCentral,amplasmigrações
de homensda política,da artee da investigaçãosocial- destruindo
velhascertezaseabrindonovasbrecha':nosconfrontaramcomaverda-
deculturaldestespaíses:amestiçagem,quenãoésóaquelefatoracial
do qualviemos,masa tramahojedemodernidadeedescontinuidades
culturais,deformaçõessociaiseestruturasdosentimento,dememórias
e imagináriosquemisturamo indígenacomo rural,o ruralcomo ur-
bano,o folclorecom o populare o popularcom o de massivo.
Assima comunicaçãosetornouparanósquestãode media-
çõesmaisque de meios,questãode culturae, portanto,não só de
conhecimentosmasdere-conhecimento.Um reconhecimentoquefoi,
de início, operaçãodedeslocamentometodológicoparare-vero pro-
cessointeirodacomunicaçãoapartirdeseuoutrolado,o darecepção,
o dasresistênciasqueaí têmseulugar,o daapropriaçãoapartirdeseus
usos.Porém, num segundomomento,tal reconhecimentoestáse
transformando,justamenteparaqueaqueledeslocamentonão fique
emmerareaçãooupassageiramudançateórica,emreconhecimentoda
história: reapropriaçãohistóricado tempo da modernidadelatino-
americanae seudescompassoencontrandouma brechano embuste
lógicocomqueahomogeneizaçãocapitalistapareceesgotararealidade
do atual.Pois na AméricaLatina a diferençaculturalnão significa,
comotalveznaEuropaenosEstadosUnidos,adissidênciacontracul-
turalou omuseu,masavigência,adensidadeeapluralidadedascultu-
raspopulares,o espaçodeum conflitoprofundoeumadinâmicacul-
turalincontornável.E estamosdescobrindonestesúltimosanosqueo
popularnãofalaunicamentea partirdasculturasindígenasou cam-
ponesas,mastambéma partirda tramaespessadasmestiçagense das
deformaçõesdo urbano, do massivo.Que, ao menosna América
Latina,econtrariamenteàsprofeciasdaimplosãodo social,asmassas
16 ~.
\)
INTRODUÇÃO
aindacontêm,no duplo sentidode controlarmastambémde trazer
dentro,o povo.Não podemosentãopensarhojeo popularatuanteà
margemdoprocessohistóricodeconstituiçãodomassivo:o acessodas
massasà suavisibilidadee presençasocial,e da massificaçãoem que
historicamenteesseprocessosematerializa.Não podemoscontinuar
construindouma críticaqueseparaa massificaçãoda culturado fato
políticoquegeraaemergênciahistóricadasmassasedo contraditório
movimentoquealiproduzanão-exterioridadedo massivoaopopular,
seuconstituir-seemumdeseusmodosdeexistência.Atenção,porque
o perigoestátantoemconfundiro rostocoma máscara- a memória
popularcomo imagináriodemassa- comoemcrerquepossaexistir
umamemóriasemum imaginário,a partirdo qualsepossaancorar
no presenteealimentaro futuro.Precisamosdetantalucidezparanão
confundi-Ioscomoparapensarasrelaçõesquehoje,aqui, fazemsua
mestiçagem.
Estaé a apostae o objetivodestelivro: mudaro lugardas
perguntas,paratornar investigáveisos processosde constituiçãodo
massivoparaalémdachantagemculturalistaqueosconverteinevita-
velmenteemprocessosdedegradaçãocultural.E paraisso,investigá-Ios
a partir dasmediaçõese dossujeitos,isto é, a partirdasarticulações
entrepráticasde comunicaçãoe movimentossociais.Daí suastrês
partes- a situação,osprocessos,o debate- esuacolocaçãoinvertida:
pois,sendoo lugardepartida,a situaçãolatino-americanaterminará
naexposiçãoconvertendo-seemlugardechegada.Emboraespereque
os marcosdeixadosao longo do percursoativema cumplicidadedo
leitor e permitamdurantea travessiareconhecê-Ia.
Falei no começodaspegadasquedeixouo longopercurso
quesefazlivro aqui,eprecisoassinalaralgumas.Tais comoasdificul-
dades,naprimeiraparte,paraarticularumdiscursoque,sendoreflexão
filosóficae histórica,não sedistanciedemasiadonemsoeexteriorà
problemáticae à experiênciaque setratade iluminar. E em certos
momentos,a sensaçãoduplamenteinsatisfatóriadeterficadoa meio
17
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES ••.
caminhoentreaquelaeesta.Alémdoinegávelsabordeajustedecontas
queconservamcertaspáginas.A aparentesemelhançadasegundaparte
com o traçadode umaarqueologia,que buscano passado,em seus
estratos,a feiçãoautênticade algumasformase algumaspráticasde
comunicaçãohojedesaparecidase degradadas.Quandonaverdadeo
quebuscamosé algoradicalmentediferente:nãoo quesobrevivede
outro tempo,maso que nohojefazcomquecertasmatrizesculturais
continuemtendovigência,oquefazcomqueumanarrativaanacrônica
se conectecom a vida das pessoas.E na terceiraparte,enganosa
impressãode que, ao investigaras formasde presençado povo na
massa,estivéssemosabandonandoa críticaàquilo queno massivoé
mascaramentoedesativaçãoda desigualdadesocialeportantodispo-
sitivodeintegraçãoideológica.Masétalvezopreçoquedevemospagar
por nos atrevermosa rompercom uma razãodualistae afirmaro
entrecruzamentono massivodelógicasdistintas,apresençaaí nãosó
dos requisitosdo mercado,masde uma matriz cultural e de um
sensoriumqueenojaaselitesenquantoconstituium "lugar"de inter-
pelaçãoe reconhecimentodasclassespopulares.
Sãomuitasaspessoaseinstituiçõesqueprestaramseuapoio
à pesquisaemquesebaseiaestelivro. Dentreelasdevoum especial
reconhecimentoà UniversidaddelValle, em Cali, queme concedeu
umabolsadeestudosparamontaroprojetoerecolheradocumentação
necessária,emefacultoutempoduranteváriosanosparalevaradiante
a investigação.Aos professorese pesquisadoresem comunicaçãoda
Universidadde Lima e daAutónomaMetropolitanadeXochimilco,
no México, quereconheceramo valorda propostadesdequandoera
sóum esboçoemeconvidaramváriasvezesadiscutireconfrontarseu
desenvolvimento.Ao IPAL, que tornou possívelum percursopor
várioscentrosdeinvestigaçãoparaadiscussãoe reuniãoatualizadada
informação.Meu agradecimentosinceroparaaquelaspessoa~quenãosómeajudaramcomseudebateintelectual,masquemeapoia~amcom
seuafeto:PatriciaAnzola, Luis Ramiro Beltrán,Héctor Schmucler,
18
fNTRODUÇÃO
Ana María Fadul, RosaMaría Alfaro, Néstor GarCÍaCanclini, Luis
Peirano.E paraElvira Maldonadoqueagüentoue acompanhoudia
a dia o trabalho.
19
PRIMEIRA PARTE
POVO E MASSA NA CULTURA:
OS MARCOS DO DEBATE
Osconceitosbásicos,dosquaispartimos,deixamrepentinamentede
serconceitosparaconverterem-seemproblemas;nãoproblemasanalí-
ticos,masmovimentoshistóricos,quecontudonãoforamresolvidos.
RaymondWilliams
Fazerhistóriadosprocessosimplicafazerhistóriadascate-
goriascom queos analisamose daspalavrascom queosnomeamos.
Lentamasirreversive1nenteviemosaprendendoqueo discursonão é
um meroinstrumentopassivona construçãodo sentidoquetomam
osprocessossociais,asestruturaseconômicasou osconflitospolíticos.
E queháconceitostãocarregadosdeopacidadeeambigüidadequesó
a sua historicizaçãopodepermitir-nossaberde queestamosfalando
maisalémdo quesupomosestardizendo.O que buscaremosnesta
primeiraparteserápois des-cobrir,no sentidomaisgenéricodeste
verbo,o movimentodegestaçãodealguns"conceitosbásicos":istoé,o
duplotecidodesignificadose referênciasdequesãofeitos.Historicizar
os termosem queseformulamos debatesé já umaformade acesso
aoscombates,aosconflitose lutasqueatravessamos discursose as
coisas.Daí que nossaleituraserátransversal:maisque perseguira
coerênciadecadaconcepção,questionaráo movimentoqueaconstitui
emposição.
CAPíTUL01
AFIRMAÇÃO E NEGAÇÃO
DO POVO COMO SUJEITO
Em sua"origem"o debateseachaconfiguradopordoisgran-
desmovimentos:o quecontraditoriamentepõeemmarchao mito do
povo na política (os ilustrados)e na cultura(românticos);e o que
fundindo política e cultura afirmaa vivênciamodernado popular
(anarquistas)ou a negapor sua"superação"no proletariado(marxis-
tas).
O POVO-MITO:
ROMÂNTICOS VERSUS ILUSTRADOS
Historicamenteo Romantismoéreação,masnãonecessaria-
mentereacionária.Reaçãodedesconcertoefugafrenteàscontradições
brutaisdanascentesociedadecapitalista:é tambémreaçãodelucidez
ecríticafrenteaoracionalismoilustradoesualegitimaçãodos"novos
horrores".Em todocasonãosepodecompreenderosentidodopopular
naculturaquesegerano movimentoromântico,senãopor relaçãoao
sentidoque adquire opovonapolíticatal e como é elaboradopela
Ilustração.
Desdeo iníciodaReforma,edemaneiraexplícitanosDiscorsi
deMaquiavel,vemosorganizar-seemtornodafiguradopovoabusca
deumnovosistemadelegitimaçãodopoderpolíticoque,nostratados
deErasmo,VictoriaeLasCasa'seligaráinclusiveàdefesapioneirade
certosdireitosevalorespopularesquepassandoo temposechamariam
anticolonialistas.Mas uma ambivalênciafundamentalatravessaesse
discurso.Maquiavelchegajá a pensarque "boas leis surgemdos
tumultos"eque"emboraignoranteopovosabedistinguiraverdade";!
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
mas,ao mesmotempo,vêno povoa ameaçamaisinsidiosae perma-
nentecontraas instituiçõespolíticas.E é precisamenteessaameaça
constantede desordemcivil quevemda multidão,e a tentaçãotota-
litáriaqueessadesordemprovoca,o queHobbesconverteno centro
de suareflexãosobreo Estadomoderno.Reflexãoqueé semdúvida
o pensamento-matriza partir do qual constroemos ilustradossua
filosofiapolítica.
À noçãopolítica do povo como instâncialegitimantedo
Governocivil, comogeradordanovasoberania,correspondeno âm-
bito da cultura uma idéia radicalmentenegativado popular, que
sintetizaparaos ilustradostudo o que estesquiseramver superado,
tudo o quevemvarrer a razão:superstição,ignorânciae desordem.
Contradiçãoquetemasuafontenaambigüidadequea figuramesma
do povo tememsuaacepçãopolítica.Mais quesujeitode um movi-
mentohistórico,maisqueatorsocial,"o povo" designano discurso
ilustradoaquelageneralidadequeéacondiçãodepossibilidadedeuma
verdadeirasociedade.Pois é pelopacto"queo povoé um povo (...)
verdadeirofundamentode umasociedade".2De modoqueo povoé
fundadordademocracianãoenquantopopulação,senãosóenquanto
"categoriaquepermitedarparte,enquantogarantia,donascimentodo
Estadomoderno".3Uma sociedademodernanãoépensável,segundo
Rousseau,senãoé constituídaa partirda "vontadegeral",e por sua
vezessavontadeé a queconstituio povo comotal.A racionalidade
queinaugurao pensamentoilustradosecondensainteiranessecircuito
e na contradiçãoque encobre:estácontra a tirania em nome da
vontadepopularmasestácontrao povoemnomeda razão.Fórmula
queresumeo funcionamentodahegemonia.Dadoque,forada"gene-
ralidade",o povoéanecessidadeimediata- o contráriodarazãoque
pensaamediação-, nãoseresponderácomleisàdescobertado povo
como produtor de riqueza,mas com filantropia:como fazerpara
sermosjustoscomsuas"necessidadeshumanas"semestimularnopovo
aspaixõesobscurasqueo dominam,esobretudo"essainvejarancorosa
quesedisfarçade igualitarismo".Assim,na passagemdo político ao
24
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
econômicosefaráevidenteo dispositivocentral:deinclusãoabstrata
e exclusãoconcreta,querdizer,a legitimaçãodasdiferençassociais.
A invocaçãodo povo legitimao poder da burguesiana
medidaexataemqueessainvocaçãoarticulasuaexclusãoda cultura.
E é nessemovimentoque se geramascategorias"do culto" e "do
popular".Isto é, do popularcomoin-culto,do populardesignando,
no momentodesuaconstituiçãoemconceito,um modoespecíficode
relaçãocomatotalidadedo social:adanegação,a deumaidentidade
reflexa,adaquelequeseconstituinãopeloqueémaspeloquelhefalta.
Definiçãodo povopor exclusão,tantoda riquezacomodo "ofício"
político e da educação.Quanto à primeiranão faltamargumentos.
Quanto à segunda,Habermassepergunta:"por quenãochamasim-
plesmenteRousseauopiniãoà opiniãopopularsoberana;por que a
identificacoma opiniãopública"?Porqueareconduçãorousseauniana
da soberaniareal à soberaniapopularnão foi capazde superaro
dilema:a transformaçãoda voluntasem ratio acabatraduzindoo
interessegeralemargumentosprivados,essesquedelimitame cons-
tituem o "verdadeiro"espaçodo político que é o espaçopúblico
burguês.4Sobrea relaçãodo povocoma educação- queé o modo
ilustradodepensaracultura-, trata-sedarelaçãomais"exterior"das
três,poissóapartirdeforapodearazãopenetraraimediatezinstintiva
damentalidadepopular.À qualnadaajuda,nesseaspecto,a bondade
ou essasvirtualidadesnaturaisquesobrevivemàcorrupçãodoscostu-
mes.A relaçãonão poderásersenãovertical:desdeos quepossuem
ativamenteo conhecimentoatéos que,ignorantes,isto é, vazios,só
podemdeixar-sesatisfazerpassivamente.E de um conhecimentoao
qualemúltimainstânciasemprepermaneceramestranhos...excetoem
seusaspectosprdticos.Voltaire o dirá sem evasivas:são outros os
prazeres- diferentesdaquelesdo saber- e "maisadequadosa seu
caráter"os queo governodevebuscarparao povo.
Acusa-seo Romantismode haver-nosdeformadoa Idade
Média, maspoucosperíodospor suavez foram tão preconceituo-
samentevistosa partir da modernidadequanto esteRomantismo,
25
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
reduzidoa "escola"literáriaou musical,eemdefinitivoaum adjetivo
queseconfundecomo melodramáticoesentimental.Hoje surgeoutra
leitura históricaque permitevalorizara rupturaque o movimento
românticointroduzno espaçodapolíticae dacultura.Mas alémdas
modas- esabemosqueaindústriaculturalpodehojevender-nosaté
isso,pondo em modauma épocahistórica- o interesseatualpelo
movimentoromânticoestáligadoàcrisedeumaconcepçãodapolítica
comoespaçoseparado,separadodavidae da cultura,convertidaem
atividadedesapaixonada,um espaçosemsujeitos.
O românticoschegampor trêsvias,nemsempreconvergen-
tes, à "descoberta"do povo. A da exaltaçãorevolucionária,ou ao
menosdeseusecos,dotandoachusma,o populacho,deumaimagem
empositivoqueintegraduasidéias:a de uma coletividadequeunida
ganhaforça,um tipo peculiarde força,e a do heróiqueselevantae
fazfrenteaomal.Umasegundavia:o surgimento,eexaltaçãotambém,
do nacionalismoreclamandoumsubstratoculturaleuma"alma"que
dêvidaà novaunidadepolítica,substratoealmaqueestariamno povo
enquantomatrize origemtelúrica.E por último, umaterceiravia:a
reaçãocontraaIlustraçãoapartirdeduasfrentes:apolíticaeaestética.Reaçãopolíticacontraaféracionalistaeo utilitarismoburguêsqueem
nomedo progressotêmconvertidoo presenteem um caos,em uma
sociedadedesorganizada.Logo:idealizaçãodo passadoerevalorização
do primitivoeirracional.Mas nãosedeveesquecerquenessavoltaao
presenteo movimentoromânticotemnãopoucoslaçoscom o socia-
lismo utópico e seu protestocontraa ausênciade uma verdadeira
sociedade."Os românticosquiseramvivera imagemdo possívelque
projetavasobreo futuroo socialismoutópico.Opuseramsuasocieda-
deidealà sociedaderealeprática.Justapuseram,à sociedadeburguesa
real,ado desprezoedaseparação,adacomunidadeedacomunhão".5
E reação,ou melhor,rebeliãoestética,contraa artereale o classicista
princípiodeautoridade,revalorizandoo sentimentoeaexperiênciado
espontâneocomoespaçode emergênciada subjetividade.
26
POVO E MASSA NA CU •..TURA: OS MARCOS DO DEBATE
Com essestrêsingredienteso Romantismoconstróiumnovo
imagináriono qualpelaprimeiravezadquirestatusdeculturao que
vemdo povo.Mas isto foi por suavezpossívelna medidaemquea
noçãomesmade culturamudoudesentido.Da relaçãoentrea mu-
dançana idéiadeculturae o acessodo popularaoespaçoquea nova
noçãorecobre,é bom exemploo fatode queHerder,queem 1778
publicaos Volkslieder,nosquaisapresentacomoautênticapoesiaaque
emergedo povo, "comunidadeorgânica",só uns anosdepois,em
1784,escreveIdéiasparaumafilosofiadahistóriadahumanidade,onde
estabelecea impossibilidadedecompreendera complexidadeda evo-
luçãodahumanidadeapartirdeumsóprincípio,etãoabstratocomo
a "razão", e a necessidadeentão de aceitara existênciade uma
pluralidadedeculturas,istoé,d,ediferentesmodosdeconfiguraçãoda
vida social.A mudançana idéiadeculturavai nessemovimentoem
duasdireções.Umaqueaseparadaidéiadecivilizaçãonummovimen-
to de interiorizaçã06quedeslocao acentodo resultadoexteriorpara
o modo específicode configuração,sejade um "sistemadevida" ou
deuma"realidadeartística".E outra,queaore-conhecerapluralidade
do cultural propõea exigênciade um novo modo de conhecer:o
comparativo.Foi apartirdessanovaidéiaedométodoqueaíseorigina
queHerderchegaacolocarempédeigualdade,istoé,emposiçãode
relacionáveis,apoesialiteráriaeapoesiadoscantospopulares.Daí que
aimportânciahistóricadaposiçãoromânticanestedebate- sejanos
trabalhosde Herder sobreas canções,dos irmãosGrimm sobreos
contosedeArnim sobreareligiosidadepopular- residanaafirmação
dopopularcomoespaçodecriatividade,deatividadeeproduçãotantoou
maisquena atribuiçãoa essapoesiaou a essesrelatosdeumaauten-
ticidadeou umaverdadequejá nãoseachariaemoutraparte.Frente
a tantacríticafácile recorrenteda concepçãoromânticado popular,
naqualsefaztãodifícil separaro quevemdeumapercepçãohistórica
dosprocessosdaquiloqueé propostopor um obstinadopreconceito
racionalista,énecessárioafirmarcomCireseque"aposiçãoromântica
27
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
fazprogredirdefinitivamenteaidéiadequeexiste,paraalémdacultura
oficial e hegemônica,outra cultura.A noçãoromânticado "povo",
cujautilizaçãoconceitualé hoje refutada,foi entãoum instrumento
positivo parao alargamentodo horizontehistóricoe da concepção
humana".?Segueessalinha a releituraefetuadapor Hobsbawmao
estudarasrelaçõesentreromânticose revolucionários,8releituraque
começaa abrircaminhotambémnaAméricaLatina.Assim,Morande
propõeque,emsuarelaçãocomo povo,a renovaçãodo conceitode
culturapassapor um reestudodo conceitode Naçãocom a qual os
românticospõememjogo- frenteaoracionalismoiluminista- "a
valorizaçãodoselementossimbólicospresentesna vidahumana"e a
partirdosquais"aperguntapelaculturaseconvertenaperguntapela
sociedadecomosujeito".9Dimensãoqueadquirehojeumrelevoespecial
na horade pensara crisepolíticae o sentidodosnovosprocessosde
democratizaçãona América Latina e a necessidadeentãode "uma
aprendizagemna dimensãoda estruturaçãosimbólicado mundo,
assegurandoa intersubjetividadedasdiversasexperiênciaspossíveis".10
Uma pistadeacessoaoconteúdoda idéiado populartraba-
lhadapelosromânticosacha-senatopologiatendencialqueassinalao
usodosnomese oscampossemânticosquea partirdaí seconstituem.
Três nomes-folk, volkepovo- que,parecendofalardo mesmo,no
movimento"traiçoeiro"das traduções,impedemde ver o jogo das
diferençase ascontradiçõesentreos diversosimagináriosquemobi-
lizam.11De um ladofolk e volkserãoo pontodepartidado vocábulo
comquesedesignaráanovaciência- folkloreevolkskunde-,enquan-
to peuplenãoseligaráa um sufixonobreparaengendraro nomede
um saber,massim a umamodalizaçãocarregadade sentidopolítico
e pejorativo:populismo.E enquantofolk tenderáa recortar-sesobre
um toposcronológico,volko farásobreum geológicoepeuple,sobre
um sociopolítico.Folklorecaptaantesde tudo um movimentode
separaçãoe coexistênciaentredois"mundos"culturais:o rural, con-
figurado pela oralidade,as crençase a arte ingênua,e o urbano,
configuradopelaescritura,asecularizaçãoeaarterefinada:querdizer,
28
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
nomeiaa dimensãodo tempona cultura,a relaçãona ordem das
práticasentre tradiçãoe modernidade,sua oposiçãoe às vezessua
mistura. Volkskundecaptaa relação- superposição- entredois
extratosou níveisnaconfiguração"geológica"dasociedade:um exte-
rior, superficial,visível,formadopela diversidade,a dispersãoe a
inautenticidade,tudo isto resultadodasmudançashistóricas,e outro
interior,situadodebaixo,naprofundidadeeformadopelaestabilidade
e pela unidade orgânicada etnia, da raça.Nos usos românticos,
enquantofolkloretenderiaa significarantesdetudoa presençaperse-
guida e ambíguada tradição na modernidade, volk significaria
basicamente.a matriztelúricada unidadenacional"perdida"e por
recuperar.Entre o povo-tradiçãoe o povo-raçanãodeixaráde haver
notranscursohistóricolaçosetramasqueosaproximameconfundem,
masdetodo modoestesdois imagináriosnospermitemdiferenciaro
idealismohistórico,o historicismoquesituano passadoaverdadedo
presente,de um racismo-nacionalismotelúricoem sua negaçãoda
história.E frentea estesdois imaginários,o usoromânticodepeuple
_ deHugo aMichelet- falaantesdetudodaoutrafacedasociedade
constituída.Campesinatoe massasoperáriasformamo universodo
povoenquantouniversodesofrimentoedemiséria- "acanalhaé o
começodolorosodo povo",dirá Hugo -, essereversodasociedade
quea burguesiaocultae temeporqueéapermanenteameaçaqueao
assinalaro intoleráveldo presenteindicao sentidodo futuro.
A travessiados imagináriospermitecompreendermelhoro
queaconcepçãoromânticado popularnosimpededepensar,eo que
temfeito atéhoje quasesemprealiadae componenteideológicodas
políticasconservadoras.Em primeirolugara mistificaçãona relação
povo-Nação.Pensadocomo"alma"ou matriz,o povoseconverteem
entidadenãoanalisávelsocialmente,nãotrespassávelpelasdivisõese
pelosconflitos, uma entidadeabaixoou acimado movimentodo
social.O povo-Naçãodos românticosconformauma "comunidade
orgânica",istoé,constituídapor laçosbiológicos,telúricos,por laços
naturais,querdizer,semhistória,comoseriama raçae a geografia.
29
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
Analisando a persistênciadessaconcepçãona cultura política dos
populismos,GarcíaCanclini resumeassimaoperaçãodemistificação:
"osconflitosemmeiodosquaisseformaramastradiçõesnacionaissão
esquecidosou narradoslendariamente,comosimplestrâmitesarcaicos
paraconfigurarinstituiçõeserelaçõessociaisquegarantamdeumavez
por todasa essênciada Nação"Y Em segundolugar,a ambigüidade
da suaidéiade "culturapopular",Seos românticosresgatama ativi-
dadedo povo na cultura,no mesmomovimentoem que essefazer
cultural é reconhecido,se produzseuseqüestro:a originalidadeda
culturapopularresidiriaessencialmenteemsuaautonomia,naausência
decontaminaçãoedecomérciocoma culturaoficial,hegemônica.E
aonegaracirculaçãocultural,o realmentenegadoéoprocessohistórico
deformaçãodopopular e o sentidosocialdasdiferençasculturais:a
exclusão,acumplicidade,adominaçãoeaimpugnação.E aoficarsem
sentidohistórico,o queseresgataacabasendoumaculturaquenão
pode olhar senãopara o passado,cultura-patrimônio,folclore dearquivooudemuseunosquaisconservaapurezaoriginaldeumpovo-
menino,primitivo.Os românticosacabamassimencontrando-secom
seusadversários,os ilustrados:culturalmentefalando,o povo é o
passado!Não no mesmosentido,massim emboaparte.Paraambos
o futuro é configuradopelasgeneralidades,essasabstraçõesnasquais
a burguesiaseencarna,"realizando-as":um Estadoque reabsorvea
partir do centro todasas diferençasculturais,já que resultamem'
obstáculosaoexercíciounificadodopoder,eumaNaçãonãoanalisável
em categoriassociais,não divisívelemclasses,já queseachaconsti-
tuída por laçosnaturais,de terrae sangue.
Assim começaa "operaçãoantropológica"13queuneo tra-
balhodosfolcloristascomo projetodosantropólogosqueseiniciaem
Taylor ea transformaçãoconceitualdassuperstiçõesem"sobrevivên-
cias"- survival- culturais.14Em um duplo plano.É medianteo
contatocom as sociedadesprimitivasnão-européiasque a idéia da
diversidadedasculturasadquireestatutocientífico.De formaquea
ruptura do exclusivismocultural só se fará operanteagorae não
30
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
unicamentepor fora - civilizados/bárbaros-, mas tambémpor
dentro- entreculturahegemônicaeculturassubalternas:"Sóatravés
do conceitode 'culturaprimitiva'é quesechegoua reconhecerque
aquelesindivíduosoutroradefinidosdeformapaternalistacomo' ca-
madasinferioresdospovoscivilizados'possuíamcultura".15Mas, por
suavez,"o primitivo",designandooselvagemnaÁfrica ou opopular
na Europa,continuaráobstinadamentesignificando,a partirde uma
concepçãoevolucionistada diferençacultural dominanteaté hoje,
aquiloqueolhaparatrás,um estágiotalvezadmirávelporématrasado
dodesenvolvimentodahumanidadee,poressarazão,expropriávelpor
aquelesquejá conquistaramo estágioavançado.Assimcomoo inte-
ressepelopopularnoprincípiodoséculoXIX racionalizaumacensura
política16_ idealiza-seo popular,suascanções,seusrelatos,sua
religiosidade,justono momentoemqueo desenvolvimentodo capi-
talismona forma do Estadonacionalexigesuadesaparição-, na
scgundametadedo XIX a antropologiaintroduz-secomodisciplina,
racionalizandoe legitimandoa expoliaçãocolonialista.
POVO E CLASSE:
DO ANARQUISMO AO MARXISMO
-4idéia de,povoqUe:geraoQoIIlovimentoromânticovai sofrer
~IO longodo séculoXDCumadissoluçãocompleta:pelaesquerda,nQ
, ~onceitode classesocial,epe:1adireita,no de massa.Abordaremosesse
duplo deslocamentoanalisandoseparadamenteos modósem que se
ef(-waa operaçãode dissolução.
A transformaçãodo conceitodepovono declasseapartirda
M'I',lIndametadedoséculoXIX temumlugardeacessoprivilegiadono
debateentreanarquistase marxistas.Debateem que, enquantoo
;lllarquismoinscrevecertostraçosdaconcepçãoromânticanum pro-
;,'(0 c emalgumaspráticasrevolucionárias,o marxismopelocontrário
ef(-tlIaráuma rupturacompletacom o romântico,recuperandonão
poucostraçosdaracionalidadeilustrada.Mas o quetantoanarquistas
I 111110 marxistasefetuarãode início seráa rupturacomo culturalismo
31
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
dos românticosaopolitizarema idéiadepovo.Politizaçãoquesigni-
fica a explicitaçãoda relaçãodo modode serdo povocom a divisão
da sociedadeem classes,e a historicizaçãodessarelaçãoenquanto
processode opressãodas classespopularespela aristocraciae pela
burguesia.Em síntese,marxistase anarquistascompartilhamde uma
concepçãodo popular que tem como basea afirmaçãoda origem
social,estruturaldaopressãocomodinâmicadeconformaçãodavida
do povo. Frenteaos ilustrados,isso significaque a ignorânciae a
superstiçãonãosãomerosresíduos,senãoefeitosda "misériasocial"
dasclassespopulares,misériaquepor suavezconstituia contraparte
vergonhosaeocultáveld<i"novasociedade".E frenteaosromânticos,
issoimplicadescobrirna poesiae na artepopularesnão uma"alma"
atemporal,masaspegadascorporaisdahistória,osgestosdaopressão
e da luta, a dinâmicahistóricaatravessandoe fendendoo enganosa-
mentetranqüilogerar-seda tradição.
A partir daí a concepçãodo popularnasesquerdasvai se
dividirprofundamente:osanarquistasconservarãoo conceitodepovo
porquealgoseenuncianelequenãocabeou nãoseesgotano declasse
oprimida, e os marxistasrechaçamseu uso teóricopor ambíguoe
mistificador substituindo-opelode proletariado.
Emergência do popular
nos movimentos anarquistas
A concepçãoanarquistado popularpoderiasituar-setopo-
graficamente"a meio caminho"entre a afirmaçãoromânticae a
negaçãomarxista.Porque,de um lado,parao movimentolibertário
o povosedefinepor seuenfrentamentoestruturale sualuta contraa
burguesia,mas,deoutro,osanarquistassenegama identificá-lo com
oproletariadonosentidorestritoqueo termotemnomarxismo.E isso
porquea relaçãoconstitutivado sujeitosocialdo enfrentamentoe da
luta é paraoslibertáriosnão umadeterminadarelaçãocom os meios
de produção,masa relaçãocoma opressãoemtodasassuasformas.
Aí estáo núcleodapropostabakuniniana:entendero proletariadonão
32
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
comoum setorou umapartedasociedadevitimadapeloEstado,mas
como "a massados deserdados".17E nessesentidoPiu Riverspôde
;lf-lrmarque o conceitode povo se converteuna pedraangularda
políticaanarquista.18E nessecasoo sujeitodaaçãopolíticaseimpreg-
nará de algunstraçosromânticos,só que agoraa partir de uma
~ignificaçãodiferente:averdadeeabelezanaturaisqueosromânticos
descobriramnopovosetransformamagoranas"virtudesnaturais"que
~ãoseu"instintodejustiça",suafé na Revoluçãocomoúnico modo
de conquistar"suadignidade".
A conexãodo movimentolibertáriocom os românticosse
produz sobre vários registros. Há um componente romântico
indubitávelnarealizaçãodasvirtudesjusticeirasdo povo.Ele éaparte
~ãdasociedade,aqueemmeiodamisériatemsabidoconservarintacta
-;I exigênciadejustiçaeacapacidadedeluta.Mas igualmenteclaraserá
;1 ruptura:o quetemsabidoconservaro povonãoéalgovoltadopara
o passado,maspelocontráriosuacapacidadedetransformaropresente
e construiro futuro.Tocamosaí um pontonevrálgiconasdiferenças
entreanarquistase marxistas:o referenteà memóriadopovoe em
particularàmemóriadesuaslutas.19Os libertáriospensamseusmodos
de luta em continuidadediretacomo longoprocessodegestaçãodo
povo.Os marxistasemtrocapõememprimeiroplanoasrupturasnos
llIodosdelutaquevêmexigidaspelasrupturasintroduzidaspelonovo
Illodo de produção.A continuidadeé paraos anarquistasnão uma
Illeratática,masa fontede suaestratégia:aquelaquepensaa ação
políticacomo uma atividadede articulaçãodasdiferentesfrentese
11IOdosdelutaqueopovomesmosedá.Alémdeimplicarnalutatodos
os que estãosujeitosà opressãoenquantocapazesde resistênciae
illlpngnação,desdeas criançase os velhos,até as mulherese os
delinqüentes.É a relaçãodaopressãoea resistênciaà cotidianidadeo
que os libertáriosestavampioneiramenterelevandoao valorizardo
POlltodevistada transformaçãosocial"a luta implícitae informal",
.1 luta cotidiana,paraa qual o marxismo,segundoCastoriadis,tem
(Oll~ervadoumaespecialcegueira.20
33
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
E atravésda memóriadas lutasos anarquistasse ligam à
culturapopular.Não restadúvidade que a visãodessaculturaestá
impregnadade uma concepçãoinstrumental- que em nenhum
momentotratarãodeocultar- mastambémécertaavalorizaçãoque
aí se produz. Poderíamosdizer que num primeiro momento a
instrumentalizaçãofoi aúnicaformadevalorizaçãopossível,já queem
suaambigüidadeoqueoslibertáriospercebiamobscuramascertamen-
te é que,sea luta políticanãoassumiaasexpressõese os modosdo
popular,o próprio povo é queacabariasendousado.
O interessedos anarquistaspela culturapopular, embora
tenhasidoexplícitodesdeo início, demoroumuito tempoa atrairo
interessedoshistoriadoresoudossociólogosdacultura.Sónosúltimos
anostem-secomeçadoaestudaro modocomoosanarquistasassumi-
ram ascopIase os romancesdefolhetim,os evangelhos,a caricatura
ou a leitura coletivados periódicos,quer dizer, a nova idéia que
começama forjar da relaçãoentrepovo e cultura.21E um primeiro
traço-chavedessaimageméalúcidapercepçãodaculturacomoespaço
não só de manipulação,masde conflito, e a possibilidadeentãode
transformaremmeiosdeliberaçãoasdiferentesexpressõesoupráticas
culturais.Isso se materializaem uma política cultural que não só
promoveinstituiçõesdeeducaçãooperáriaquecanalizema "fomede
saber",22masemumasensibilidadeespecialparaa transformaçãodos
modelospedagógicos.23E em umapercepçãoda continuidadeentre
leituracoletivado folhetime a tradiçãodas vigíliasenquantoespaço
deexpressãoeparticipaçãopopular.Ou nadiferençaqueestabelecem
entrea lutacontraa religiãooficial- um anticlericalismoradical-
eo respeitopelasformasefiguraspopularesdoreligioso,tantono nível
dascrençasquantono damoral,emquepercebemprofundasrelações
entrecertasvirtudespopularesealgumasexigênciascristãs,queligam
a libertaçãode que falao Evangelhocom a libertaçãosocial.
Uma segundalinha de trabalhoa resgataré a preocupação
por elaborarumaestéticaanarquista,enaqualo traçoprimordialserá,
por suavez,e por paradoxalquepossasoar,populare nietzschiano:
34
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
a continuidadeda artecom a vida, encarnadano projetode lutar
contratudoo quesepareaartedavida.24Já quemaisdo quenasobras,
aarteresideé naexperiência.E nãonadealgunshomensespeciais,os
artistas-gênios,masaténa do homemmaishumildequesabenarrar
ou cantarou entalhara madeira.Os anarquistasestãocontraa obra-
prima e os museus,masnão que sejam"terroristas",nem por um
"insano amor de destruição"como pensamseuscríticos,mas por
militarememfavorde umaarteemsituação,concepçãodecorrenteda
transposiçãoparao espaçoestéticodo seuconceitopolíticode "ação
direta".De ProudhoneKropotkin,mastambémdeT olstói,aestética
anarquistaretiraseuprojetodereconciliaraartecomasociedade,com
o melhor da sociedadeque é a sedede justiçaque latejano povo.
Romântica,essaestéticaproclamaumaarteantiautoritária,baseadana
espontaneidadee na imaginação.Mas anti-romântica,essamesma
estéticanão crênumaarteque selimite a expressara subjetividade
individual:o quefazautênticaumaarteésuacapacidadedeexpressar
avoz coletiva.E nessesentidoé "realista",aocolocara cotidianidade
em relaçãocom o conflito, que a levaa escolhera facevisível da
experiência,a realidadeftsicada miséria.O que do ponto de vista
plásticoegráficosetraduzemum "impressionismoácrata",25próximo
aodeSeuratePisarro,eno campoliterárioaumexpressionismoà Sué
ou Gorki.
E apartirdaestética,masapontandoparamuitomais"lon-
ge", está a percepçãoanarquistada nova problemáticacultural
estabelecidapelasrelaçõesentrearteetecnologia,queconstituiráanos
depoisum aspectofundamentalda reflexãode Benjamin.Em um
primeiromomentotrata-sedatecnologiacomotema,daafirmaçãodo
(ecnológicono espaçodasartesmediantea introduçãorecorrentedas
Ilovasferramentaseaparatostécnicos:asfábricas,asestaçõesdetrem,
:1 iluminaçãoelétrica,ospostescomosfiosdo telégrafo.Mas emum
segundomomento"já nãosetratasódainclusãodeelementosmecâ-
lIicosfigurativosna esferada arte,masqueessestemastestemunham
;1 mudançade estruturasociale sugeremnovoscaminhosao mesmo
35
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
temposociaiseplásticos.O mundodaindústriaincluíaaparticipação
artísticado homemnãosócomoespectador,mastambémcomoator,
pois o conceitodebelezanaobradearteé substituídopelodesejode
significar".26E dessedesejoparticipam,sim, asclassespopularesem
luta contraaqueleconceitodeartequeacabaexcluindoo popularda
cultura.Em umcomentárioaocinemadeChaplin,intituladoO pobre
e o proletariado,Barthesanalisao sentidodessatransformaçãoda
belezaemdesejodesignificaredapeculiaridadequeissointroduzna
estéticaanarquista."Chaplinviu sempreo proletáriosobostraçosdo
pobre,dali surgea forçahumanadesuasrepresentaçõesmastambém
suaambigüidadepolítica".Em um filme,cujamáximaexpressãoserá
Temposmodernos,éapresentadoumproletário"pré-político",homem
com fome, torpe,golpeadocontinuamentepelapolítica, e contudo
dotadode uma capacidadedesignificar,de umaforçarepresentativa
imensa,tantaque"suaanarquia,discutívelpoliticamente,talvezrepre-
senteem artea formamaiseficazde Revolução"Y
Dissolução do popular no marxismo
Dessaoriginaleambíguaadoçãoqueosanarquistasfazemda
idéia de povo, o marxismo"ortodoxo"28negaráa validadetanto
teóricacomopolítica.Há na reflexãomarxistaquedá contadaexpe-
riênciado movimentooperáriodefinaisdo séculoXIX ecomeçosdo
séculoXX um ponto que a distanciaespecialmentedo pensamento
libertário:aconsciênciadanovidaderadicalqueo capitalismoproduz,
convertidaem expressãodo saltoqualitativono modo de luta do
movimentooperário.O proletariadosedefinecomoclasseexclusiva-
mente pela contradiçãoantagônicaque a constitui no plano das
relaçõesde produção:o trabalhofrenteao capital.Daí que não se
poderá falar de classetrabalhadorasenãono capitalismo,nem de
movimentooperárioantesdaapariçãodagrandeindústria.A explica-
çãodaopressãoeaestratégiadalutasesituamassimemumsóeúnico
plano:o econômico,o daprodução.Todos osdemaisplanosou níveis
36
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
ou dimensõesdo socialseorganizame adquiremseusentidoa partir
dasrelaçõesdeprodução.E todaconcepçãodelutasocialquenãose
centreaí,quenãopartadessecentronemaelesedirija,émistificadora
c enganosa,desviaeobstaculiza.A certezateóricaeaclaridadepolítica
sereforçarãomutuamente,já queo queo marxismoaspiraa transbor-
dar os limites do pensamentoe se apresentacomo o movimento
mesmoda história,feito consciênciana classecapazde realizarseu
sentido.29Frenteà multiplicidadedeníveise planosde luta, frenteà
"ambigüidade"políticaemquesemoviamosanarquistas,o marxismo
possuíaunidadedecritérioeumacréscimodeclaridadequevinhaem
última análisea sujeitara experiênciado movimento- que era o
primordialentreosanarquistas- à análise-confrontaçãodasituação
com a doutrina.O componenteracionalistarompiadefinitivamente
comosresíduosderomanticismoquearrastavamoslibertários,eque
lhes impossibilitavampensara especificidadedo políticocomo um
terrenodemarcáveleseparado,aquelejustamenteemqueerapensável
c efetuávela respostaà dominaçãoeconômica.Nessecontextoteórico
a idéiade povonão poderiaresultarsenãoretóricae perigosa,e em
Iermoshegelianossuperada.
Que implicou todavia,quaisforamos custosdessasupera-
~:;l0?No planomaisvisíveleexterioro fatodequedurantemuitosanos
o apelo ao conceitode povo ficaráreservadoà direita política e
adjacências.Já desdealgunsanosa questão,contudo,voltou a ser
propostaa partir da esquerda.Na Europa, atravésda reescritada
história do movimento operário que, como no caso de E. P.
Thompson,3opropõeexplicitamentea impossibilidadehistóricade
separartaxativamentealutaoperáriadas"lutasplebéias",demodoque
f:tzera história da classeoperáriaimplica necessariamentefazer a
ilistóriadaculturapopular.Ou emA experiênciadomovimentooperá-
rio, deCastoriadis,emquesemapelarexplicitamenteparao conceito
de popularseefetuacontudoumareelaboraçãodo conceitode pro-
letariadoquefazentrarnareflexãonãopoucodoqueaquelesignificava
37
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
no pensamentoanarquistade finaisde século.Na AméricaLatina a
questãodo povoé retomadacomforçanosúltimosanosligadatanto
a umareleituradosmovimentospopulistasquantoà revalorizaçãoda
culturano interiordos projetosde transformaçãodemocrática.31
Em linhas gerais o que começa a ser proposto como
impensável,apartirdanegaçãoefetuadapelomarxismoortodoxodos
conceitosde povo, é em primeiro lugar essaoutra "determinação
objetiva",esseoutropólo dacontradiçãodominanteque,segundoE.
Laclau,sesituanão no planodasrelaçõesde produção,masno das
formaçõessociais,equeseconstitui"no antagonismoqueopõeo povo
aoblocono poder".32Esseantagonismodálugaraum tipo específico
deluta,aluta"popular-democrática".Comentandoo texrodeLaclau,
E. de Ipola particularizao terrenoe ascaracterísticasdessaluta. Seu
lugar de exercíciose'situa predominantementeno ideológicoe no
político:nainterpretação-constituiçãodossujeitospolíticos.Seuscon-
teúdoshistóricossãoaomesmotempomaisconcretos- já quevariam
segundoasépocaseassituações- e maisgeraisqueosconteúdosda
lutadeclasses,poispossuemumacontinuidadehistóricaqueseexpres-
sa "na persistênciadastradiçõespopularesfrenteàdescontinuidade
que caracterizaas estruturasde classe",33Ainda que "superada",a
questãodo popularnãotemdeixadosemdúvidadeteruma'represen-
tação no marxismo. Uma análise particularmentelúcida dessa
representaçãotem sido realizadapor O. Sunkel.Duas seriamsuas
linhasdeforça:umaidéiadopolitizável naqualnãocabemmaisatores
popularesqueà classetrabalhadora,nem maisconflitosque os que
provêmdo choqueentrecapitale trabalho,nemmaisespaçosqueos
da fábricaedo sindicato;eumavisãoheróicadapolítica,masnãono
sentido dos românticos, e sim deixando de fora o mundo da
cotidianidadee da subjetividade.
A partirdaí seproduzumaduplaoperaçãode negação,ou
melhor,estaseconfiguraemdoismodosdeoperação:anão-represen-
taçãoe a repressão.O popular não-representado"seconstituicomoo
38
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
conjuntodeatores,espaçoseconflitosquesãoaceitossocialmentemas
quenãosãointerpeladospelospartidospolíticosdeesquerda".34Sur-
gemassimatorescomoamulher,o jovem,osaposentados,osinválidos
enquantoportadoresdereivindicaçõesespecíficas;espaçoscomoacasa,
asrelaçõesfamiliares,o segurosocial,o hospital,etc.E um segundo
tipodepopularnãorepresentado,constituídopelastradiçõesculturais:
práticassimbólicasdareligiosidadepopular,formasdeconhecimento
oriundasde suaexperiência,comoa medicina,a cosmovisãomágica
ou asabedoriapoética,todoo campodaspráticasfestivas,asromarias,
aslendase, por último, o mundo dasculturasindígenas.
Opopular reprimido"seconstituicomoo conjuntodeatores,
espaçose conflitosquetêmsido condenadosa subsistiràsmargensdo
social,sujeitosa umacondenaçãoéticae política".35Atorescomo as
prostitutas,oshomossexuais,osal~ólatras,osdrogados,osdelinqüen-
tesetc.;espaçoscomoosreformatórios,osprostíbulos,oscárceres,os
lugaresde espetáculosnoturnosetc.
Mas a negaçãodo popularnãoé só temática,nãoselimita
adesconhecerou condenarum determinadotipo detemasou proble-
mas,masrevelaa dificuldadeprofundado marxismoparapensara
questãoda pluralidadede matrizesculturais,a alteridadecultural.
Reduzidajá em Marx ao problemados modos pré-capitalistasde
produção,cujoparadigmaestariano "mododeproduçãoasiático"-
reduçãoqueR. Bahronãoduvidaemcolocarcomoum problemade
ctnocentrism036-, aquestãoperdeseusentidoeaperspectivateórica,
quandose introduz, ficaráancoradano evolucionismoprimário de
Morgan.Certo queháemLenin umareferênciaexplícitaàquestãoa
propósitoda análiseda formaçãosocialsoviética,na qual distingue
limaculturadominanteburguesa,algumasculturasdominadas- as
do campesinatotradicional-, e"elementosdeumaculturademocrá-
t ica socialista"no proletariado.37Mas o afã de referire explicara
diferençaculturalpela diferençade classeimpediráde se pensara
l'specificidadedosconflitosquearticulaaculturaedosmodosdeluta
39
)
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
quea partirdaí seproduzem;"o papeldasidentidadessocioculturais
como forçasmateriaisno desenvolvimento'dahistória".38E portanto
suacapacidadedeconverterem-seemmatrizesconstitutivasdesujeitos
sociaise políticos,tantono intercâmbioou no enfrentamentoentre
formaçõessociaisdiferentescomono interiordeumaformaçãosocial.
Em últimainstância,trata-seda impossibilidadede remetertodosos
conflitos a uma só contradiçãoe de analisá-losa partir de uma só
lógica:alógicainternaàlutadeclasses.O quenãosignificaquealuta
de classesnãoatravesse,e emdeterminadoscasosarticule,asoutras.
O problemaé pensá-Iacomoexpressãode umapretendida"unidade
dahistória".ParaMarx issonãooferecedúvida,eo livro I d'O Capital
afirma,precisamenteparajustificaradestruiçãodasociedadeatrasada:
"O capitalismoindustrialfundaahistóriamundialaofazercadanação
ecadaindivíduoedependentes,paraasatisfaçãodesuas'necessidades,
do mundo inteiro".Mas a unificaçãoimpostapelocapitalnãopode
todaviaescaparà rupturadaunidadedesentido.O capitalismopode
destruirculturasmasnãopodeesgotara verdadehistóricaqueexiste
nelas.E o marxismonãoescapaa essalógicaquandopretendepensar
associedades"primitivas"dopassadoou asoutrasculturasdo presente
a partir de uma particularconfiguraçãoda vida social erigidaem
modelo.Paraum etnólogocomoP. Clastres,essa"pretensão"a ditar
a verdadede todasasformaçõessociaisquebalizama histórialevou
o marxismoa "reduzir-sea si mesmoreduzindoa espessurado social
a um só parâmetro",pois com essa medidao que se produz é "a
supressãopuraesimplesdasociedadeprimitivacomosociedadeespe-
cífica".39Estudandoo tratamentoquea estéticamarxistadá àsartes
plásticasdasculturasdominadas,Mirko Lauerexplicitaasduasope-
raçõesem que se traduzo desconhecimentoda alteridadecultural:
"indiferençageneralizada"frenteà especificidadedasculturasmargi-
nais, e "incapacidadepara apreenderessasculturasem seu duplo
caráterdedominadasedepossuidorasdeumaexistênciapositivaaser
desenvolvida".40
40
POVO E MASSA NA CU!. TURA: OS MARCOS DO DEBATE
Uma questãomaisgeral,masqueestáprofundamenteligada
à "negação"do popularno marxismo:a equiparaçãoentreo conceito
de culturae o de ideologia.Refiro-memaisuma vezao marxismo
ortodoxo, a esseque tem desconhecidoou deformadoo conceito
gramscianodehegemonia"recuperando-o"no interiorde umacon-
cepçãoquecontinuasendodominante.Foi no debatedosanos3041
'que começarama se fazerpatenteso significadoe os efeitosdessa
equiparação.A impossibilidadede assumire dar contada complexi-
dadeedariquezaculturaldessemomentosematerializaránatendência
a idealizara "culturaproletária"42e a encararcomo decadentea pro-
duçãoculturaldasvanguardas.A críticadessaequiparaçãotemhojejá
bemdelimitadosos impasses,tantoo quesesituana predominância
do sentidonegativo- falsificaçãoda realidade- sobreos outros
sentidose efeitosda ideologia- concepçãodemundo,interpelação
dossujeitos43- comoo queresultadepensarasrelaçõesdeprodução
comoum espaçoexterioraosprocessosde constituiçãodo sentido.44
Por issomeparecefundamentalretomaraquestãoapartirdasrelações
entreculturae modernidade.Como demonstrouRezsler,a teseda
decadênciadaartemodernanãofalasódaestreitezadeummarxismo
vulgar,masde um impassede fundo na teoriamarxistaortodoxa.
Claro que a argumentaçãode Idanov não é a de Lukács, mas o
significadodateseeosefeitospolíticosforamosmesmos.Em ambos ~*'
o quesecondenacomoa-socialpor serindividualista,ou anti-social
por serburguês,é o experimentalismo:acapacidadedeexperimentare
a partir daí questionaras "pretensõesde realidade"que encobriao
realismo.Realismoqueéassumidocomoo gostoprofundoeo modo
deexpressãodasclassespopulares.O paradoxotocafundo:ainvocação
do povo é só paraopor o conservadorismode seugosto,"seubom
sentido",à revoluçãoqueestátransformandoa arte.E a continuidade
que se reclamacom o passadoé "a continuidadecom os valores
culturaisda épocaburguesasolapadospelosmovimentosmodernis-
tas".45Apela-seao povo no sentidomaispopulistae maisnegativa-
41
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
menteromântico:paraexaltarcomocritériosbásicosda "verdadeira"
obradearteasimplicidadeecompreensibilidadeporpartedasmassas.
Em outronívelcertamente,masemumadireçãobempróxima,acha-
seacondenaçãoquefazLukácsdamodernidadepor dissolvera forma
e misturar,confundiros gêneros.Os queestãopróximosda apocalí-
ptica e conservadorateoriada decadênciaculturalna sociedadede
massas,quevamosestudaradiante,configuramumaestranhacoinci-
dência.
42
CAPíTULO 2
NEM POVO NEM CLASSES:
A SOCIEDADE DE MASSAS
A idéiadeuma"sociedadedemassas"é bemmaisvelhado
que costumamcontaros manuaisparaestudiososda comunicação.
Obstinadosemfazerda tecnologiaa causanecessáriae suficienteda
nova sociedade- e decertoda novacultura-, a maioriadesses
manuaiscolocao surgimentoda teoriada sociedadede massasentre
osanos30/40,desconhecendoasmatrizeshistóricas,sociaisepolíticas
de um conceitoque em 1930tinha já quaseum séculode vida, e
pretendendocompreendera relaçãomassas/culturasema maismíni-
ma perspectivahistóricasobreo surgimentosocialdasmassas.Para
começara contaressahistória,queé a únicamaneiradefazerfrente
à fascinaçãoproduzidapelo discursodostecnólogosdamediaçãode
massa,talvezsejaboaumaimagem:o acionamentoduranteo século
XIX da teoriadasociedade-massaé o de um movimentoquevai do j
medoà decepçãoe daí ao pessimismo,masconservandoo asco.Em
seuponto departida- a desencantadareflexãode liberaisfranceses
einglesesno convulsivoperíodopós-napoleônicoquevaidarestaura-
çãoà Revoluçãode 1848- fica bem difícil separaro que há de
decepçãopelocaossocialquetemtrazidoo "progresso"do medodas
perigosasmassasqueconformamasclassestrabalhadoras.46
Até 1835começaa gerar-seumaconcepçãonovado papel
e do lugar dasmultidõesna sociedade,concepçãoque guardasem
dúvida,emsuasdobras,rastrosevidentesdo "medodasturbas"e do
desprezoqueasminoriasaristocráticassentempelo "sórdidopovo".
Os efeitosda industrializaçãocapitalistasobreo quadrode vida das
classespopularessãovisíveis.E vãomaislongedo queasburguesias
talvezesperassem.É todaatramasocialquesevêafetada,transbordada
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÓES
emseuleitopormovimentosdemassasquepõememperigo"ospilares
da civilização".As mudançasseproduziamdeformaque,"à medida
que as técnicaseram mais racionaise as riquezasmateriaismais
abundantes,asrelaçõessociaiserammaisirracionaise a culturado
povo,maispobre(...). Em meadosdo séculoXIX autopiaprogressista
já sehaviaconvertidoem umaideologia.Era umainterpretaçãodo
mundo emevidentecontradiçãocomo estadorealdasociedade"YE
então,junto aosnovosmodosdecontroledosmovimentospopulares
seporáemmarchaum movimentointelectualquea partirda direita
políticatratadecompreender,dedotardesentidoo queestáaconte-
cendo.A teoriasobreasnovasrelaçõesdasmassascom a sociedade
constituiráum dospivôsfundamentaisda racionalizaçãocom quese
recompõea hegemoniae sereadequao papelde umaburguesiaque,
de revolucionária,passanessemomentoa controlare frearqualquer
revolução.O quenãoimplicadenenhummodoainvocaçãodo velho
fantasmadateoriaconspirativa,pois"ateoriadasociedade-massatem
fontesdiferenteseumapaternidademistacompostadeliberaisdescon-
tentes e conservadoresnostálgicos, além de alguns socialistas
desiludidose uns tantosreacionáriosabertos".48
A DESCOBERTA POLíTICA DA MULTIDÃO
A novavisãosobrea relaçãosociedade/massasencontrano
pensamentode Tocqueville49seuprimeiroesboçode conjunto. Se
antessituavam-sefora, comoturbasqueameaçamcomsuabarbáriea
"sociedade",asmassasseencontramagoradentro:dissolvendoo tecido
das relaçõesde poder, erodindo a cultura, desintegrandoa velha
ordem.Estãosetransformandodehordagregáriae informeemmul-
tidão urbana,transformaçãoque,emborasejapercebidaem ligação
com os processosde industrialização,é atribuídaantesde tudo ao
igualitarismosocial,no qualsevêogermedodespotismodasmaiorias.
Trocando em miúdos:Tocquevilleolha a emergênciadas
massassemnostalgia,inclusiveconseguepercebercomnitidezquenela
44
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
resideumachavedo início dademocraciamoderna.lv1asademocracia
de massasportaemsi mesmao princípiode suaprópriadestruição.
Se democráticaé uma sociedadena qual desaparecemas antigas
distinçõesde castas,categoriase classes,e na qualqualquerofício ou
dignidadeé acessívela todos, uma sociedadeassimnão pode não
relegara liberdadedos cidadãose a independênciaindividuala um
planosecundário:o primeiroocuparásempreavontadedasmaiorias.
E dessemodoo quevematerverdadeiraimportâncianãoéaqueleem
quehá razãoevirtude,masaquelequeéqueridopelamaioria,istoé:
o queseimpõeunicamentepelaquantidadedepessoas.Dessamaneira
o queconstituio princípiomodernodo poderlegítimoacabarálegi-
timando a maior das tiranias.A quem poderáapelar,pergunta-se
Tocqueville,umhomemou umgrupoquesofreinjustiça?,eresponde:
"àopiniãopública?Não, poisestaconfiguraavontadedamaioria.Ao
corpolegislativo?Não, esterepresentaamaioriaeaobedececegamen-
te.Ao poderexecutivo?Não, o executivoé nomeadopelamaioriae
a servecomo instrumentopassivo".50
O quefazmaisopressivoessepoderadquiridopelamaioria,
équesobreelaTocquevilleprojetaaimagemdeumamassaignorante,
semmoderação,quesacrificapermanentementealiberdadeemaltares
daigualdadeesubordinaqualquercoisaaobem-estar.Estamosdiante
de uma sociedadecompostapor "uma enormemassade pessoas
semelhanteseiguais,queincansavelmentegiramsobresimesmascom
o objetivode poder dar-seos pequenosprazeresvulgarescom que
satisfazemsuasalmas"Y É a sociedadedemocráticaquevê gerar-se
rapidamenteenaformamaisclaranosEstadosUnidos:essanaçãona
qualjá nãoháprofissãoemquenãosetrabalhepor dinheiro,naqual
"atéo presidentetrabalhapor umsalário(...) quedáatodosum arde
família".E na qualaAdministraçãotendea invadi-Iotodo, todasas
atividadesdavida,uniformizandoasmaneirasdevivereconcentrando
a gestãono vértice.
A justificaçãodo pessimismosocialfaz dessediscursouma
misturaquaseinextricáveldeumacertaanálisedasnovascontradições
45
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
coma expressãodo desencantodo aristocrata.Na linhaabertapor La
Boetieem Da servidãovoluntdria, na qual já no séculoXVI o pessi-
mismoculturalemtermosdefracassomoraltraçavaumaradiografia
desoladoradacumplicidadedo povocom a tirania,Tocquevillepro-
põequeaconvergênciadamecanizaçãointroduzidapelaindústriacom
a"enfermidadedemocrática"conduzeminevitavelmenteà auto-degra-
daçãodasociedade.Um estudiosoatualdo temapensaqueo queesse
esquecidoautordo séculoXIX estavafazendoerapropor profetica-
mente "a deterioraçãoda qualidadeda açãoe da experiêncianas
sociedadesigualitárias",com o que Tocquevilleacabariasendoum
"crítico utópicodo quehoje sechamao problemapós-revolucioná-
rio".52Sem ir tão longe, o que de fato é necessárioreconhecerna
reflexãodeTocquevilleé queelepropôsumaperguntafundamental
sobreo sentidoda modernidade:pode-sesepararo movimentopela
igualdadesocialepolíticadoprocessodehomogeneizaçãoeuniformi-
zaçãocultural?Mas tal e como é propostaem seu momentopor
Tocquevilleessacontradiçãoacabareveladoraantesdetudo do medo
produzidopelasmudanças.Analisandoemboaparteosmesmosfatos
masolhando-ossemessemedo,Engels,emAs condiçõesda classetraba-
lhadora na Inglaterra, vê na massificaçãodas condiçõesde vida o
processode homogeneizaçãoda exploraçãoa partir da qual se faz
possíveluma consciênciacoletivada injustiçae da capacidadedas
massastrabalhadorasparagerarumasociedadediferente.Daí que,por
maislúcidoquesequeira,o conceitodemassaqueiniciasuatrajetória
no pensamentodeTocquevilleracionalizatodaviao primeirogrande
desencantodeumaburguesiaquevêemperigoumaordemsocialpor
elaeparaelaorganizada.O qualnãoimplicadesconhecerquecomo
nomedemassasedesignaaípelaprimeiravezummovimentoqueafeta
aestruturaprofundadasociedade,aomesmotempoemqueéo nome
comquesemistificaaexistênciaconflitivadaclassequeameaçaaquela
ordem.
Menosbeligerantementepolítico,edeempenhomaisfilosó-
fico, o pensamentode StuartMill, já situadona segundametadedo
46
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
séculoXIX, continuae complementao de Tocqueville,elaborando
umaconcepçãodo processosocial,na quala idéiademassaseafasta
de umaimagemnegativado povoparapassara designara tendência
da sociedadea converter-senumavastae dispersaagregaçãode indi-
víduos isolados.De um lado a igualdadecivil pareceriapossibilitar
umasociedademaisorgânica,masaoromper-seo tecidodasrelações
hierarquizadaso queseproduzéumadesagregaçãosócompensadapela
uniformização. Massaé então"a mediocridadecoletiva"quedomina
culturalepoliticamente,"poisosgovernosseconvertememórgãodas
tendênciase dos instintosdasmassas".53
A PSICOLOGIA DAS MUL TIDÓES
Depois da Comuna de Paris, o estudoacercada relação
massa/sociedadetomaumrumodescaradamenteconservador.Mas no
último quarteldo séculoXIX as massas"se confundem"com um
proletariadocujapresençaobscenadeslustrae entravao mundobur-
guês.E entãoo pensamentoconservador,maisquecompreender,o
quebuscaráa seguirserácontrolar.Em 1895,o mesmoanoem que
os irmãos Lumiere põem em funcionamentoa máquinaque dará
origemà primeiraartedemassas,o cinema,GustaveLe Bon publica
Ia psychologiedesfoules,54o primeirointento"científico"parapensara irracionalidadedasmassas.Podemosmedira importânciadesselivro
naressonânciaqueencontrarámesmoemFreud,queemPsicologiadas
massase andlisedo euo situacomoo pontodepartidainevitávelpara
suaprópria reflexão.
L~Bonpartedeumaconstatação:acivilizaçãoindustrialnão
é possívelsemaformaçãodemultidões,eo mododeexistênciadestas
éa turbulência:um mododecomportamentono qualafloraà super-
fície fazendo-sevisívela "almacoletiva"da massa.
Mas queé umamassa?É umfenômenopsicológicopelo qual
os indivíduos,por maisdiferenteque sejaseumodo de vida, suas
ocupaçõesouseucaráter,"estãodotadosdeumaalmacoletivaquelhes
47
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
fazcomportar-sedemaneiracompletamentedistintadecomoo faria
cadaindivíduo isoladamente.Alma cuja formaçãoé possívelsó no
descenso,na regressãoatéum estadoprimitivo,no qual as inibições
moraisdesapareceme a afetividadee o instintopassama dominar,
pondo a "massapsicológica"à mercêda sugestãoe do contágio.
Primitivas,infantis,impulsivas,crédulas,irritáveis... asmassasseagi-o
tam, violam leis,desconhecema autoridadee semeiama desordem
ondequerqueapareçam.Sãoumaenergiamassemcontrole:e nãoé
esseprecisamenteo ofício daciência?O psicólogosepropõeentãoo
estudodo modo comoseproduza sugestionabilidadeda massapara
assimpoderoperarsobreela.A chaveseencontrariana constituição
dascrençasqueemsuaconfiguração"religiosa"permitemdetectaros
doisdispositivosdeseufuncionamento:o mitoqueasuneeo líderque
celebraos mitos.
Le Bon nãoéumnostálgico,já nãoguardanenhumanostal-
gia por outrostemposmelhores.Ao contrário,o que o assustanas
massasé a espéciederetornoaopassadoobscurantistaqueelasrepre-
sentam:o retornodassuperstições.E essatendênciaéidentificadapor
Le Bonpuraesimplesmentecomo retrocessopolítico.A operaçãotem
sua lógica. Reduzidosa "movimentosde massas",os movimentos
políticosdasclassespopularessãoidentificadoscomcomportamentos
irracionaisecaracterizadoscomorecaídasemestágios"primitivos".E
a essalógica se devemafirmações"científicas"do calibredesta:o
movimentosocialistaé essencialmenteinimigo da civilização,que
pode se ler no seguintelivro de Le Bon, intitulado A psicologiado
socialismo.
DizíamosqueFreudapóiaseuestudodasmassassobreaobra
de Le Bon, maselemesmoseencarregade marcarclaramentesuas
distâncias.O quelhe interessouprofundamenteno estudodeLe Bon
é a importânciaqueaí adquireo inconsciente.Mas, "paraLe Bon, o
inconscientecontémantesde tudo os maisprofundoscaracteresda
alma e da raça,o qual não é propriamenteobjeto da psicanálise.
48
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
Reconhecemosdesdejá que o nódulo do eu, ao qual pertence'a
herançaarcaica'da almahumana,é inconsciente,maspostulamos
alémdissoa existênciado 'reprimidoinconscientemente'surgidode
umapartedetalherança.Esteconceito'do reprimido'faltana teoria
deLe Bon".55As duasdiferençasassinaladassãofundamentais.Rechaço
à confusãodo inconscienteestudadopelapsicanálisecomessamemó-
ria biológica da raça que de Le Bon nos conduz diretamenteà
racionalizaçãopsicológicado nazismoou ao substancialismodos ar-
quétiposjunguianos.O inconscienteestáconformadobasicamente
pelo reprimido,queé o que,ao faltarna teoriadeLe Bon, induz ao
segundodesacordoimportante:oqueacontecenamassatalveznãoseja
tãoradicalmentediferentedoquesepassacomo indivíduo.Poiso que
explodena massaestáno indivíduo,porémreprimido.O queequivale
a dizerquea massanão estásubstancialmentefeitade outramatéria
pior que a dos indivíduos.Mas com essaconcepçãoFreud estava
arrebentando,nadamaisnadamenos,o substratodo pensamentoque
racionalizao individualismoburguês.E o queapartirdaíficaránítido
équea teoriaconservadorasobreasociedade-massanãoémaisquea
outrafacedeumasóemesmateoria,aquefazdo indivíduoo sujeito
e motor da história.
O terceirodesacordoestárelacionadocoma obsessãode Le
Bonpelafaltadelíderesnassociedadesmodernas,frenteaoqualFreud
propõenãosóaestreitezaesuperficialidadedaconcepçãoqueLe Bon
temdafiguraedafunçãodo líder,comotambémareduçãodo social
quetodaessateoriasustenta."LeBonreduztodasassingularidadesdos
fenômenossociaisa dois fatores:a sugestãorecíprocadosindivíduos
eo prestígiodo caudilho".56 Com o quesefazmaisnítidaa lógicada
operaçãoquedescrevíamosmaisatrás.A teoriadasociedadedemassas,
tal e comoemergedasproposiçõesdeLe Bon, temnabaseanegação
mesmadosocialcomoespaçodedominaçãoedeconflitos,espaçoquenos
abre ao único modo de recuperaçãoda história sem pessimismos
metafísicosnemnostalgias.E quepermitecompreendero comporta-
49
",'J'
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
mentodasmassasnãosóemsuadimensãopsicológica,mas- escân-
dalo!- emseufazercultural.PoissegundoFreudnasmassashá não
só instintos,masprodução:"Tambéma almacoletivaé capazde dar
vida a criaçõesespirituaisde umaordemgenialcomoo provam,em
primeirolugar,o idioma,edepoisoscantospopulares,o folcloreetc.
Serianecessário,alémdisso,precisarquantodevemo pensadore o
poetaaosestímulosda massa,e se sãorealmentealgo maisque os
aperfeiçoadoresde um laboranímicono qualos demaistêmcolabo-
rado simultaneamente".57
Wilhelm Reich continuaráessadesmistificaçãoda teoria
sobreasmassas.Em umaobraescritanão a posteriori,masempleno
1934,58o autor desmontaa operaçãode "intoxicaçãopsíquicadas
massas"que,iniciadaemLe Bonesuaidentificaçãoda"almacoletiva"
com o inconscienteda raça,encontrarásuaplenitude"na fidelidade
aosangueeà terra"daideologianacional-socialista.Reichtransforma
as perguntaspsicológicasde Freud - que é uma massa?em que
consistea modificaçãopsíquicaque impõe ao indivíduo? - nas
perguntassociológicasque, segundoele afirma, fez pessoalmentea
Freudem1937:"Como épossívelqueumHitler ouumDjungashsvili
[Stalin]possamreinarcomoamossobreoitocentosmilhõesde indi-
víduos?Como é possívelisso?".59Perguntasquenãosãorespondidas
nem a partir de umapsicologiado líder, do caudilhoe seucarisma,
nem a partirdasmaquinaçõesdoscapitalistasalemães.Porque "não
existenenhumprocessosócio-econômicodealgumaimportânciahis-
tóricaquenãoestejaancoradonaestruturapsíquicadasmassase que
nãosetenhamanifestadoatravésdeum comportamentodessasmas-
sas".60E entãoo verdadeiroproblemaqueumapsicologiadasmassas
deveenfrentaré "o problemadasubmissãodo homemà autoridade",
de suadegradação,já que"ondequerquegruposhumanose frações
dasclassesoprimidaslutem 'pelopãoe pelaliberdade',o grupo das
massassemantémà margeme reza,ou simplesmenteluta pelaliber-
dadeno bandode seusopressores".61
50
li
J!
li
,
POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
Com a viradado século,aparecepublicadoum livro que,
retomandoasquestõesdeLe Bon, daráa elasumainflexãodiferente,
inaugurandoa "psicologiasocial"com que o funcionalismonorte-
americano dos anos 30-40 iria temperara primeira teoria da
comunicação.Trata-sedeL 'Opinion etIa Foule,62noqualaquestãodas
crençasé objetode um deslocamentofundamental:em lugarde ter
como espaçode compreensãode seuestatutosocialo religioso,as
crençasserecolocamno espaçoda comunicação,desuacirculaçãona
imprensa.A massaé convertidaempúblico e ascrenças,em opinião.
O novo objetodeestudoserápoiso públicocomoefeitopsicológico
da difusãode opinião, isto é: aquelacoletividade"cujaadesãoé só
mental".É a únicapossívelem umasociedadereduzidaa massa,a
conglomeradodeindivíduosisoladosedispersos.Mas comoseproduz
essaadesão?A respostadeTarderevelasuasdívidascomLe Bon: por
sugestão.Só queagoraessasugestãoé "a distância".No pensamento
de Tarde faz-seespecialmenteclaraa inadequaçãoentreo novo do
problemaque sebuscapensare o "velho"dascategoriasem que é
formulado. E isso apesarda renovaçãodo léxico. Sem dúvida, o
relacionamentopostoentremassaepúbliconosinteressaenormemen-
te,já que,maisalémdaquiloqueesseautortematiza,apontaatépara
a novasituaçãoda massana cultura:a progressivatransformaçãodo
ativo - ruidosoe agitado- públicopopulardasfeirase dosteatros
nopassivopúblicodeumaculturaconvertidaemespetáculopara"uma
massasilenciosae assustada".63
Formuladaem termosdas idealidadesde Max Weber, é
desenvolvidaporFerdinandTõnies uma reflexãoque combinaele-
mentosdasociologiadeTocquevillecomoutrosdapsicologiaproposta
porLe Bon.64ParaTõniesamudançaquesignificaapresençamoderna
dasmassasdeveserpensadaa partirda oposiçãode dois "tipos" de
coletividade:a comunidadee a sociedade(associação).A comunidade
sedefinepelaunidadedopensamentoedaemoção,pelapredominân-
cia dos laços estreitose concretose das relaçõesde solidariedade,
51
DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
lealdadee identidadecoletiva.A "sociedade",pelo contrário, está
caracterizadapelaseparaçãoentremeiosefins,compredominânciada
razãomanipulatóriaeaausênciaderelaçõesidentificatóriasdo grupo,
com a conseguinteprevalênciado individualismoe a meraagregação
passageira.A faltadelaçosqueverdadeiramenteaunemserácompen-
sadapelacompetênciaepelocontrole.A propostadeTünies,embora
formuladaemtermosquepretendemdescreversemvalorar,nãopôde
escaparàcargadepessimismoquesuas"idealizações"arrastam,eapar-
tir do qualserálido pelamaioriadosautoresqueseocupamdo tema.
Metafísica do homem-massa
Os acontecimentosquese"precipitam"noprimeiroterçodo
séculoXX vãoconduziro pensamentosobreasociedadeaoparoxismo.
PrimeiraGuerraMundial, RevoluçãoSoviética,surgimentoe avanço
do fascismo,tudo vemcorroborarna direitaliberalou conservadora
suasensaçãodedesastredefinitivoe exacerbaro pessimismocultural.
Dois livrosrecolhemesintetizamessaexacerbação,convertendo-seem
"clássicos"empoucosanosdepublicados:A rebeliãodasmassas,deJosé
Ortegay Gasset,e A decadênciado Ocidente,de OswaldSpengler.65
Propostaumasociologia(Tocqueville)eumapsicologia(Le
Bon, Tarde), já não faltavasenãoo saltona metafísica.É o queleva
a caboOrtega,com suateoriado homem-massa,na qual, como ele
mesmoexplicaemumalinguagemtãopoucometafísicacomoa sua,
trata-sedeir "d<ipele"dessehomemasuas"entranhas".O quesignifica
caminhardo fatosocialdasaglomerações--"amultidãoimediatamen-
te se fez visível.Antes, se existia,passavadesapercebida,ocupavao
fundo do cenáriosocial;agoraseadiantouàsbaterias,é elao perso-
nagemprincipal"66- atéa dissecaçãode suaalma:mediocridadee
especialização.O exterior,ou seja,a história,estáformadopelocres-
cimento demográfico e pela técnica,que têm seu lado bom "no
crescimentodavida"- avidamédiasemovea umaalturasuperior,
pois tem-seampliadoo repertóriode possibilidadesda maioria- e
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POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
seulado mauna aglomeração- "essainvasãopelasmassasde todos
os lugares,inclusivedos reservadosàs minoriascriativas"- e na
especializaçãoque desalojade cadahomem de ciênciaa "cultura
integral".O interior nos é descritoatravésde uma longae sinuosa
viagemaocoraçãodo homem-meio,do homem-massa,no qualsóhá
vulgaridadeeconformismo.É comoseosdetritosdohomemocidental
tivessemtomadoseucoração.No final daviagemOrteganos espera
com umafórmulaqueo resumeinteiro:"A rebeliãodasmassasé a
mesmacoisaqueRathenauchamavaa invasãoverticaldosbárbaroi'.67
Ou seja,o retornodaqueladefinitivaIdadeMédia quenãoé a histó-
rica,poisnãoestáno passado,masno futuro-presenteeseusbárbaros
invadindo-nosagoraverticalmente,querdizer, debaixopara cima.
Creioqueéo momentoderecordaraimagemcomqueabria
epretendiasintetizaro sentidodo movimentoquesubjazaolongode
todoo desenvolvimentodestateoria:do medoaodesencantoconser-
vandoo asco.E por maisqueOrteganosrepitaqueo homem-massa
não pertencea uma classe,mashabitatodas,sua referênciasócio-
históricaseachanosdebaixo,dadoqueelessão,naatrasadaEspanha
do começodo século,osqueconformamamaioria,amassaobscena,
amultidãoquenessesanosjustamenterealizadiaapósdiainsurreições,
levantamentosatravésdosquaissealça- verticalmente!- contraa
espessacapado feudalismopolíticoe econômicoenrijecido,e invade
os sagradose aristocráticosespaçosda cultura.Frenteà insurreição
popular,quenosanos30alcança,tantonopolíticocomonocultural,68
o momentomaisaltoefecundodaEspanhamoderna,Ortegaescreve
um livro comprólogoparafranceses,epílogoparainglesese cheiode
piscadelasdeolhosparaa filosofiaalemã,masdo qualestáprofunda-
menteausenteaprópriareferênciahistóricaespanhola.Há umponto,
semdúvida, no qual Ortegatoca a história,e sãoas referênciasà
cumplicidadedasmassascom o Estadofascistae suanecessidadede
segurança.Mas aindaaí acríticaseresolveemumaanálisemaismoral
que política: o Estadoaparecesemraíz no econômicoe o conflito
deslizaparao cultural.Vejamo-Iomaisde perto.
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DOS MEIOS ÀS MEDIAÇÕES
A relaçãomassa/culturaé tematizadapor Ortega de um
modo especialem A desumanizaçãoda arte,masos dois traços,que
paraeledefinememprofundidadeacultura,formampartesubstancial
da argumentaçãoquesedesdobraem A rebeliãodasmassas.Um: a
"culturaintegral"definidapor oposiçãoà ciênciae à técnica,reafir-
mandoaquelehumanismoquedelimitaa culturapor suadiferença
com a civilização. Propõe-se uma teoria para compreender a
modernidade,maso espaçodo quesepensacomoculturaapresenta-
seseparadodo trabalhocientíficoe técnico,e aferradoa umamistura
do clássicocultivodo espiritualcomelementosda éticaburguesado
esforçoe do autocontrole.Dois: a culturaé antesde tudo normas.
Quantomaisprecisa,quantomaisdefinidaanorma,maioréacultura.
E com esseconceitose"enfoca"a artequesefaznessetempo!
Qual éentãoparaOrtegao tipo derelaçãoqueamassatem
com a cultura?Paradizê-Iosemrodeios:nãosó a massaé incapazde
cultura- issovemsendodito dopovoháséculos- senãoqueo que
salvaa artemoderna,amonstruosaartequefazemDebussy,Cézanne
ou Mallarmé, é que serveparapôr a descobertoessaincapacidade
radicaldasmassasagora,quandoelaspretendemesecrêemcapazesde
tudo, atéda cultura.O melhordessaarteé quedesmascaracultural-
menteasmassas:frentea elanãopodemfingir quegozam,tantolhes
aborreceeirrita.Culturacriativa,anovaarteéavingançadaminoria
que,em meioda igualitarismosociale da massificaçãocultural,nos
tornapatenteque aindahá "classes':E nessadistinçãoque separaé
onde residepataOrtegaa possibilidademesmada sobrevivênciada
cultura.
A artemodernaresultasim essencialmenteimpopularpor-
queseerguecontraaspretensões- osdireitos- comquesecrêem
as massas,produzindo sua incomprensãoou repugnância,incom-
preensãoa queo artistarespondeexacerbandosuahostilidadee sua
distância.Com o quearelaçãoentrearteesociedadeserompe.E des-
integradaa artenãopodenãodes-humanizar-se:a figuradesbota,os
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POVO E MASSA NA CULTURA: OS MARCOS DO DEBATE
gênerosseconfundem,a harmoniaseperde.Mas tambémo quese
ganhaémuito,pensaOrtega,porquenestaprovadefogoqueatravessa
a artesepurificade todo o magmadesentimentalismoe melodrama
queaindaarrastava.Debussydesumanizaamúsicamas"nospossibilita
escutarmúsicasem desfalecimentonem lágrimas".No fundo, ao
separar-sedavida,o quesepassacomaarteéqueseencontraconsigo
mesma:apoesiasefazpurametáforaeapinturapuraformaecor.Ante
a ameaçaquevemda barbárievertical,antea ameaçaqueatormenta
por dentro,a culturaredescobresuasessências.E o paradoxotocará
fundo então.Ao defendera novaarte,Ortegachegaa seuponto de
máximoenfrentamentocomo fascismo."Hitler, Goebbelseosporta-
vozesda cultura'nazificada'atribuemao 'homem-nazi'o reflexode-
fensivotão claramentediagnosticadopor Ortega".69 Porqueparaos
nazisa artemodernaé degeneração,à qual só sepodefazerfrente
resgatandoasessênciasdaverdadeiraartequepermanecena tradição
popular.O modernonãoseriaarteporquerenegasuaorigemétnica
e suarelaçãocomo nacional.SeucosmopolitismoéparaGoebbelso
maisclarosinalde suadecomposição.
Mas o paradoxodeveser lido. Tanto o aristocratismode
Ortega,paraquema verdadeúltimada desumanizadaartemoderna
resideem humilharaspretensõesdasmassase demonstrar-Ihessua
insuperávelvulgaridade,como o nauseabundopopulismonazi com
sua defesade uma artepara o "autêntico"povo-raça,mascarame
mistificamos processoshistóricosde transformaçãoda culturae os
conflitos e contradiçõesque essatransformaçãoarticula.O mérito
indubitávelde Ortegaestáem nos ter feito compreendero graude
opacidadeeambigüidadepolíticacomqueserevesteemnossoséculo

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