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<\ VBHAS SECAS EM Novos SERTÕES Continuidade e mudanças na economia do Semi-Árido e dos Cerrados nordestinos GUSTAVO MAIA GOMES Brasília, 2001 V. APOSENTADOS E FUNCIONÁRIOS , PUBLICOS: A ECONOMIA SEM PRODUÇÃO Em campanhas passadás, o eleitor nos procurava para pedir um emprego; hoje, ele pede uma aposentadoria. (Depoimento de um deputado federa.! pernambucano, 1999). ---------v.~ • """""""' rwucos: .. ~- _.çAo --------- Com certa freqüência, processos sociais de grande impacto são pri- meiro percebidos por pessoas sem qualquer treinamento especializado - e só depois pelos pesquisadores profissionais. Este capítulo trata de um desses casos: a enorme importância que a renda dos aposentados, o em- prego e os salários dos funcionários públicos municipais, e as transferên- cias de recursos fiscais para as prefeituras, têm hoje, no Sertão, ainda não encontrou pleno e sistemático reconhecimento em nenhum trabalho so- bre a economia do Semi-Árido. Já foi notada, contudo, por observadores desprovidos de estatísticas e modelos, mas não de olhos para ver. Os jornalistas, por exemplo, vêm explorando o assunto há algum tem- po. Um deles escreveu, em 1994: A economia da região [do Cariri paraibano] gira hoje em torno dos recursos provenientes do pagamento dos aposentados, dos alistados nas frentes de emergência e dos funcionários municipais. Os aposentados da Previdência Social são os mais beneficiados, porque não ganham menos que o salârio mínimo e têm seus benefícios reajustados mensalmente [FSP, 1/1/94]. Os funcionários públicos estão ali desde sempre, embora ainda mais hoje do que ontem. Mas o registro sobre os aposentados revela perspi- cácia, tendo sido feito menos de um ano depois que o então ministro da Previdência, Antonio Brito, "em um lance político que o consagraria, autorizou aumentos para aposentados, sem dispor de fonte de recursos para tal" [Luis Nassif, FSP, 13/7/94]. Por "aumentos para aposentados", leia-se a proliferação das aposentadorias rurais, ocorrida após 1992, especialmente no Nordeste. Muitas outras observações semelhantes foram feitas, sobretudo du- rante a seca de 1998, ocasião em q':le os nordestinos andaram a comer calango (quando havia) e o Sertão voltou a ser notícia. Algumas delas: Afonso Cunha. Como na maioria das cidades nordestinas, quem tem renda em Afonso Cunha são os 611 aposentados rurais e os 90 funcionários da prefeitura. A prefeitura funciona como o principal indutor da geração de empregos, mas como o orçamento é curto (R$70 mil mensais), as obras são poucas. ( ... ) No imaginário local, a aposentadoria é a única perspectiva de renda [PSP, 26/9/98]. 1145 Va>W S.C.U .. ....,_ San'6ls Escassez de chuvas é crítica no RN. O que mantém a atividade nesses municípios [Cruzeta e Florânia, a 270 km de Natal, RN] duramente atingidos pela seca é basicamente o rendimento dos aposentados, funcionários públicos municipais e estaduais [e], principalmente, as frentes de emergência [FSP, 26112198]. Senador Sá é uma jóia no agreste cearense. ( ... ) Visto pelos fundos, Senador Sá não tem atividade económica, rede de água ou de esgoto. ( ... ) Sua prin- cipal fonte de renda monetária está nos R$ 60 mil que o Funrural remete mensalmente a SOO aposentados. A prefeitura já empregou mais de 15% da população e boje emprega 7,5% [FSP, 14/6/98]. •5 Mas os jornalistas não estavam sós em seu registro dos novos Sertões. Alguns padres também perceberam que algo importante, portador de opor- tunidades, estava em curso - e logo trataram de ganhar almas para o Céu, ajudando os fiéis a se aposentarem, na Terra: O Instituto Nacional do Seguro Social acusa padres e sacristãos do Nordes- te de falsificar certidões de batisrno. Elas seriam usadas como provas para a obtenção de aposentadorias. Para o bispo de Palmeira dos índios (AL), d. Fernando Iório, certidões foram dadas para •ajudar carentes•. Em sua diocese ocorreu metade das supostas fraudes no Estado [FSP, 10/10/95]. 46 Talvez fosse o caso de dizer que a diferença entre d . lório e certos politicos é que um ajuda carentes, enquanto os outros empregam parentes. Com efeito, prefeitos e vereadores sempre souberam valorizar o emprego público. Agora eles se dão conta, como sugere a frase em epígrafe, de que os aposentados já formam uma espécie de nova classe média, no Sertão, à qual muitos aspiram se incorporar. Quanto ao FPM (o fundo federal que repassa recursos para os municípios), não surpreende que a sua impor- tância também tenha sido percebida com toda clareza: Segundo o prefeito de Araripe [a 557 km de Fortaleza, c.E], El!sio Alves Alencar, só recebem salários no rnunicfpio os 780 funcionários da prefeitu- ra, os 2.800 aposentados rurais e os 150 funcionários estaduais. ( ... )O pre- feito declarou que a melhor forma de combater a miséria em Araripe seria aumentar a receita vinda do FPM, que em junho foi de R$ 70 mil [Falta cesta para a 'campeã' de indigêncian, FSP, 14/8/95, p . 1-10]. 05 A matéria continua: ·o último prefeito é o homem mais nco do pedaço. com l.mil frota de carretas• mas essa já é outra estória, embora não i1dependente da prrneira. 46 Diz ainda .Ati Gpola, na maténa da folhJ. "padres e sacristãos estão falsificando certidões de batismo, segundo o INSS. O 6rgOO remeteu à PoriCia Federal 1362 processos referentes a falsificações.( ... )~ dos reigiosos, políticos de Alagoas. Pernambuco e Paralba estão sendo acusados de estelionato" [FSP, I O/I OtJ5]. -·~----~~~~~--~j~· 1146 ---------V._,.,..,.,. I~............, A"""""""'-~--------- Mas nem todos têm esse temperamento contemplativo-recomendatório do prefeito de Araripe. Muitos de seus colegas passaram à ação, em defesa dos sagrados direitos aos recursos vindos de fora: Cem prefeituras de Alagoas prometem parar hoje suas atividades, manten- do apenas a coleta de lixo. A greve é um protesto contra a redução de 36% nos repasses aos municípios do FPM, feita pelo governo em março, e tam- bém contra a maneira como vêm sendo conduzidas as reformas. (. .. ) É a primeira greve de prefeitos de que se tem noúcia em Alagoas ["Reforma leva à paralisação cem prefeitos de AL", PSP, 12/4/95, p. 1-8]. Outros tiveram idéias ainda mais brilhantes, fazendo um verdadeiro planejamento estratégico: A Prefeitura de Utinga [412 km de Salvador, BA] está investindo R$300 mil em um projeto para aumentar o número de casamentos no município. (. .. ) Preocupado com a redução do número de uniões conjugais, o prefeito Luiz Alberto Muniz ( ... ) encaminhou à Câmara de Vereadores um projeto que concede uma casa para cada casal que realizar o casamento no civil e no religioso.(. .. ) ·com 18 mil habitantes, a prefeitura arrecada R$200 mil por mês de FPM. Para arrecadar R$250 mil ( ... ), a cidade precisaria ter 29 mil habitantes. Também é uma questão de finanças públicas e considero um bom investimento", ressaltou [o prefeito] ["Prefeitura baiana dá casa para quem casa", FSP, 19/4/98, p . 3-9]. •7 Esta parte do livro trata disso . Dos sertanejos aposentados, um gru- po de pessoas hoje muito mais numeroso e rico (tudo é rela t ivo) do que jamais o foi; dos funcionários públicos , os de sempre e os de nem sem- pre, pois seu número também cresceu, embora ainda ganhem mal; das prefeituras, cujo dinheiro vem de lugares desconhecidos, mare s nunca dantes navegados, terras de são Nicolau. (Quem se importa, se o crédito em conta sempre chega, na data certa?) O capítulo reconta um pouco da história e das circunstâncias que deram origem à economia sem produ- ção e mostra, em números, como a renda dessas duas categorias , • 7 Ml.lliz não estava só e nem sua idea era um monopólio de nordestinos. Seis meses antes. o prefeito de Bocaiúva do Sul (região metropolitana de Curitiba) havia decretado a proibição da venda de camisinhas nas farmáciasda cidade e c.'13do um incentivo fiscal para a construção de mot~ Tudo isso. com a mesma finalidade de aumentar a população local. Ninguém deu bola e o própno prefeito disse. depois. que era apenas uma forma de chamar ate~ para o corte de seus recursos, mas que a idéia prosperou, prosperou ("Prefeito do PR quer sexo e proc:riasão", FSP, 19/ll tJ7, p. 3-2; e "Prefeito do PR revoga decreto e deixa Bocaiúva ter camisinhas", FSP, 21/ll tJl. p. 3-13). 147 v--. s.:..s ... N"""" Soon6a aposentados e funcionários públicos, constitui; hoje, o mais importante setor econômico do Semi-Árido nordestino. E, também, como o dinheiro recebido pelas prefeituras ajuda a dar vida a uma economia em que o cartão do INSS e a cota do FPM valem infinitamente mais do que todos os pés de mandioca que ali, um dia, já floresceram. LO QUE É A "ecoNOMIA SEM PRODUÇÃo"? Os estudantes de economia recebem muito cedo a lição de que pro- duto e renda são duas faces de uma mesma moeda. Se o produto é uma montanha de melancias, produzidas em um determinado período, a ren- da é o direito de quem as produziu fazer o que quiser com elas: comê- las, vendê-las, deixá-las apodrecer ... A quantidade de melancias previa- mente produzidas não pode ser senão igual à soma das melancias utili- zadas de todas as formas possíveis. É a identidade entre produto e renda e aí se encerra o semestre. Só quando voltam das férias, os jovens estudantes aprendem que renda e produto são idênticos, sim, mas somente se forem definidos de forma correta. Na prática, eles não apenas podem diferir como, freqüentemente, o fazem. O agricultor pode estar usando terras alheias, de modo que, das melancias produzidas, uma parte ele retira para pagar o arrendamento. Seu produto, portanto; é maior do que a. sua renda. Isso Vale para conjuntos mais amplos do que um produtor isolado. Em parti- cular, é possível que um determinado espaço geográfico tenha muito pro- duto e pouca renda, como dizem ter acontecido com a Alemanha de Weimar, obrigada a pagar reparações de guerra aos aliados. (Há quem conte uma história bem diferente.) Ou muita renda e pouco produto, como aconteceu com a Espanha que, no apogeu de seu império colonial, vivia em grande estilo, pilhando o ouro da América. Guardadas as proporções, uma parte da economia do Semi-Árido é como a da Espanha dos séculos XVI e XVII: tem muita renda e pouco produto. (Ou talvez fosse melhor dizer: pouca renda e quase nenhum produto.) 1. 148 [. ·~.. . . . --~-,-.-- ~-.. - J . · :. .._. ~· ... . . ' o .. ---------- V. AoosefTAOOI I I'UNCIOHÓIOOS I'ÚOUCOS: A ~ - NOOUÇ.Io ---------- É a economia sem produção. Os três agentes principais constitutivos des- sa economia são os aposentados, os funcionários públicos, e as prefeitu- ras. Os aposentados comparecem com seus benefícios; os funcionários públicos, com seus empregos e seus salários; e as prefeituras (assim como as câmaras de vereadores), com seus funcionários permanentes e tempo- rários, com as empresas locais que lhes prestam serviços ou fornecem mercadorias, e com os seus recursos financeiros, especialmente, a cota do Fundo de Participação dos Municípios. Como o parágrafo anterior sugere, cada um desses agentes entra na estória de um modo diferente. A rigor, o termo economia sem produ- ção só se aplica aos aposentados, pois os benefícios dessa categoria cons- tituem uma transferência de renda, ou seja, são pagos sem a exigência de qualquer contrapartida contemporânea de prestação de serviços produtivos. Enquanto tais, portanto, os aposentados não produzem nada, mas se apropriam, não obstante, de uma parte da renda nacional. No Semi-Árido, o peso relativo dessa parcela é bastante alto, não por- que os aposentados recebam assim tanto dinheiro, mas porque a eco- nomia local produz muito pouco. 48 Com os funcionários públicos, entretanto, as coisas se passam de outro modo. Seus salários constituem, em tese, um pagamento pela pres- tação de serviços produtivos (como os de administração, segurança, edu- cação e saúde). Ou seja, os funcionários públicos municipais do Semi- Árido produzem alguma coisa. O difícil é saber quanto - ou o quê. A dificuldade surge, aqui, porque os estatísticos nunca aprenderam a medir o produto dos serviços governamentais diretamente, o que consis- tiria em calcular suas quantidades 'e multiplicá-las pelos respectivos valores unitãrios. Como não conseguem fazer seus cálculos desse modo, eles apelam para uma estimativa indireta, baseada na identidade ' 1 Note-se que só foi posslvel recolher dados relativos aos aposentados do setor pnvado, pagos pelo INSS. Nao existe razão para supor que haja 1.m número desproporcional de aposentados do setor público residindo no Nordeste da Seca (o contrário deve ser verdade), relativamente ao número que reside em outras reglÕeS. mas, contudo, existem, daro, funcionários públicos aposentados no Semi-Árido. Sua renda deveria ser contada corno parte da economia sem produ?o. 1149 v ..... Soc.u 1M H<M>I SIO!T6os produto-renda (ou produto-valor adicionado, que é a mesma coisa): so- mam os salários pagos pelo governo e declaram esse valor como sua estimativa do produto governamental. Trata-se de uma boa idéia que, entretanto, quando aplicada em certos contextos, pode gerar resultados esdrúxulos, como o paradoxo do prego: se todos os prefeitos do pafs resolvessem, em um ano eleitoral, triplicar o emprego (mantidos os mesmos salários), o produto público municipal tam- bém triplicaria nas estatísticas, mesmo se não houvesse sofrido qualquer modificação na vida real, ou seja, mesmo que nenhum dos novos funcio- nários, na verdade contratados para votarem corretamente (e não para tra- balhar; muito menos para produzirem qualquer coisa), jamais tivesse, sequer, enfiado um prego na manteiga. Não se precisa ir a esses extremos para concluir que as estimativas dos produtos públicos municipais, inclusive do Semi-Árido, devem ser vistas com extrema cautela. Ainda mais porque, com a proliferação re- cente de municípios politicamente úteis, mas economicamente nulos e fiscalmente inviáveis [Maia Gomes e Mac Dowell, 1997], e com a tradição local de se usar a expansão do emprego público como politica socioeleitoral, o tamanho da folha de salários das prefeituras deve guardar não mais do que uma pálida relação com o volume do produto efetivamente ofertado pelos municípios às respectivas populações. Em síntese, a única coisa de que se pode estar certo é que a prirneir? (a folha) é maior do que o segun- do (o produto). Como não se dispõe ainda de metodologia alternativa para o cálculo direto do produto público municipal, não é possfvel determinar que percentagem do pagi1ffiento aos funcionários constitui a contrapartida pela geração de um produto e que parcela representa, na verdade, apenas uma transferência de renda, disfarçada em salários. Essa última constitui parte da economia sem produção - e deveria ser contada como tal. Ou seja, se não um, pelo menos meio paradoxo do prego está lá. Finalmente, cabe refenr às prefeituras, às câmaras municipais e às suas fontes de renda. Ao se constituírem, quase integralmente, de transfe- rências fiscais líquidas, ou seja, superiores à contribuição desses munici- 1150 ···· ·· -· ···· ·-·· - --------- V. AoosiHTAOOS I fUHCIOHÁOIOS I'ÜeUCOS: .. ~ - I'OOCJUÇAo --------- pios para a receita do ICMS (imposto estadual), ou para a formação do FPM, as receitas tributárias que os municípios do Semi-Árido recebem do Estado e da União possuem uma característica que as tornam componentes legíti- mos da economia sem produção: representam poder de compra, posto sob o comando de centros locais de decisão, mas não derivado da produção local. Centros locais de decisão não são, apenas, as prefeituras e câmaras de vere- adores, mas também os funcionários temporáriose permanentes das pre- feituras e os donos e empregados das firmas locais que fornecem bens ou serviços para as prefeituras e para as câmaras. 49 É óbvio que não se pode somar os benefícios dos aposentados com os salários dos funcionários públicos e com as receitas recebidas pelas pre- feituras, pois representam grandezas económicas de natureza similar, mas não idêntica. Benefícios e salários são renda pessoal e, portanto, podem ser somados, desde que não se identifique o valor encontrado com o tama- nho da economia sem produção. (Foi visto que os funcionários públicos produzem alguma coisa.) As transferências de recursos fiscais não são rendas de pessoas, embora uma grande parte destas se transforme em tal, vindo a se constituir nos salários dos funcionários municipais permanen- tes e temporários, assim como nos dos empregados das firmas que forne- cem bens ou prestam serviços às prefeituras. Neste capítulo, diante das dificuldades estatísticas mencionadas, o foco principal será colocado mais nos aposentados , nos funcionários públicos e nas prefeituras do que na economia sem produção, no seu sentido restrito. Mas não se deve perder de vista que os quatro são pa- rentes próximos. 49 Maia Gomes e Mac Dowell ( 1997) elaboraram estimativas dos valores lfquidos (valor recebido menos contribui- ção para o flflal'lCÍamento do fundo) do FPM por grupos de munidpios. dassdicados segundo a pop.Jiação e a regiao. No Nordeste, somente os mi.XlidptOS de mais de um milhão de habitantes não são recebedores liquides de rccur>os do m1. Toda a região recebe muito mais recursos do FP~I do que contnbui para o seu financiamento. Como não há rnlXlidpios de mais de um miNo de habitantes no Semi-Mdo. condU-se que o conjunto dos rni.XlÍdpios que compõem essa sub-regiao do Nordeste recebe liquidamente recursos do FPM - e em um grau muito maJOr do que toda a região Nordeste. Veja-se também, nessa mesma linha, mas tratando das transfer!n- oas de renda a famllias, Mala Gomes e Mac Dowel ( 1998). v....., SecAS ., HOWIO SM..- CCoNSTRUINDO A ecoNOMIA SEM PRODUÇÃO Dois processos fundamentais convergiram para formar (ou expandir), no Semi-Árido, a economia sem produção. Foram eles: i) a transformação do Estado brasileiro, que começa nos últimos anos da década de 70, de investidor em assistencialista; e ii) a febre de criação de municlpios, inau- gurada em 1984. Pela sua importância, a estes se deveria juntar a universalização das aposentadorias rurais, prevista na Constituição de 1988 e posta em práti- ca entre 1992 e 1994, o que somaria três processos, mas esse último é melhor entendido como um desdobramento do primeiro. Nem são, na ver- dade, dois (ou três) processos independentes, porém dois (ou três) aspec- tos de um só processo, mais geral, que tanto pode ser designado por um nome bonito, digamos, Desdobramentos da Descentralização PoUtica e da Redemocratização, como por um feio, do tipo O Triunfo do Neopopulismo. Você decide. Neste capítulo, esses processos, de abrangência nacional, serão examinados da perspectiva de seus impactos sobre o Nordeste e, ainda mais especificamente, o Serni-Árido nordestino. Embora se possa argumentar que o enorme crescimento recente da economia sem produção passou quase sem registro na literatura, a atua- ção do setor público no Nordeste, em suas formas mais tradicionais, foi destacada em vários trabalhos clássicos. Ocorre, contudo, que as formas de atuação do Estado têm sofrido mudanças qualitativas, com o passar do tempo, e isso nem sempre é percebido. No relatório do G1DN, Celso Furtado assinalou a importância do setor pú- blico na economia nordestina e seu papel na correção dos desníveis regionais de renda. Analisando, inicialmente, o lado da arrecadação de impostos, ele concluiu que a_ estrutura tributária então vigente no Brasil não apresentava progressividade, o que a impediria de atuar, automaticamente, como meca- nismo corretor daqueles desequilíbrios [GTDN, 1967, p. 44-46]. Pelo lado da despesa, entretanto, ainda segundo Furtado, •cabe[ria] reconhecer que ele [o sistema fiscal] exerce parcialmente essa função [redistributiva]: De fato, 1152 I. ---------- V.~...,.,. • """"""'0101 .Ooucos: A-=-"'...,~---------- dispositivos da Constituição de 1946 obrigam o governo federal a aplicar no Nordeste uma percentagem mínima (3 por cento) da receita tributária, re- ceita que tem aumentado mais que a renda daquela região. Embora ainda não estejam disponíveis levantamentos completos dos gastos federais na região, tem-se como seguro que estes gastos excedem, substancialmente, as receitas ali arrecadadas ('op. cit.' , 1967, p. 46-47). 50 Esses recursos de origem governamental compensariam, em parte, a fração da renda do setor privado que, atraída pelos sinais de mercado, fluiria na direção contrária, ou seja, sairia do Nordeste para as regiões mais desenvolvidas. De qualquer forma, como os gastos compulsórios do governo federal no Nordeste estavam amarrados ao fundo das secas, boa parte do papel destacado do setor público na sustentação da renda nor- destina se exerceu, de fato, no Semi-Árido, sobretudo quando as chuvas faltavam. Nem tudo era positivo, entretanto, dizia Furtado, pois os gastos federais se constituíam predominantemente de subsídios ao consumo, ao passo que os recursos privados que deixavam a região, expulsos pela falta de oportunidades de investimento, eram capitais. Não obstante o fato de que o relatório do GTDN (cuja edição original é de 1959) não tivesse como analisar os anos posteriores à criação da suoENE, as décadas de 60 e 70 testemunharam a manutenção das transferências de renda, mas agora, em grande parte, como financiadoras de investimen- tos diretamente (governo federal e empresas estatais) ou indiretamente (recursos de incentivos fiscais ou créditos do BNDES) públicos no Nordeste. Nesse sentido, já em 1971, Goodman e Cavalcanti de Albuquerque (1971, p. 29) podiam escrever que Ma crescente participação do dispêndio públi- co direto no produto regional [do Nordeste] confere-lhe significado de ele- mento dinamizador do produto e do .crescimento regional, especialmente depois de meados dos anos so·. 10 Em análise posterior, Goodrrwl e Cavalcanti de ,AJbuquerq.Je ( 1971, p. 32) c:onte:star.wn Furtado: 'foi áto atlures. espeOaJmente com referência aos anos 50, que a regressMdade da estrutura f&al do país teria lnpedido um dedí1io relatNo da carga t'l5GII mposta ao Nordeste- Este argumento, com efeito. não se confirma pelo que se evKlenaa da tabela 11.8 (não reproduzida aqu]. que ~ a relaçio entre a carga iscai no Nordeste e a incidente sobre o resto do Brasil. Essa~ decresce sistematicamente e essa reduç1o acentua-se particutar· mente no perlodo 1955/62, isto é, nos anos em que ocorreu rápido crescimento econ6mico no Centro-Sul.( ... ) À luz dessa evidênoa. portarto, a opnão prevalecente, segt.ndo a qual a estnJII,ra tri:Jutária não estaria operando como mecanismo de redistrib.Jição inter-regional de renda. necessitaria ser modificada'. VB.HAJ S.CAS .. Novos 5lll'rón E mais: As transferências inter-regionais de recursos efetuadas via governo correspondem virtualmente a 1% do produto interno líquido do país, a pre- ços de mercado, nos anos 60. O mecanismo dos incentivos financeiros do 34/18 [sistema de incentivos fiscais que antecedeu o FINOR], constitui um se- gundo - se bem que subsidiário - instrumento da política de redução das desigualdades regionais de renda, e que está gerando transferências inter- regionais de recursos.( ... ) Em 1967 o fluxo de depósitos do 34/18 [que finan- ciam o investimento privado na região] ( ... ) ascendeu a 3,6% do produto regional líquido [Goodman e Cavalcanti de Albuquerque, 1971, p. 30 e 31]. Tão elevados níveis de investimento público, entretanto, não iriam durar para sempre. Desde logo, 3,6% do produtoregional líquido do Nordeste equivaleriam, hoje, muito aproximadamente, a R$3,6 bilhões. Para aqueles que se nutrem de lembranças de tempos melhores, cabe mencionar que, na década de 90, somente em um ano (1991), os repas- ses do Tesouro Nacional para o FINOR alcançaram 24% de R$3,6 bilhões (ou seja, atingiram R$720 milhões). Menos de um quarto, portanto. Em 1998, último ano para os quais os dados estão disponíveis, as libe- rações do FINOR não alcançaram R$500 milhões, ou seja, ficaram em menos de 14% do que deveriam ter sido, se os parâmetros da década de 60 tivessem sido mantidos. Os anos gloriosos da política regional parecem, de fato, ser coisa do passado. 51 Mas o declínio extremamente severo do apoio governamental ao inves- timento não significou que a presença _do governo na região Nordeste esti- vesse predestinada a se reduzir. Apenas mudaria, outra vez, de feição. Os investimentos perderiam importância, dando lugar a volumes crescen- tes de novos Hsubsídios ao consumo", para usar a expressão de Furtado. SI Fonte: STN, in Ministério da Integração Nacional, Boletim lnó!Cadores Regionais, agosto de I m, p. 58. MaJa Gomes e Vergo1"100 ( 1995, p. 62 e ss. e tabela A I O, no anexo) mostrarcun que o investrnento púbico (llldusive o das empresas estatais, mas exclusive o iwestimento privado financiado com recursos púbftcos do ANOR), como percentagem do Pi& r c:gional, no Nordeste, cresceu persistentemente de I 965 (primeiro ano para o qual se dispôs de dados) a 1978. Nesse ano, o investimento po.1llico alcançou 14% do PIB 00fdesti1o. Desde então, contudo, este passou a dedinar; também de forma persistente. Em 1991 (último dado então c!ísponNel), o investtnento público havia se reduzido a 8, 5% do produto interno bruto regional. OJ seja. a redução da presença do governo federal como investidor direto se somou à perda de parcela considerável dos recursos federais que, anteriormente, eram canalizados para a região, em apoio cireto ao investimento pnvado. ]IS~ ~-~ ---------V. NosaHrADOS I OUNCION.ÚIIol P'l)aucos: A """'- - f'ROOUÇAo --------- Com efeito, começando com valores bastante altos, em 1970, os gastos rela- tivos de investimento público (governo e estatais) no Brasil e no Nordeste I despencaram, a partir de meados da década de 80, ao mesmo tempo em que as despesas com pessoal cresceram e as com previdência e assistência · explodiram. A tabela 5.1 (p.l56) e o gráfico de mesmo número (p.157) apre- sentam os dados. 52 A tabela seleciona cinco áreas de observação: o Brasil, a região Nor- deste e os estados de Ceará, Rio Grande do Norte e Parruôa. Os três últi- mos, como foi visto n~apíiUÍÕ anteri.~r, têm a quase totalidade de seu território na área da seca, representando, desta forma, uma _am_ostra da região semi-árida. Note-se que os dados da tabela se referem às despesas ------em formação bruta de capital; previdência e assistência; e pessoal, como percentagens da despesa total não financeira do setor público consolida- do (e não como percentagens do PIB, como ocorre freqüentemente). Em toda a região Nordeste, a queda do investimento governamental, entre 1970 e 1995, chegou a 12,9 pontos percentuais. É certo que 1970 foi um ano atípico, mas mesmo se 1975 for tomado como base, a redução das despesas em formação de capital, como proporção das despesas totais do setor público na região, ainda é muito significativa {13,6%, em 1975; 6,2%, em 1995). Em compensação, as despesas com previdência e assistência e com pessoal, em relação às despesas públicas não financeiras totais, au- mentaram muito, no período coberto pela tabela 5.1 (p.156). 53 51 P.!ra estabelecer a verdade histórica em sua inteireza, é preciso dizer que a redução do investimento público não ocorreu apenas para dar lugar a {portlnto, ~ mais despesas sociais, no sentido aqui adotado para a expressão. A queda dos investimentos cumpriu, também, a função ainda menos nobre de variável de ajuste para acomodar as crescentes despesas financeiras -:- juros e amortizações - resultantes do excessivo endividamento público, her.!nça dos anos 70. Apesar de importante, o reconhecimento deste ponto não altera o raciodnio condUZido até aqui: continua sendo verdadeiro que o maior peso relativo das despesas de previdência, assistência e pessoal nos orçamentos públicos do Brasil, a partir de meados da década de 80, foi tomado passivei pela redução (relativa e absoluta) das despesas com investimentos. 51 Es$as teodênaas fornm, na verdade, nacionais. ~. para o total do Bras~l. a fvr r uaçdo bruta de capital respondia por 15,8% das despesas públicas, em 1970, e por apenas 7, 1%, em 1995. OJ seja. a participa~ do investimento nas despesas públicas não financeiras perdeu 8. 7 pontos percentuais, nos 25 anos cobertos pela tabela 5, I , Em contraste, a previdência e assistência ganharam 7,2 pontos percentuais: elas consumiam 29,4% dos gastos governamentais, em 1970, e passaram a responder por 36,6% desses mesmos gastos, em 199 5. As despesas relativas com pessoal também aumentaram, embora menos (I . 2 ponto percentual), passan- do de 28,2% para 29,4%, entre 1970 e 1995. jrss v ....... s.c..s ... Nows s- TABELA 5.1 BRASIL, NORDESTE E ESTADOS DE CEARÁ, RIO GRANDE DO NORTE E PARAfBA1 Formação Bruta de Capital Fixo do Setor Público, Despesas com Previdência e Assistência e Despesas com Pessoal como Porcentagem da Despesa Total do Setor Público1 kea f 1970 I 1975 I 19~--119;; I 1995 Fonte: Fundação Getúlio Vargas e nwe, Regionalização das Tn.nsações do Sei.Or Públi<:o; elaboraçáo ti'IN'utr.UL Nota$: 1 Os &tados de Ceari, RlO Grande do Norte e Paraíba, por terem quase a totalidade de seus territórios localizados na zona seml-trida. slo analisados aqui como uma IJJ10StB do que, provavelmente, aconteceu em todo o Sertão. ' Os valores rclncionados referem-se As despesas (exclusive juros e amortizações de dividas) dos a& nlveis de covemo (federal, estadual e municipal), coosoü~ de fonna a evitar coo~eos duplu. Excluem as despesas das empresas estatrus. Se os dados dos três estados mais sujeitos às secas forem observa- dos, as tendências são as mesmas. O investimento público (União, Esta- do e municípios) representou 16,2% dos gastos públicos totais não finan- ceiros no Ceará, em 1970 - e apenas 6,8%, em 1995; no Rio Grande do Norte, os números são 14,1%, em 1970, e 3,1%, em 1995; na Panu'ba, a formação bruta de capital fixo respondeu por 23,4% dos gastos públicos não financeiros da União, estado e municípios, em 1970- e apenas 5,2% desses mesmos gastos, em 1995. Enquanto isso acontecia, os gastos re- lativos com previdência e assistência subiam, entre os anos extremos da 1156 ---------- V. ....._,.....,. I .,.....,..,...,. """-'CDS: A ...,.,._... - I'IIOOUÇAo ---------- série, em todos os três estados. Já os gastos relativos com pessoal subi- ram na Paraíba, mas se reduziram no Ceará e no Rio Grande do Norte. (Mesmo no Ceará, entretanto, os gastos com pessoal subiram, se a base de comparação for mudada para 1975.) 54 GRÁFICO 5.1 NORDESTE ~ • ~ ::::. ! I j I Gastos do setor público em investimento, pessoal e em previdência/ assistência como porcentagem da despesa total, 1970, 1975, 1980, 1985, 1990•,1995 120 t10 PREVID~NCIA E ASSISrtNCIA tOO ao ao '10 ao ao oiO .!0 ~ i I i I Fonte· I'GV e oaae, Re&iona!Jzação das Transações do Setor Público . • Os valores para i990 não s&o disponlveis nas fontes citadas; foram obtidos por 1nterpolac;Ao hncar. Em síntese, o que os dados agregados mostram é o processo de reestruturação dos gastos públicos não financeiros - menos investimen- to e mais despesas com pessoal, previdência e assistência - que, apesar de ter ocorrido em todo o Brasil, teve importância especial para o Nor- deste e, ainda mais, para o Semi-Árido. Isso porque, no país,tomado em s• O crescimento das despesas com previdênCia nao se ~stmu apenas em termos de sua p.lrticipação na despesa total não financeira do setor público. Além e Giamb~agi ( 1999, p. 130) mostraram, utilizando dados dos Ministénos da Pre\lld!ncia e Assistência Social e da Fazenda, que as despesas com pagamentos de benefícios previdenciários corresponderam a 3,5% do PIB brasileiro, em 1980, e a 5,4%, em 1996. Esse ponto será retomado mais adiante. 157 v ...... StcAs .. NoYos 5em)u conjunto, o crescimento tardio do Estado de Bem-Estar Social, em gran- de medida feito às expensas do investimento público (e, portanto, confi- gurando uma compra do presente, vendendo o futuro), significou a mon- tagem (ou a expansão) de um aparato assistencialista que encontrou em funcionamento UIIlSl economia real, adicionando-se a ela. Já no Sertão nordestino, em contraste, a universalização das aposentadorias rurais e a expansão do emprego público de produtividade duvidosa nos municí- pios adicionou-se praticamente a coisa nenhuma, pois a economia agropecuária local, que nunca fora grande coisa, já se achava, então, em plena decadência e não havia qualquer outro setor económico de peso 1 equivalente lhe sucedendo. Nessas condições, o novo Estado na verdade criou, no Semi-Árido, uma nova economia, cujo fundamento é a apropri- ação de rendas produzidas em outras regiões. 55 A montagem dessa economia de aposentados e de funcionários públi- cos municipais beneficiou-se muito de circunstâncias especiais, presen- tes nos anos de redemocratização e descentralização política. A expansão das aposentadorias rurais, permitida pela Constituição de 1988 e desencadeada a partir de 1992, e a criação em larga escala de municípi- os, que começa já em meados da década de 80, são duas dessas circuns- tâncias especiais, como será visto a seguir. CA HORA E A VEZ DOS APOSENTADOS As despesas 'com a Previdência Social no Brasil vêm crescendo per- sistentemente há muito tempo, um ponto já discutido na seção anterior. Ali foi citado um trabalho recente de Ana Cláudia Além e Fábio Giambiagi no qual os autores mostraram que, enquanto em 1980 os gastos com bene- fícios previdenciários correspondiam a 3,5% do PIB, em 1996, essa mes- ma relação havia saltado para 5,4%. Segundo eles: ... 55 A d~ emplrica de que as rendas e os reaJ~ fiscais transferidos pelo governo federal para o Nordeste são "produzidos em outras regiões" está dada nos trabalhos já citados do autor, em parceria com Maria Cristroa Mac Do.vel (Maia Gomes e Mac Dowe!l. 1997, 1998 e 1999]. 158 ---------V. ~loDOS II'UNOOMAiaos .O.UCOS: A~-~--------- esse crescimento expressivo decorreu de três fatores principais: i) o crescimento do número de benefícios; ii) o crescimento da participação relativa de alguns componentes dos gastos previdenciários; e, iii) a evo- lução do valor real do salário-mínimo, especificamente em 1995 e 1996 [Além e Giambiagi, 1999, p. 130]. Para o Nordeste, e ainda mais para o Nordeste da Seca, o aspecto mais importante dessas transformações ocorreu na esfera das aposentadorias ru- rais. Isso, por duas razões. Uma, aritmética: como a participação da popula- ção rural do Nordeste na população rural do Brasil é muito maior do que a relação entre as populações totais do Nordeste e do Brasil, a expansão acelerada das aposentadorias rurais, que se verificou entre 1991 e 1994, teria de ter um impacto especialmente significativo no Nordeste e, com ainda maior força, no Semi-Árido. Não surpreende, portanto, a descober- ta de Guilherme Delgado, do IPEA, que vem conduzindo uma extensa pes- quisa de campo sobre a previdência rural no Brasil: No grupo dos 15 estados com as informações pertinentes já tabuladas, veri- fica-se que a participação dos beneficiários da previdência rural, relativa- mente à população total varia de 0,95%, no Rio de Janeiro, até 8,98%, no Piauí. Os maiores lndices de participação foram registrados nos estados da região Nordeste. De fato, ( ... ) os estados do Nordeste ocupam todas as pri- meiras posições [Delgado, 1997, p. 17]. A segunda razão por que a expansão das aposentadorias rurais teve importância especial para o Nordeste é que, tendo a sua concessão sido feita sem levar em conta a exigência de uma contribuição anterior, os inativos que haviam sido sempre trabalhadores do setor informal (muito mais comuns no Nordeste, sobretudo no Sertão, do que em todo o país) terminaram sendo os grandes beneficiados, outra vez com reflexos desproporcionalmente altos no Nor~este e ainda mais no Semi-Árido. O crescimento das aposentadorias rurais viria e ser, portanto, a ocorrên- cia de maior impacto para o Sertão. E, com efeito, entre 1992 e 1994, a quantidade de aposentadorias rurais pagas pelo INSS aumentou em 99,2% [Além e Giambiagi, 1999, p . 131, tabela 2]. Seguramente, metade dos novos beneficiários r c::~iuc:: no Nordeste e, destes, uma proporção ainda maior, no Nordeste da Seca. 1159 v ....... s.c..s 1M Novos Sarou O salto ocorrido ,a ~-d~ ~ digno de nota. Porém, o sistema já operava razoavelmente bem em 1991. Parà esse ano, Ds:lgado (1997, p. 11) observou que "a proporção da renda domiciliar total (urbana e rural), ou da renda domiciliar rural, correspondente a pagamentos de benefícios- rurais é também sempre maior no Nordeste do que nas demais macrorregiões". A situação melhoraria muito a partir de 1992, com a entrada em vigor da legislação complementar à Constituição de 1988 (leis n~~t 8 212 e 8 213/91, ver Delgado, 1997, p. 12). No caso do Nordes- te, a relação entre o número de beneficias rurais continuados e a popula- ção total saltou de 4,4% (1991) para 6,6% (1994), muito acima da média brasileira (4,1%) e também superior aos valores registrados em qual- quer outra região [Delgado, 1997, p. 14]. Mas a significação especial, para o Nordeste, do crescimento das apo- sentadorias não decorre apenas do fato de que o número de beneficias aumentou. Como a renda local é muito baixa, o valor relativo das aposen- tadorias é, correspondentemente, maior. Nas estimativas de Guilherme Delgado (1997, tabela 12), a relação entre a renda dos inativos rurais e a renda domiciliar rural chegava a apngir, em 1993, em estados do Nordes- te, valores tão altos quanto 63,2%, na Paraíba; 55,8%, em Pernambuco; 49%, no Piauí; 48,5%, no Ceará; e 39,6%, no Rio Grande do Norte. (Para se ter um termo de comparação, essa mesma relação, em São Paulo, era de 8,5%; em Santa Catarina, de 6,2%.) Ou seja, enquanto em São Paulo um aposentado a mais significa muito pouco, em termos de contribuição para a renda total de sua comunidade, o oposto ocorre no Nordeste e, ain- da mais, podemos seguramente extrapolar, no Semi-;Árido. Ali, quando chega o pagamento das aposentadorias (e, é claro, o FPM), chega quase tudo o que está para chegar naquele mês. ·Para as vastas regiões mais pobres do país", diz Guilherme Delgado (1997, p. 27), "há uma sustentação da renda rural fundada basicamente no sistema previdenciário". Se, na frase anterior, a expressão •vastas regiões mais pobres do país" for substituída por "o Nordeste da Se.ca", tem-se um bom retrato, embora parcial, da economia sem produção do Semi-Árido nordestino. Um retra- to mais completo, inclusive porque colocado em contraste com outras áreas 1160 -r ---------- V. ~ADOS l PUNOONÂIUOS 1'\loucos; A ICONOMIA .... l'ftoouç.\o ----- - - --- de comparação (Nordeste Fora da Seca, Nordeste Total e Brasil) é forneci- do pelos cinco indicadores reproduzidos na tabela 5.2, a seguir: TABELA 5.2 _ NORDESTE DA SECA,1 NORDESTE FORA DA SECA, NORDESTE E BRASIL Indicadores dos Pesos Absolutos e Relativos das Aposentadorias e Pensões do tNSS na Economia Regional, 1997 Aposentadorias • Pensões Aposentodorios e Pensões do INSS (Valores • Percentagens) Font"" Número e valoresde benellcios (aposentadorias e pensões), DATA!'ai!V, WPAS; dados de emprego e salários do setor formal, inclusave adrruni>lt'aÇiio pública. ws/MT'tl; dados de renda e população, toa (CeD$0 Demográfico de 1991 e Contacem Populacional de 1996). Nota: I o "No~tc da Seca" é. área aeoif110u formada pelos atuals I 122 munlcfpios do Nordeste (exclui, portanto, os municfpoos de Minas Ge rais e do Esplrito Santo) diaanosticados como.,., sltuaç4o critU:a na seca de l998, e nos quais foram abertas mieS de trabalho peia SUD2Nl!; o Nordeste Fora tÚJ Seca é, Slmplesmente, o rest.ante da reaiAo. A tabela mostra, por exemplo, que existem 2,2 milhões de pessoas beneficiadas com aposentadorias rurais e urbanas do I.NSS, nos municípios críticos da seca. (O número de aposentados do setor público é, ainda, des- conhecido.) O dado se refere a 1997, mas desde então não deve ter se alterado muito. Embora a tabela omita esse cálculo, são (no Nordeste da Seca) 11 O pessoas para cada 1 mil habitantes, um valor muito superior ao do Nordeste Fora da Seca (89,3) e também maior, porém já não tanto, do que o correspondente ao Brasil (102,5). São 2,52 pessoas beneficiárias de aposentadorias do INSS, no Nordeste da Seca, para cada uma pessoa ali formalmente empregada pelo setor privado. As relações corresponden- tes, para o Nordeste Fora da Seca e para o Brasil, são, respectivamente, 1161 v ..... Soc.u .. No.os s.rou 0,73 e 0,67. Mais uma vez: o problema não é tanto de excesso de aposenta- dos, quanto de escassez de atividade económica, sobretudo formal. O valor total das aposentadorias pagas pelo INSS no Nordeste da Seca (1997, preços correntes) correspondeu a R$4,1 bilhões, que é mais do que o produto agropecuário tradicional da região, no ano normal de 1996. Note-se que não estamos comparando as aposentadorias de 1998 com o produto agropecuário do mesmo ano, caso em que os benefícios do INSS ganhariam por margem ainda maior, devido aos efeitos da seca sobre a produção agrícola do Semi-Árido. Comparados à massa salarial do setor privado formal, os recursos pagos pelo INSS aos seus aposentados do Nor- deste da Seca correspondem a 132,8%, valor 4,6 vezes maior do que o encontrado (28, 7%) para o Nordeste Fora da Seca, e 5,6 vezes maior do que o de todo o Brasil (23,6%). Finalmente, como percentagem (19,6%) da renda monetária das famílias, as aposentadorias do INSS no Nordeste da Seca também superavam largamente as pagas em outras áreas de compa- ração, como o Nordeste Fora da Seca (11,4%) e o Brasil (9,7%). Dessa forma, mesmo nesse cálculo subestimado de seu tamanho (pois não estão incluídos os aposentados do setor público nem a parcela da ren- da dos funcionários públicos à qual não corresponde qualquer produto), a economia sem produção do Semi-Árido revela-se maior do que o produto agropecuário e do que todo o setor privado formal da região. Nesse último caso, pelos critérios de emprego e de massa salarial, mas, posiivelmente, também, pelo de produto, embora os· dados do produto do setor privado formal não tenham estado disponíveis. Trata-se de um fato da maior relevância, pois não é preciso ser dema- siadamente perspicaz para perceber que a dinâmica de uma região, onde o principal setor económico é constituído pela renda dos aposentados, há de apresentar características muito diferentes daquelas apontadas em análises (e pressupostas em políticas) que, simplesmente, desconhecem essa peculiaridade. 162 .;' ---------- V. NotlHTADOI I AIHClOIWuol ..:..UC:os: A ICOHOMIA SIM ,.OOUÇI.o ---------- CCRIAÇÁQ DE MUNidPIOS Em um processo que começou ainda durante o regime militar, os mu- nicípios brasileiros vêm aumentando persistentemente seu grau de auto- nomia e sua participação no total da receita tributária arrecadada pelos três nfveis de governo [Serra e Afonso, 1991]. E, desde a promulgação da Constituição de 1988, tomou-se mais fácil criar municípios, independen- temente de sua viabilidade fiscal ou económica. Um prêmio maior, ofere- cido a um preço menor, teria de resultar em proliferação de novos muni- cípios. Foi o que aconteceu. Esse processo, que ocorreu de forma generalizada em todo o país, também se verificou, com alta intensidade, no Nordeste da Seca, como se demonstra na tabela 5.3 (p.164). Ali também é possível constatar que, no Semi-Árido, em 1997, a proporção de municípios muito pequenos (até 5 000 habitantes) era bem maior do que no Nordeste (mas não do que no país) em sua totalidade [Maia Gomes e Mac Dowell, 1997 e 1999]. Duzentos e quarenta municípios, dos quais 115 tinham menos de 5 000 habitantes, foram criados, no Nordeste da Seca, entre 1984 e 1997. Ape- sar disso ter significado um acréscimo de mais de três municipios a cada dois meses, no Semi-Árido, em termos relativos (aos seus estoques inici- ais), as demais regiões registraram ritmos ainda mais velozes. Ou seja , enquanto o Nordeste da Seca aumentou em 27,2% seu número de muni- cípios (passando de 882, em 1984, para 1 122, em 1997), no Nordeste Fora da Seca a taxa de expansão da mesma variável foi de 32,2%. No Brasil, o total de municípios passou de 4 102, em 1984, para 5 507, em 1997, o que representa um aumento de 34,3%. Todos, portanto, supe- riores ao verificado no Nordeste da Seca. 56 As comparações restritas apenas a velocidades de criação de municí- pio têm, é verdade, pouco significado, diante da disparidade das estrutu- ras económicas das várias regiões. Ao Semi-Árido nordestino, a febre de ~· Os dados em que se baseiam esses cálculos não aparecem na tabela 5.3, mas podem ser obtidos da mesma fonte citada, o 18GE. 1163 y.....,.. S.C... .. N00101 SMT6a criação de municípios, sobretudo de municípios muito pequenos, trouxe dois efeitos principais: o crescimento da dependência financeira das pre- feituras, em relação a recursos transferidos de outras regiões e de outras esferas de governo, e a expansão do emprego público. Com a expansão das aposentadorias rurais, cada uma dessas duas conseqüências principais da febre de criação de municípios ajudou a construir, no Sertão nordesti- no, a economia sem produção. TABELA 5.3 NORDESTE DA SECA, 1 NORDESTE E BRASIL Munidpios Criados de 1984 a 1997 e Distribuição Percentual dos Municlpios Existentes em 1997, por Grupos de População Nordeste do Seca' I Nordeste I Brasil Número de Diftribuiç&> Nllmerode Distribuiç6o Númetode Olstribuiç6o População I Munidplos %dos Munidplos %dos Munidpios %dos Côados de Munidpios Côados de Munidplos Côados de Munidpios 198"0 Existem. 19S. o ExiStentes 19S.o Existentes 1997 em 1997 1997 em 1997 1997 .... 1997 115 I 20,6 146 15,9 735 25.5 Fonte: 18C! Noca: 1 O Nord&11 t/Q Seca~ a ma geogrifica formada pelos atuais I lll municlpios do Nordeste (exclui, po11anto, os municípios de Minas Gerais e do Esp!rito Santo) diagnosticados como emsitWlÇdocrltica na seca de 1998, e nos quais foram aberus frentes de trabalho pela SUl>~; o NorW/e Fortt t/Q Seca e. simpl<Smente, o restante da real4o. 1164 • ---------- V. AoosiNTAOOI I ~ PÚO<ICOS: A K""""" RM rooouç.lo ---------- [TRANSFERÊNCIAS DE RECURSOS PARA AS PREFEITURAS As prefeituras, como foi visto, também desempenham, a seu modo, um papel importante na economia sem produção. Essa estória, nos anos recentes, tem muito a ver com a febre de criação de municípios. O pri- meiro efeito da proliferação de municípios, especialmente importante para o Semi-Árido, foi o aumento do grau de dependência financeira do conjun- to das prefeituras, em relação às transferências de recursos fiscais do Estado e da União. Coroo dentro de cada região é aproximadamente ver- dadeiro que municípios menores têm, na margem, menor capacidade de gerar receita própria [Maia Gomes e Mac Dowell, 1997], o crescimento da proporção de municípios pequenos no total dos municípios tende a fa- zercrescer a participação das transferências nas receitas correntes das prefeituras. A tabela 5.4 (p. 166) mostra que esse aumento de dependência dos municípios em relação aos recursos transferidos tem se verificado, pelo menos desde 1989, no Brasil, no Nordeste e no Nordeste da Seca. Mas, mostra, também, que os graus de dependência são persistentemente maiores no Semi-Árido. O ponto importante a fixar aqui é que altos graus de dependência financeira, como os registrados no Nordeste e no Nordeste da Seca, são sinalizadores do recebimento líquido de renda produzida em outras re- giões. O processo se dá pela aplicação das normas de repartição do FPM. A regra geral, demonstrada em Maia Gomes e Mac Dowell (1999, seção 6), é que "os municípios grandes transferem renda para os pequenos, e o Su- deste, para o resto do país". · Como o Semi-Árido não acompanhou o ritmo de criação de pequenos municípios registrado pelas outras partes do Nordeste (a comparação mais precisa teria de ser feita estado a estado, pois, desde 1993, as cotas percentuais do FPM são preestabelecidas por estados e apenas depois disso redistribuídas pelos municípios), é provável que essa área tenha perdido nesse jogo de redistribuições territoriais de renda associado à criação de 1165 v ....... Stc.u .. Ncwos San6os municípios. Apesar disso, o alto grau de dependência financeira dos muni- cípios do Semi-Árido constitui poderoso indicador de que a região recebe (continua a receber), pelo mecanismo fiscal, fortes transferências de renda produzida em outras regiões. Naturalmente, essa é uma das precondições para a montagem e a manutenção da economia sem produção. TABELA 5.4 NORDESTE DA SECA,1 NORDESTE TOTAL E BRASIL fonte: STN Transferências lntergovemamentais (FPM + ICMS) para os Munidplos como Percentagens da sua Receita Corrente Total,1 1989/1997 No<as: O Norrkste do. S«a ta 4rea aeov'flca fonnada pelos aluais I 122 munidpios do Nordeste (exclui, ponanto, os municípios de Miruu Gerrus e do Espfrito Santo) diaanosticados como em situaç4o criUC<J na seca de 1998, e nos quais foram abertas frentes de trabalho pela suo!Hl!; oNorrl.&stc Fora d4S«a ~.simplesmente, o restante da rqiAo. ' Indicador de Dependência Financeira dos Municlpios. Porém, o verdadeiro significado, para o Semi-Árido, das transferên- cias de renda operadas pela via fiscal está mais no seu valor relativo do que em seu montante absoluto. A tabela 5.5 (p. 167) fornece os dados relevantes para o argumento. As prefeituras do Nordeste da Seca receberam, de transferências fiscais federais e estaduais, em 1996, quase R$2,5 bilhões. Pode pare- cer, e é, um volume apreciável de dinheiro, ainda mais se lembrarmos que o produto da agropecuária tradicional (ou seja, excluída a irriga- ção e a maconha) do Semi-Árido, em 1996, não deve ter passado muito de R$3,5 bilhões. Mas, mesmo admitindo-se isso, não se pode deixar de observar que, em termos 'per capita', o Semi-Árido foi a região que 1166 ---------- V. Al>oaHTADOt I I'UHCJOHAIIIQS """-'CDS; A .,.,._... 11H ....oouçAo ---------- menos recebeu recursos fiscais de transferências, das quatro considera- das na tabela. Esse é um resultado de grande importância. Seu significa- do maior é o mesmo que já foi encontrado para o caso das aposentadori- as: não é tanto as transferências vindas de fora que são elevadas; é o produto local que praticamente inexiste. Mas isso tem uma conseqüên- cia fundamental: vivendo de transferências de renda, em um país pobre, a economia sem produção é - e nunca deixará de ser - uma economia de baixas rendas por habitante. TABELA 5.5 NORDESTE DA SECA,1 NORDESTE FORA DA SECA, NORDESTE TOTAL E BRASIL, 1996 Transferêndas de Receitas Fiscals para os Munidpios: Valores Absolutos e em Relação a Outras Variáveis Demográficas e Econômicas TronsferlnciCI$ Brvtas (A'M + ICMS + Outras) I ~ Como 'Moda Como" da . Indicadora I kea IAS l'or Cama 'Moda Cama 'Moda a-lta ....... ~ linda Colnnte CarNnte milh6ell IQ/hab) Damlclllar ,. Pnlprio das Total das ,..,.,.,_ ......__ t ........ _ .. ...... . . ' - •• .. t ..... f'l'.S-~"'iii~'<~~~····~-.. ,,..r~~!;f~-'E~~~w. ~~~rl"i -:..._~-.c~,_-· 1~ :::1Jt-'··- .~:..-.~ 4 ~"I .~~ i.'~...,' .,.-.~~ ~.,..~· ·.r:;_<~"Y.'*'' .-.:~..;k~!:~:;i +-~: ... :. -~~ .. ~t· ~;,:··-~:~---~~:i:, Í~·· -· ·,t --~· ' - ... ~~:-~. ~~~:· • ~-.-~r.:~ '•,: • ~-~ ~ ~:~ ~~:~" ~1~: ' . . ....... _ . ., ' •' .. . .• .v:ra - '· - •' ;· _ _:"- .. -. r~:..}:'j fontes: STN, 18CL, IP!A. Notas: ' O Nonksu do. S«a ~a trea geov'flca fonnada pelos atuals I 122 municfpios do Nordeste (exclu~ portanto, os mtJniclpios de Minas Gerais e do Espfrito Santo) diqnasticados como"" situaçc1o crltie<J na seca de 1998, e nos quais foram abe!US frenteS de trabalho pelasuoEHa; ONorrkst~ ForttdaS«a é, simplesmente, o restante da região. Obs · 10s valores totais das tranSfertncias bruw slo obtidos diretamente dos dados da STN; 'A populaçlo t fornecida pela Conta&em Populacional de 1996, do ..c~~; ' A renda domiciliar t a obtida do Censo Oemogrtfico de 1991 atualizada pat'll 1996 pelo crescimento~ da renda nacional. desconsiderando-se, portanto, qualquer alteração nas posições relativas dos municlpios, no que diz respeito a essa variâvcl. que possam ter ocorrido d~ 1991 a 1996; 'Os PlBs slo os da base II'I!A. estimativas preliminares, em fase final de revisão; 'A receita corrente própria e a receita corrcnu: tnl3i ria~ prrfeituru sio fornecidas pela base de dadOJ da STN. Em contraste com o valor 'per capita', contudo, as transferências brutas como percentagens da renda domiciliar, do Pm, da receita corrente própria e 1167 v ...... StcAS .... Novos Sarou da receita corrente total das prefeituras são sempre muito maiores no Semi- Árido do que em qualquer uma das outras regiões constantes da tabela 5.4 (p. 166). De todos, o dado mais eloqüente é a relação entre a transferência fiscal e a receita própria dos municípios no Nordeste da Seca: a primeira corresponde a 1 266% da segunda. Faz sentido. Em face de uma população miserável, a arrecadação local de impostos aproxima-se de zero; as prefei- turas vivem de recursos transferidos. E, pode-se acrescentar, quase inte- gralmente do PPM, o fundo dos municípios pobres e necessitados; pobres esses que, ao amparo do governo paternal, multiplicam-se desenfreadamen- te, em um processo que lembraria a corrida malthusiana da população con- tra a oferta de alimentos, não fosse pelo fato de que os ricos também perce- beram a oportunidade, e trataram de tirar proveito dela. Uma outra observação, válida não apenas para o Semi-Árido. A forte de- pendência de recw-sos transferidos pode ser vista como um bem ou um mal, dependendo dos critérios de julgamento adotados em cada caso. Mas, é bom notar que, se a criação de um município não contribui para aumentar a receita fiscal global, mas apenas para redistribuir a massa preexistente (e, portanto, criar mais dependência fiscal), então o que o novo município ganhar de receita transferida será exatamente contrabalançado pela perda de receita de algum ou alguns outros. Haverá benefício líquido se, e somente se, os gastos realiza- dos pelo novo município, que passa a receber renda transferida, tiverem uma qualidade melhor (por algum critério de valor) do que as despesas que deixa- rão de ser realizadas pelo município anti~o, que cederá parte de sua renda. É difícil estabelecer critérios universais para julgamentos de valor, mas o reconhecimento de que a criação de municípios provoca o aumento das despesas administrativas, em relação a gastos sociais ou de investimento [Maia Gomes e Mac Dowell, 1997 e 1999], fortemente sugere que a criação de municípios em um ritmo mais rápido do que o do crescimento das receitas fiscais próprias (provocando, portanto, o aumento da dependênciafinanceira das prefeituras) pode estar se constituindo em um processo socialmente per- verso. No Semi-Árido, a proliferação de municípios inteiramente dependen- tes de recursos vindos de fora tem tido o efeito principal de ampliar os limites da economia sem produção. 168 --------- V. -ADOS I PUNO<lNÁIUOI Mucos: A """"""" - P1IO<>UÇAo --------- CEMPREGO E SALÁRIOS DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS É extremamente difícil documentar, de forma precisa, a evolução do em- prego público municipal no Brasil. Uma fonte adequada para essa informa- ção seriam os censos demográficos. Infelizmente, contudo, o último deles refere-se a 1991. Portanto, os censos deixam de cobrir oito anos, que devem ter sido muito importantes, de evolução da variável em questão. Na ausência de dados censitários, a segunda melhor fonte é a RAIS (a Relação Anual de Informações Sociais, do Ministério do Trabalho). Essa fonte subestima o em- prego público nos municípios mas, na ausência de outra, será utilizada aqui. 57 Até onde é possível tirar inferências, os dados da RAIS indicam expres- sivo crescimento do emprego público nos municípios do Nordeste da Seca, como pode ser visto na tabela 5.6 (p. 170). Com efeito, de 1985 a 1997, o emprego público nos municípios do Semi-Árido teria crescido 57,4%, muito mais do que os 8,1% de crescimento da mesma variável observado tanto em todo o Nordeste como no Brasil. 58 Não se supõe que os prefeitos sertanejos sejam mais liberais com o dinheiro alheio do que seus colegas de outras regiões para explicar o diferencial de crescimento do emprego público no Semi-Árido. (Mesmo descontando-se as imprecisões das estatísticas, de modo a levar mais em consideração as variações relativas do que as absolutas, continua s 1 A afirmativa de que a PN; subestima o emprego público fundamenta-se nas constatações de que: ~em cada ano, cerca de I 0% dos munidpios existentes no país não aparecem naquela base; e f1 entre os munidpios que ~ na base, de I 0% a 20% apresentam um r-Wlero zero de empregos públicos, o que coostitvi Lm contra-senso. (De 1985 a 1997, o número dos muniãplos da AA\5 que informaram emprego público igual a zero representou percentagens variando entre 7,496 e 20,596 do número total de m.nic!ptOS constantes da base.) Em tese, os dois problemas poderiam ser contornados. se fosse conhecida a estrutura dos munidpios ausentes, e a dos que dedaram emprego público 1gual a zero, mas essa tarefa não pôde ser realizada no âmbito da preserte investigação. 11 Cabe distinguir entre o emprego públiCO !'T11.11iopal(oo sep, o número de sei"JJdores pagos por uma prefeitura QU pelo seu con1unto) e o emprego públiCo no munidpio (número de servidores público~ fl'derais , estaduais e municipais cujo local de trabalho é Lm determinado mtridpio). A PN; fornece informações sobre o emprego público nos m.ri:fpios mas não permite desagregar esse emprego nos seus componentes federal, estadual e muniapal. Esse ponto é mportante, poo a febre de cnação de munidpios deve ter induzJdo um corresponden- te surto de emprego público municipal mas não federal ou estadual. 169 VIUW 5ICAI ., Nootos SenOrs sendo provavelmente verdadeiro que o emprego público cresceu muito mais nos municípios do Semi-Árido do que no restante do Nordeste ou do Brasil.) A própria lógica da criação de municípios, nas condições em que o processo se desenrolou, sugere uma interpretação mais plausível. TABElA 5.6 NORDESTE DA SECA, ' NORDESTE TOTAL E BRASIL Evolução do Emprego na Administração Pública nos Municípios Anos Selecíonados, entre 1985 e 1995 Ano Fonte: Ministério do Trabalh()'MIS. Nota: 'O Norrkste da Seca~ a 6rea geoarifiao fonnada pelos atuais I 122 munic!pios do Nordeste (exclui, portanto, os municfpios de Minas Gerais e do Esplrito Santo) diagnosticados como.,. situDfdo critica na seca de 1998, e nos quais foram abertas frentes de trabalho pela SUOI'.IIE; o NorrksiJ! Fora ds Seca é, simplesmente, o restante da regi.lo Nesse ponto, é necessário recordar a distinção entre emprego público municipal e emprego público no municfpio. A criação de um município impli- ca a criação de uma estrutura administrativa, que significará um acréscimo líquido ao emprego público, pois praticamente não se observa o caso de que os municípios antigos, dos quais os novos são desmembrados, cedam parte de seus funcionários junto com o pedaço de seu território original. No depoi- mento de um técnico do IBAM (Instituto Brasileiro de Administração Munici- pal), órgão declaradamente favorável à multiplicação dos municípios: há alguns pontos nos processos emancipatórios que precisam ser repen- sados, especialmente no que diz respeito às conseqüências da perda territorial nos municípios de origem. Perda de território traduz-se por perda de população ( ... ). A esta conjunturo geralmente nãu corresponde uma redução de despesas, principalmente no tocante aos gastos com o funcionalismo [Noronha, 1996, p. 111]. 170 ---------- V, Al<>su<TADOS I ~ MucOS: A lCOHOMIA- ....aouçÃO ---------- O deputado federal Alexandre Cardoso (PSB-RJ), que vem se dedi- cando a fazer proposições de reforma sobre a questão municipal no Brasil, dizia, já em 1995, ao fazer cálculos conservadores, que se, para cada novo município criado [de 1988 a, projetando a tendência, 1996, vierem a ser] contratados 300 funcionários, são SOO mil novos em- pregos municipais. Isso sem contar, por exemplo, uma média de dez vereadores para cada munidpio criado. "São, no mínimo, 17 mil novos cargos de vereadores", calcula. Se cada prefeitura tiver cinco secretari- as, com cinco cargos comissionados, em cada uma, já são 45 mil empre- gos. "E não estou computando, por exemplo, os novos delegados, juízes e funcionários das câmaras municipais" ["Novos municípios frustram reforma", FSP, 15/ 11/95, p. 1-12]. É uma pena que os cálculos do deputado sejam tão povoados de "se isso, se aquilo". Mas, pode-se estar seguro de que ele tem conhecimen- to do assunto, em certa medida graças a pesquisas diretas. De todo modo, o ponto importante, para nossos propósitos nesse momento, é a associação, feita pelo deputado e por ele aceita como auto-evidente, entre a criação de municípios e a criação líquida de novos empregos pú- blicos. Como vimos, o Semi-Árido nordestino não foi campeão nacional e nem mesmo regional na criação de municípios. (Mas teve, não obstante, uma farta oferta desse produto.) Ocorre, entretanto, que, no conjunto dos municípios novos e antigos do Semi-Árido, praticamente não existe emprego públ~co federal ou estadual. Os empregos públicos federais se concentram, fortemente, em Brasília e no Rio de Janeiro, ao passo que os estaduais se localizam, em sua grande maioria, nas capitais de estados. (A única capital de estado incluída nos municípios críticos da seca de 1998 foi Teresina.) Dessa forma, mesmo que o emprego público municipal tenha cres- cido muito, como se deve esperar que tenha, no conjunto dos municí- pios do Nordeste ou do Brasil, o significado relativo desse crescimen- to foi amortecido pela menor expansão do, numericamente mais im- portante, emprego público federal e estadual. No Semi-Árido, entre- tanto, esse fator amortecedor não esteve presente. Como praticamen- te a totalidade dos empregados públicos residentes no Semi-Árido está registrada nas folhas de pagamento das prefeituras, à medida que o 171 v ..... Si!CAS D4 N....,. SMT6u número destas e o de seus funcionários se multiplicou, o emprego público nos municípios cresceu espetacularmente, também em ter- mos proporcionais. Os dados de crescimento numérico do emprego público no Nor- deste da Seca têm a sua importância, mas contam apenas parte da história. A verdadeira significação do emprego público - e da massa de salários a este associada - para a economia dos Sertões é melhor percebida por indicadoresde magnitudes relativas, como os apresen- tados na tabela 5. 7. TABELA 5.7 NORDESTE DA SECA, 1 NORDESTE FORA DA SECA, NORDESTE TOTAL E BRASIL Relações entre Emprego e Salários na Administração Pública e Outros Indicadores Econômicos, 1997 Indicadores I kec Emprego Público (Número) Emprego Póblic:o I Massa Salarial POblica /Emprego Fonnof Total (RS milh6ea) (%) Fontes: Dados de empreao e salários do setor fonnal, inclusive administração pública, u!Shm; dados de renda e populaçAo, UICE (Censo Demoar'fico de 1991 e Contagem Populacional de 1996); PIB, elaboraçio 11'1!.1/ot~ua sobre bases de dados de fontes diversas. Nota: 1 O North.sta da S.Ca é a irea geogrtfica formada pelos atuals 1 122 munidpios do Nordeste (exclui, purtanto, os mumctplos de Minas Gerais e do l!splrito Santo) cl.iqnosticados como mr slluaç4o crll/e4 na seca de 1993, e nos quais foram abertas frentes de trabalho pela suoEHE; o Nord.ste Foru da &ca é, simplesmente, o restante da regiio. 172 ---------- V, -ADOI I ,_,_ I'ÚeUCOS! A KX>N001IA - .. oouçAo ---------- De acordo com a tabela, em 1997 haveria 349 mil empregados na administração pública nos municípios do Nordeste da Seca, o que corresponderia (um número não mostrado na tabela) a 17,4 empregos públicos por habitante. Esse valor, incidentalmente, é bem menor do que o encontrado para o Nordeste Fora da Seca (36 empregos públicos por 1 mil habitantes) e para o Brasil (34,5). Mais uma vez, essa discrepância poderia ser explicada pela quase ausência, no Semi-Árido (em contraste com as duas outras regiões de comparação), de empregados públicos dos estados e da União. Deixando-se de lado, por um momento, a coluna seguinte (emprego público/ emprego formal total), é digno de nota que a relação entre a mas- sa salarial pública e a renda monetária (última coluna da tabela) seja muito menor no Nordeste da Seca do que nas demais áreas de comparação cons- tantes da tabela 5..7 (p. 172). Da mesma forma, também deveria ser nota- do que a participação da massa salarial pública na massa salarial formal total é menor no Semi-Árido do que no Nordeste (embora seja maior do que em todo o Brasil). Analisando-se, agora, a segunda coluna, entretanto, verifica-se que a participação do emprego público sobre o emprego for- mal total (que inclui o próprio emprego público) alcança 40%, no Nordes- te da Seca, uma percentagem bem maior do que as verificadas para o Nordeste Fora da Seca (29,3%) e, ainda de forma mais acentuada, para todo o país (22,5%). O que parece um paradoxo (o emprego público tem importância rela- tiva maior no Semi-Árido do que no Nordeste e no Brasil, enquanto o in- verso ocorre com a massa salarial, comparada à renda monetária) na verdade tem uma explicação simples, ·cuja expressão estatística está, tam- bém, na tabela 5.7 (p. 172): os salários pagos pelo setor público no Nor- deste da Seca são muito menores do que os seus correspondentes nas ou- tras duas regiões de comparação. Em particular, o funcionário público médio do Nordeste da Seca recebia, em 1997, R$215 por mês, o que era pouco mais de um terço do que recebia, em média, o funcionário público no Nordeste Fora da Seca. As comparações entre salários médios do setor público e do setor privado (omitidas da tabela) revelam um quadro ainda 173 VR.HAS SlcAs .. No.os SIIOTÓIS mais eloqüente: em média, os salários pagos aos funcionários públicos no Nordeste da Seca equivaliam, em 1997, a 0,73% dos salários médios pa- gos pelo setor privado formal, naquela mesma região (fonte: RAIS). Em to- das as demais áreas de comparação, a média salarial do setor público supera a do setor privado. Aqui, outra vez, as caracterfsticas de pobreza aparecem dominan- tes, no Sertão. A virtual inexistência de receitas próprias das prefeituras locais, evidenciada pelos dados da tabela 5.6 (p. 170), cobra seu preço. ao fazer que a disponibilidade (por parte exclusivamente dos municlpios) de recursos por habitante seja extremamente baixa (R$133,6 por habitan- te/ano, no Nordeste da Seca; contra R$154,5, em toda a região Nordeste; e R$265,7, no Brasil). Com tão poucos recursos, as prefeituras do Semi- Árido, praticamente sozinhas (pois a presença dos governos estaduais e federal é muito limitada), fazem o que podem para expandir o emprego público, utilizando-o como instrumento de política social (um indicador disso é a proporção extremamente elevada de empregos públicos sobre empregos formais totais). Mas, para fazê-lo, são obrigadas a pagar salá- rios muito baixos, deixando de cumprir, em muitos casos, até mesmo a legislação que estabelece o salário-minimo. Como, abaixo do limite mínimo legal, o setor privado formal não pode utilizar os salários como variável de ajuste, este o faz nas quantidades de emprego que oferece (ou seja, emprega menos), um procedimento exata- mente oposto ao seguido pelo setor· público, que expande o emprego, ajus- tando os salários para baixo, de modo a conter o gasto dentro de suas pos- sibilidades financeiras. O paradoxo, então, é que um setor privado formal extremamente diminuto, como é o existente no Nordeste da Seca, ainda consegue gerar mais massa salarial do que as prefeituras. [(i TAMANHO DA ECONOMIA SEM PRODUÇÃO Expressa em termos de renda, a economia dos aposentados e funcionários públicos tinha, no Nordeste da Seca, em 1996, um tamanho maior do que 1174 ---------- V. "-'"ADO< l IUNC>ONÁMOS I'UOUCDS: A OCONOMIA - ,.OOUÇÂO ---------- (mas aproximado a) R$5 bilhões, a preços de 1998. A subestimativa decorre, principalmente, do fato de ter sido impossível distribuir pelos municípios do Semi-Árido os aposentados do setor público, com sua respectiva renda. Os valores básicos utilizados para se chegar a essa estimativa são os que constam das seções anteriores. O único tratamento adicional consis- tiu em ajustar os dados para expressá-los no mesmo ano e na mesma base de preços. Assim, o valor de R$4,103 bilhões (tabela 5.3) correspondente ao total de aposentadorias e pensões pagas pelo INSS no Nordeste da Seca, em 1997 (a preços correntes), foi ajustado, primeiro, para 1996 (a preços de 1996), simplesmente dividindo-se aquele valor pela variação (7,1%) do salário-mínimo, entre junho de 1996 e junho de 1997. Para chegar aos preços de 1998, inflacionou-se o valor encontrado pela variação acumula- da do INPC, em 1997 e 1998. O resultado encontrado é praticamente igual ao número inicial: R$4,097 bilhões. Para o caso da massa salarial do setor público, o segundo compo- nente da renda dessa economia, o ajuste consistiu em inflaciohar (pela variação entre 1997 e 1998 do INPC) os R$902 milhões da tabela 5. 7 (p. 172), para expressá-los a preços de 1998. Chegou-se ao valor de R$924 milhões. A soma dos dois componentes (R$5,021 bilhões) constitui a es- timativa da renda apropriada pela economia dos aposentados e funcio- nários públicos no Nordeste da Seca. Trata-se, como se alertou, de esti- mativa grosseira, mas que dá idéia do tamanho daquela economia, que supera, por larga margem, o valor do produto agropecuário no Nordeste da Seca, como se pode ver comparando-se esses resultados acima com os constantes da tabela 4.2 (p. 116). Uma estimativa mais precisa da renda apropriada pela economia sem produção não será feita aqui, por insuficiência de informações. Esta é, entretanto, bem maior do que os R$4,097 bilhões correspondentes à ren- da dos aposentados do INSS. A esse valor teria de ser adicionada a renda dos aposentados rurais e a de todos os funcionários públicos com produti- vidade nula, que não devem ser poucos. Um novo Sertão foi criado- e muitos nem se deram conta disso. 1175
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