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Gilberto Velho - Observando o Familiar

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-'"":1flf DElIl"'UIUG!A "AL U.!lLID o ,\IELHO 
Diretor: Gilberta Velho 
Hist6ria Social da Criani;a e da Fam(lia 
Philippe Aries 
Uma Teoria da Ai;ao Coletiva 
Howard S. Becker 
Carnavais, Malandros e Her6is (2~ ed.) 
Roberto Oa Matta 
Cultura e Razao Pratica 
Marshall Sahlins 
Bruxaria, Orckulos e Magia entre os Azande 
E.E. Evans·Pritchard 
Elementos de Organizai;ao Social 
Raymond Firth 
A Interpretai;ao das Culturas 
Clifford Geertz 
Estigma: Notas sobre a Manipulai;ao 
dil Identidade Deteriorada (3~ ed.l 
Erving Goffman 
o Palacio do Samba 
Maria Julia Goldwasser 
A Sociologia do Brasil Urbano 
Anthony e Elizabeth Leeds 
Arte e Sociedade 
" Gilberto Velho 
Desvio e Oivergencia (4~ ed.l 
Gilberto Velho 
Individualismo e Cultura: Notas para uma 
Antropologia da Sociedade Contemporanea 
Gilberto Velho 
Guerra de Orixa (2~ ed.) 
Yvonne M.A. Velho 
INDIVIDUALISMO 
E CULTURA: 
Notas para uma 
Antropologia da Sociedade Contemporanea 
5 
\/ L( 3 G;0 
ZAHAR EDITORES 
RIO DE JANEIRO 
J 
GJ-... _: ~';"! • ":n t!U...... 
e~tive~c:.~. 
Observando 0 Familiar* 
,­
•	 Agradeco os comentarios e sugestoes de Roberto Da Matta e Eduardo Viveiros de 
Castro, com quem tive oportunidade de discutir este trabalho. (Este cap(tulo foi ante­
riormente publicado em A aventura socio/6gica. Rio, Zaha'r,'1978, e eaqui reprodu­
zido com au torizacao dos organ izadores.) 
-.	 ~ ~-~. ._, - ---~ 
121 
I. 
Uma das rna is tradicionais premissas das ciencias sociais e a necessidade de 
uma distancia minima que garanta ao investigador condic;:oes de objetivi­
dade em seu trabalho. Afirma-se ser preciso que 0 pesquisador veja com 
olhos imparciais a realidade, evitando envolvimentos que possam obscurecer 
ou deforrnar seus julgamentos e conclusoes. Uma das poss(veis decorren­
cias deste raciocfn io seria a valorizac;:ao de metodos quantitativos que seriam 
"por natureza" mais neutros e cient(ficos. . . 
Sem duvida essas premissas ou dogmas nao sao partilhados por 
toda a comunidade academica. A noc;:ao de que existe urn envolvimento 
inevitavel cqm 0 objeto de estudo e de que isso nao constitui urn defei­
to ou imperfeic;:ao ja foi clara e precisamente enunciada.! Nao vou deter-me, 
especificamente, na discussao mais geral sobre neutralidade e imparclalida­
de. Creio ser mais proveitoso discutir algumas experiencias pessoais que me 
levaram a refletir de forma mais sistematica sobre esses problemas. 
II. 
A antropologia, embora sem exdusivictade, tradicionalmente identificou-se 
com os metodo~ de pesquisa ditos qualitativos. A observac;:ao participante, 
a entrevista aberta, 0 contato direto, pessoal, com 0 universe investigado 
constituem sua marca registrada. Insiste-se na ideia de que para conhecer 
certas areas ou dimensoes de uma sociedade e necessario urn contato, uma 
vivencia durante urn per(odo de tempo razoavelmente longo, pois existem 
! Ver por exemplo 0 trabalho de Howard S. Becker, "De que lado estamos", in 
Uma teoria da a950 coletiva. Rio, Zahar,1977. 
123 
12~ individualismo e cultura 
aspectos de uma cultura e de uma sociedade que nao sao explicitados, que
 
nao aparecem a superfrcie e que exigem um esforc;:o maior, mais detalhado
 
e aprofundado de observac;:ao e empatia. No entanto, a ideia de ten tar por"s,e
 
no lugar do outro e de captar vivencias e experiencias particulares exige um
 
mergulho em profundidade difrcil de ser precisado e delimitado em termos
 
de tempo. Trata-se de problema complexo, pois envolve as questoes de
 
distancia social e distancia psicol6gica. Sobre isso Da Matta ja situou cClm
 
propriedade a trajet6ria antropol6gica de transformar 0 "ex6tico em faroi:
 
liar e 0 familiar em ex6tico".2 Evidentemente, em algumn'fvel,-'esta-se
 
falando em distJncia. ~ preciso, no entanto, refletir mais sobre 0 que se
 
entende por isto. Sem duvida existe uma distancia ffsica clara entre a socie­
dade inglesa da dec:ada de 1930 e uma tribo do Sudao. Ha que haver um
 
deslocamento no espac;:o que requer a utilizac;:ao de um determinado tem­
po, maior em princfpio do que ir de Londres a Oxford ou de Cartum ao
 
Cairo. ~ possfvel que um ou outro indivfduo na tribo fale ingles, mas a
 
grande maioria comunica-se exclusivamente atraves dos dialetos locais, 0
 
que evicentemente representa, em princfpio, uma descontinuidade maior
 
em termos de comunicac;:ao do que entre um scholar ingles e um operario
 
, seu conterraneo, apesar de Bernard Shaw. Trata-se, no entanto, de um tipo 
de comunicac;:ao, a verbal, que nao esgotCl todo 0 potencial simb61ico 
humano. Pode-se imaginar que 0 ingles desenvolva um interesse e cultive 
uma empatia por chefes tribais, atribuindo a estes, real ou fantasiosamente, 
problemas semelhantes aos seus na area da manipulac;:ao do conhecimen­
to e no exerclcio de certas prerrogativas, podendo estabelecer pontos de 
contata e de aproximac;:ao, em determinados nfveis, maiores do que os 
existentes entre 0 mesmo scholar e seus fellow-country men de origem 
proletaria. 
\ Simmel, ao analisar a nobreza europeia, mostra 0 seu carater cos­
' mopolita e internacional, passando sobre as fronteiras dos Estados, enfati­
zando seus lac;:os comuns de grupo de status, marcando vigorosamente aj
distancia em relar;:ao (Jos conterraneos camponeses, proletarios ou mesmo 
i burgueses. 3 Sem duvida 0 patrimonio ou a cultura comum de uma nobreza 
europeia sao muito mais 6bvios do que experiencias particulares de chefes 
tribais africanos e de um scholar ingles qUe possam apresentar algumas seme­
Ihanc;:as. Num caso esta-se falando em uma categoria social c no outro em 
interac;:ao entre indivfduos que nao chegamos a perceber ou definir como 
uma categoria. !V1as ja surge com nitidez a questao da relac;:ao entre distan­
cia social e psicol6gica. a fato de dois indivfduos perteiicerem-~-Friesma-'-
~ . ...., --'-. --_.--- -- ----_..._.~ 
2 Em "0 of(cio do etn61ogo ou como ter 'anthropological blues' ", in Publica9tJes
 
do Programa de P6s-Gradua9ao em Antropologia Social do Museu Nacional, 1974.
 
3 Em "The nobility", in On individualitv and social forms. Chicago, The University
 
of Chicago Press, 1971.
 
obserllando 0 familiar 1/,;, 
sociedade nao significa que estejam mais pr6ximos do que se fossem de SOCie-j 
dades diferen!es, porem aproximados por preferencia, gostos, idiossincra­
sias.l Ate que ponto pode-se, nesses casos, distinguir 0 s6cio-eultural do 
psicol6gico? No mundo academico ou intelectual em geral essaexperiencia 
e bem conhecida. Quantas vezes em encontros, seminarios, conferencias etc. 
de carater internacional nao nos encontramos interagindo a vontade, de 
maneira facil e descontra fda, com colegas vindos de sociedades e culturas 
as mais dfspares? Lembro-me bem de uma vez, chegando a uma universi­
dade americana na hora do almoc;:o, ter tido oportunidade de sentar a 
mesma mesa com colegas norte-americanos, um frances, um argentino e um 
holandes. Quase todos estavamos nos conhecendo. No entanto, a conversa­
c;:ao correu facil, nao s6 quanto ao tom, mas tambem com pequenas ironias 
e piadas implfcitas, meias-palavras, referencias etc. Tfnhamos lido Alexan­
dre Dumas e Walter Scott na adolescencia e gostavamos de Beethoven e 
Rosselini. Comentou-se 0 filme do autor italiano, Que se.ria exibido na uni­
versidade durante a semana e discutiu-se a SMima Sinfonia, programada para 
aquela noite. Esnobismo intelectual? Cultura ornamental cultivada pela inte­
lectualidade academica? ~ possfvel, mas constituem-se em temas de conver­
sa assim como discutir um jogo de futebol ou a ultimaatuac;:ao de Rivelino 
ou Paulo Cesar com 0 chofer de taxi ou com 0 porteiro do cdifrcio. Que 
tipo de,oconversa e mais real, verdadeira? 0 fato e que se esta discutindo 01 
problema de experiencias mais ou menos comuns, partilhaveis, que permi­
tem um n(velde interac;:ao especffico. Falar-se a mesma Ifngllanao s6 naq 
exclui que existam grandes diferenc;:as no vocabu!ario mas que significados 
e interpretac;:oes diferentes podem ser dados a palavras, categorias ou ex­
pressoes aparentemente identicas. Voltamos a Bernard Shaw e a Pigmaliao. 
Por outro lado, toda a tradic;:ao marxista valoriza a experiencia comum de l 
classe e acentua, em certas interpretac;:oes, 0 carater extra e supranacional '-r 
da luta polftica, desenfatiza os la90s comuns, patrimOnio cultural de que , 
poderiam participar classes sociai~ distintas, para enfatizar, por exemplo, j: 
a experiencia basica comum de explQrac;:ao ;J que estaria submetido 0 
proletariado. Expressoes ou termos como burguesia internacional, unidade 
mternacional proletaria tendem a sublinhar a importancia de experiencias 
e interesses sociol6gicos e hist6ricos comuns em detrimento das noc;:oes de 
identidade e cultura nacional. A unidade, no caso, nao seria dada pela 
I(nj'lua, por tradi90es nacionais de carater mais geral, mas por experien­
cias e vivencias de classe, definidas em termos socioJ6gicos, economicos 
e hist6ricos, que originam inclusive a noc;:§'o de cultura de classe que pode 
ultrapassar as fronteiras dos Estados Nacionais. Sem duvida a n09ao de 
Estado Nacional e a valorizac;:ao de um patrimonio comum dentro de suas 
fronteiras em oposic;:ao a patrimonios de outros Estados est8·0 ligadas a 
uma conjuntura s6cio-hist6rica' precisa. Normalmente 0 aparecimento do 
Estado Moderno e associado ao desenvolvimento da burguesia, ao fortale­
~ 26 individualism;} e cultura 
cirnento dq nacionalismo. Enquanto movimento inteiecwal, wrge 0 
Romantismo, preocupado em pesquisar (ou ate criar) ra (zes, fundamentos, 
essenciais de um povo, nacionalidade. ~ conhecida a manipulacao de id6o­
logias nacionalistas, de oposicao simb61ica e material ao que vem de fora, 
como estranho, intruso, fora de contexto, alienado. Pode par.e,cer~estrJlDlliL 
que um antrop610go esteja chamando atencao para-o"a'r't1ficialismo" de 
.certas separac5es e Iimites entre sociedades e culturas. M~s cr:eio que,·con--­Itemporaneamente, cabe justamente aos antrop610gos relativizar essas 110­
" c5es, nao negando-as ou invalidando-as ideologicamente, mas apontando a 
) sua dimensao de algo fabricado, produzido cultural e historicamente. t\lao 
se trata de ser nacionalista ou internacionalista, mas sim de chamaI' aten­
cao para a complexidade da categoria distancia e disso extrair consequen­
'\ cias para 0 nosso trabalho cientffico. 
Assim, volto ao problema de Oa Matta, para sugerir certas compli­
cac5es. a que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas nao e 
necessariamente conhecido e 0 que nao vemos e encontramos pode ser 
ex6tico mas, ate certo ponto, conhecido. No entanto, estamos sempre 
pressupondo familiaridades e exotismos como fontes de conhecimento ou 
desconhecimento, respectivamente. 
Oa janela de meu apartamento vejo na rua um grupo de nordes­
tinos, trabalhadores de construcao civil, enquanto alguns metros adiante 
conversam alguns surfistas. Na padaria ha uma fila de empregadas domes­
ticas, tres senhoras de classe media conversam na porta do predio em frente; 
do is militares atravessam a rua. Nao ha duvida de que todos esses indiv(­
duos e grupos fazem parte da paisagem, do cenario da rua, de modo geral 
estou habituado com sua presenca, ha uma familiaridade. Mas, POl' outro 
lado, 0 meu conhecimento a respeito de suas vidas, habitos, crencas, valo­
res e altamente diferenciado. Nao s6 0 meu grau de familiaridade, nos 
termos de Oa Matta, esta longe de ser homogeneo, como 0 de conhecimen­
to e muito desigual. No entanto, todos nao s6 fazem parte de minha socie­
dade, mas sao meus contemporaneos e vizinhos.. Encontramo-nos na rua, 
falo com alguns, cumprimento outros, hc\ os que s6 reconheco e, evidente­
mente, ha desconhecidos tambem. Trata-se de situacao djferente de uma 
sociedade de pequena escala, com divisao social do trabalho menos com­
plexa, com maior concentracao ou menor numero de papeis etc. Ja discuti, 
em outra ocasiao, 0 problema do anonimato relativo na grande metr6pole, 
chamando atencao para a existencia de areas e dom fnios ate certo ponto 
autonomos que permitem um jogo de papeis e de construcao de identidade 
bastante rico e complexo.4 a fato e que dentro da grande metr6pole, seja 
Nova York, Paris ou Rio de Janeiro, ha descontinuidades vigorosas entre 0 
4 Com L.A. Machado da Silva, "'A organiza.;ao social do meio urbano"', inedito. 
abserlJando 0 fami/lsY ~ 2~ 
"lilundo" do pesquisador e cutros mundos, fazendo com que ele, rYlG,mo 
sGndo nova-iorquino, parisiense ou carioca, possa tel' experiencia de estra­
nheza, nao-reconhecimento ou ate choque cultural comparaveis a de viagens 
a sociedades e regioes "ex6ticas". Na opiniao de Da Matta S isso nao acon­
tece com a maioria das pessoas dentro da sociedade complexa na medida 
em que a realidade e as categorias sociais a sua volta estao hierarquizadas. A 
hierarquia organizada, mapeia e, portanto, cada categoria social tem 0 seu 
lugar atraves de estere6tipos como, POl' exemplo: 0 trabalhador nordestino, 
"parafba", e ignorante, infantil, subnutrido; 0 surfista e maconheiro, alie­
nado etc. Eu acrescentaria que a dimensao do poder e da dominacao e 
fundamental para a construcao dessa hierarquia e desse mapa. A etiqueta, a 
maneira de dirigir-se as pessoas, as expectativas de respostas, a nocao de 
adequacao etc. relacionam-se a distribuicao social de poder que e essencial­
mente desigual em uma sociedade de classes. Assim, em princ(pio, dispo­
mos de um mapa que nos faml'liariza com os cenarios' e situacoes socia is 
de nosso cotidiano, dando nome, lugar e posiCiio aos indiv(duos. Isso, no 
entanto, nao significa que conhecemos 0 ponto de vista e a visao de mundo 
dos diferentes atores em uma situacao social nem as regras que estao POl' 
detras dessas interacoes, dando continuidade ao sistema. Logo, sendo 0 1 
pesquisador membro da sociedade, coloca-se, inevitavelmente, a questao 
de seu lugar e de suas possibilidades de relativiza-Io ou transcende-Io e ( 
poder "par-se no lugar do outro". ~ preciso chaj11ar atencao para 0 fato de 
que mesmo nas sociedades mais hierarquizadas ha momentos, situacoes 
ou papeis socia is que permitem a cr(tica, a relativizacao ou ate 0 rompi­
mento com a hierarquia. 6 Na sociedade complexa contemporanea existem 
tendencias, areas e dominios onde se evidencia a procura de contestar e 
redefinir hierarquias e a distribuicao de poder. Ao contrario de sociedades 
tradicionais mais estaveis Oll integradas, esta longe de haver lim consenso 
em torno dos lugares e posicoes ocupados e de seu valor relativo. Existe 0 
dissenso em varios n{veis, a possibilidade do conflito e permanente e a rea­
lidade esta sempre sendo negociada entre atores que apresentam interesses 
aivergentes. Embora existam os mecanismos de acomodacao ou de apazi­
guamento, sua eficacia e muito variavel e, ate certo ponto, imprevis(vel. Ha 
diferentes tipos de desvio e contestacao que poem em xeque a esca/a de 
valores dominante. A ciencia social surge e se desenvolve nessa conjuntura, f 
tendo toda uma dimensao iconoclasta voltada para 0 exame cr(tico e dessa­
cralizador da sociedade. as cientistas socia is, antrop6/ogos, soci6/ogos, 
cientistas pol (ticos etc. estao constantemente entrando em areas antes 
S Comunica.;ao pessoal. 
6 Vel' 0 trabalho cl<lssico de Louis Dumont, Homo hierarchicus. Paris, Gallimard, 
1966, onde 0 autor mostra que mesmo na India, modelo de sociedade hienlrquica, ha 
margem para a sa Ida ou estranhamento da hierarquia. 
"Z 
,- _.. - =:. .--=- -==­
J 
128 ,;~ 1drv"d!)~ !.:-:;T'l J ::; cilitura 
i!l\'iol:h'e:,,~c\Jal1-::3ndo duvidas, reveneo premissas, questionando. ~ clem 
que isso varia em func;ao de n possibilidades - origem social, tipo de for­
mat;:ao, orientat;:ao te6rica,posit;:ao ideol6gica, entre outras. Mas, meslllo 
em se tratando de indiv(duos e correntes mais ligados ou identificados com 
tendencias conservadoras, ou ate reacionarias, 0 proprio trabalho de inves­
tigat;:ao e reflexao sobre a sociedade e a cllitura possibilita uma dimensao 
nova da investigac;ao cientrfica, de conseqi)encias radicais - 0 questiona· 
mento e exame sistematico de seu proprio ambiente. As ana!QgLC!§..c2II1. a 
psicamllise, embora um tanto perigosas, sao obvias. Trat<i:se~afinal de Cl)n:­
'tas, de uma tentativa de identificar mecanismos conscientes e inconscientes 
que sustentam - e dao continuidade a - determinadas relat;:6es e sit\lat;:6es. 
Assim, volta-se a um ponto cr(tico. Nao so 0 grau de familiaridade varia, 
nao e igual a conhecimento, mas pode constituir-se em impedimento se nao 
for relativizado e objeto de reflexao sistematica. Posso estar acostumado, 
como ja disse, com uma certa paisagem social onde a disposit;:ao dos atores 
me e familiar; a hierarquia e a distribuit;:ao de poder permitem-me fixar, 
grosso modo, os indiv(duos em categorias mais amplas, No entanto, isso 
nao significa que eu compreenda a 16gica de suas relat;:6es. 0 meu conhe­
cimento pode estar seriamente comprometido pela rotina, habitos, estereo-
I tcpos. Logo, posso ter um mapa mas nao compreendo necessaria mente os 
princ(pios e mecanismos que 0 organizam. 0 processo de descoberta, e 
I analise do que e familiar pode, sem duvida, envolver dificuldades diferentes 
r' do que em relat;:ao ao que e exotico. Em princ(pio dispomos de mapas mais 
complexos e cristalizados para nossa vida cotidiana do que em relat;:ao a 
grupos' ou sociedades distantes ou afastados. Isso nao significa que, mesmo 
ao nos defrontarmos, como indiv (duos e pesqu isadores, com grupos e situa­
t;:6es aparentemente mais exoticos ou distantes, nao estejamos sempre clas­
sificando e rotulando de acordo com princ(pios basicos atraves dos quais 
fomos e somos socializados. ~ provavel que exista maior numero de duvi­
das e hesitat;:6es como as de um turista em um pa (s desconhecido, mas os 
mecanismos classificadores estao sempre operando. Dentro ou fora de 
nossa sociedade, n6s, pesquisadores ocidentais, estamos sempre, por exem­
plo, trabalhando enos refer indo a categoria indivfduo como unidade basi­
ca de mapeamento. No entanto, atraves da obra de Louis Dumont, sabemos 
que existem sociedades em que essa categoria mio e dominante,7 Mesmo 
.dentro da sociedade brasileira ha grupos e areas que apresentam fortes dife­
'" I rent;:as e descontinuidades em relat;:ao anot;:ao dominante de indiv (duo. 8 
7 Gp. cit, 
8 Refiro-me a esta questao em "Rela90es entre a antropologia e a psiquiatria", in 
Revista da Associa930 de Psiquiatria e Psicologia da In fan cia e da Adolescencia. Rio, 
v. 2, 1976, n9 1. (Capitulo VI deste livro.) 
=z 
ObSerflE:II':'lJ a rami/ie; tZ9 
Levando mais longe 0 exarne das categorias -familiar e ex6tico , 
sem querer entrar em discuss6es de natureza filos6fica, nao ha como deixar 
de mencionar os impasses sugeridos pelo existencialismo em relac;ao ao 
conhecimento do outro. Nac?'y.?jQ isso como um impedimento ao trabalho 
cil1.D.tJfj<;o .mas comQ_uma -Iembran9a dehumildac!E;-'e -controle-de on ipool' 
tencia tao comumem iloss·o.meio;-o_cQo.h~jmento'de-situa~5esou·jndf. 
-\irduos e constru rdo a partir de u'm sistema de interat;:6es cultural e histo­
ricamente definido. Embora aceite a ideia de que os repertorios humanos 
sao Iimitados, suas combinat;:6es sao slJficientemente variadas para criar 
surpresas e abrir abismos, por mais familiares que indiv(duos e.situat;:6es. 
possam parecer. Nesse sentido, um certo ceticismo pode ser saudave!. 
Parece-me que Clifford Geertz ao enfatizar a natureza de interpretar;ao do r 
trabalho antropol6gico chama atent;:ao de que 0 processo de conhecimen- \ 
to da vida social sempre implica um grau de subjetividade e que, portanto, \ 
tem um carater aproximativo e nao definitivo. 9 0 que significa a Velha( 
estorinha de que antrop610gos sofisticados escolhem sociedades $ofistica­
das para estudar, os mais ansiados trabalham com culturas onde a ansie­
dade e dominante? 
Isso mostra nao a feliz coincidencia ou a magica do encontro I 
entre pesquisador e objeto com que tenha aflnidade, mas sim 0 carater de I 
interpretat;:ao e a dimensao de sUbjetividade envolvidos nesse tipo de tra. I., 
balho. A "realidade" (familiar ou exotica) sempre e filtrada por determi- ( i 
nado ponto de vista do observador, ela e percebida de maneira diferenciada. I 
Mais LJma vez nao estou proclamando a falencia do rigor clentrfico no estu· I I 
do da sociedade, mas a necessidade de percebe-Io enquanto objetividade \ i 
relativa, mais ou menos ideologica e sempre interpretativa. ' 
Esse movimento de relativizar as no;;:6es de distancia e objetivida­
de, se de um lade nos torna mais modestos quanto aconstrut;:ao do nosso 
conhecimento em geral, por outro lado permite-nos observar 0 familiar 
e estuda-Io sem paran6ias sobre a impossibilidade de resultados imparciais,
neutros. 
m. 
Tive oportunidade de pesquisar um universo de pequena ciasse media white 
col/ar que me era familiar atraves do mapa hierarquico e pol (tico de minha 
sociedade e de meu bairro. to Atraves de estereotipos localizava os mora­
9 Geertz, Clifford, The interpretation of cultures. Nova York, Basic Books, 1973. 
[Ed. bras.: A interpreta9ao das Culturas. Rio, Zahar, 1978. J 
10 Ver Velho, Gilberto, A utopia urbana: um estudo de antropologia social. 3? ed., Rio, Zahar, 1978. 
'J' 
de.-",': de g:;;,.•C:es predios de conjugados. j~O passar por um dessss ed1::I~:-:::. 
"sabia" que era um "balan<;a", que havia desconforto, falta de higiene e 
que seus moradores eram de condiyao social inferior, sujeitavam-se a cond;i­
<;oes de vida mais ou menos degradantes por estarem alienados, sugestio­
naveis. Ccrtamente tinha duvidas, questionava alguns desses estere6tipos. 
Ja conhecera pessoas que moravam em "balan<;as" e que nao se ajustavam 
a essas pre-noyoes. De qualquer forma, se um desses predios, particular­
mente, tornou-se mais familiar ainda, quando para la me mudei, 0 meu 
conhecimento de sua populac;;ao era precario. 0 esforyo de entender e 
registrar 0 discurso do universo, seu sistema de classificayao e de captar 
sua visao de mundo nem sempre foi bem-sucedido. Percebia como a minha 
inseryao no sistema hierarquico da sociedade brasileira levava-me constan­
temente a jlligamentos apressados e preconceituosos, as vezes ate por que­
rer drasticamente repelir as nOyoes anteriores, caindo em armadilhas inver­
sas. Depois de ana e meio de residencia no predio, creio que consegui 
,perceber alguns mecanismos que sustentavam a 16gica das relac;;oes sociais 
internas e externas e tambem captar algo do estilo de vida e viscio do mun­
do locais. Estou consciente de que se trata, no entanto, de uma interpre­
ta9ao e que, por mais que tenha procurado reunir dados "verdadeiros" e 
"objetivos" sobre a vida daquele universo, a minha subjetividade esta 
presente em todo 0 trabalho. Isso esta claro para mim na medida em que 
volto constantemente a reexaminar a pesquisa e mesmo a revisar 0 local 
da investigayao. Por outro lado, sendo um grupo que vive na minha cidade, 
conhec;o outras pessoas, inclusive cientistas socia is que 0 encontram, que 
tambem tem alguma familiaridade ou ate fizeram pesquisas em contextos 
semelhantes. Dessa forma a minha interpretac;ao esta sendo constantemen­
te testada, revista e confrontada. 0 mesmo nao se da com muitos estudos 
de sociedades ex6ticas e distantes, pesquisadas por apenas um investigador, 
em gue n~o houve oportunidade de maiores discussoes ou polemicas. 
Assim, a interpretac;ao de u.m investigador fica senCla a versao existente 
sobre determinada cultura, nao sendo exposta a certos questionamentos. 
Ao contrario, na sociedade brasileira hcl muitas opinioes e interpretayoessobre Copacabana, carnaval, futebol etc., colocando os pesquisadores no 
centro de acirradas polemicas. 
Embora familiaridade riao seja igual a conhecimento cientffico, 
e fora de duvida que representa tambem um certo tipo de apreensao da 
realidade, fazendo com que as opinioes, vivencias, percepc;oes de pessoas 
sem formac;ao academica ou sem pretensoes cientificas possam dar valio­
sas contribuic;;oes para 0 conhecimento da vida social, de uma epoca, de 
um grupo. Alem disso, hcl indivfduos ou grupos que talvez por um movi­
mento de estranhamento, como certos artistas, captam e descrevem signi­
ficativamente aspectos de uma sociedade de maneira mais rica e reveladora 
do que trabalhos mais orientados (real ou pretensamente) de acordo com 
cDse:lf,"no'..." (') (emi/h': L'-;l 
os tx.dro"scient(ficos. Os Gxamplos na literatura sao 6bvios: Balzac, Proust, 
Thomas Mann e, no Brasil, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Oswald 
de Andrade etc. Tambem no teatro, cinema, musica, artes plasticas pode­
riam ser citados' exemplos. Isso sem falar em generos menos '!nobres" 
como 0 jornalismo em suas varias man'festac;oes, a hist6ria em quadrinhos 
e a literatura de cordel, entre outros. 
Ou seja, numa sociedade complexa contemporanea como a brasi­
leira, 0 antrop610go apresenta sua interpretayao, que, por mais que possa 
ter certa respeitabiJidade academica, e mais uma versao que concorrera 
com outras - arHsticas, polfticas, em termos de aceitac;ao perante um pu­
blico relativamente heterogeneo. Ha outras pessoas, profissionais de cien­
cias sociais ou neio, observando e refletindo sobre 0 familiar - a nossa 
sociedade em seus multiplos aspectos, com esquemas e preocupac;oes dife­
rentes. Se 0 interesse por grupos tribais, por exemplo, e relativamente 
restrito, 0 mesmo nao se pede dizer sobre umbanda, escola de samba, usc 
de t6xicos, homossexualismo e outros temas que tem si<lo pesquisados por 
antrop610gos_ 
Assim, ao estudar 0 que estcl pr6ximo, a sua pr6pria sociedade,o ) 
antrop610go expoe-se, com maior ou menor intensidade, a um confronto 
com outros especialistas, com leigos e ate, em certos casos, com represen- I 
tantes dos universos de que foram investigadores, que podem discordar das \ 
interpretac;oes do investigador. Vivi essa experiencia em minha pesquisa '­
sobre usc de t6xicos em camadas medias altas,u quando pelo menos duas 
pessoas que eu tinha entrevistado nao concordaram com algumas das mJ-; 
nhas conclusoes, apresentando cr(ticas que me levaram a rever pontos\ 
importantes. Embora isso possa acontecer no estuda de outras sociedades, 
e menos provavel porque, normalmente, feita a pesquisa, 0 investigadOr\ 
volta para 0 seu pars ou cidade e tem menos oportunidades de confrontar­
se com as opiniees daqueles a quem estudou. Parece-me que, nesse n ivel, I. 
o estudo do familiar oferece vantagens em termos de possibilidades de 
rever e enriquecer os resultados das pesquisas. Acredito que seja poss{vel 
transcender, em determinados momentos, as limitay'oes de origem do an­
trop610go e chegar aver 0 familiar nao nccessariamente como ex6tico mas 
como uma realidade bem mais complexa do que aquela representada pelos 
mapas e c6digos basicos nacionais e de classe atraves dos quais fomos socia­
lizados. 6 processo de estranhar 0 familiar torna-se possivel quando somos ! 
capazes de confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente. dife- ; 
rentes versees e interpretac;5es existentes a respeito de fatos, situac;5es. 0 \ 
estudo de conflitos, disputas, acusac;oes, momentos de descontinuidade 
11 Ver Nobres e anjos; um escudo de t6xicos e hierarquia. Sao Paulo. 1975. (Tese de 
Doutoramento apresentada 11 Faculdade de Filosofia. Letras e Ciencias. USP.) 
..
 
10 
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social, podem-se registrar os contornos de diferentes grupos, ideologie.s, in­
teresses, subculturas etc., permitindo remapeamentos da sociedade.' 0 
estudo do rompimento e rejei<;ao do cotidiano por parte de grupos ou in­
dividuos desviantes ajuda·nos a iluminar, como casos limites, a rotina e os 
mecanismos de conserva<;ao e domina<;ao existentes. 
Vale a pena insistir no carMer relativo da no<;ao de familiar e ex6­
tico, especialmente na nossa sociedade. A comunicac;ao de massa - jornal, 
revista, radio, televisao, traz fatos, not(cias de regioes e grupos espacial­
mente distantes mas que podem se tornar familiares pela frequencia e in­
tensidade com que aparecem. Basta pensar, por exemplo, no jet-set inter­
nacional enos artistas de Hollywood como grupos com que um gigantesco 
numero de individuos desenvolve uma certa familiaridade, sabendo deta­
Ihes mais ou menos verdadeiros a respeito de suas vidas, fam(ljas, roupas, 
preferencias etc. Por outro lado, recebemos com maior ou menor frequen­
cia noticias e imagens de lugares tradicionalrnente definidos como ex6ticos 
- (ndia, Africa etc. Ha, sem duvida, cenarios e grupos dentro do proprio 
pars ou ate dentro da propria cidade de que muitas vezes nem ouvimos 
falar, que nao sao temas dos orgaos de com\.jnicac;ao de massa, as vezes por 
censura, muitas vezes por simples desconhecimento. Dessa forma, ha indi­
v(duos, situac;oes, grupos de outras sociedades e culturas que nos sao mais 
familiares do que muitas facetas e aspectos de nosso proprio meio, socieda­
de. Evidentemente coloca-se 0 problema de criticar essas noc;oes e imagens 
mais ou menos estereotipadas que nos chegam atraves desses veiculos e 
perceber como e quanto podemos conhecer sobre essas realidades espacial­
mente distantes. 
De qualquer forma 0 familiar, com todas essas necessarias relativi­
zac;oes e cada vez mais objeto relevante de investigac;ao para u rna antropo-. 
logia preocupada em perceber a mudan<;a social nao apenas ao n(vel das 
grandes transformac;oes historicas mas como resultado acumulado e pro­
gressivo de decisoes e interac;oes cotidianas. 
CAPITU 
Cotidiano e Politica
 
num Predio de Conjugados*
 
,­
•	 Agradeco a Editora Paz e Terra por 3utorizar a inclusao deste texto, publicado ante­
riormente em Classes medias e politica no Brasil, organizado por J,A. Guilhon de Al­
buquerque, 1977. 
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