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Apostila Filosofia

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FILOSOFIA PARA ADMINISTRAÇÃO E CIÊNCIAS 
CONTÁBEIS. 
APOSTILA COMPLETA DO CURSO. 
 
 
PROFESSOR: ANTONIO SATURNINO BRAGA 
 
 
 
 
 
2013/2.
2 
 
SUMÁRIO 
 
PRIMEIRA PARTE: IMAGENS DA NATUREZA E DA RELAÇÃO SUJEITO-OBJETO. 
 
- Tópico 1. Apresentação Geral. Página 03. 
 
Primeira Seção da Primeira Parte: Esquema histórico das Imagens de Natureza. 
 
- Tópico 2: O surgimento da imagem lógico-científica da natureza. Página 08. 
- Tópico 3: Ciência antiga: a imagem de mundo e de ciência típica do período antigo e 
medieval. Página 12. 
- Tópico 4: Ciência moderna. Imagem de mundo e de ciência inaugurada na revolução 
científica do século XVII. Página 16. 
 
Segunda Seção da Primeira Parte: As Imagens da relação entre sujeito (do 
conhecimento) e objeto (do conhecimento). 
- Tópico 5. Esquema geral da segunda seção da primeira parte. Página 21. 
- Tópico 6: Empirismo e Racionalismo no século XVII. Página 23. 
- Tópico 7: Empirismo e Idealismo no século XVIII. Página 29. 
- Tópico 8: Empirismo Lógico e Racionalismo Crítico de Popper. Página 36. 
- Tópico 9: Reflexões sobre os limites e as condições de aplicação do método 
hipotético-dedutivo (Popper). Página 42. 
- Tópico 10: Positivismo e Construtivismo de Thomas Kuhn. Página 48. 
- Tópico 11: Positivismo e Construtivismo nas esferas da Teoria da Sociedade e da 
Teoria das Organizações. Pg. 53. 
 
SEGUNDA PARTE: IMAGENS DA SOCIEDADE E IMAGENS DAS ORGANIZAÇÕES. 
- Tópico 12: Apresentação Geral da Segunda Parte. Página 59. 
- Tópico 13: Mecanicismo. Página 61. 
- Tópico 14: Materialismo Histórico (Marxismo Ortodoxo). Página 65. 
- Tópico 15: Funcionalismo. Página 72. 
- Tópico 16: Abordagem Interpretativa (Hermenêutica). Página 78. 
- Tópico 17: Alguns conceitos da sociologia de Max Weber, um dos principais 
expoentes da abordagem interpretativa. Página 84. 
- Tópico 18: A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Habermas. Página 91. 
- Tópico 19: Algumas relações entre as imagens da sociedade e as imagens da 
organização expostas por Gareth Morgan. Pag. 101. 
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Tópico 1. APRESENTAÇÃO GERAL. 
 
 Nosso curso é um curso de filosofia; filosofia das organizações e da 
administração ou gestão das organizações. 
 Por ser um curso de filosofia, adotará um método de investigação e análise 
tipicamente filosófico: em vez de lidar diretamente com os objetos da nossa ação e do 
nosso conhecimento, nós vamos focalizar nosso modo de ver e compreender os 
objetos, e nosso modo de ver e compreender nossa relação com os objetos. Nós 
vamos instaurar uma espécie de mediação reflexiva entre nós e os objetos com que 
lidamos em nossa vida cotidiana e em nossas atividades acadêmicas e/ou profissionais. 
Trata-se de uma atitude reflexiva: em lugar de nos colocarmos numa relação direta e 
imediata com os objetos, como é típico da vida cotidiana, nós vamos nos voltar para 
essa relação, focalizá-la, analisar o modo como ela pode ser compreendida. 
 Em outras palavras, nosso curso vai analisar “imagens” (modos de ver e 
compreender), imagens dos objetos e da nossa relação com os objetos. Que objetos 
são esses? Nosso interesse último é no objeto “organizações” e na nossa relação com 
essa espécie de objeto – onde o “nós” são as pessoas interessadas no conhecimento 
(ou teoria) das organizações e na gestão das organizações. Mas as imagens de 
organização e da nossa relação com as organizações vão constituir o último tópico de 
nosso curso. Antes de abordar esse tópico, vamos discutir outros tipos de imagens. 
 Na primeira parte do nosso curso, vamos focalizar imagens de natureza e da 
nossa relação com o objeto “natureza” (fenômenos e processos naturais, como 
movimentos dos astros, queda dos corpos, crescimento de árvores, etc. – claro que 
não vamos tratar desses fenômenos e processos como cientistas, mas como filósofos 
do conhecimento científico). Na segunda parte, antes das imagens das organizações, 
vamos focalizar imagens do ser humano, dos grupos humanos e das sociedades, e 
imagens da relação dos cientistas sociais com essa espécie de objeto. 
 A primeira parte vai por sua vez se subdividir em duas seções. A primeira 
consiste em um esquema bastante simplificado da história das imagens de natureza. A 
segunda seção é uma história das imagens da relação entre o sujeito que produz 
4 
 
conhecimento (científico) da natureza e, por outro lado, o objeto (fenômenos e 
processos naturais) conhecido ou a ser conhecido neste conhecimento. 
 Nessa segunda seção da primeira parte, nós vamos trabalhar com dois grandes 
tipos de imagem. De acordo com um desses tipos, as ideias e modos de pensar do 
sujeito do conhecimento desempenham o papel prioritário na relação com o objeto 
conhecido ou a ser conhecido. De acordo com o outro tipo, a primazia cabe a dados e 
características independentes das ideias e modos de pensar do sujeito do 
conhecimento. Ao tipo mencionado em primeiro lugar pertencem as seguintes 
imagens da relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento: racionalismo, 
idealismo e construtivismo. E ao tipo mencionado em segundo lugar pertencem as 
seguintes imagens: empirismo, empirismo lógico e positivismo. 
 Nessa seção, nós (o professor e seus filósofos preferidos) vamos tentar 
defender a imagem construtivista da relação entre o sujeito e o objeto do 
conhecimento. Mas essa defesa não tomará a forma de uma afirmação de que as 
outras imagens estão erradas. Nosso argumento será que a imagem construtivista é 
mais perspicaz e menos ingênua, ou seja, equivale a uma visão mais ampla, rica e 
nuançada da questão. 
 Na segunda parte do curso, como dito acima, vamos focalizar imagens do ser 
humano, dos grupos humanos e das sociedades, e imagens da relação dos cientistas 
sociais com essa espécie de objeto. Enquanto na primeira parte o interesse 
fundamental recai sobre as imagens da relação entre o sujeito e o objeto, nessa 
segunda parte o interesse fundamental recai sobre as imagens do objeto, que nesse 
caso são os seres humanos, os grupos humanos e as sociedades (e não mais os 
fenômenos e processos estritamente naturais). 
 De modo semelhante ao da segunda seção da primeira parte, na segunda parte 
do curso nós também vamos trabalhar com dois grandes tipos de imagem – nesse caso 
imagens do objeto estudado pelos cientistas sociais, as sociedades em geral (grupos 
humanos em geral). De acordo com o primeiro tipo de imagem, os elementos 
essenciais deste objeto consistem em características, condições, estruturas e 
processos independentes das ideias e modos de pensar, tomados como fenômenos 
pertencentes a um plano secundário ou derivado, o das consciências dos seres 
5 
 
humanos. Ideias e modos de pensar ficam subordinados a elementos que lhes são 
independentes. De acordo com o segundo tipo, em contrapartida, os elementos 
essenciais do objeto “social” consistem nas ideias e modos de pensar que existem e se 
reproduzem na consciência e/ou na linguagem (atividades de fala) dos seres humanos. 
 Ao primeiro tipo pertencem as seguintes imagens do objeto estudado pelos 
cientistas sociais: mecanicismo, funcionalismo e materialismo histórico (ou marxismo 
ortodoxo). Chamaremos essas imagens de imagens “positivistas” da sociedade, em 
virtude da relação que se pode perceber entre essas imagens de sociedade e a imagem 
positivista da relação sujeito-objeto, analisada na Primeira Parte. 
Ao segundo tipo de imagens da sociedade pertencem as seguintes imagens: 
imagem Interpretativa (ou Hermenêutica) e Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, que 
pode ser considerada uma espécie de “hermenêutica crítica”. Chamaremos essas duas 
imagens de imagens “construtivistas” da sociedade, em virtude da relação que se pode 
perceber entre essas duas imagens do objeto “sociedade” e a imagem construtivista 
da relação sujeito-objeto, analisada na Primeira Parte. 
 Nesta segunda parte do curso, defenderemos a superioridade das imagens 
construtivistas ou “interpretativas”– tanto a imagem Interpretativa em sentido estrito 
quanto a “hermenêutica crítica” representada pela Teoria Crítica da Escola de 
Frankfurt. Argumentaremos que a consciência e os atos de fala são irredutíveis a 
elementos puramente “objetivos” (totalmente independentes dos sujeitos dotados de 
consciência e linguagem), e que as imagens construtivistas estão mais atentas a esse 
fato. 
 Por fim, no último tópico do curso tentaremos estabelecer relações entre as 
imagens estudadas na segunda parte e certas “imagens da organização” que podem 
ser percebidas na história da teoria das organizações. Nosso “orientador” nesta 
terceira parte será Gareth Morgan, cujo livro “Imagens da Organização” (Editora Atlas) 
nos inspirou a usar o termo “imagens” para designar modos de ver e compreender. 
 Antecipando o que será visto de forma mais detalhada nesse último tópico, 
abordaremos aqui três grandes imagens, procurando relacioná-las a algumas das 
imagens vistas na segunda parte do curso. Em primeiro lugar, a imagem mecanicista 
das organizações, na qual a organização é vista como uma máquina, e que pode ser 
6 
 
aproximada da imagem mecanicista da sociedade em geral. De acordo com esta 
imagem, a essência da organização são indivíduos isolados entre si, movidos por 
necessidades estritamente materiais ou financeiras, e que assumem as tarefas e 
responsabilidades particulares (individuais) próprias de cargos definidos num 
organograma tecnicamente desenhado. Grandes expoentes dessa imagem são Fayol e 
Taylor. 
 Em segundo lugar, a imagem funcionalista das organizações, na qual a 
organização é vista como um organismo, que pode ser aproximada da imagem 
funcionalista dos grupos sociais em geral. De acordo com esta imagem, a essência da 
organização reside em redes de relações humanas ou sociais, constituídas por laços de 
reconhecimento, afinidade, amizade ou interesse, de caráter mais informal do que 
formal, e cujo conjunto (ou sistema) está submetido a duas necessidades básicas: 
coerência / integração interna e adaptação ao ambiente externo. Grandes marcos 
dessa multifacetada imagem são Elton Mayo e os estudos de Hawthorne, Maslow e a 
hierarquia das necessidades humanas, a Teoria dos Sistemas Abertos e a Teoria da 
Contingência. 
 Por fim, a imagem interpretativa da organização, na qual a organização é vista 
como Cultura. De acordo com essa imagem, a essência da organização são os modos 
de pensar, ou modos de atribuir significado, que seus integrantes aplicam e 
reproduzem, muitas vezes de forma inconsciente ou irrefletida. Dependendo dos 
padrões de significação (nome abreviado dos padrões de atribuição de significado) 
dominantes na cultura organizacional, teremos diferentes tipos de cultura. 
 Podemos ter, por exemplo, uma cultura burocrática, descrita, entre outros, por 
Max Weber, um dos grandes nomes da abordagem interpretativa da sociedade e das 
organizações. Outro exemplo seria uma cultura “organicista”, orientada por 
significados organicistas. 
 Assim, uma mesma organização pode ser analisada de duas maneiras 
diferentes. O teórico ou gestor que usa um “óculos” mecanicista vai analisar a 
organização sob o prisma da máquina, identificando qualidades e defeitos típicos da 
organização-máquina. E o teórico ou gestor que usa um “óculos” interpretativo vai 
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analisar a organização sob o prisma da cultura, identificando qualidades e defeitos 
típicos da cultura burocrática. 
 De acordo com a abordagem interpretativa ou hermenêutica, tanto a cultura 
burocrática quanto a cultura organicista (mas a burocrática de forma mais acentuada) 
caracterizam-se por um baixo grau de reflexividade e consciência: as pessoas aplicam e 
reproduzem padrões de significação sem perceberem que estão fazendo isso, e sem 
serem encorajadas a refletir sobre isso. A cultura organizacional não abre espaço para 
a conscientização e discussão dos padrões de atribuição de significado nela vigentes. 
Em contraposição a isso, culturas “reflexivas” e “críticas” são culturas que abrem 
espaço para a conscientização, discussão e crítica dos padrões de significação vigentes 
em dado momento – nesse sentido elas estão mais abertas à mudança cultural. 
 Iremos relacionar a questão da mudança cultural à “aprendizagem de circuito 
duplo” analisada por Gareth Morgan no capítulo 4 de seu grande livro. E iremos 
relacionar este tipo de aprendizagem organizacional (que se distingue da 
“aprendizagem de circuito único”, um tipo de aprendizagem que nós iremos relacionar 
à imagem funcionalista ou organicista das organizações) à Teoria Crítica da Escola de 
Frankfurt, analisada na segunda parte do curso. 
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Tópico 2: O Surgimento da Imagem Lógico-científica da Natureza. 
 
Outros títulos: A Transição do Mito (visão de mundo mítico-religiosa) ao Logos (visão 
de mundo filosófico-científica). As Origens do pensamento filosófico-científico. O 
surgimento de uma nova maneira de ver e compreender a natureza como um todo: a 
imagem lógico-científica da realidade. 
 
•Surge na Grécia, por volta do século VI a.C. (600-501 a.C.). Primeiro filósofo: Tales de 
Mileto (maturidade em 585 a.C.). Dá início à chamada “Escola de Mileto”. 
 
• Inaugura-se uma tradição de crítica e revisão dos mestres. 
 
•Forma de pensar nitidamente nova (pensamento lógico-científico, ou filosófico-
científico), distinta do tipo de pensamento culturalmente dominante até então 
(pensamento mítico). 
 
Características do pensamento mítico (ou da visão de mundo mítico-religiosa). 
 
Nesta imagem do mundo, as realidades naturais que encontramos no dia-a-dia estão 
sempre associadas a entidades sobrenaturais personalizadas (Deuses, agentes sobre-
humanos), cujas lutas, uniões e façanhas estão na origem das coisas e acontecimentos 
do dia-a-dia. 
 
Mesmo as realidades naturais que encontramos no dia-a-dia contêm no seu âmago 
uma potência sobrenatural com a qual os homens precisam se relacionar 
devidamente, para preservar seu funcionamento regular e ordenado, segundo a 
ordem divina do mundo. O que caracteriza essas potências sobrenaturais é o fato de 
que elas podem atuar de forma absolutamente arbitrária, irregular, irracional, a seu 
bel-prazer; seu poder não está sujeito às expectativas humanas de “lógica”, “razão”, 
“regularidade”. 
Assim, esta é uma visão de mundo marcada pela perfeita aceitação do inesperado, do 
extraordinário, do mistério. 
 
Explicações são histórias sobre a origem de algo, com ênfase na origem da ordem da 
natureza como um todo, que representa uma espécie de “pacificação” das potências 
sobrenaturais que habitam o âmago da realidade, levando-as a atuarem de forma 
regular e ordenada, não caprichosa. Estas explicações da ordem do mundo sempre 
remetem às lutas, uniões e façanhas de entidades sobrenaturais, que ocorrem em uma 
outra dimensão do tempo, distinta daquela em que os seres humanos cotidianamente 
vivem (tempo cotidiano). 
 
 
9 
 
No âmbito do pensamento mítico, há um vínculo essencial entre as narrativas míticas e 
rituais mágicos e/ou religiosos destinados a: 
A) Reproduzir simbolicamente a façanha originária de instauração da ordem do mundo 
(reprodução mágica do tempo da origem); soberano humano reproduz a façanha do 
soberano divino. 
B) Estabelecer uma ligação com a divindade responsável por determinada esfera da 
realidade, de modo a angariar proteção, favores, etc. 
 
Narrativa mítica é sagrada (incontestável), porque vem de uma revelação 
sobrenatural. O narrador (vidente, “poeta-cantor”) goza de autoridade inquestionável, 
por ser um escolhido dos deuses, por ter o dom de ver acontecimentos sobrenaturais, 
por ser inspirado por poderes sobrenaturais, ou, muitas vezes, por ter recebido a 
narrativa numa cadeia de transmissão originada em alguém que tinha esse tipo de 
inspiração. O poeta-cantor é parte de uma tradição sagrada. 
 
As narrativas míticas admitem incoerências e contradições, elas não se prestam às 
exigências de inteligibilidadee justificação, próprias do pensamento lógico-científico. 
 
 
Características do pensamento filosófico-científico 
 
Visão de mundo marcada pela rejeição da ideia de que a ordem natural baseia-se em 
poderes sobrenaturais que não se conformam à “lógica” (inteligibilidade subjacente à 
explicação e à argumentação). 
 
Recorre apenas a princípios, elementos e causas essencialmente naturais (ainda que 
mais abstratos do que os objetos e materiais aparentes). Exemplos: água, ar, fogo, 
terra; matéria indeterminada; átomo; quente e frio, úmido e seco. 
 
Tais elementos e causas operam de maneira “lógica” (LOGOS: inteligibilidade do 
pensamento e fala dos homens, e também da própria realidade), ou seja, de modo 
coerente e inteligível, livre de contradições e arbitrariedades. Em oposição à 
arbitrariedade das potências míticas, admite-se agora a lógica e inteligibilidade da 
natureza. 
 
Significados do termo “Logos”. 1) Fala de tipo argumentativo; 2) Características 
“racionais” deste tipo de fala; 3) Razão humana; racionalidade como capacidade 
específica dos homens; 4) Racionalidade e Inteligibilidade da própria Realidade (A 
natureza é intrinsecamente “lógica”). 
 
Assim, o termo grego “Logos” refere-se não apenas ao uso da linguagem humana 
caracterizado pelas exigências de inteligibilidade e racionalidade, mas também à 
suposição de que a racionalidade da linguagem humana é um reflexo de uma 
racionalidade objetiva, imanente à realidade natural e cotidiana. 
Esta é a suposição essencial da nova imagem de mundo que surge neste momento. 
 
10 
 
O Pensamento filosófico-científico admite questionamento, crítica, ajuste, correção; 
conforma-se às exigências de inteligibilidade e justificação. 
Inaugura-se uma tradição de rejeição da atitude “dogmática” e de valorização da 
atitude de crítica e revisão dos mestres. 
 
 
Pensamento filosófico: busca da estrutura essencial da realidade 
 
Naturalismo do pensamento filosófico-científico vincula-se à busca da estrutura 
essencial da realidade (distinção entre essência e aparência). 
 
Conhecimento puramente teórico da realidade como um todo (valorização do 
conhecimento pelo conhecimento). Vincula-se ao desejo de conhecer e ao prazer de 
conhecer, vivenciados como elementos independentes de quaisquer fins práticos. 
 
Atitude crítica acarreta uma proliferação de propostas de explicação da estrutura 
essencial da realidade: 
1) Elementos naturais mais concretos: água, ar, fogo, terra. 
2) Elementos naturais mais abstratos: “indeterminado” (matéria indeterminada), 
átomo (indivisível), “homeomerias” (átomos com distinções qualitativas), número e 
relações numéricas (proporções). 
3) Elementos formais ainda mais abstratos: 
3.1) Mudança, movimento de diferenciação e de geração de contrários (Dialética, 
Heráclito: o permanente é só aparentemente permanente); 
3.2) O “Ser” como unidade/identidade/permanência fundamental, sem a qual a 
mudança não é inteligível (Parmênides: “Ser é, não-ser não é”). 
 
 
O Correlato social e político da transição do Mito ao Logos. 
 
Dos regimes do Direito dos “gene” para o regime das cidades-Estado (“Polis”) 
 
•Transição do mito ao “Logos” associa-se a uma mudança social correspondente: a 
transição dos regimes do Direito dos gene (“gene”: grandes linhagens e famílias 
aristocráticas) ao regime das cidades-Estado (“Polis”). (por volta de 750 a.C.). 
 
 
•1) Regimes do Direito dos gene: Direito arbitrário dos chefes de grandes famílias. 
 
• Sociedades caracterizadas pelo domínio da nobreza agrária, a classe dos “bem-
nascidos” (linhagens “superiores”, que se consideravam descendentes de heróis 
extraordinários). Dentre os chefes das grandes linhagens avulta aquele que tem o 
título de Rei. 
 
11 
 
•Decisão arbitrária do Rei e do Nobre tem caráter sagrado e força de lei (ela é o 
Direito); ela não se presta às exigências de justificação e convencimento. Não se 
reconhece uma Lei comum a todos, à qual todos devem igualmente se submeter. 
 
•Conflitos são decididos com base na força; e força aparece como manifestação de um 
poder extraordinário, sobrenatural. 
 
O Regime das cidades-Estado (POLIS) 
 
•Regimes “políticos”: uma única Lei, que se aplica a todos. Igualdade dos cidadãos em 
relação à Lei comum a todos. 
 
- Fundam-se no pensamento “lógico” (racional-argumentativo). A Lei é inteligível para 
todos, e as decisões amparadas na Lei estão submetidas às exigências de explicação, 
discussão, justificação, convencimento. 
 
- Fundam-se na fala “lógica” (racional-argumentativa). Regimes dominados por aqueles 
que sabem argumentar, debater, persuadir. 
 
- Decisões de conflitos pessoais precisam ser amparadas em razões ou argumentos – 
surgimento dos tribunais. 
 
- Decisões sobre os rumos da comunidade precisam ser debatidas, explicadas e 
justificadas – surgimento das assembléias políticas. 
 
- O homem como “Animal Político”: gregário, social, e, simultaneamente, capaz de 
organizar sua existência social com base na razão, ou seja, no uso da linguagem 
(comunicação) centrado em argumentação, convencimento e justificação. 
12 
 
Tópico 3: Ciência antiga: a imagem de mundo e de ciência típica do período antigo e 
medieval. 
 
Ciência antiga: teleológica, qualitativa e contemplativa (ciência moderna é 
mecanicista, quantitativa e utilitária). 
 
Expoente mais influente da ciência antiga: Aristóteles: século IV a.C. (384-322 a.C.). 
 
A) Ciência de caráter teleológico (“telos”: fim, finalidade). 
 
Visão (ou Imagem) de mundo baseada na noção de finalidade – concepção teleológica 
da natureza. 
 
Ciência da natureza: identificação de finalidades. Objetivo da ciência é entender o 
sentido da existência e mudança das coisas, ou seja, entender o “por que” 
(interpretado em termos de “para que”) as coisas existem e mudam. 
 
Tese fundamental: cada coisa da natureza existe para alcançar um determinado lugar 
(“lugar natural”) ou meta (sua realização perfeita; realização perfeita da função que 
lhe é própria). 
 
Fim, Finalidade: essência de cada coisa. O “verdadeiro ser” de cada coisa consiste na 
finalidade de sua existência. 
3 significados de fim estreitamente relacionados: “Lugar natural” buscado pelo ser, 
Função (atividade) própria do ser na totalidade da ordem cósmica, e realização plena 
do potencial próprio do ser. 
 
Fim de todas as coisas: ordem, harmonia e beleza do Cosmo como um Todo. 
 
Finalidade: causa da mudança direcionada, inteligível. 
Principal tipo de mudança inteligível: passagem do ser “em potência” ao ser “em ato” 
(realização do potencial próprio). 
 
Potência: possibilidade que se enquadra no direcionamento da essência ou finalidade. 
Semente é árvore em potência; embrião é homem (ser racional) em potência; 
adotando um ponto de vista mais específico, o embrião é, por exemplo, escultor (ou 
médico, ou filósofo, etc.) em potência; pedra é escultura em potência (pode se 
associar à realização da essência do homem-escultor.) 
 
O problema das mudanças aleatórias. Nos objetos do mundo “sublunar” (“região 
terrestre”), a essência (finalidade, que em Aristóteles equivale à “forma” da coisa) 
sempre está misturada a um outro elemento, a “matéria”, que representa a mera 
possibilidade (possibilidade que não se enquadra no direcionamento da essência). A 
matéria representa uma espécie de dinamismo cego, sem direção ou sentido. Causa 
das mudanças aleatórias que às vezes perturbam a ordem teleológica da natureza. 
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- Como regra geral, a forma-fim modela e organiza a matéria, enquadrando-a no 
molde da finalidade, serventia, sentido. Entretanto, às vezes a matéria como 
dinamismo cego “escapa” ao enquadramento da forma, produzindo eventos aleatórios 
que perturbam a ordem teleológica da natureza, sem destruí-la, no entanto. 
 
 
B) Ciência de caráter qualitativo. 
 
Ciência que se apóia em noções qualitativas, ou seja, noções que se definem pela 
impressão que causam em nossos sentidos (frio e quente, seco e úmido, leve e pesado, 
alto e baixo.) 
 
Substâncias básicas (fogo, ar, terra,água) são concebidas em termos qualitativos (fogo: 
quente e seco; ar: quente é úmido; água: fria e úmida, terra: fria e seca). Suas 
propriedades essenciais também são concebidas em termos qualitativos. Por exemplo, 
a substância terra é “pesada”: seu lugar natural/destinação são os “lugares baixos”, 
próximos do centro do planeta em que vivemos. 
É por isso que os objetos nos quais predomina o componente “terra” caem: a terra 
neles predominante está buscando seu lugar natural. 
 
Universo dividido em regiões qualitativamente distintas: 
- Região sublunar ou terrestre (“imperfeita”) e região supralunar ou celeste (“perfeita”, 
porque nela não há mistura com matéria; corpos celestes são constituídos de éter, a 
“quinta essência”, imaterial. Corpos perfeitos, que realizam movimentos perfeitos: 
circulares). 
 
- Região sublunar: dividida em: lugares altos (lugar natural do fogo), lugares baixos 
(terra), lugares não inteiramente altos (ar), lugares não inteiramente baixos (água). 
 
Cosmo: ordem e harmonia (beleza) do mundo como um todo. 
 
 Modelo geocêntrico do universo: a Terra está no centro do universo e não se move. 
 
C) Ciência de caráter contemplativo. 
 
Na visão de mundo da antiguidade, o melhor potencial dos seres humanos é a 
racionalidade teórica, e o conhecimento científico equivale à realização deste 
potencial. 
Assim, o conhecimento científico é visto como fim supremo da existência humana e, 
portanto, como fim em si mesmo (e não como meio ou instrumento para outros 
propósitos, como saúde, conforto, prazeres da sensibilidade). 
 
A Imagem de Mundo e de conhecimento típica da antiguidade caracteriza-se por uma 
dissociação bem nítida entre a ciência e, por outro lado, o interesse técnico na 
intervenção sobre a realidade. 
14 
 
- Conhecimento científico não está subordinado à necessidade de resolver problemas 
da vida cotidiana. Esta necessidade define uma esfera diferente, a esfera da técnica. 
- Assim, a esfera da ciência é distinta da esfera da técnica (embora esta última também 
seja um modo de realização do potencial próprio do homem, que é a racionalidade em 
geral). 
 
Conhecimento científico: apreensão, contemplação e fruição da ordem, harmonia e 
beleza do Cosmo. Apreensão do sentido do mundo como um todo. 
 
Conhecimento científico: caminho pelo qual a alma se liberta (ou purifica) de impulsos 
insaciáveis, que levam à inquietação, ansiedade, frustração e infelicidade. Trata-se dos 
impulsos aos prazeres da sensibilidade e ao exercício do poder sobre os outros. Prazer 
do conhecimento é o único tipo de prazer que não vem misturado com certa dose de 
frustração. 
 
 
Diferentes manifestações da teleologia da natureza 
 
- Coisas existem PARA realizar uma ordem harmoniosa e bela (Cosmo). 
 
- Homem (ser racional) existe PARA reconhecer e fruir a ordem, harmonia e beleza do 
cosmo, ou seja, PARA responder adequadamente à ordem, harmonia e beleza como 
querer-dizer (significado ou sentido) das coisas e do mundo. 
 
- Cosmo existe PARA alimentar a vitalidade própria do homem, dirigindo-se às suas 
capacidades cognitivas em sentido amplo (razão teórica, razão prática, razão técnica). 
Ordem cósmica existe para realizar o potencial próprio do homem, a racionalidade em 
geral. 
 
- Razão humana: potencial (função) próprio do homem. Manifesta-se em: 
 
a) Conhecimento teórico da ordem e harmonia do Cosmo (Ciência, Teoria). 
 
b) Conhecimento prático indicativo do “agir bem” em cada situação – onde o “agir 
bem” é fim em si mesmo, é bom em si mesmo, é elemento constituinte do “viver 
bem”. (Conhecimento prático, ética). 
Na esfera da racionalidade prática, a ação humana relaciona-se às paixões da natureza 
humana e aos interesses e demandas de outros homens. A razão prática é a 
capacidade de controlar as paixões e discernir ou perceber o “bem agir” em cada 
situação. Nesse caso, a ação é fim em si mesma. “Viver bem” é “agir bem” em cada 
situação da vida. 
 
c) Conhecimento “técnico” utilizado na produção de artefatos e resultados úteis e/ou 
belos. (Medicina, arquitetura, navegação, e todas as demais “técnicas” ou “artes”, 
incluindo as “belas-artes”). 
15 
 
Na esfera da racionalidade técnica, a ação relaciona-se aos materiais da natureza 
(incluindo o corpo humano), e é meio (instrumento) para resultados úteis ou belos. 
 
 
 
- Aspectos ou Dimensões da felicidade humana: 
 
Libertação (purificação) dos impulsos insaciáveis e frustrantes (prazer puramente 
sensível, poder). 
 
Realização do potencial próprio do homem, a racionalidade. Exercício da racionalidade 
como função ou atividade própria do homem. 
Atividade do conhecimento em sentido amplo: responder ao potencial de sentido com 
que a realidade se dirige ao homem, convidando-o à ação “responsiva”. 
Manifestações da ação “responsiva”: 
(a) Ciência; 
(b) “Agir bem” (agir virtuosamente); 
(c) Ação tecnicamente hábil e eficaz. 
Sendo que (b) também está envolvido em (a) e (c). 
 
16 
 
Tópico 4: Ciência moderna. Imagem de mundo e de ciência inaugurada na revolução 
científica do século XVII. 
 
Ciência moderna: mecanicista, quantitativa e utilitária (ciência antiga é teleológica, 
qualitativa e contemplativa). 
 
Alguns dados de história da ciência 
 
- 336-323 a.C.: Alexandre o Grande difunde a cultura grega por toda a Ásia menor, 
Mesopotâmia e Egito. Fundação de Alexandria em 331 a.C. Alexandria torna-se grande 
centro de produção científica, em língua grega (Euclides: 330-277aC; Arquimedes: 287-
212aC, e outras figuras importantes na medicina e astronomia). Conquistada pelos 
romanos em 30aC, mas a língua da atividade científica permanece sendo 
primordialmente a grega. Ptolomeu (90-168dC) e Galeno (129-200dC). 
 
- 470 d.C. Queda do Império Romano do ocidente. Abafamento da vida urbana e da 
cultura científica na Europa ocidental. (Império Romano do oriente, com sede em 
Constantinopla – atual Istambul – só cai em poder dos turcos em 1453 d.C). 
 
- 622 dC: início do Islamismo com Maomé –morre em 632. 634-650: grande expansão 
militar e política. Árabes conquistam Síria, Mesopotâmia, Irã, Egito e norte da África. 
711: Invadem a península Ibérica. Bagdá e Córdoba (Espanha) tornam-se importantes 
centros de atividade filosófico-científica. Córdoba: centro de difusão da ciência 
aristotélica, já num período de retomada da prática científica na Europa ocidental 
como um todo. 
 
- 1214: Fundação da Universidade de Paris (subordinada à Igreja Católica Romana). 
 
- 1224-1274: São Tomás de Aquino realiza uma síntese entre a ciência aristotélica e a 
visão de mundo do catolicismo, com seus dogmas cientificamente indiscutíveis. 
Paradigma de pensamento que depois ficou conhecido como “Escolástica”. 
 
 
 
Principais momentos da revolução científica moderna 
 
1) “Sobre a Revolução dos Orbes Celestes” (1543), de Copérnico. Hipótese do sistema 
heliocêntrico, em oposição ao sistema geocêntrico formulado por Aristóteles, 
desenvolvido e modificado por Ptolomeu (90-168 d.C.), e ligado à visão de mundo do 
cristianismo. Apesar de propor a hipótese do sistema heliocêntrico, Copérnico ainda 
conserva a idéia de um universo fechado. 
 
2) “Sobre o universo infinito” (1583), de G. Bruno (queimado na fogueira em 1600). 
(1545-1560: Concílio de Trento; “Contra-Reforma”, em reação à reforma religiosa 
17 
 
iniciada por Lutero em 1517. A Inquisição ganha nova força, principalmente na Itália, 
Espanha e França, agora sob a forma do “Tribunal do Santo Ofício”). 
 
3) “A Nova Astronomia” (1609), de Kepler. Órbitas dos planetas em torno do sol são 
elípticas, contrariando o princípio escolástico de que corpos celestes realizam 
movimentos perfeitos, e movimentos perfeitos são movimentos perfeitamente 
circulares. 
 
4) “A Mensagem Celeste” (1610), de Galileu. Depois de aperfeiçoar o telescópio, 
Galileu registra e divulga uma série de evidências empíricas em favor do sistema 
heliocêntrico e do universo infinito (crateras e montanhas na superfície da Lua, 
contrariando o princípio da imaterialidade e “perfeição” doscorpos celestes; fases de 
Vênus, que não podiam ser explicadas no sistema de Ptolomeu; satélites em torno de 
Júpiter, contrariando o “privilégio” da Terra como centro em torno do qual giram 
todos os corpos celestes; número espantosamente grande de estrelas, incompatíveis 
com a concepção de um mundo fechado). 
- A publicação do livro de Galileu desencadeia reação mais violenta contra a “doutrina 
copernicana” (“suspensão” do livro e da doutrina de Copérnico em 1616 e, num 
segundo momento, condenação de Galileu em 1633, depois da publicação, em 1632, 
de “Diálogos sobre os sistemas do mundo”, no qual é retomada a defesa da doutrina 
copernicana. Galileu morre em 1642). 
 
5) “Princípios matemáticos da filosofia natural” (1687), de Newton. Unifica a 
astronomia e a mecânica. Universo infinito, regido pelo princípio da inércia e pela força 
gravitacional. 
 
 
CARACTERÍSTICAS DA CIÊNCIA MODERNA. 
 
1) Imagem mecanicista do mundo. 
 
Causa dos movimentos reside em forças puramente mecânicas, destituídas de função, 
finalidade ou sentido. 
 
Conhecer a natureza não é entender “por que” (com que finalidade ou sentido) 
ocorrem as mudanças, mas saber “como” ocorrem os movimentos, ou seja, conhecer 
as leis (regularidades) segundo as quais os movimentos são determinados, e podem 
ser previstos. 
 
Todo movimento está submetido à necessidade das leis mecânicas da natureza e é em 
princípio previsível. Natureza está submetida a leis precisas e invariáveis, cujo 
funcionamento pode ser conhecido pelos homens. 
Imagem determinista da realidade, e pretensão de poder conhecer a realidade 
deterministicamente estruturada. 
 
 
18 
 
2) Imagem quantitativa da realidade (do espaço e da natureza). 
 
Concebe os objetos e movimentos em termos essencialmente quantitativos, a partir 
de noções de caráter quantitativo, como espaço/distância, tempo, velocidade, 
aceleração, massa, força. (noções que se definem pela possibilidade de medição e de 
articulação em fórmulas e modelos matemáticos). 
 
Leis da natureza são entendidas como correlações entre variáveis quantitativas, 
expressas em fórmulas matemáticas –“a natureza é um livro escrito em linguagem 
matemática” (Galileu, em obra de 1623). Matematização da natureza e da ciência da 
natureza. 
 
Espaço homogêneo e infinito, definido em termos puramente geométricos. 
 
 
3) Imagem utilitária da ciência. 
 
Estreita associação entre ciência e técnica. 
 
Interesse básico: ter poder sobre a natureza (tornar-se capaz de prever, controlar, usar 
ou manipular objetos, recursos e processos da natureza). 
Se o homem conhece “como” se comportam as forças, materiais e processos, torna-se 
capaz de aproveitá-los e canalizá-los para realizar suas preferências (“Conhecimento é 
Poder”). 
 
Preocupação com a utilidade do conhecimento para propósitos “mundanos”, como 
conforto, saúde, riqueza, diversão, etc. Interesse na possibilidade de aplicações 
práticas do conhecimento. Interesse na maximização (indefinidamente reposicionada 
no futuro) da satisfação das preferências dos sujeitos. 
A época moderna caracteriza-se por um movimento de “subjetivização” das noções de 
bem e felicidade: cabe a cada indivíduo, e não ao filósofo, sábio ou religioso, dizer o 
que é bom para si próprio. 
O bem (felicidade) deixa de ser definido em termos de realização do potencial e função 
próprios do homem, interpretados como potencial e função objetivos (independentes 
das preferências subjetivas de cada um), e passa a ser definido em termos de 
realização das preferências subjetivas de cada indivíduo. 
 
Observação importante sobre a noção de utilidade. Ciência antiga e ciência moderna 
exibem duas aplicações distintas da noção de utilidade. 
Na ciência antiga, esta noção é aplicada no princípio de que tudo que existe tem uma 
utilidade para a ordem abrangente do Cosmo. (utilidade dos objetos para a ordem 
cósmica). 
Na ciência moderna, a noção de utilidade encontra aplicação no princípio de que o 
conhecimento científico deve ter utilidade para os propósitos do homem, ou seja, para 
a realização das preferências dos homens (utilidade da ciência para os propósitos e 
preferências dos homens). 
19 
 
Na modernidade, conhecimento científico passa a ser visto como instrumento ou 
meio, e não como fim em si mesmo, como era na antiguidade. 
 
Duas tendências embutidas no movimento de rejeição da ciência aristotélico-
escolástica, efetuado na revolução científica moderna. 
 
•1) Defesa da matematização da natureza e da ciência da natureza. 
Esta tendência equivale a uma dimensão do trabalho científico na qual o sujeito é mais 
ativo, na medida em que o conhecimento matemático é visto como fruto de noções e 
operações da razão pura do sujeito, como a intuição racional e a dedução (ele não 
depende de informações passivamente captadas ou recebidas pelos sentidos). 
Há nesta tendência uma ênfase na atividade cognitiva do sujeito. O princípio do 
conhecimento tende a ser identificado com a atividade da razão pura do sujeito. O 
princípio do conhecimento é a atividade de projetar ou lançar uma estrutura lógico-
matemática (racional) sobre os dados da realidade. 
 
•2) Defesa de observações “puras”, feitas e registradas através dos sentidos (com 
auxílio de instrumentos), e totalmente depuradas das distorções produzidas pelas 
suposições teleológicas típicas da ciência aristotélico-escolástica (tais suposições 
passam agora a ser taxadas de “preconceitos”). 
- Esta tendência equivale a uma dimensão do trabalho científico na qual o sujeito é 
mais passivo, na medida em que os sentidos constituem uma capacidade 
essencialmente receptiva: trata-se de receber os dados fornecidos pela natureza de 
forma absolutamente neutra, ou seja, sem nenhuma mistura com suposições prévias 
(que passam a ser vistas como “preconceitos”). 
Há nesta tendência uma ênfase na passividade do sujeito, e na sua neutralidade diante 
dos dados e informações da natureza. O princípio do conhecimento tende a ser 
identificado aos dados “puros” ou “brutos” (não-interpretados por suposições prévias) 
captados pelos sentidos (dados empíricos, ou seja, oriundos da experiência sensível). 
 
 
“Construtivismo/Racionalismo/Idealismo” e “Empirismo/Positivismo” 
 
•Tendência (1) sugere que o objeto do conhecimento é numa certa medida 
“construído” pela razão do sujeito, mediante projeção na realidade de noções, 
princípios e estruturas da razão pura, de caráter lógico-matemático. 
- Tendência (1) está na origem das teorias racionalistas e idealistas (que também 
podem ser chamadas de construtivistas e antipositivistas). Deste ponto de vista, o 
objeto do conhecimento (a própria realidade, considerada, porém, sob o aspecto da 
possibilidade de ser conhecida pelo sujeito) é dependente dos princípios e operações 
da razão pura do sujeito. 
- Deste ponto de vista, a realidade se torna objeto do conhecimento à medida que o 
sujeito projeta ou lança uma estrutura lógico-matemática (racional) sobre os dados ou 
aparições da realidade. 
 
20 
 
•Tendência (2) sugere que o objeto do conhecimento é absolutamente independente 
dos princípios, conceitos e esquemas conceituais da razão do sujeito. O conhecimento 
científico deve simplesmente reproduzir (“copiar”) de modo preciso e fiel este objeto 
independente. 
- Tendência (2) está na origem das teorias empiristas e positivistas. Deste ponto de 
vista, o objeto do conhecimento é independente das atividades da razão pura do 
sujeito. Cabe à razão do sujeito simplesmente conformar-se aos dados (informações) 
deste objeto independente, recebidos em observações puras, observações não 
interpretadas por suposições prévias. 
21 
 
Tópico 5. Esquema geral da segunda seção da primeira parte. 
 
Esquema geral das imagens que serão apresentadas até o final da primeira parte. 
 
Imagens da relação entre o sujeito que produz o conhecimento científico (da natureza) 
e o objeto (fenômenos e processos da natureza) que é conhecido e que pode vir a ser 
conhecido no conhecimento produzido pelo sujeito. Imagensda relação sujeito-objeto. 
 
Duas grandes tradições: empirista-positivista e, do outro lado, racionalista-idealista-
construtivista. 
 
Para compreender o que está em jogo nessa dicotomia, é preciso levar em conta o 
seguinte. O sujeito do conhecimento é o ser humano. Quando a realidade a ser 
conhecida é constituída de ações e relações humanas, como ocorre no caso das 
ciências humanas e sociais, é altamente discutível afirmar que esta realidade é 
independente dos seres humanos, como possíveis sujeitos do conhecimento. 
 
Entretanto, quando a realidade a ser conhecida é constituída de fenômenos e 
processos da natureza, é bastante plausível afirmar que esta realidade é totalmente 
independente dos seres humanos como possíveis sujeitos do conhecimento científico. 
 
Tanto a tradição empirista-positivista quanto a tradição racionalista-idealista-
construtivista adotam a tese de que a realidade natural é independente do sujeito do 
conhecimento – elas compartilham essa tese. No debate entre as duas tradições, a 
realidade natural sempre aparece como realidade independente do sujeito. 
 
- Três questões estão em jogo no debate entre as duas tradições. Em primeiro lugar, a 
questão do acesso à realidade independente: temos ou não um acesso direto ou 
imediato a esta realidade? Em segundo lugar, a questão dos elementos logicamente 
prioritários na produção do conhecimento: dados e informações da própria realidade 
ou princípios e estruturas do sujeito do conhecimento? Em terceiro lugar, a questão de 
uma possível distinção analítica entre a realidade natural e o objeto do conhecimento 
humano: deve-se ou não estabelecer essa distinção analiítica? 
 
1ª) Tradição empirista-positivista. 
A) Temos um acesso direto ou imediato à realidade independente. 
B) Primazia cabe a “dados” da realidade independente do sujeito, dados passivamente 
recebidos através dos sentidos. 
C) Não se estabelece distinção analítica entre o objeto do conhecimento (a própria 
realidade natural, considerada, entretanto, sob o aspecto da possibilidade de ser 
“cientificamente” conhecida pelo sujeito do conhecimento, o homem) e a realidade 
independente do sujeito. O objeto do conhecimento é totalmente identificado à 
realidade independente. 
 
 
 
22 
 
2ª) Tradição racionalista-idealista-construtivista. 
A) Não temos acesso direto à realidade independente; nosso acesso à realidade 
sempre é mediado por princípios e estruturas do sujeito do conhecimento. 
B) Primazia cabe à estrutura mental ou linguístico-cultural do sujeito do conhecimento. 
C) Estabelece-se uma distinção analítica entre o objeto do conhecimento e a realidade 
independente. 
- A realidade independente só se torna objeto do conhecimento (só se torna 
cognoscível para e pelo sujeito) à medida que o sujeito projeta ou lança uma estrutura 
mental ou linguístico-cultural sobre os dados (aparições) da realidade. 
C) Variações na estrutura projetada sobre os dados da realidade independente: 
C.1) Estrutura lógico-matemática (mental). Racionalismo do século XVII. 
C.2) Estrutura de regras de organização do espaço-tempo (mental). Idealismo do 
século XVIII. 
C.3) Estrutura interpretativa; visão de mundo, paradigma (linguístico-cultural). 
Construtivismo do século XX/XXI. 
23 
 
Tópico 6: Empirismo e racionalismo no século XVII (1601-1700). 
 
Empirismo no século XVII: vamos nos concentrar em F. Bacon e J. Locke. 
 
Racionalismo no século XVII: vamos nos concentrar em R. Descartes. 
 
O contexto histórico do debate 
 
•1) Crise das instituições e crenças religiosas, crise da autoridade religiosa. Divisão e 
conflitos na cristandade europeia, com a Reforma Protestante (início com Lutero em 
1517; importância de Calvino – 1509-1564), e guerras entre católicos e protestantes. 
 
•2) Crise e esgotamento do conhecimento científico tradicional (aristotélico-
escolástico), ou seja, transmitido de forma não-crítica, com base apenas na autoridade 
dos “sábios”, ligada à autoridade da Igreja Católica. 
 
•3) Crenças e autoridades tradicionalmente seguidas eram questionadas e 
abandonadas. Ambiente de dúvida e incerteza e, ao mesmo tempo, de valorização da 
capacidade cognitiva da consciência individual (de cada indivíduo). 
 
•4) Dúvida quanto ao saber tradicional (ou quanto ao modo habitual de ver a 
realidade) é tomada como etapa necessária (preparatória) para se chegar à verdade, 
mediante construção de um novo “edifício do conhecimento”. Dúvida é parte do 
método do conhecimento. 
 
•5) Desejo de evitar o erro, ou seja, não repetir os erros do (pseudo) saber escolástico, 
entranhado no modo habitual de ver a realidade. 
- Para evitar o erro, é preciso lançar uma dúvida metódica sobre as bases do 
conhecimento tradicional (modo habitual de perceber a realidade) e encontrar uma 
“base segura” para a reconstrução de todo o edifício do conhecimento. 
 
 
A dúvida quanto à visão de mundo típica da ciência aristotélico-escolástica gerou duas 
concepções distintas da “base segura” da nova ciência: 
 
 
1ª) Observações puras, dados brutos captados pelos sentidos. Observações depuradas 
das distorções produzidas pelas suposições teleológicas típicas da ciência aristotélico-
escolástica. Liberados da influência das suposições teleológicas, os sentidos 
constituem um canal confiável de recepção do objeto do conhecimento (objeto a ser 
conhecido, ou seja, fenômenos e processos da natureza). Ênfase numa atitude de 
passividade e neutralidade do sujeito do conhecimento. EMPIRISMO. 
 
 
 
24 
 
2ª) Radicalização da dúvida metódica leva a uma dúvida quanto à confiabilidade dos 
sentidos. Não há certeza e evidência nos dados sensíveis; só há certeza e evidência nas 
intuições intelectuais (intuições da razão pura). A base segura do conhecimento são 
intuições (intelectuais) claras e evidentes, ou seja, nas quais há certeza e evidência. 
RACIONALISMO. 
 
 
Esclarecimentos terminológicos importantes para a compreensão deste debate. 
 
1º) Primeira diferença básica: diferença entre intuição e raciocínio. 
1.1) Intuição: apreensão ou visão imediata de um determinado dado ou verdade; 
quando você simplesmente “vê” ou “percebe” algo (um objeto, um acontecimento, a 
característica de um objeto ou acontecimento, ou então, no caso da intuição 
intelectual, uma verdade básica, de caráter lógico ou matemático). 
A intuição fornece os pontos de partida do raciocínio. 
 
1.2) Raciocínio: quando você chega a determinado conhecimento (conclusão) por meio 
de um processo argumentativo que parte de outros dados ou conhecimentos 
(premissas). Quando você “conclui” algo. 
 
2º) Segunda diferença básica. Diferença entre dois tipos de intuição. 
2.1) Intuição sensível (operação dos sentidos). Quando você capta um dado ou 
informação por meio dos sentidos. Quando você literalmente vê um acontecimento, 
um objeto, uma característica de um acontecimento ou objeto. 
A intuição sensível equivale à observação de objetos, eventos e características 
particulares ou singulares (observações do “aqui e agora”). 
 
2.2) Intuição intelectual (operação da razão pura). Quando você “vê” uma verdade 
básica ou fundamental, de caráter lógico ou lógico-matemático, e referida à estrutura 
básica da experiência no espaço e tempo. 
Em oposição às observações da experiência sensível, as verdades da intuição 
intelectual têm alcance ou abrangência geral, ou seja, equivalem a conhecimentos 
válidos para todos os lugares e momentos. 
Exemplos: “coisas que são iguais a uma mesma coisa são iguais entre si”; “ponto é 
aquilo que não tem partes”; “uma reta finita pode ser prolongada à vontade”; o 
postulado euclidiano das retas paralelas (“Dados em um plano uma reta s e um ponto 
P fora dela, existe no plano uma única reta que passa pelo ponto P e é paralela à reta 
dada”); “tudo que acontece tem uma causa”, “o efeito não pode ter mais realidade do 
que a causa”. 
 
No racionalismo do século XVII e início do XVIII, verdades fundamentais apreendidas 
pela intuição intelectual equivalem a Idéias Inatas. 
 
Cabe enfatizar o seguinte.Os exemplos de intuição intelectual variam historicamente, 
alguns deles deixam de ser aceitos em momentos posteriores. Do ponto de vista 
histórico, muitas “verdades” atribuídas à intuição intelectual deixaram de ser verdades 
25 
 
absolutas, independentes do contexto de pesquisa e aplicação. Mas isso não invalida a 
idéia mais geral de que determinadas hipóteses logicamente independentes da 
intuição sensível desempenham um papel decisivo na investigação científica. Veremos 
isso mais à frente. 
 
3º) Terceira diferença básica. Diferença entre dois tipos de raciocínio. 
3.1) Indução: partindo de um determinado conjunto de dados ou informações 
(premissas), você chega a uma conclusão que NÃO está implicitamente contida nestes 
dados. Mesmo que as informações ou enunciados de que você partiu sejam 
verdadeiros, e mesmo que o raciocínio seja criterioso, a conclusão pode ser falsa 
(exemplos: generalização com boa base indutiva, analogia criteriosa). 
Um raciocínio indutivo criterioso distingue-se de uma dedução formalmente válida. Ao 
contrário do que ocorre na dedução formalmente válida, a indução, mesmo criteriosa, 
admite uma “margem de erro”. 
 
3.2) Dedução: partindo de determinadas informações ou enunciados (premissas), você 
chega a uma conclusão que implicitamente já está contida nestas informações. Se os 
enunciados de que você partiu são verdadeiros, e se o raciocínio (dedutivo) é 
formalmente válido, a conclusão necessariamente é verdadeira (exemplos: “sempre 
que um metal é aquecido, ele se dilata; o corpo x não se dilatou ao ser aquecido; 
conclusão: o corpo x não é metal”). 
Se a dedução é formalmente válida, a verdade das premissas (supondo que elas são 
verdadeiras) transfere-se para a conclusão. 
 
 
 
O empirismo no século XVII. 
 
•Principais defensores do empirismo no século XVII: Francis Bacon (“O Novo Órganon”, 
publicado em 1620) e John Locke (“Ensaio sobre o Entendimento Humano”, publicado 
em 1690). 
 
•1) “Base Segura” para a construção do conhecimento: experiência sensível (empeiria= 
experiência sensível); dados e informações captados de forma absolutamente neutra 
pelos sentidos (mediante eliminação de todos os “pré-conceitos” envolvidos no modo 
habitual de ver a realidade); dados absolutamente fidedignos. 
Ênfase na intuição sensível, em comparação com a intuição intelectual. Defesa dos 
sentidos como canais confiáveis de recepção do objeto do conhecimento, identificado 
aos dados da realidade externa e independente. 
 
Mente humana como folha em branco (“Tábula rasa”), paulatinamente preenchida 
pelos dados particulares captados pelos sentidos. Não há idéias inatas. 
 
•2) “Método seguro” para a construção do conhecimento: Indução (como 
generalização, raciocínio que vai das observações particulares à regra ou lei de caráter 
geral): partindo-se de observações (experiências) de casos particulares da ocorrência 
26 
 
de determinados fenômenos [casos em que os fenômenos (p.ex., calor e dilatação de 
metais) se apresentam, não se apresentam e variam], formulam-se definições, 
conceitos e leis de caráter geral, válidos para todos os casos dos fenômenos 
investigados. 
Leis da natureza são concebidas como correlações regulares e universais de 
fenômenos da natureza. 
 
E a Indução é concebida como método de descoberta das leis da natureza. 
 
Ênfase no raciocínio indutivo, em comparação com o raciocínio dedutivo. 
 
Para realizar a indução: eliminação das “antecipações da natureza” (idéias pré-
concebidas sobre a estrutura e funcionamento da natureza); limpar a mente das falsas 
noções que a invadiram; “tornar-se uma criança diante da natureza”. Passividade e 
neutralidade do sujeito. 
 
 
O Racionalismo no século XVII. 
 
•Principal defensor do racionalismo no século XVII: René Descartes (“Discurso do 
Método”, 1637; “Meditações Metafísicas”, 1641). 
 
•1) “Base segura” para a construção do conhecimento: intuição intelectual 
fundamental: “Eu penso, e enquanto penso existo como substância pensante”. 
 
Submetendo as idéias presentes em minha mente a um rigoroso questionamento 
crítico (dúvida metódica), descubro que há princípios e noções que minha razão 
apreende como claros e evidentes, intelectualmente certos, necessariamente 
verdadeiros. Trata-se de princípios e idéias inatas, independentes da experiência 
sensível. (Se fossem oriundos dos sentidos, não se apresentariam como claros, certos, 
seguros). 
Para Descartes, as idéias ligadas aos sentidos são incertas, confusas e obscuras. Não 
sei, por exemplo, se as qualidades “frio”, “amargo”, “vermelho”, tipicamente ligadas 
aos sentidos, - não sei se essas qualidades estão na substância que se estende no 
espaço externo (“substância extensa”), ou, apenas, na minha mente (“substância 
pensante”). 
 
Dentre os princípios e idéias inatas, destacam-se os princípios e idéias lógico-
matemáticos, utilizados na construção do conhecimento matemático. 
 
 
•2) “Método seguro” para a construção do conhecimento: dúvida metódica (avaliar 
todos os candidatos a conhecimento com uma “lupa crítica” rigorosa), intuição 
intelectual e raciocínio dedutivo (extração de conseqüências logicamente necessárias 
de idéias e princípios apreendidos por intuição intelectual, ou seja, apreendidos como 
claros, evidentes, certos). Em Descartes, o próprio resultado do raciocínio dedutivo 
27 
 
aparece como uma espécie de intuição intelectual, na medida em que se apresenta 
com as características da clareza, evidência e certeza. 
 
Ideal de um conhecimento certo e seguro elaborado “dentro” da mente (com base 
apenas nos recursos intelectuais da própria mente). 
 
•3) Prova da existência de Deus garante a correspondência do conhecimento 
elaborado “dentro” da mente aos objetos realmente existentes “fora” da mente. 
 
Deus como garantidor da verdade (correspondência a objetos realmente existentes 
fora da mente) de ideias clara e distintamente intuídas “dentro” da mente (intuição 
intelectual). 
 
Em Descartes, a prova da existência de Deus é uma prova puramente lógico-
conceitual, que recorre apenas ao conceito ou idéia de Deus, e ao princípio de 
causalidade aplicado a essa idéia. 
Para Descartes, examinando com atenção a ideia de Deus presente em minha mente, 
percebo clara e distintamente que as propriedades que se me apresentam nessa ideia 
(poder ilimitado ou infinito) não podem ter sido geradas ou “causadas” por minha 
própria mente (pois tenho consciência clara e distinta de que sou um ser limitado, com 
poderes limitados), mas só podem ser a marca ou presença em mim de um ser infinito 
realmente existente (independentemente de mim). 
 
E um ser infinito (ao qual não falta nenhuma qualidade positiva) é um ser bondoso e 
veraz, que não permitiria que eu estivesse enganado quando, depois de examinar com 
todo cuidado possível certa idéia em minha mente, me sentisse irresistivelmente 
impelido a julgá-la verdadeira. 
 
 
Objeto do conhecimento: construído ou independente? 
 
•1) Empirismo: realidade externamente dada e objeto do conhecimento são termos 
absolutamente idênticos. Trata-se de um pólo absolutamente independente do sujeito 
e das capacidades cognitivas do sujeito. Conhecimento se produz na medida em que a 
realidade (o objeto) “flui” PARA a mente do sujeito, por meio dos sentidos. 
 
- Para o empirismo, o objeto do conhecimento (aquilo que é conhecido nas atividades 
cognitivas do sujeito) é totalmente independente do sujeito, e o sujeito deve 
simplesmente “receber” esse objeto, da forma mais passiva e neutra possível. 
 
- Para o empirismo, além disso, o conhecimento do objeto pelo sujeito consiste numa 
cópia precisa e fiel do objeto independente – uma cópia possibilitada pelo fato de os 
sentidos do sujeito constituírem um acesso direto e confiável a este objeto totalmente 
independente. 
 
 
28 
 
 
•2) Racionalismo: 
Tendo em vista os propósitos do nosso curso, podemos aproximar o racionalismo 
cartesiano de teorias idealistas e construtivistas posteriores, de modo a destacar a 
prioridade do sujeito (dasideias do sujeito, da atividade cognitiva desenvolvida pela 
razão do sujeito) na relação sujeito-objeto. 
Ao fazermos isso, estamos desconsiderando aspectos importantes da filosofia de 
Descartes. Isso só se justifica em função dos propósitos bem específicos de nosso 
curso. 
Dito isso, podemos apresentar da seguinte maneira a prioridade do sujeito no 
racionalismo cartesiano. 
 
Para o racionalismo, a realidade só se torna objeto do conhecimento na medida em 
que o sujeito (mente, consciência), garantido pela prova da existência de Deus, projeta 
ou põe (“lança”) “fora” dele uma estrutura lógico-conceitual elaborada inicialmente 
“dentro” da mente (estrutura puramente racional; fundamentalmente, estrutura de 
relações lógico-matemáticas, aplicadas ao espaço e aos corpos no espaço). 
 
Nesse sentido, o objeto do conhecimento não é a realidade independente que é 
externamente dada ao sujeito (através dos sentidos), mas a realidade que é 
“construída” pela projeção de uma estrutura puramente racional (inata). (Realidade 
que é construída à medida que o sujeito projeta fora dele uma estrutura lógico-
matemática elaborada dentro de sua mente). 
 
Nesse sentido, em vez de ser independente, o objeto do conhecimento é construído 
pela atividade cognitiva desenvolvida pela razão (pura) do sujeito. O objeto que pode 
ser conhecido e é realmente conhecido é uma entidade construída pelo sujeito, por 
meio da projeção de uma estrutural lógico-conceitual elaborada dentro da mente (cuja 
correspondência com a realidade é garantida pela existência e perfeição de Deus). 
29 
 
Tópico 7: Empirismo e Idealismo no século XVIII (1701-1800). 
 
Empirismo no século XVIII: D. Hume. 
Idealismo no século XVIII: I. Kant 
 
O contexto histórico do debate 
 
•Século XVIII: Liberalismo e Iluminismo. 
 
O Liberalismo como doutrina: 
 
a) Liberdade do ser humano como princípio e valor (fim) da ordem social. Princípio (e 
Fim) do Estado não é mais a ordem divina ou tradicional do mundo. 
 
Surgem nesse momento duas interpretações distintas da liberdade humana, que dão 
origem a duas posições distintas dentro do multifacetado campo do liberalismo. 
 
A primeira posição interpreta a liberdade em termos mais individualistas: liberdade é o 
poder de escolha do indivíduo, e o direito de escolha do indivíduo. Enfatiza-aqui a livre 
escolha. Enfatiza-se também a esfera privada do indivíduo, como esfera em que se 
exerce sua livre escolha. 
Um dos principais expoentes dessa interpretação é o empirista John Locke (1632-
1704). 
 
A segunda posição interpreta a liberdade associando-a à razão como capacidade de 
conhecer a Verdade nas questões práticas, a qual pode ser identificada ao Bem e à 
Justiça: liberdade é a capacidade que o ser humano tem de conhecer e seguir o Bem (o 
bem conhecido pela razão tende a ser identificado ao que é bom para todos) e a 
Justiça. 
Nesta interpretação, a liberdade está estreitamente associada ao direito e ao dever de 
participar do processo de busca do Bem Comum e da Justiça. Há aqui maior 
valorização da esfera pública, como esfera em que se desenvolve este processo de 
busca do Bem Comum, conduzido pela Vontade Geral dos cidadãos, ou seja, a Vontade 
que, por ser estritamente racional, é idêntica em todos os indivíduos. Desse ponto de 
vista, a liberdade é a capacidade de seguir a Vontade Geral. 
Um dos principais expoentes dessa interpretação é o idealista Kant (1724-1804), que 
foi muito influenciado por Rousseau (1712-1778). Para Kant, o verdadeiro sentido da 
liberdade humana reside no direito e dever de usar, cultivar e seguir a própria Razão, 
entendida como capacidade de descobrir e perseguir a Justiça, a Correção, o Bem 
Comum. 
 
 
B) Defesa dos Direitos Humanos, como condições e garantias do exercício da 
liberdade. Tais Direitos são apresentados como direitos naturais do homem, ou seja, 
sua validade não depende das leis contingentemente vigentes nos diferentes Estados. 
30 
 
 
Trata-se dos direitos clássicos do liberalismo: direito à liberdade pessoal e ao devido 
processo legal (proteção em relação a atos arbitrários ou abusivos por parte dos 
agentes do Estado ou do governo); direito à liberdade de pensamento e opinião; 
direito à liberdade de religião e culto (implicando separação entre Estado e Igreja); 
direito à liberdade de expressão; direito a algum tipo de participação na discussão das 
questões e decisões políticas. 
O respeito a tais direitos configura o chamado “Estado de direito”, fundado ainda na 
igualdade dos cidadãos perante o Estado e a Lei (contra os tradicionais privilégios da 
nobreza e clero, típicos da ordem absolutista). 
 
Estes direitos também podem ser interpretados de duas maneiras, em 
correspondência com as duas posições acima expostas. 
Na primeira interpretação, eles são vistos como condições e garantias do exercício da 
livre escolha na esfera privada do indivíduo. 
Na segunda interpretação, eles são vistos como condições e garantias do exercício da 
razão humana, como capacidade de conhecer e seguir o Bem Comum e a Justiça. Para 
garantir o pleno exercício da Razão, é preciso garantir a liberdade de pensamento, de 
culto e de expressão. 
 
 
O Liberalismo como movimento político: 
Movimento de supressão das monarquias absolutas e dos privilégios tradicionais da 
nobreza e clero, e de instauração dos Estados constitucionais, baseados em 
declarações dos direitos e liberdades dos cidadãos. Revolução Gloriosa na Inglaterra 
(1688, no finalzinho do século XVII); Independência dos EUA, contra a política 
“absolutista” da monarquia inglesa nas colônias norte-americanas (1776), Revolução 
Francesa (1789). 
 
 
c) Iluminismo: movimento de idéias bastante próximo ao liberalismo. 
Crença na capacidade da razão humana de progressivamente desvendar, conhecer e 
dominar a natureza, tendo em vista a realização da felicidade humana. Rejeição de 
autoridades externas à razão individual, como a Igreja (anti-clericalismo). Confiança no 
progresso contínuo do conhecimento científico, como instrumento de promoção da 
felicidade terrena. 
 
Ideal de libertar a humanidade dos grilhões que lhe são impostos pela ignorância e 
superstição. Difundir as “Luzes”, contra as trevas e obscurantismo (que tendem a ser 
associados aos dogmas da religião, e especialmente à Igreja católica). 
 
- Na França, publicação da primeira “Enciclopédia” (início em 1751): sintetizar em uma 
obra todo o saber da época, tornando-o disponível a todos os homens-cidadãos. 
 
 
 
31 
 
 
O Empirismo no século XVIII 
 
Principal defensor do empirismo no século XVIII: David Hume (“Tratado sobre a 
natureza humana”, 1739, e “Investigação sobre o Entendimento Humano”, 1748). 
 
Questão colocada por Hume: sentidos não captam as características da necessidade e 
universalidade, que são características fundamentais do conceito de causalidade e das 
Leis da natureza que a ciência pretende apresentar. 
 
Hume problematiza o conceito de indução, tal como compreendido pelos empiristas 
do séc. XVII. Não há base objetiva para “pularmos” de observações particulares para 
enunciados necessários e universais (tal “pulo” não se baseia em intuição sensível, pois 
os sentidos não vêem ou captam a necessidade e universalidade; nem em raciocínio 
lógico, pois necessidade e universalidade não são conseqüências logicamente 
necessárias das observações particulares). 
Para Hume, o que nós literalmente vemos ou observamos são simples regularidades, 
de alcance limitado ou parcial: até hoje a natureza tem apresentado esta regularidade. 
Em um sentido estrito e rigoroso, nós não sabemos se esta regularidade equivale a 
uma “Lei” (necessária e universal) da natureza (“sempre vai ocorrer assim”). 
 
Hume estabelece uma diferença entre conhecimento puramente lógico ou lógico-
matemático, caracterizado pela necessidade lógica das relações entre idéias, e, por 
outro lado, conhecimento da natureza, entendida como realidade externa, 
independente das ideias na mente humana. 
 
Para Hume, conhecendo o significado previamenteatribuído às noções matemáticas, 
nós podemos reconhecer certas relações logicamente necessárias entre elas. Mas este 
tipo de conhecimento é distinto do conhecimento da realidade externa em sentido 
estrito. 
 
Em outras palavras, Hume estabelece uma diferença entre a necessidade lógica das 
relações entre idéias matemáticas e, por outro lado, a necessidade empírica das 
relações entre eventos da natureza, que nosso conhecimento da natureza pretende 
exprimir. 
E pergunta se essa pretensão é justificada. Podemos de fato “saber” que as relações 
entre eventos da natureza são rigorosamente necessárias? Podemos de fato conhecer 
relações causais rigorosamente necessárias entre dados ou eventos da natureza? 
Estas perguntas são feitas contra o pano de fundo da concepção da ciência como um 
saber certo e infalível, imune a erros. Desse ponto de vista, se os eventos da natureza 
são encadeados segundo relações necessárias e deterministas (como era pressuposto), 
nosso conhecimento da natureza, se é um conhecimento verdadeiro, ou seja, um 
conhecimento que reflete a própria natureza, deve ser igualmente necessário, no 
sentido de certo e seguro, isento de “margens de erro”. 
Desse ponto de vista, ou nesse contexto histórico, a indução era compreendida como 
um método de descoberta das leis necessárias de encadeamento dos eventos naturais, 
32 
 
e não como um método de formulação de correlações estatísticas, admitidamente 
sujeitas a “margens de erro”. 
 
Resposta de Hume aos problemas que ele mesmo coloca: Indução se baseia num 
fundamento “subjetivo”: hábito/costume da nossa mente de associar necessidade e 
universalidade às regularidades que observamos. Necessidade e universalidade 
refletem um hábito da nossa mente. 
 
Hume analisa a indução da seguinte maneira. Através da indução, nós transformamos 
as regularidades observadas, que têm alcance limitado ou parcial, em leis universais e 
necessárias. Não há nenhuma base objetiva para operarmos essa transformação, mas 
uma base “subjetiva”: a “natureza” de nossa mente, no sentido dos hábitos de nossa 
mente, padrões habituais segundo os quais ela opera. 
 
Em um sentido rigoroso e estrito, nós não sabemos (com certeza) se as regularidades 
observadas equivalem a leis universais e necessárias da própria natureza; nós sequer 
sabemos com certeza se a natureza segue leis necessárias e universais. Entretanto, 
nossa “natureza” (a natureza de nossa mente, que se exprime em seu modo habitual 
de comportar-se) nos compele a pensar e julgar assim, e a nos comportar de acordo 
com esse juízo. Nossos hábitos mentais nos compelem a transformar as regularidades 
que observamos em leis necessárias da própria natureza. 
 
O que nós literalmente vemos ou observamos são simples regularidades, de alcance 
limitado ou parcial: até hoje a natureza tem apresentado esta regularidade. Em um 
sentido estrito e rigoroso, nós não sabemos se esta regularidade equivale a uma “Lei” 
(necessária e universal) da natureza (“sempre vai ocorrer assim”), mas estamos 
habituados a pensar e esperar que se trata efetivamente de uma Lei. 
 
Hume mantém a tese de que a indução representa o método correto para a 
descoberta ou obtenção das (presumidas, esperadas) leis da natureza, entendidas 
como leis necessárias do encadeamento dos eventos naturais. Embora baseada num 
“hábito” da mente, a indução é o melhor método para tentarmos conhecer a realidade 
objetiva. 
 
Por outro lado, a obra humeana sugere uma visão falibilista do conhecimento 
científico: não podemos ter certeza de que as Leis que atribuímos à natureza (e que 
formulamos com base na indução) são absolutamente necessárias; não podemos ter 
certeza de que o conhecimento científico de que dispomos é infalível, isento de 
“margens de erro”. 
 
 
 
 
 
 
 
33 
 
O Idealismo no século XVIII 
 
Em função dos propósitos do nosso curso, vamos considera-lo como um 
desenvolvimento do racionalismo do século XVII. 
 
Principal expoente: Immanuel Kant (Crítica da Razão Pura, 1781). 
 
Aceita os problemas apontados por Hume, mas não aceita sua solução. 
 
Seguindo Hume, Kant afirma que necessidade e universalidade não são características 
captadas pelos sentidos. 
 
Contra Hume, afirma que elas não se enraízam num mero “hábito” (característica 
meramente subjetiva) da mente humana, mas numa atividade legisladora (de impor 
leis) que é simultaneamente construtora da objetividade da realidade. Necessidade e 
universalidade são expostas como características da estrutura lógico-conceitual que o 
sujeito impõe a todos os dados que lhe aparecem, e essa atividade de “imposição” 
constrói a objetividade que a realidade tem para nós. 
Para Kant, em outras palavras, a mente “constrói” a objetividade que a realidade tem 
para nós. Ela não produz ou cria os conteúdos da realidade, mas impõe uma estrutura 
formal a tais conteúdos, encaixando-os nesta estrutura. Esta estrutura formal consiste 
em regras de organização do espaço-tempo. 
 
Para Kant, há regras inatas (sediadas na razão pura) de organização das sensações e de 
construção da forma geral da realidade objetiva. Trata-se de regras de organização do 
espaço-tempo, e de organização da nossa experiência no espaço-tempo, que incluem a 
regra da causalidade, com a necessidade que lhe é típica. 
Em Kant, o elemento “inato” não equivale mais a conhecimento de objetos, mas a 
conhecimento da forma geral da realidade objetiva, que vale para todos os conteúdos 
que sejam ou venham a ser dados na sensibilidade. 
Por outro lado, o conhecimento da forma geral da realidade objetiva só se transforma 
em conhecimento de objetos propriamente ditos à medida que é complementado ou 
preenchido por conteúdos dados na sensibilidade. 
Os objetos da realidade objetiva consistem em conteúdos (dados na sensibilidade) 
estruturados e organizados segundo a forma geral imposta pela razão pura. Em outras 
palavras, os objetos consistem num elemento formal preenchido por conteúdos dados 
na sensibilidade. 
 
Assim, os enunciados que descrevem a forma geral da realidade objetiva apresentam 
as seguintes características. Por um lado, são enunciados logicamente independentes 
da experiência sensível (enunciados a priori, ou seja, logicamente anteriores à 
experiência sensível). 
Por outro lado, são enunciados que pretendem ser informativos sobre os próprios 
objetos da nossa experiência, enunciados cuja validade não se restringe à coerência 
lógica interna a determinado sistema linguístico convencionalmente adotado. 
34 
 
No vocabulário kantiano, trata-se de enunciados “sintéticos”, distintos dos enunciados 
“analíticos”, que equivalem a meras definições, cuja validade restringe-se à coerência 
lógica interna a um sistema linguístico convencionalmente adotado. 
 
Por exemplo, suponhamos que em determinado sistema linguístico não tenham sido 
adotadas as categorias conceituais de “divorciado” e “viúvo”, por qualquer razão que 
seja – digamos que no momento de construção do sistema não tinham aparecido, ou 
não despertaram atenção, ou não apareciam como suficientemente relevantes, os 
fenômenos que poderiam demandar a introdução e adoção dessas categorias. 
Neste sistema, o enunciado “todo não-solteiro é casado” equivale a um enunciado 
estritamente analítico, ele é analiticamente verdadeiro, ou seja, ele é verdadeiro em 
virtude das relações lógicas internas ao sistema linguístico adotado. Ele tem uma 
validade meramente analítica, e por isso mesmo “a priori” (independente da 
experiência). 
Embora a validade “sintética” (caráter efetivamente informativo) deste enunciado em 
relação àquilo que acontece em nossa experiência seja questionável ou duvidosa (pois 
os divorciados em princípio representam não-solteiros que não são casados), isso não 
é relevante para sua validade meramente analítica, pois o enunciado, tomado como 
enunciado analítico, é “a priori”, ou seja, logicamente independente do que acontece 
na experiência sensível. 
Para Kant, a validade “a priori” (validade que é independente dos eventos daexperiência sensível) normalmente equivale a uma validade meramente analítica 
(baseada apenas nas relações lógicas internas a um determinado sistema linguístico). 
 
A exceção são os enunciados “sintéticos a priori”, como, por exemplo, “Tudo que 
acontece é necessariamente determinado por uma causa (antecedente)”. Para Kant, 
este enunciado é simultaneamente “a priori” (pois exprime uma regra de organização 
logicamente anterior à experiência sensível, logicamente independente em relação à 
experiência sensível) e “sintético” (pois tem um caráter efetivamente informativo a 
respeito dos objetos que se dão na realidade que é objetiva para os homens). No 
vocabulário kantiano, é um enunciado “sintético a priori”. 
 
Ocorre a mesma coisa com os enunciados da matemática em geral e da geometria 
euclidiana em particular. Este é um ponto que será retomado mais a frente. 
 
No idealismo kantiano, estabelece-se uma distinção entre a natureza ou realidade “em 
si mesma” (“coisa-em-si”) e a realidade “para nós” (que equivale à “realidade 
objetiva”). A “realidade para nós” é construída por uma atividade de imposição de 
regras ou leis de organização: imposição sobre as “aparições (“fenômenos”) de regras 
de estruturação e organização congênitas à mente, ou seja, inatas. Em outras palavras, 
a realidade objetiva são os fenômenos, estruturados e organizados por regras e 
princípios inatos. 
 
Todo conhecimento científico ou teórico precisa de uma contribuição da intuição 
sensível. Kant rejeita a intuição intelectual como fonte de conhecimento de objetos. Só 
há conhecimento teórico quando as regras de organização “a priori” são efetivamente 
35 
 
aplicadas a conteúdos singulares dados na sensibilidade (ou que possam se dar na 
continuação da investigação científica). Só há conhecimento teórico à medida que a 
estrutura formal é preenchida por conteúdos efetivamente dados na sensibilidade. 
 
Por isso, Kant rejeita a possibilidade de conhecimento teórico de Deus, ou da 
existência de Deus. Ele a rejeita porque nenhum conteúdo dado na sensibilidade 
preenche efetivamente o mero conceito de Deus. Esta é uma diferença fundamental 
em relação a Descartes. 
 
Assim, a validade objetiva (ou seja, aplicabilidade à natureza existente fora da mente 
do sujeito) da estrutura lógico-matemática baseia-se, não mais na perfeição, bondade 
e veracidade de Deus, mas na atividade “legisladora-impositiva” do sujeito (“sujeito 
transcendental”, ou seja, o próprio homem, enfocado como condição de possibilidade 
da própria realidade objetiva). 
 
Objeto do conhecimento: construído ou independente? 
 
•1) Empirismo de Hume: 
(a) Objeto do conhecimento (identificado à realidade externa e independente) é 
independente da consciência do sujeito (igual ao empirismo de Bacon e Locke); 
(b) Conhecimento teórico (científico) é constituído por observações “puras” dessa 
realidade independente, com uso do método da indução. (igual ao empirismo de 
Bacon e Locke); 
(c) Conhecimento científico é falível, pois nosso acesso à realidade independente não é 
absolutamente seguro e abrangente (diferente do empirismo de Bacon e Locke). 
 
•2) Idealismo de Kant: 
(a) Objeto do conhecimento é a realidade “para nós”, distinta da realidade “em si 
mesma”. 
•(b) Objeto do conhecimento (realidade para nós) é construído pela atividade 
cognitiva do sujeito: atividade na qual o sujeito impõe a tudo que aparece (os 
fenômenos) uma estrutura lógico-conceitual única e abrangente. Conhecimento 
teórico é constituído por observações singulares encaixadas numa estrutura conceitual 
(causal e determinista) única e abrangente. 
•(c) Conhecimento científico é rigorosamente necessário (mais precisamente, a 
estrutura formal é infalível, embora possamos eventualmente nos enganar em relação 
aos conteúdos que preenchem esta estrutura formal. A lei “tudo que acontece tem 
uma causa” é infalível, embora possamos às vezes nos equivocar quanto aos 
conteúdos que preenchem a posição de “causa” em determinado ponto da estrutura 
formal. Mas este é um aspecto que não é enfatizado). 
36 
 
Tópico 8: Empirismo Lógico e Racionalismo Crítico de Popper. 
 
O debate entre empirismo lógico e racionalismo crítico se desenvolve, basicamente, 
entre os anos 1920 e 1950. O empirismo lógico é defendido por um conjunto de 
filósofos reunidos no chamado “Círculo de Viena”. O racionalismo crítico é defendido 
pelo filósofo austríaco Karl Popper. 
 
Os antecedentes históricos do debate. Os antecedentes que definem o contexto do 
debate. 
 
•1) Desenvolvimento e aplicação empírica de geometrias não-euclidianas (a partir de 
1830, aproximadamente). 
•Conseqüência: abandono da tese (adotada pelo racionalismo do século XVII e 
idealismo do século XVIII) de que a matemática representa um conhecimento 
rigorosamente necessário (infalível) da estrutura essencial da realidade objetiva. 
Reconhecimento de que a verdade matemática (necessidade/coerência lógica de um 
sistema construído a partir de princípios convencionais, ou convencionalmente 
adotados) distingue-se essencialmente de verdade empírica (aplicabilidade e validade 
para a natureza, ou para a realidade objetiva; informatividade em relação à realidade 
objetiva). 
A consequência, em outras palavras, foi que a tradição racionalista/idealista (a 
tradição que confere prioridade ao sujeito na relação sujeito-objeto) teve de 
abandonar a tese kantiana de que os enunciados da geometria euclidiana são 
enunciados “sintéticos a priori”, ou seja, enunciados logicamente independentes das 
informações empíricas, mas ao mesmo tempo necessariamente informativos a 
respeito de todos os setores ou âmbitos da realidade externa. 
 
Em função dos propósitos do nosso curso, o Racionalismo Crítico de Karl Popper, ao 
ser contrastado com o Empirismo Lógico do Círculo de Viena, pode ser considerado 
uma versão da tradição racionalista/idealista, ou seja, a tradição que confere 
prioridade à razão do sujeito na relação sujeito-objeto. 
Entretanto, ao contrário do que ocorre nas versões anteriores, no Racionalismo Crítico 
de Popper não se defende a tese das verdades inatas e dos enunciados sintéticos a 
priori. 
 
Breve esclarecimento: geometrias não-euclidianas são geometrias que rejeitam o 
“Quinto Postulado” de Euclides, adotando outros pontos de partida. O Quinto 
Postulado é o enunciado segundo o qual “Dados em um plano uma reta s e um ponto 
p fora dela, existe no plano uma única reta r que passa por P e é paralela a s”. Uma das 
consequências (conclusões) que podem ser dedutivamente extraídas deste postulado 
é o enunciado de que a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a 180 graus. 
 
Ora, na tradição racionalista/idealista, estes dois enunciados (o 5º postulado e a 
conclusão sobre os ângulos do triângulo) eram vistos como verdades a priori ou inatas 
(verdades logicamente anteriores ou independentes em relação à experiência sensível, 
e por isso mesmo indubitáveis, infalíveis) e, simultaneamente, empiricamente 
37 
 
informativas, ou seja, necessariamente informativas a respeito de todos os setores e 
âmbitos da realidade externa. 
 
O desenvolvimento e aplicação empírica das geometrias não-euclidianas acabou dando 
razão a certas sugestões contidas no empirismo de Hume. Pode-se ler em Hume a 
sugestão de que o 5º Postulado, em vez de ser uma verdade intuitivamente certa e 
evidente, é uma mera definição, ou seja, uma definição convencionalmente adotada 
como ponto de partida de um sistema linguístico (no caso, geométrico, construído na 
linguagem da geometria). Além disso, pode-se ler em Hume a sugestão de que a 
conclusão sobre os ângulos do triângulo equivale a um enunciado meramente 
analítico, ou seja, um enunciado logicamente necessário dentro de um determinado 
sistema linguístico (a geometria euclidiana), mas não necessariamente informativo a 
respeito de todos os âmbitos ou setores da realidade externa. A validade empírica 
varia conforme o âmbito de realidade que se está investigando, e depende, portanto, 
de

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