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Figurações da inveja – o ódio ao esforço - Suad Haddad de Andrade

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Figurações da inveja – o ódio ao esforço 
Suad Haddad de Andrade 
 
Introdução 
Não só a mãe, também a criança tem que desenvolver uma parcela 
significativa de esforço para conseguir nascer e continuar vivendo. Não 
sabemos com precisão quando começa essa luta, mas sabemos que a batalha 
pela sobrevivência biológica e psíquica só acaba com a própria vida. 
No entanto, o que verificamos na clínica é que nem sempre o esforço é 
aceito ou vivido com naturalidade; acontece mesmo de nos surpreendermos 
muitas vezes com o fato, evidente, de toda uma história de sofrimentos e 
infelicidades serem simplesmente decorrentes da reação do paciente de não 
poder ou, aparentemente, se negar a empenhar-se quando necessário. 
Estou me referindo ao desempenho natural, espontâneo, que nos mo-
biliza a crescer. Há uma natural vitalidade interna psíquica e uma energia 
orgânica sempre nos colocando em movimento, verdadeiro fator de sobre-
vivência do homem na terra. Estou considerando a resistência a essa 
mobilização como uma expressão de ataque aos impulsos naturais e funda-
mentais para a preservação da vida. É diferente do esforço por obrigação, do 
esforço superegóico que não respeita as possibilidades de cada um e 
representa um ataque às nossas condições naturais e individuais. A exigência 
de crescer a todo custo, de "vencer", de superar o pai em força, capacidade e 
poder expressa a presença de uma distorção da vivência edípica que 
compromete o processo de desenvolvimento. 
Estou intitulando ódio ao esforço à dificuldade bem específica de a 
pessoa empenhar-se em alguma atividade importante, seja ela física ou psí-
quica. Tento pesquisar um fenômeno que estou considerando um desvio 
perverso, mas num sentido muito restrito. Não falo de estrutura perversa nem 
de desordem de caráter perverso; também estou me afastando totalmente do 
conceito de perversão ligado exclusivamente à sexualidade, no sentido de 
desvios da atividade sexual. Fico mais próxima do que se considera hoje 
defesas perversas, à medida que o ódio ao esforço me parece ligado 
diretamente à emergência da inveja e representa uma forma de lidar com ela. 
Trata-se de uma negação defensiva de um aspecto da realidade que pode 
ocorrer em diferentes personalidades, em diferentes situações, com maiores ou 
menores conseqüências para a personalidade como um todo. 
Examino então como os aspectos destrutivos, que se manifestam atra-
vés da inveja e da idealização, podem contribuir para prejudicar a capacidade 
de construção do mundo interno e a percepção do mundo externo, enfocando 
apenas este sintoma, que é a dificuldade em fazer esforços. 
A inveja 
Para os kleinianos (1991), as diferentes distorções da realidade são 
manifestações da pulsão de morte, e a inveja é o representante direto do 
instinto de morte. Nada ameaça mais do que a inveja - ela é o grande mal, à 
medida que é o mal instalado internamente e acionado, atacando quando 
menos se espera. Na inveja, o objeto bom incomoda pelo simples fato de 
existir; este é o aspecto paradoxal freqüentemente presente na relação com o 
psicanalista; o analista incomoda porque oferece rèverie, porque tem condição 
de acolhimento. Esta condição preciosa do analista é muito incomodativa 
porque é a mais desejada pelo paciente que busca fundamentalmente conter 
seus próprios conteúdos mentais. 
Estamos freqüentemente nos protegendo de sentir inveja; nos defen-
demos dela quando denegrimos o objeto bom e o destituímos de qualidades 
para não termos por que invejá-lo. O refúgio no narcisismo é uma solução para 
não se viver a inveja do objeto bem dotado e necessitado e pode trazer 
deformações importantes na percepção da realidade. 
A inveja primária é esta que surge na relação com o seio materno. 
Segundo Steiner (1997), as perversões narcisistas estariam situadas na 
dinâmica da relação dual e diretamente relacionadas à inveja primária. Os 
sentimentos de ciúme emergem quando da percepção do pai e dos irmãos e 
correspondem à inveja secundária. O reconhecimento da cena primária e o 
complexo de Édipo estariam relacionados à inveja secundária - as dificuldades 
na elaboração da situação edípica são as que levariam às perversões 
sexuais. As negações fundamentais, nesta constelação, são as das diferenças 
entre os sexos e entre as gerações; é quando vão ocorreras idealizações do 
ânus e a criação de um mundo anal em que as diferenças são abolidas. 
Steiner fala também das perversões românticas da realidade e do 
tempo. Estes grupos de perversões que ele descreve têm a ver com a pro-
posta de Money-Kyrle de destacarmos três situações básicas - fatos da vida 
que são negados ou cujo reconhecimento é, muitas vezes, obstruído. A 
negação da realidade das perdas e de nossas limitações humanas (passagem 
do tempo e certeza da morte) seriam as distorções importantes neste terceiro 
tipo de perversão. 
Essa demarcação precisa entre as experiências narcisistas na relação 
com o seio e a situação edípica levando a diferentes tipos de perversões não 
parece dar conta dos fenômenos clínicos e, por isso, tem sido ampliada. A 
situação triangular precoce, com a presença do pai na fantasia da criança 
desde as primeiras experiências com a mãe, torna difícil a distinção precisa 
entre os dois primeiros grupos de perversões descritos: narcisista e sexual. É 
nesta intersecção, quando predomina a relação com o seio (narcisismo), mas a 
presença do pai já se configura como uma interdição ou um perigo (situação 
triangular), que eu penso podermos localizar os transtornos perversos, 
eventuais ou não, a que estou me referindo. 
Na situação de desprezo pelo esforço ocorre também a negação das 
vicissitudes da condição humana e negação do fato de que não contamos com 
recursos que nos protejam de danos e perdas. 
O que quero assinalar é que é muito difícil delimitar o fenômeno que 
descrevo a um único quadro, já que se trata de uma reação patológica que 
emerge em diferentes configurações, como a própria inveja. 
 
A criação do objeto idealizado 
A inveja é responsável pela criação de um objeto onipotente, fortemente 
idealizado (o objeto invejado) que, ao ser reintrojetado, cria, dentro do self, um 
tipo de objeto interno com características muito peculiares e que leva também a 
comportamentos muito específicos. Falo de pacientes identificados com um 
objeto idealizado, que tudo podem conseguir no dia-a-dia sem se empenharem; 
esses pacientes não suportam fazer esforço para pensar, para alcançar 
conhecimento ou para conseguir desenvolver qualquer atividade. Tudo tem que 
ser fácil, espontâneo. Acreditam que não deveriam passar pelas dificuldades 
de um grande empenho (como para emagrecer, por exemplo, no caso de 
obesos, para deixarem drogas ou bebidas, ou para dominarem um 
conhecimento novo ou uma nova tarefa. A própria adição a alimentos, bebidas 
ou drogas é a expressão da necessidade de atender ao prazer sem qualquer 
limite e inclui a crença de que têm direito a tudo). Um grande esforço, uma 
aplicação de si mesmo numa tarefa é inaceitável, porque tudo deveria ocorrer 
com facilidade, naturalidade e alegria. E se não conseguem dessa maneira, 
sentem-se lesados. Só que a desvantagem que sentem não é acompanhada 
de uma avaliação ponderada, de uma apreciação válida dos recursos de cada 
um; é apenas a afirmação de uma injustiça que é amparada em sentimentos 
muito hostis. Na verdade estão impossibilitados de preservarem a capacidade 
de reflexão e de percepção da realidade externa e das próprias condições 
pessoais. 
Esses pacientes consideram as pessoas que são bem-sucedidas pes-
soas privilegiadas, e sempre encontram justificativas para explicar que o outro 
foi ou está sendo beneficiado de alguma forma. Esta é uma maneira de 
denegrir a capacidade do outro e o trabalho imenso que cada tarefa bem 
realizada exige. Se o outro consegue é porque tem facilidadese não porque se 
empenha e assume as conseqüências de uma escolha. Não conseguem ver 
que, se existe uma opção, deve corresponder a ekruma energia que 
possibilitará levar adiante o projetado. No âmbito social, essas pessoas podem 
infringir princípios éticos, à medida que fazem escolhas, mas não se sentem 
obrigadas a lutar por elas. 
É necessário muito esforço para enfrentar as cesuras, os rompimentos; 
para tolerar as frustrações, tolerar a não-representação até que ela seja pos-
sível; para tolerar o sofrimento sem tentar se evadir para um narcisismo 
empobrecedor. É necessário esforço para agredir e se indignar sempre que isto 
se faça necessário como forma de preservar valores. É preciso força para 
suportar agressões, discordâncias, dúvidas; para suportar a atividade mental 
elaborativa e trabalhosa; para alcançar objetivos; para manter um espírito de 
luta requer confiança em si e nos objetos externos, incluindo o dar importância 
a si próprio e aos outros. Há muito esforço no trabalho de lulu, na elaboração 
das perdas. Suportar o conflito edípico e desenvolver a capacidade de 
aprender da experiência emocional também exigem muito esforço. 
Fazendo força e nos empenhando é que nos tornamos fortes. O estor-
vado é vigoroso, animado, confiante - é o próprio Ulisses da epopéia grega. 
Para estes pacientes que idealizam uma vivência sem empenho vital, o 
pensar é uma tarefa difícil, pesada, para a qual eles estão despreparados. 
Para eles, o pensar fica equacionado a ceder ou enfraquecer, à perda de algo 
bom; não é para fortificar, para alcançar uma aquisição. Para eles, os conflitos 
não deveriam existir. Estes pacientes poderiam ser representados pelo outro 
herói grego: Achiles. 
Os dois poemas homéricos, Ilíada e Odisséia, são considerados, de 
certo modo, antagônicos, no sentido do ideal que eles expressam. A Ilíada 
conta as glórias militares da guerra de Tróia; o ideal, neste canto, é afama. A 
Odisséia, o retorno, narra a volta de Ulisses a sua terra. De um lado a busca 
da glória eterna, de outro a volta ao lar. O helenista Trajano Vieira (1999) 
mostra como Achiles, que preferiu a glória longa e a vida breve, representa o 
ideal guerreiro; sua escolha foi viver a vida eterna no panteon dos heróis 
mortos pela pátria. Ulisses faz a opção inversa: glória breve e vida longa; 
escolhe envelhecer junto aos seus. 
Ulisses representa a retomada de consciência, a reeducação em termos 
humanos. Lutando contra as intempéries e os diferentes obstáculos infringidos 
pelos deuses, desenvolve seus recursos práticos, sua inteligência e as mais 
variadas habilidades para poder sobreviver. "Curiosidade, versatilidade, 
mobilidade são alguns dos atributos desse herói avesso à melancolia, que irá 
simbolizar o pensamento especulativo no Ocidente." Enquanto vai 
amadurecendo sua personalidade, nesse difícil retorno, Ulisses vai tomando 
consciência de quanto os feitos heróicos da guerra nada mais são que 
idealizações. Sua descida ao inferno representa o encontro consigo próprio - é 
a demanda da posição depressiva, como nos mostra bem Rezende (1999). 
Esse percurso interno é tão penoso e difícil em cada um como a viagem do 
herói grego. 
Escolher a glória, como Achiles, é escolher a morte: ela representa a 
rejeição e a fuga dõs sentimentos penosos de perda, ausência e fragilidade. A 
satisfação plena traz sempre um bem-estar que exclui a possibilidade de 
avanços. A gratificação não exige a mobilização de novos recursos. É a 
experiência da falta que nos leva a pensar, recordar, usar da experiência: "A 
experiência da falta não é um acidente de percurso, mas ela é constitutiva do 
ser humano" (REZENDE, 1999). Achiles, intitulado O Divino, só poderia realizar 
seus desejos de glória e imortalidade com a própria morte. Em termos 
psíquicos, é a morte da capacidade de pensar que ocorre sempre que a 
onipotência, a voracidade e a inveja nos afastam do contato com nossa 
realidade interna. 
A dificuldade em suportar as frustrações leva ao ódio, ao esforço que é 
exigido para suportá-las. A mobilização que ocorre sempre que sentimos uma 
frustração pode nos levar a buscar soluções - é o pensar, como mostra Bion 
(1966). Ou a pessoa se empenha para suportar as frustrações e consegue 
alcançar novas soluções que se provarão enriquecedoras, ou ela deixa de 
fazer o esforço necessário. Estou falando que há uma incapacidade em fazer 
esforço por comprometimento ou falta de competência para lidar com as 
exigências da vida; trata-se, portanto, de um movimento inconsciente, ditado 
pela inveja. 
A atuação invejosa acarreta dificuldades de contenção e de elaboração 
do pensamento e pode provocar distúrbios na atividade da função alfa de difícil 
reversibilidade. O bloqueio na construção da barreira de contato é uma das 
conseqüências. A barreira de contato, segundo Bion, "delimita o ponto de 
contato e de separação entre os elementos conscientes e inconscientes, e dá 
origem à distinção entre eles. Da natureza da barreira de contato depende o 
intercâmbio de elementos do consciente para o inconsciente e vice versa". 
A possibilidade de fazer conexões mentais, de poder associar livre-
mente, de se deixar levar pela imaginação está ligada à crença de que se pode 
sonhar sem medo de se perder nos sonhos; existe a crença de que não se vai 
enlouquecer, ou ser lançado no infinito informe e sem limites, de onde não se 
pode voltar. Esta capacidade de sonhar e de criar um mundo interno rico e 
sempre em movimento é protegida pela barreira de contato; ela é a garantia de 
que o inconsciente não vai invadir todo o espaço mental. A proteção da barreira 
de contato permite o mundo das fantasias, dos sonhos e da criação 
imaginativa. 
Quando alguém se esforça, está sonhando que vai conseguir alcançar 
seus objetivos; confia em que algo novo vai surgir e luta para realizar seus 
sonhos. Na análise temos a experiência viva dessa confiança, presente no 
analista e no paciente. A confiança maior é a de ser capaz de suportar as 
mudanças catastróficas, sempre muito penosas, mas também essenciais, 
sempre um passo a frente no processo de desenvolvimento. Quando não 
confio e não me empenho, o que está basicamente abalada é a capacidade de 
sonhar. A descrença em si próprio e na importância dos esforços a serem feitos 
é substituída pela certeza de que nada valioso se vai conseguir. Passa a 
existir, então, uma crença, a crença de que se sabe o que vai ocorrer; sabe-se 
do insucesso, sabe-se da desvantagem do empenho, sabe-se, enfim, de tudo o 
que virá. Não se vive mais o sonho, vive-se as certezas, senhor que se torna, 
agora, das "previsões". Nesta situação não existe a possibilidade de se 
defender da loucura, porque ela já está instalada através desse processo 
alucinatório de tudo saber, do presente e do futuro. 
 
por que o empenho é tão difícil! 
A necessidade do esforço é prova da existência da fragilidade e dos 
limites. 
A fantasia de uma condição idealizada de poder e força e, principal-
mente, de um prazer ininterrupto, que nos protegeria dos sentimentos desa-
gradáveis decorrentes de faltas e frustrações, sempre existe. Se esta criação 
fantástica predomina ou é muito forte, pode se transformar em uma maneira de 
se relacionar com o mundo. Nesses pacientes passa a não existir o desejo de 
desenvolver recursos para enfrentarem-se as dificuldades. A tendência inata, 
que nos leva para a frente, é a busca permanente de conhecimento; esta 
tendência natural fica estancada, e todos os aspectos que mobilizam vida e 
criatividade são desconsiderados ou tomam uma conotação negativa. 
A realidade de nossa impotência é ao mesmo tempo aceita e negada, 
como já nos mostrava Freud no seu trabalho sobre o fetichismo (1927). Na 
distorção infantil, a criança sabe que a mãe não tem pênis, mas cria teorias 
para negar isso e com astucia concilia a sua crença à realidade. Então: elasabe da verdade, mas faz de conta que não sabe. As perversões seguem esse 
modelo; para fugir à culpa e à responsabilidade, o perverso não reconhece o 
seu ódio e seus ataques e considera o que faz natural. A negação de sua 
dependência em relação ao objeto é acompanhada da negação de sua 
dependência aos esquemas internos que o mantêm afastado da realidade. 
Embora todas as experiências, desde o nascimento, sejam experiências 
de luta para sobreviver, para se desenvolver, para aprender, existe a negação 
dessa obviedade e a afirmação da possibilidade de viver descuidadamente. E a 
perversão consiste em se ficar provando a superioridade desse esquema sobre 
o outro, do esquema da fragilidade e inércia sobre o do empenho que leva para 
a frente. 
Quando Meltzer (1991) descreve a idealização das fezes da mãe pelo 
bebê, em que as nádegas e os seios do bebê e da mãe são confundidos um 
com o outro, e ambos são equacionados ao seio da mãe, ocorre então uma 
idealização do reto: "idealização do reto como fonte de alimento e uma 
identificação projetiva delirante com a mãe interna - o que apaga a dife-
renciação entre criança e adulto no que se refere às capacidades e prerro-
gativas". Nas situações que estou descrevendo, a constatação da incapacidade 
natural da criança em relação aos pais também é negada; o paciente acredita 
que pode ter tudo o que ambiciona, pode ter todas as capacidades, direitos e 
facilidades. 
A percepção do estrago interno decorrente dessa idealização fica afas-
tada da consciência, e só quando, na análise, tentamos ajudar o paciente a se 
aproximar desses aspectos nocivos ao seu desenvolvimento é que o caráter 
violento deste objeto interno pode ser vislumbrado. São as identificações com 
figuras internas fictícias e fascinantes; identificações com a figura combinada 
ao mesmo tempo poderosa e ameaçadora. E também uma forma perversa de 
lidar com a dependência, sejam as dependências infantis presentes no adulto, 
sejam as dependências próprias da condição humana. 
O que o ódio ao esforço traz, inevitavelmente, é a falta de firmeza, de 
decisão, de entusiasmo, de autoconfiança. Essas pessoas são queixosas, 
insatisfeitas e se sentem vítimas do infortúnio. Reclamam da vida, quase 
sempre de uma forma imprecisa, mas podem ter também uma queixa bem-
estruturada de um objeto ou de vários. 
A criança que aceita ser criança tem alegria com o crescimento; cada 
aquisição sua é festejada por ela mesma e exibida aos pais e irmãos. Na sua 
satisfação consigo própria ela está invariavelmente expondo também sua 
satisfação com seus pais, os propiciadores de recursos e de amparo. Já a 
criança invejosa não quer aprender a se cuidar, não quer crescer e fica tira-
nizando os adultos, que têm que supri-la em tudo. Estas crianças sentem o 
crescimento como um prejuízo, uma perda. O ter que se responsabilizar por si 
mesmas traz a angústia de não serem capazes, de se descobrirem sem os 
recursos necessários para se equipararem aos demais. Uma forma de se 
protegerem das frustrações que a percepção das desvantagens traz é o 
estancamento; e passam a cobrar eficiência dos outros, principalmente dos 
pais, que elas precisam expor ao mundo como maus pais. Na análise, essa 
situação é muito comum: o paciente não pode se desenvolver, não pode 
superar dificuldades porque isto seria uma prova do bom trabalho analítico. E o 
analista seria o único a se beneficiar disto! 
No adulto, uma forma de fugir ao empenho é o excesso de compro-
missos; pessoas que têm sempre muitas atividades diferentes e vivem divi-
didas, aceleradas entre as múltiplas tarefas. O não fazer discriminações, o não 
ter uma escolha precisa do que querem para si é uma forma de encobrir sua 
grande fragilidade e seu medo do confronto. O temor maior é de se 
empenharem ao máximo e não conseguirem os melhores resultados, aqueles 
resultados que os colocariam em destaque. 
Outro exemplo é o do paciente que tem que dar solução a tantos pro-
blemas antes de chegar à análise que não consegue chegar na hora "Não tem 
importância, são só cinco minutos". Considera-se muito sério, empenhado, mas 
foge do esforço necessário que é o de lidar com o que realmente importa: o 
sentir-se sufocado pela análise, para a qual transfere as pressões e as 
exigências internas. A capacidade de desenvolver recursos para lidar com seus 
entraves internos passa a ser vivida como dificuldade para chegar à análise - 
então chegar na hora ou "só com cinco minutos de atraso" se torna a solução 
mágica para suas dificuldades internas. E basta falar do problema, basta 
discorrermos sobre isto e tudo estará solucionado: nada se perdeu, nada mais 
existe de importante com que se preocupar. 
Outra reação comum é aquela que ocorre quando mostramos a dificul-
dade do paciente em se interessar e se empenhar no trabalho analítico, ao que 
ele reage dizendo que sua presença já é prova de interesse. Basta ter 
enfrentado o trânsito, estar aplicando tanto dinheiro na análise, chegar no 
horário todos os dias já são provas suficientes. Esses esforços são realmente 
feitos, mas servem mais para impedir do que para buscar a verdade interna, à 
medida que o cuidar é concreto e diz respeito apenas ao setting externo. 
 
Situação clínica 
O material que estou transcrevendo para ilustrar estas idéias é de uma 
colega, que permitiu, gentilmente, que eu o utilizasse. 
A paciente é uma jovem estudante universitária; em virtude dos estudos 
mora fora de casa, em uma cidade próxima; retorna todos os fins de semana 
para a casa dos pais. Na sessão relatada ela traz uma fala queixosa, quase 
desesperada. Sente-se perdida, pedindo à analista que encontre uma solução 
para suas dificuldades, que são inúmeras: está muito gorda e não consegue 
perder peso; o irmão e a mãe reclamam que ela passa o fim de semana em 
casa trabalhando no computador e não se preocupa com os gastos de papel e 
tinta. Ela alega que sai sempre triste de casa e não tem como se preocupar 
com as queixas que fazem dela; na verdade fica muito decepcionada com o 
fato de eles não reconhecerem sua tristeza e desamparo. 
Sempre traz o namorado para casa nos fins de semana e não entende 
por que eles reclamam ou por que se sentem constrangidos com o fato de ele 
dormir em seu quarto. Ela precisa de mais dinheiro do pai (que não mora com a 
família), e ele tem que entender suas necessidades. A paciente vai fazendo 
suas queixas enquanto vai argumentando, muito chorosa, que não sabe o que 
fazer. Para cada acusação dos familiares ela reage afirmando que faz o 
máximo que pode e que são eles os intolerantes e incompreensivos. 
Ela narra um sonho em que o namorado mostrava que a amava muito e 
a paparicava; era muito carinhoso, mas no momento seguinte não queria mais 
saber dela; era uma situação horrível. 
A analista se sente desconcertada, sem saber o que dizer, e seu 
desconforto dura toda a sessão. Inicialmente se comove com o choro e a 
tristeza da paciente, mas aos poucos vai ficando irritada e acaba tendo uma 
fala superegóica, em que cobra da paciente mais maturidade e responsabilida-
des. Em seguida, a analista percebe a inadequação de sua intervenção e se 
sente ainda mais impotente e constrangida. 
A paciente termina a sessão triunfante: "Sabe, realmente mudou tudo de 
repente, como é possível? Eu pensei agora: minha mãe, meu pai, meu irmão 
são como são, têm coisas boas e têm coisas ruins; não são eles que têm que 
mudar, sou eu que tenho que aceitá-los como são, nos momentos bons, nos 
momentos ruins. Isto tudo veio na minha cabeça. Não foi ruim a sessão, foi 
bom". Com esse final inesperado a analista ficou ainda mais angustiada. 
Era esse o objetivo principal da paciente nessa sessão: tornar a analista 
incompetente e triunfar sobre ela. Ao provar sua independência em relação à 
analista e às outras pessoas de seu ambiente, ela realiza seu triunfo narcísico.O vínculo se reverte no final da sessão, quando é a paciente que tran-
qüiliza a analista ao lhe dizer: "não foi ruim a sessão, foi bom". É a paciente 
que alimenta a analista, tornada fraca e desamparada. Nesse trabalho de 
reversão, a paciente fez bem a sua parte: inundou a analista com suas des-
cargas de queixas e rancores, deixou também para ela o confronto com seus 
aspectos críticos e superegóicos. Ficar no relato queixoso das dificuldades 
transcritas é, na sua versão, o máximo que ela pode ou deve fazer. 
Seu final de sessão registra a eficiência de suas manobras e a vantagem 
e utilidade de não ter que elaborar ou viver suas dificuldades. O confronto com 
sua realidade interna-externa que a situação analítica poderia propiciar foi 
anulado; a paciente criou uma situação típica, perversa, em que ficou protegida 
de examinar e enfrentar suas deformações. A distorção que ela faz no final da 
sessão é característica das soluções "astutas" denunciadas por Freud: "Eles 
têm coisas boas e ruins; não são eles que têm que mudar, sou eu que tenho 
que aceitá-los como são". 
A analista ficou danificada: não pôde fazer a parceria interna frutífera 
com seus conhecimentos psicanalíticos e não pôde instrumentar a identificação 
projetiva. A eficiência do ataque invejoso da paciente visava exatamente a isso: 
impedir uma relação prazerosa e produtiva da analista com seus recursos 
psicanalíticos. 
O final da sessão, com a negação e o triunfo da paciente sobre a 
analista, revela o aspecto sadomasoquista presente nas suas relações, tanto 
nas que ela relata na sessão como a relação com seus objetos internos; é o 
predomínio da negação e dos aspectos destrutivos e hostis da personalidade. 
A paciente acha mesmo que os outros têm que cuidar do seu computador, de 
suas finanças e de seu conforto sexual e material. Ela se sente com todo o 
direito de não ser molestada, e de fato não o é; permanece na sua onipotência 
e na sua infertilidade. Até mesmo a perda de peso não expressa uma 
preocupação com sua incapacidade de emagrecer, mas é, antes, uma queixa, 
como se ela fosse vítima da condição de estar gorda. 
O sonho da paciente expressa bem sua maneira de se instalar no mun-
do: o outro é sempre o responsável pelo seu conforto ou desconforto. Na 
verdade, o namorado do sonho é a parte dela que ora se mobiliza para atender 
suas necessidades, ora se nega a assumir responsabilidades. Não ocorre à 
paciente que seu bem-estar depende dela mesma. Permanece, o mais das 
vezes, numa passividade hostil que encobre uma intensa atividade interior 
extremamente destrutiva, da qual ela é a mais importante vítima. Faz "vista 
grossa", na expressão de Steiner, à sua realidade interior pobre e dependente 
e vive dentro de uma situação circular sadomasoquista, em que, ao anular a 
analista, anula também sua possibilidade de desenvolvimento. 
Essas situações de triunfo, superioridade e descaso para com o perma-
nente esforço que a sobrevivência psíquica exige mostram a distorção típica 
das perversões; o desprezo ao crescimento, imperativo inexorável do instinto 
de vida, e a valorização da permanência e da inércia próprias do instinto de 
morte. 
 
Sinopse 
A autora intitula ódio ao esforço à dificuldade de se desenvolver 
empenho em atividade importante, seja ela física ou psíquica. Considera essa 
dificuldade como uma defesa perversa ligada diretamente à emergência da 
inveja. Ela acarreta a negação de aspectos da realidade externa e interna. Não 
é o objeto real que é invejado, mas o objeto idealizado, dotado de 
extraordinários recursos e que ao ser reintrojetado mantém dentro do self um 
objeto interno com características extremamente onipotentes. Sua principal 
característica é não ter que fazer qualquer esforço para conquistar o que 
deseja: tudo pode e deve ser fácil e tranqüilo. Qualquer esforço é odiado e 
desprezado. Essa incapacidade de se empenhar acarreta inevitavelmente falta 
de firmeza, de decisão, de entusiasmo e de autoconfiança. São pessoas 
queixosas e insatisfeitas que se sentem lesadas diante de qualquer dificuldade. 
 
Summary 
Configurations of Envy - the Hate to the Effort 
The author defines hate towards the effort as the difficulty of committing 
to an important activity, either physical or psychic. She considers this difficulty 
as a perverse defense directly linked to the envy emergence. It brings about the 
denial of aspects of the external and internal reality. It is not the real object that 
is envied, but the idealized object, endowed with extraordinary resources and 
that, when it is re-introjected, keeps within the self an internal object with 
extremely omnipotent characteristics. Its main characteristic is that no effort is 
required to conquer what one desires: everything can and must be easy and 
peaceful. Any effort is hated and despised. This incapacity of committing to 
anything inexorably brings about lack of self-confidence and enthusiasm, 
decision, and determination. These people are plaintive and unsatisfied, feeling 
injured before any difficulty. 
 
Sinopsis 
Figuraciones de la Envidia - el Odio al Esfuerzo 
La autora intitula odio al esfuerzo a la dificultad de desarrollarse empeño 
en actividad importante, sea ella física o psíquica. Considera esta dificultad 
como una defensa perversa relacionada directamente a la emergencia de la 
envidia. Ella acarrea la negación de aspectos de la realidad externa e interna. 
No se envidia al objeto real y sí al objeto idealizado, dotado de extraordinarios 
recursos y que al ser reintroyectado mantiene dentro del self un objeto interno 
con características extremadamente omnipotentes. Su principal característica 
es no tener que hacer cualquier esfuerzo para conquistar lo que desea: todo 
puede y debe ser fácil y tranquilo. Se odia y desprecia cualquier esfuerzo. Esta 
incapacidad de empeñarse acarrea inevitablemente falta de firmeza, de 
decisión, de entusiasmo y de autoconfianza. Son personas quejosas e 
insatisfechas que se sienten perjudicadas delante de cualquier dificultad. 
 
Palavras-chave 
Perversão; Inveja; Cisão do ego; Objeto interno; Idealização. 
 
Key-words 
Perversion; Envy; Splitting of the ego; Internal object; Idealization. 
 
Palabras-llave 
Perversión; Envidia; Clivaje del yo; Objeto interno; Idealización.

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