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A casa Varrida Pelos Ventos

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A Casa Varrida pelos Ventos 
De MALACHI MARTIN 
Versão deste livro: Tradução para o português com tradutor online (um pouco melhorado) 
 
Título em Espanhol: O ÚLTIMO PAPA 
Título em Inglês: Windswept House 
 
 
 
SUMÁRIO 
A HISTÓRIA COMO PRÓLOGO: INDÍCIOS DO FIM ....................................... 3 
PRIMEIRA PARTE - Entardecer Papal ............................................................... 28 
Planos impecáveis ................................................................................................. 28 
OS AMIGOS DOS AMIGOS ............................................................................. 110 
A CASA VARRIDA PELOS VENTOS ............................................................. 156 
SOBRE RATOS E HOMENS ............................................................................ 189 
SEGUNDA PARTE - Crepúsculo papal ............................................................ 268 
LITURGIA ROMANA ....................................................................................... 268 
REALIDADES IMPENSABLES E POLÍTICAS EXTREMAS ........................ 316 
TERÇA PARTE - Noite papal ............................................................................ 431 
O PROTOCOLO DE DEMISSÃO ..................................................................... 431 
QUO VADIS? ..................................................................................................... 520 
 
 
A CASA VARRIDA PELOS VENTOS 
 
UM “ROMANCE” DO VATICANO 
 
 
 
3 
 
A HISTÓRIA COMO PRÓLOGO: INDÍCIOS DO FIM 
 
1957 
 
Os diplomatas, acostumados a tempos difíceis e aos métodos mais duros na economia, o comércio e 
a rivalidade internacional, não são muito propensos aos augúrios. 
Não obstante, suas perspectivas eram tão prometedoras que os seis ministros de Exteriores reunidos 
em Roma em 25 de março de 1957 consideravam que tudo ao seu redor -a centralidade pétrea da 
primeira cidade europeia, o vento purificador, o céu aclarado e o sorriso benigna do clima reinante- 
era o próprio manto da bem-aventurança que os acolhia ao colocar a primeira pedra do novo edifício 
das nações. 
Como sócios na criação de uma nova Europa, que acabaria com o conflictivo nacionalismo que 
tantas vezes tinha dividido este antigo delta, aqueles seis homens e seus governos estavam unidos 
pela convicção de que seus países estavam a ponto de se abrir a um amplo horizonte econômico e a 
um elevado teto político nunca contemplado até então. 
Estavam a ponto de assinar os tratados de Roma. 
Estavam a ponto de criar a Comunidade Econômica Europeia. 
Até onde alcançava recentemente a memória, só a morte e a destruição tinham assolado suas 
capitais. 
Tinha decorrido mal em um ano desde que os soviéticos tinham afirmado sua determinação 
expansionista, com o sangue da tentativa de rebelião na Hungria, e o exército soviético podia invadir 
a Europa em qualquer momento. 
Ninguém esperava que Estados Unidos e seu plano Marshall suportassem eternamente a carga da 
construção da nova Europa. 
Nem nenhum governo europeu queria ser visto pego entre Estados Unidos e a União Soviética, em 
uma rivalidade que só podia aumentar em décadas vindouras. 
Como se estivessem já acostumados a atuar unidos ante tal realidade, os seis ministros assinaram 
como fundadores da CEE. 
Os três representantes das nações do Benelux, porque na Bélgica, os Países Baixos e Luxemburgo 
era precisamente onde se tinha posto a prova a ideia de uma nova Europa e se tinha comprovado que 
era verdadeira, ou pelo menos bastante verdadeira. 
O ministro francês, porque seu país seria o coração da nova Europa, como sempre o tinha sido da 
antiga. 
Itália, por sua condição de alma europeia. 
Alemanha ocidental, porque o mundo nunca voltaria a marginar àquele país. 
E assim nasceu a Comunidade Europeia. 
Felicitou-se aos visionários geopolíticos que o tinham fato possível: Robert Schuman e Jean Monnet 
da França, Konrad Adenauer da Alemanha ocidental e Paul Henri Spaak da Bélgica. 
Todo mundo se congratulava. 
Dinamarca, Irlanda e Grã-Bretanha não demorariam em reconhecer a sensatez da nova aventura. 
E embora com ajuda e paciência, Grécia, Portugal e Espanha acabariam também por se integrar. 
Evidentemente, ficava ainda a questão de manter a listra aos soviéticos, bem como a de encontrar 
um novo centro de gravidade. 
Mas indubitavelmente a incipiente CEE seria a ponta de lança da nova Europa, se pretendia-se que 
Europa sobrevivesse. 
Concluídas as assinaturas, as rubricas e os brindis, chegou o momento do característico ritual 
romano e privilégio dos diplomatas: uma audiência com o papa octogenário no palácio apostólico da 
colina do Vaticano. 
4 
 
Sentado em seu tradicional trono papal, com todo o cerimonial vaticano em uma engalanada sala, 
sua santidade Pio XII recebeu aos seis ministros e a seus séquitos com semblante risonho. 
Seu acolhimento foi sincero. 
Seus comentários, breves. 
Sua atitude foi a de um antigo proprietário e residente em um vasto território, que oferecia algumas 
indicações aos recém chegados e residentes potenciais. 
Europa, lembrou-lhes o Santo Papa, tinha tido seus era de grandeza quando uma fé comum alentava 
os corações de seus povos. 
Europa, instou, podia recuperar sua grandeza geopolítica, renovar-se e brilhar de novo, se 
conseguiam criar um novo coração. 
Europa, indicou, podia forjar de novo uma fé sobrenatural comum e aglutinadora. 
Interiormente, os ministros sentiram-se desconfortáveis. 
O papa Pio acabava de assinalar a maior das dificuldades às que se enfrentava a CEE no dia de seu 
nascimento. 
Baixo suas palavras ocultava-se a advertência de que nem o socialismo democrático, nem a 
democracia capitalista, nem a perspectiva de uma boa vida, nem a «Europa» mística dos humanistas, 
facilitariam o motor capaz de impulsionar seu sonho. 
Em termos práticos, sua Europa carecia de um centro iluminador, de uma força ou princípio superior 
que a aglutinasse e a impulsionasse. 
Faltava-lhe o que era ele. 
Feitas suas advertências, o Santo Papa fez três cruzes no ar para outorgar-lhes a bênção papal 
tradicional. 
Uns poucos ajoelharam-se para recebê-la; outros, que permaneceram de pé, agacharam a cabeça. 
No entanto, para eles tinha chegado a ser impossível relacionar ao papa com o bálsamo curador do 
Deus ao que alegava representar como vicário, ou reconhecer dito bálsamo como único fator 
aglutinador capaz de sanar a alma do mundo; também eram incapazes de aceitar que os tratados 
econômicos e políticos não pudessem aderir os corações e as mentes da humanidade. 
Não obstante, apesar de seu fragilidade, não tiveram mais remédio que sentir inveja daquele 
dignitário solitário em seu trono, já que, como o belga Paul Henri Spaak comentou mais adiante, o 
papa presidia uma organização universal. 
Além disso, não era um mero representante eleito de dita organização. 
Era o possuidor de seu poder. 
Seu centro de gravidade. 
Desde a janela de seu estudo no terceiro andar do palácio apostólico, o Santo Papa observou aos 
arquitetos da nova Europa quando subiam a suas limusines na praça, a seus pés. 
-Que opina seu santidade? 
Pode sua nova Europa chegar a ser suficientemente forte para Moscou? 
Pio olhou a seu colega, um jesuíta alemão amigo de toda a vida e confessor predileto. 
-O marxismo é ainda o inimigo, pai. 
Mas os anglo-saxões têm a iniciativa. 
-Em seus lábios, anglo-saxão significava poderio anglo-estadonidense-. 
Sua Europa irá longe. 
E com celeridade. 
Mas no maior dia para a Europa ainda não amanheceu. 
O jesuíta não alcançou a compreender a visão do papa. 
-Que Europa, santidade? 
No maior dia para a Europa de quem? 
-Para aEuropa nascida hoje -respondeu sem titubear o Santo Papa-. 
5 
 
No dia em que esta Santa Sede se sujeite à nova Europa de diplomatas e políticos, à Europa centrada 
em Bruxelas e Paris, naquele dia começarão realmente os infortúnios da Igreja -agregou, antes de 
voltar a cabeça para contemplar de novo os veículos que se afastavam pela praça de São Pedro-. 
A nova Europa terá em seu pequeno dia, pai. 
Mas só em um dia. 
 
1960 
 
Nunca tinha estado pendente uma questão mais prometedora, nem tinha tratado o papa de algo tão 
importante com seus colaboradores, como o assunto da agenda papal aquela manhã de fevereiro de 
1960. 
Desde sua eleição fazia pouco mais de um ano, seu santidade Juan XXIII -a quem não tinha 
demorado em se denominar «Juan o Bom»- tinha transladado a Santa Sede, o governo pontifício e a 
maior parte do mundo diplomático e religioso exterior a uma nova órbita. 
Agora, parecia querer levantar também o mundo. 
A seus setenta e sete anos no momento de sua eleição, aquele indivíduo de aspecto camponês e 
bonachão tinha sido elegido como papa interino, como dignitário inofensivo cujo breve mandato 
serviria para ganhar tempo -quatro ou cinco anos segundo suas previsões- até encontrar ao sucessor 
adequado, que dirigiria a Igreja durante a guerra fria. 
Mas aos poucos meses de sua nomeação e ante o assombro geral, tinha inaugurado seu reinado com 
a surpreendente convocação de um concilio ecumênico. 
A dizer verdade, quase todos os servidores públicos vaticanos, incluídos os conselheiros chamados a 
participar naquela reunião confidencial -nas salas pontifícias do quarto andar do palácio apostólico-, 
estavam sumamente atarefados com os preparativos de dito concilio. 
Com a franqueza que lhe caracterizava, o papa compartilhava suas opiniões com um punhado de 
homens eleitos a tal fim: aproximadamente uma dúzia de importantes cardeais, bem como certo 
número de bispos e canônicos da Secretaria de Estado.. 
Estavam presentes dois experientes tradutores portugueses. 
-Devemos tomar uma decisão -declarou em tom confidencial seu santidade-, e é preferível que não o 
façamos sós. 
O assunto, disse-lhes, concernia uma carta já famosa no mundo inteiro, recebida por seu predecessor 
no trono de são Pedro. 
As circunstâncias de dita carta eram tão conhecidas, prosseguiu, que mal precisavam um mínimo 
esboço. 
Fátima, em outra época um dos povos mais desconhecidos de Portugal, tinha pulado de repente à 
fama em 1917 como o local onde três jovens camponeses, duas crianças e uma criança, tinham 
recebido seis visitas, ou visões, da Virgem Maria. 
Ao igual que muitos milhões de católicos, os presentes naquela sala sabiam que a Virgem tinha 
confiado três segredos às crianças de Fátima. 
Todos sabiam também que, como o tinha prognosticado o ente celestial, dois das crianças tinham 
morrido na infância e só a maior, Luzia, tinha sobrevivido. 
Era do conhecimento geral que Luzia, então freira de clausura, tinha revelado desde fazia muito 
tempo os dois primeiros segredos de Fátima. 
Mas segundo Luzia, era a vontade da Virgem que fosse o papa reinante em 1960 quem desse a 
conhecer o terceiro segredo e que, simultaneamente, o mesmo papa organizasse uma consagração 
mundial de «a Rússia» à Virgem Maria. 
Dita consagração equivaleria a uma condenação pública a nível mundial da União Soviética. 
6 
 
Se dita consagração efetuava-se, sempre segundo Luzia, a Virgem tinha prometido que «Rússia» se 
converteria e deixaria de ser uma ameaça. 
No entanto, se o papa reinante em 1960 não satisfazia sua vontade, «Rússia divulgaria seus erros por 
todas as nações», teria muito sofrimento e destruição, e a fé da Igreja seria tão corrupta que só em 
Portugal se conservaria intato «o dogma da fé». 
Durante seu terceiro aparecimento em Fátima em julho de 1917, a Virgem tinha prometido selar seu 
mandato com uma prova tangível de sua autenticidade como mensagem divina. 
No dia 13 de outubro daquele mesmo ano, às doze do meio dia, faria um milagre. 
E àquela hora daquele dia, em presença de setenta e cinco mil pessoas, algumas procedentes de 
locais muito longínquos, incluídos jornalistas e fotógrafos, cientistas e céticos, e numerosos clérigos 
perfeitamente fiáveis, as crianças presenciaram um milagre assombroso. 
O sol violou todas as leis naturais imagináveis. 
Após interromper um persistente chuvarada, que tinha deixado a todos os presentes empapados de 
água e tinha convertido aquele remoto local em um autêntico atoleiro, se pôs a dançar literalmente 
no céu. 
Arrojou à terra um espetacular arco íris. 
Desceu até que parecia inevitável que envolveria à multidão. 
Depois, com a mesma presteza, regressou a sua posição normal e brilhou com sua benevolência 
acostumada. 
Todo mundo estava atônito. 
A roupa dos presentes estava tão imaculada como se acabasse de sair da tinturaria. 
Ninguém tinha sofrido nenhum dano. 
Todos tinham visto dançar o sol, mas só as crianças tinham visto à Virgem. 
-Acho que é evidente --disse o bom papa Juan antes de sacar um sobre de uma caixa, semelhante em 
tamanho às de cigarros, que estava sobre uma mesa junto a ele-, o primeiro que deve ser feito esta 
manhã. 
Uma onda de emoção tomou conta de seus conselheiros. 
O motivo de sua presença era, portanto, ler em privado a carta secreta de Luzia. 
Não era um exagero afirmar que dezenas de milhões de pessoas no mundo inteiro esperavam que «o 
papa reinante em 1960» revelasse as partes do terceiro segredo tão bem guardado até então e 
obedecesse o mandato da Virgem. 
Com dita ideia presente a sua mente, sua santidade sublinhou o significado exato e literal do termo 
«privado». 
Com a certeza de que sua advertência com respeito ao segredo estava clara, o Santo Papa entregou a 
carta de Fátima aos tradutores portugueses, que traduziram o texto secreto de viva voz ao italiano. 
-Bem -disse o papa quando concluiu a leitura, assinalando imediatamente a decisão que preferia não 
tomar a sós-, devemos ter em conta que desde agosto de 1959 mantivemos umas delicadas 
negociações com a União Soviética. 
Nossa aspiração é que pelo menos dois prelados da Igreja ortodoxa soviética assistam a nosso 
concilio. 
O papa Juan dizia frequentemente «nosso concilio» para referir-se ao vindouro Concilio Vaticano II. 
Que devia fazer? , perguntou seu santidade aquela manhã. 
A providência tinha-lhe elegido a ele como «papa reinante em 1960». 
No entanto, se obedecia o que a irmã Luzia descrevia claramente como mandato da Rainha dos 
Céus, se ele e seus bispos declaravam pública, oficial e universalmente que «Rússia» estava 
atormentada de erros perniciosos, arruinaria sua iniciativa soviética. 
Mas além de seu fervente desejo de que a Igreja ortodoxa estivesse representada no concilio, se o 
sumo pontífice utilizava sua plena autoridade papal e sua hierarquia para levar a cabo o mandato da 
7 
 
Virgem, isso equivaleria a catalogar como criminosa à União Soviética e a Nikita Jruschov, seu 
ditador marxista vigente. 
Arrastados pela ira, não tomariam as soviéticos represálias? 
Não seria o papa responsável de uma nova onda de perseguições e da morte de milhões de pessoas 
ao longo e largo da União Soviética, seus satélites e países ocupados? 
Para fazer ênfase no que lhe preocupava, sua santidade ordenou que se lesse de novo uma parte da 
carta de Fátima. 
Viu entendimento, e em alguns casos alarme, em todos os rostos que tinha a seu ao redor. 
Se os presentes tinham compreendido com tanta facilidade o bilhete finque do terceiro segredo, 
perguntou, não o entenderiam os soviéticos com a mesma facilidade? 
Não extrairiam do mesmo a informação estratégica que lhes outorgaria uma vantagem indubitável 
sobre o mundo livre?-Ainda podemos celebrar nosso concilio, mas... 
Não foi necessário que seu santidade acabasse a oração. 
Agora tudo estava claro. 
A publicação do segredo teria repercussões no mundo. 
Perturbaria gravemente aos governos amistosos. 
Se alienaria aos soviéticos por uma parte e se lhes brindaria ajuda estratégica por outra. 
O bom papa devia tomar uma decisão a nível geopolítico fundamental. 
Ninguém duvidava da boa fé da irmã Luzia, mas vários conselheiros assinalaram que tinham 
decorrido quase vinte anos desde 1917, quando tinha ouvido as palavras da Virgem, e o momento de 
escrever a carta, a metade dos anos trinta. 
Que garantia tinha o Santo Papa de que o tempo não lhe tinha ofuscado a memória? 
E daí garantia existia de que três jovens camponeses analfabetos, nenhum dos quais chegava 
naquela época aos doze anos, transmitisse com precisão uma mensagem tão complexa? 
Não podia ter entrado em jogo certa fantasia infantil preliteral? 
Tropas da União Soviética tinham penetrado na Espanha para participar na guerra civil e lutavam a 
escassos quilômetros do local onde Luzia tinha escrito sua carta. 
Não influiria nas palavras de Luzia seu próprio medo dos soviéticos? 
Emergiu uma voz discrepante no consenso que se formava. 
Um cardeal, jesuíta alemão amigo e confessor predileto do papa até o último momento, não pôde 
guardar silêncio ante tal degradação do papel da intervenção divina. 
Uma coisa era que ministros de governos seculares abandonassem os aspectos práticos da fé, mas 
com toda segurança era claramente inaceitável que também o fizessem uns clérigos encarregados de 
assessorar ao Santo Papa. 
-A decisão que aqui deve ser tomado -declarou o jesuíta- é simples e primeira vista. 
Ou bem aceitamos esta carta, obedecemos suas instruções e esperamos depois suas consequências, 
ou sinceramente a recusamos. 
Esquecemos o assunto. 
Guardamos a carta em secreto como relíquia histórica, seguimos como até agora e, por decisão 
própria, nos desprendemos de uma proteção especial. 
Mas que nenhum dos presentes duvide de que falamos do destino da fé da humanidade. 
Apesar da confiança que a sua santidade lhe inspiravam a experiência e a lealdade do cardeal 
jesuíta, a decisão foi desfavorável para Fátima. 
-Questo non é per i nostri tempi (Isto não é para nossos tempos) -disse o Santo Papa. 
Aos poucos dias, o cardeal leu nos jornais o breve comunicado do Escritório de Imprensa do 
Vaticano. 
8 
 
Suas palavras ficariam gravadas permanentemente em sua mente, como desobediência rotunda à 
vontade divina. 
Pelo bem da Igreja e o bem-estar da humanidade, dizia o comunicado, a Santa Sede decidiu não 
publicar neste momento o texto do terceiro segredo. 
«…A decisão do Vaticano apoia-se em várias razões. 
Primeira: a irmã Luzia vive ainda. 
Segunda: o Vaticano conhece já o conteúdo da carta. 
Terça: apesar de que a Igreja reconhece os aparecimentos de Fátima, não se compromete a garantir a 
veracidade das palavras que três pequenos pastores asseguram ter ouvido de Nossa Senhora. 
Ante tais circunstâncias, é sumamente provável que o segredo de Fátima permaneça 
permanentemente selado. 
» -Ci vedremo (Já o veremos) -disse o cardeal, após ler o comunicado. 
Conhecia o procedimento. 
A Santa Sede trocaria umas palavras amistosas com Nikita Jruschov, e o sumo pontífice celebraria 
seu concilio, ao que assistiriam os prelados ortodoxos da União Soviética. 
Mas ficava por responder se seu santidade, o Vaticano e a Igreja padeceriam agora as consequências 
prometidas por Fátima. 
Ou para proposto em termos geopolíticos, a pergunta era se a Santa Sede tinha-se submetido a «a 
nova Europa dos diplomatas e os políticos», como o tinha prognosticado o predecessor do bom 
papa. 
-Naquele momento -tinha declarado o caduco idoso-, começarão realmente os infortúnios da Igreja. 
-Já o veremos. 
Por enquanto, ao cardeal não lhe ficava mais remédio que aceitar os acontecimentos. 
De um modo ou outro, era só questão de tempo. 
 
1963 
 
A entronização do arcanjo caído Lúcifer teve local nos confines da cidadela católica romana o 29 de 
junho de 1963, data indicada para a promessa histórica a ponto de converter-se em realidade. 
Como bem sabiam os principais agentes de dita cerimônia, a tradição satânica tinha prognosticado 
desde fazia muito tempo que a Hora do Príncipe chegaria no momento em que um papa tomasse o 
nome do apóstolo Pablo. 
Dita condição, o indício de que o «tempo propício» tinha começado, acabava de se cumprir fazia 
oito dias com a eleição do último sucessor de são Pedro. 
Mal tinham disposto de tempo para os complexos preparativos desde a finalização do conclave 
pontifício, mas o tribunal supremo tinha decidido que não podia ter outra data mais indicada para o 
entronização do príncipe que no dia em que se celebrava a festa de ambos príncipes são Pedro e são 
Pablo, na cidadela. 
E não podia ter local mais idôneo que a própria capela de São Pablo, situada como estava tão cerca 
do palácio apostólico. 
A complexidade dos preparativos devia-se primordialmente à natureza da cerimônia. 
As medidas de segurança eram tão rígidas no grupo de edifícios vaticanos, entre os que se encontra 
dita histórica capela, que os atos cerimoniais não podiam passar em modo algum inadvertidas. 
Se propunham-se alcançar seu objetivo, se a ascensão ao trono do príncipe devia efetivamente 
realizar no tempo « propício», todos os elementos da celebração do sacrifício do calvário seriam 
transtornados pela outra celebração oposta. 
O sagrado deveria ser profano. 
O profano, adorado. 
9 
 
À representação não sangrenta do sacrifício do débil sem nome na cruz, deveria a substituir a 
violação suprema e sangrenta do próprio sem nome. 
A culpa deveria ser aceitado como inocência. 
A dor deveria produzir desfrute. 
A graça, o arrependimento e o perdão deviam ser afogado na orgia de seus contrários. 
E todo devia ser feito sem cometer erros. 
A sequência de acontecimentos, o significado das palavras e as ações, deviam constituir em seu 
conjunto a perfeita representação do sacrilégio, o máximo rito da traição. 
O delicado assunto pôs-se inteiramente nas experimentadas mãos do guardião de confiança do 
príncipe em Roma. 
Aquele prelado de expressão pétrea e língua viperina, além de experiente na complexa liturgia da 
Igreja romana, era sobretudo um maestro do cerimonial do príncipe do fogo e a escuridão. 
Sabia que o objetivo imediato de toda cerimônia consistia em venerar «a abominacão da desolação». 
Mas o seguinte objetivo devia ser agora o de se opor ao débil sem nome em sua própria fortaleza, 
ocupar a cidadela do débil durante o «tempo propício», para assegurar a ascensão do príncipe na 
mesma com uma força irresistível, suplantar ao guardião da cidadela e tomar plena posse das chaves 
confiadas pelo débil ao guardião. 
O guardião enfrentou-se diretamente ao problema da segurança. 
Elementos tão discretos como o pentagrama, as velas negras e os panos apropriados podiam fazer 
parte da cerimônia romana. 
Mas as demais rubricas, como por exemplo o recipiente de ossos e o estrépito ritual, ou a vítima e os 
animais do sacrifício, seriam excessivas. 
Deveria ser celebrado um entronamiento paralelo. 
Se alcançaria o mesmo efeito com uma concelebracão por parte dos «irmãos» em uma capela 
transmissora autorizada. 
A condição de que os participantes em ambos locais «dirigissem» todo elemento da cerimônia à 
capela romana, a cerimônia em seu conjunto alcançaria seu objetivo específico. 
Tudo seria questão de unanimidade de corações, identidade de intenção e sincronização perfeita de 
atos e palavras na capela emissora e na receptora. 
As vontades e as mentes dos participantes, concentrados no objetivoespecífico do príncipe, 
transcenderiam toda distância. 
Para uma pessoa tão experimentada como o guardião, a eleição de uma capela emissora era fácil. 
Bastava com um telefonema telefônico a Estados Unidos. 
Ao longo dos anos, os adeptos do príncipe em Roma tinham desenvolvido uma impecável 
unanimidade de coração e uma inquebrantável identidade de intenção com o amigo do guardião, 
Leio, bispo da capela em Carolina do Sul. 
Leio não era seu nome, senão sua descrição. 
Sobre sua grande cabeça reluzia uma frondosa cabeleira prateada, para todo mundo semelhante à 
melena de um leão. 
Nos quarenta anos aproximadamente desde que sua excelência tinha fundado sua capela, a 
quantidade e categoria social dos participantes que tinha atraído, a pundonorosa blasfêmia de suas 
cerimônias e sua frequente disposição a cooperar com quem compartilhavam seu ponto de vista e 
seus últimos objetivos tinham estabelecido a tal ponto a superioridade de sua freguesia que agora era 
largamente admirada entre os iniciados como a «capela mãe» nos Estados Unidos.. 
A notícia de que dita capela tinha sido autorizada como capela emissora para um acontecimento de 
tanta importância como o entronamiento do príncipe no coração da cidadela romana se recebeu com 
sumo júbilo. 
10 
 
Além disso, os amplos conhecimentos litúrgicos e a grande experiência de Leio permitiram poupar 
muito tempo. 
Não foi necessário, por exemplo, avaliar sua apreciação dos princípios contraditórios sobre os que se 
estruturava toda adoracão do arcanjo. 
Nem duvidar de seu desejo de aplicar àquela batalha a estratégia definitiva, destinada a acabar com 
a Igreja católica romana como instituição pontifícia, desde sua fundação pelo débil sem nome. 
Não era sequer necessário explicar que o último objetivo não era o de aniquilar a organização 
católica romana. 
Leio compreendia o pouco inteligente e a perda de tempo que isso suporia. 
Era decididamente preferível converter dita organização em algo verdadeiramente útil, a 
homogeneizar e a assimilar a uma grande ordem mundial de assuntos humanos; limitá-la a objetivos 
única e exclusivamente humanistas. 
O guardião e o bispo norte-americanos, ambos experientes e com os mesmos critérios, reduziram 
seus preparativos para a cerimônia a uma lista de nomes e um inventário das rubricas. 
A lista de nomes do guardião que assistiriam à capela romana a compunham homens de grande 
talante: clérigos de alta categoria e importantes seculares, verdadeiros servidores do príncipe no 
interior da cidadela. 
Alguns tinham sido eleitos, introduzidos, formados e promovidos na falange romana ao longo de 
várias décadas, enquanto outros representavam a nova geração destinada a promulgar a agenda do 
príncipe durante as décadas vindouras. 
Todos compreendiam a necessidade de permanecer inadvertidas, já que a regra diz: «A garantia de 
nossa manhã baseia-se na convicção atual de que não existimos. 
» A lista de participantes de Leio, distintos homens e mulheres na vida social, os negócios e o 
governo, era tão impressionante como o guardião esperava. 
Mas a vítima, uma criança, sua excelência afirmou que constituiria um autêntico galardão para a 
violação da inocência. 
O inventário das rubricas necessárias para a cerimônia paralela centrou-se principalmente nos 
elementos que não podiam ser utilizado em Roma. 
Na capela emissora de Leio deveriam ser encontrado os frascos de terra, ar, fogo e água. 
Comprovado. 
O osario. 
Comprovado. 
Os pilares vermelho e negro. 
Comprovado. 
O escudo. 
Comprovado. 
Os animais. 
Comprovado. 
E assim sucessivamente. 
Comprovado. 
Comprovado. 
A sincronização das cerimônias em ambas capelas era algo com o que Leio já estava familiarizado. 
Como de costume, se imprimiriam uns fascículos, irreligiosamente denominados missais, para o uso 
dos participantes em ambas capelas e, também como de costume, estariam redigidos em um latim 
impecável. 
Se estabeleceria uma comunicação telefônica entre mensageiros cerimoniais em ambas capelas, a 
fim de que os participantes pudessem desempenhar suas funções em perfeita harmonia com seus 
irmãos. 
11 
 
Durante o acontecimento, os latidos do coração dos participantes deveriam estar perfeitamente 
sintonizados com o ódio, não o amor. 
Deveria ser alcançado plenamente a gratificação da dor e a consumação, baixo a direção de Leio na 
capela emissora. 
A honra de coordenar a autorização, as instruções e as provas, elementos definitivos e culminantes 
dessa peculiar celebração, corresponderia ao próprio guardião no Vaticano. 
Por fim, se todo mundo cumpria exatamente o previsto pela regra, o príncipe consumaria por fim 
sua mais antiga vingança contra o débil, o inimigo impiedoso que ao longo dos tempos se tinha 
fingido o mais misericordioso, e a quem bastava a mais profunda escuridão para o ver tudo. 
Leio podia imaginar o resto. 
O ato do entronamiento criaria um manto perfeito, opaco e suave como o veludo, que ocultaria ao 
príncipe entre os membros da Igreja oficial na cidadela romana. 
Entronado na escuridão, o príncipe poderia fomentar aquela mesma escuridão como nunca até então. 
Amigos e inimigos se veriam afetados por um igual. 
A escuridão da vontade adquiriria tal profundidade que ofuscaria inclusive o objetivo oficial da 
existência da cidadela: a adoração perpétua do sem nome. 
Com o decurso do tempo, o macho cabra acabaria por expulsar ao borrego e tomaria posse da 
cidadela. 
O príncipe se infiltraria até apoderar de uma casa, «a casa», que não era a sua. 
-Pensa, amigo meu -disse o bispo Leio, quase louco de antecipação-. 
O inalcançável será alcançado. 
Este será o coroamento de minha carreira. 
O coroamento do século vinte! 
Leio não estava muito equivocado. 
Era de noite. 
O guardião e seus acólitos trabalhavam em silêncio para deixado todo pronto na capela receptora de 
São Pablo. 
Em frente ao altar colocaram um semicírculo de reclinatórios. 
Sobre o próprio altar, cinco candelabros com elegantes vai-as negras. 
Um pano vermelho como o sangue sobre o tabernáculo cobria um pentagrama de prata. 
À esquerda do altar tinha um trono, símbolo do príncipe reinante. 
Uns panos negros, com símbolos da história do príncipe bordados em ouro, cobriam as paredes, bem 
como seus formosos frescos e quadros onde se representavam cenas da vida de Jesus Cristo e os 
apóstolos. 
Conforme acercava-se a hora, começaram a chegar os verdadeiros servidores do príncipe dentro da 
cidadela: a falange romana. 
Entre eles se encontravam alguns dos homens mais ilustre que naquele momento pertenciam ao 
colégio, a hierarquia e a burocracia da Igreja católica romana, bem como representantes seculares da 
falange, tão destacados como os membros da hierarquia. 
Tomemos como exemplo àquele prusiano que entrava agora pela porta: uma magnífica instância da 
nova espécie laica se jamais tinha existido. 
Sem ter cumprido ainda os quarenta, era já uma personagem importante em certos assuntos críticos 
de caráter transnacional. 
Inclusive a luz das velas negras fazia brilhar o arreio de aço de seus óculos e seu incipiente calvicie, 
como para distinguir dos demais. 
Eleito como delegado internacional e representante plenipotenciario no entronamiento, o prusiano 
levou ao altar uma carteira de couro que continha as cartas de autorização e as instruções, antes de 
ocupar seu local no semicírculo. 
12 
 
Uma meia hora antes da meia-noite, os reclinatorios estavam ocupados pela geração vigente de uma 
tradição principesca, implantada, alimentada e cultivada no seio da antiga cidadela, ao longo de uns 
oitenta anos. 
Embora durante algum tempo pouco numeroso, o grupo tinha persistido ao amparo da escuridão 
comocorpo exterior e espírito alheio dentro de seu anfitrião e vítima. 
Tinha-se infiltrado nos escritórios e nas atividades da cidadela romana, e tinha dispersado seus 
sintomas pelo fluxo sanguíneo da Igreja universal, como uma infeção subcutánea. 
Sintomas como o cinismo e a indiferença, dataria e infidelidades em cargos de responsabilidade, 
despreocupación pela doutrina correta, negligencia em julgamentos morais, desidia com respeito a 
princípios sagrados e ofuscación de lembranças essenciais, bem como da linguagem e atitude que os 
caracterizava. 
Esses eram os homens reunidos no Vaticano para o entronamiento, e essa a tradição promulgada 
mediante a administração universal com quartel geral na cidadela. 
Com os missais na mão, o olhar fixo no altar e o trono e a mente e a vontade intensamente 
concentradas, esperavam em silêncio o início a meia-noite da festa de São Pedro e São Pablo, a 
quintaesencia dos dias santos em Roma. 
A capela emissora, um amplo salão no porão de uma escola parroquial, tinha sido meticulosamente 
equipada de acordo com as portarias. 
O bispo Leio o tinha dirigido tudo pessoalmente. 
Agora, seus acólitos especialmente selecionados se apressavam para ultimar os detalhes que ele 
comprovava. 
O primeiro era o altar, situado no extremo norte da capela. 
Sobre o mesmo jazia um grande crucifixo, com a cabeça para o norte. 
Ao lado, o pentagrama coberto por um pano vermelho com uma vela negra à cada custado. 
Em cima do mesmo, um lustre vermelho com seu lume ritual. 
No extremo este do altar, uma jaula, e dentro da jaula, Flinnie, um perrito de sete semanas ao que se 
tinha administrado um suave sedante para seu breve momento de utilidade ao príncipe. 
Depois do altar, umas vai-as cor azabache à espera de que o lume ritual entrasse em contato com 
seus estopins. 
No muro sul, sobre um aparador, o incensario e um recipiente com carvão e incienso. 
Em frente ao aparador, os pilares vermelho e negro dos que pendurava o escudo da serpente e o sino 
da infinidad. 
Junto ao muro este, frascos de terra, ar, fogo e água ao redor de uma segunda jaula. 
Na jaula, uma pomba, desconocedora de sua sorte como parodia não só do débil sem nome senão de 
toda a trinidad. 
Livro e facistol, dispostos junto ao muro oeste. 
O semicírculo de reclinatorios, cara ao norte, em frente ao altar. 
Junto aos reclinatorios, os emblemas primeiramente: o osario ao oeste, cerca da porta; ao este, a 
média lua crescente e a estrela de cinco pontas, com vértices de hastes de chivo erguidas. 
Na cada reclinatorio, um misal que usariam os participantes. 
Por fim Leio olhou para a própria entrada da capela. 
Vestimentas especiais para o entronamiento, idênticas às que ele e suas atareados acólitos já 
levavam postas, penduravam de um perchero junto à porta. 
No momento em que chegavam os primeiros participantes, comparou a hora de seu relógio de 
pulsera com a de um grande relógio de parede. 
Satisfeito dos preparativos, dirigiu-se a um grande ropero adjunto que servia de vestidor. 
O arcipreste e o fray médico prepararia já à vítima. 
13 
 
Faltavam mal trinta minutos para que o mensageiro da cerimônia estabelecesse contato telefônico 
com a capela receptora no Vaticano. 
chegaria «a hora». 
Não só eram diferentes os requisitos materiais de ambas capelas, senão também os de seus 
participantes. 
Os da capela de São Pablo, todos homens, vestiam túnicas e faixas segundo sua categoria 
eclesiástica ou impecables trajes negros os seculares. 
Concentrados e resolutos, com o olhar fixo no altar e no trono vazio, pareciam os piedosos clérigos 
romanos e feligreses laicos que a todas luzes aparentaban ser. 
Com as mesmas distinções de categoria que a falange romana, os participantes norte-americanos na 
capela emissora contrastavam não obstante enormemente com seus colegas no Vaticano. 
Aqui participavam homens e mulheres. 
E em local de sentar-se ou ajoelhar-se com um atuendo impecável, a sua chegada despiam-se por 
completo, para pôr-se a túnica sem costuras prescrita para o entronamiento, vermelha como o 
sangue em honra ao sacrifício, longa até os joelhos, desprovista de mangas, escotada e aberta por 
diante. 
Despiram-se e vestiram em silêncio, sem pressas nem nervosismo, com um sosiego ritual, 
plenamente concentrados. 
Devidamente ataviados, os participantes passaram junto ao osario para recolher um pequeno 
punhado de seu conteúdo, antes de ocupar seu local no semicírculo de reclinatorios em frente ao 
altar. 
Conforme diminuía o conteúdo do osario e iam-se ocupando os reclinatorios, o barulho ritual 
começou a romper o silêncio. 
Sem deixar de sacudir ruidosamente os ossos, a cada participante começou a falar consigo mesmo, 
com os demais, com o príncipe, ou com ninguém designadamente. 
Não muito estrondosamente ao princípio, mas com uma cadencia ritual perturbadora. 
Chegaram mais participantes, e apanharam seu correspondente punhado de ossos. 
O semicírculo encheu-se. 
O ronroneo deixou de ser um suave susurro cacofónico. 
A persistente algarabía de rezos, preces e chirrido de ossos gerou uma espécie de caldeamiento 
controlado. 
O ruído tornou-se iracundo, como à beira da violência, para se converter em um controlado concerto 
de caos; um barulho de ódio e repulsión que impregnava o cérebro; um preludio concentrado da 
celebração do entronamiento do príncipe deste mundo, no interior da cidadela do débil. 
Com seu elegante túnica, vermelha como o sangue, Leio se dirigiu de maneira parsimoniosa ao 
vestuário. 
Por enquanto, pareceu-lhe que tudo estava bem disposto. 
Devidamente ataviado, o arcipreste de óculos e algo calvo com quem compartilharia a direção da 
cerimônia tinha acendido uma só a vai negra para o início da procissão. 
Tinha enchido também um grande cálice dourado de vinho tinto e o tinha coberto com uma patena 
prateada. 
Sobre esta, tinha colocado uma grande hostia. 
Um terceiro homem, o fray médico, estava sentado em um banco. 
Ataviado como os outros dois, sujeitava a uma criança sobre sua regazo: sua filha Agnes. 
Leio observou com satisfação o aspecto inusualmente tranquilo e complaciente de Agnes.. 
A dizer verdade, nesta ocasião parecia lista para o acontecimento. 
Levava uma holgada túnica branca até os tornozelos. 
14 
 
E ao igual que a seu perrito no altar, se lhe tinha administrado um suave sedante para facilitar sua 
função no mistério. 
-Agnes -susurró o médico ao ouvido da criança-. 
chegou quase o momento de reunir-te com papai. 
-Não é meu papai... 
-disse a criança em um tom mal audible, quem apesar das drogas conseguiu abrir os olhos para olhar 
a seu pai-. 
Deus é meu papai... 
-BLASFEMIA! 
-exclamou Leio após que as palavras da criança transformassem sua talante de satisfação, ao igual 
que a energia elétrica se converte em raio-. 
Blasfemia! 
Cuspiu a palavra como uma bala. 
Em realidade, sua boca converteu-se em um canhão do que emergiu um bombardeio de insultos 
contra o médico. 
Doutor ou não, era um inepto! 
A criança tinha que ter estado devidamente preparada! 
Tinha disposto de tempo mais que suficiente para isso! 
Ante o ataque do bispo Leio, o médico pôs-se pálido como a cera. 
Mas não sua filha, que fez um esforço para voltar seus inesquecíveis olhos, se enfrentar à iracunda 
olhar de Leio e repetir seu desafio. 
-Deus é meu papai... 
! 
Com as mãos trêmulas pela agitação, o fray médico agarrou a cabeça de sua filha e obrigou-a a que 
lhe olhasse. 
-Carinho -disse-lhe com doçura-. 
Eu sou teu papai. 
Sempre o fui. 
E também tua mamãe, desde que ela nos abandonou. 
-Não é meu papai... 
deixaste que apanhassem a Flinnie... 
Não há que lhe fazer dano a Flinnie... 
É só um perrito... 
Osperritos são filhos de Deus... 
-Agnes, escuta-me. 
Eu sou teu papai. 
Já é hora de que... 
-Não é meu papai... 
Deus é meu papai... 
Deus é minha mamãe... 
Os papais não fazem coisas que a Deus não gosta... 
Não é... 
Consciente de que a capela receptora no Vaticano devia de estar à espera de que se estabelecesse o 
contato cerimonial telefônico, Leio moveu energicamente a cabeça para lhe ordenar ao arcipreste 
que prosseguisse. 
Como em tantas ocasiões anteriores, o procedimento de emergência era o único recurso, e o 
requisito de que a vítima fosse consciente da primeira consumação ritual, significava que devia ser 
levado a cabo imediatamente. 
15 
 
Cumprindo com sua obrigação sacerdotal, o arcipreste sentou-se junto ao fray médico e transladou a 
Agnes, debilitada pelo efeito das drogas, a seu próprio regazo. 
-Escuta-me, Agnes. 
Eu também sou teu papai. 
Acorda-te do amor especial que existe entre nós? 
Lembra-o? 
Agnes seguia obstinadamente em seus treze. 
-Não é meu papai... 
Os papais não me maltratam... 
não me fazem dano... 
não danam a Jesús... 
Ao cabo de alguns anos, a lembrança de Agnes daquela noite, já que por fim lembrou-a, não 
continha nenhum aspecto agradável, nenhum vestígio do meramente pornográfico. 
Sua lembrança daquela noite, quando chegou, formava um tudo com a lembrança do conjunto de 
sua infância. 
Um tudo com sua lembrança do prolongado avasallamiento por parte do maligno. 
Um tudo com sua lembrança, seu persistente sentido, daquele luminoso tabernáculo oculto em sua 
alma infantil, onde a luz transformava sua agonia em valor e lhe permitia seguir lutando. 
De algum modo sabia, embora ainda não o compreendia, que naquele tabernáculo interior era onde 
Agnes realmente vivia. 
Aquele centro de sua existência era um refúgio intocable onde residia a força, o amor e a confiança, 
o local onde a vítima sufridora, o verdadeiro objetivo do assalto que se perpetrava contra Agnes, 
tinha santificado para sempre a agonia da criança unida à sua. 
Foi desde o interior daquele refúgio onde Agnes ouviu todas e a cada uma das palavras 
pronunciadas no vestuário aquela noite do entronamiento. 
Desde o interior daquele refúgio viu os olhos furibundos do bispo Leio e o olhar fixo do arcipreste. 
Conhecia o preço da resistência. 
Sentiu que seu corpo abandonava o regazo de seu pai. 
Viu a luz refletida nos óculos do arcipreste. 
Viu que seu pai se acercava de novo. 
Viu a agulha em sua mão. 
Sentiu a punzada. 
Experimentou de novo o impacto da droga. 
Se percató de que alguém a levantava em braços. 
Mas seguia lutando. 
Lutava contra a blasfêmia, contra os efeitos da violação, contra o canto, contra o horror que sabia 
ficava ainda por vir. 
Desprovista pelas drogas de força para mover-se, Agnes evocou sua força de vontade como única 
arma e susurró uma vez mais as palavras de seu desafio e sua agonia: «Não é meu papai... 
Não lastimes a Jesús... 
Não me faça dano... 
» Tinha chegado a hora, o princípio do tempo propício para a ascensão do príncipe na cidadela. 
Quando soou a campainha da infinidad, os participantes na capela de Leio se puseram 
simultaneamente de pé. 
Com os missais na mão e o lúgubre acompanhamento do tintineo dos ossos, cantaram a pleno 
pulmão uma triunfante profanación do hino do apóstolo Pablo: -Maran Atha! 
Vêem, Senhor! 
Vêem, oh, príncipe! 
16 
 
Vêem! 
Vêem! 
... 
Um grupo de acólitos devidamente treinados, homens e mulheres, iniciou o percurso do vestuário ao 
altar. 
A suas costas, demacrado mas de porte distinguido inclusive com sua vestimenta vermelha, o fray 
médico levou à vítima ao altar e estendeu-a junto ao crucifixo. 
À sombra parpadeante do pentagrama velado, seu cabelo quase tocava a jaula que continha seu 
pequeno cão. 
A seguir e seguinte em categoria, piscando depois de seus óculos, chegou o arcipreste com a vela 
negra do vestuário e ocupou seu local à esquerda do altar. 
Em último local apareceu o bispo Leio com o cálice e a hostia, e agregou sua voz ao hino 
procesional: -E em pó te converterá! 
As últimas palavras do antigo cántico flutuaram sobre o altar da capela emissora. 
« E em pó te converterá! 
» O antigo cántico que envolveu o corpo lacio de Agnes ofuscó sua mente em maior grau que as 
drogas, e intensificou o frio que sabia que se apoderaria dela.. 
-E em pó te converterá! 
Amém! 
Amém! 
As antigas palavras flutuaram sobre o altar da capela de São Pablo. 
Com seus corações e vontades unidos aos dos participantes emissores nos Estados Unidos, a falange 
romana começou a recitar as letanías de suas missais, começando pelo hino da Virgem violada e 
concluindo com as invocações à coroa de espinhas. 
Na capela emissora, o bispo Leio retirou-se do pescoço o saco da vítima e colocou-o reverentemente 
entre a cabeça do crucifixo e o pé do pentagrama. 
Ato seguido, ante o ronroneo renovado dos participantes e o traqueteo dos ossos, os acólitos 
colocaram três peças de incienso sobre o carvão acendido do incensario. 
Quase imediatamente uma fumaça azul espalhou-se pela estância, e seu potente cheiro envolveu por 
um igual à vítima, os celebrantes e os participantes. 
Na mente aturdida de Agnes, a fumaça, o cheiro, as drogas, o frio e o barulho misturavam-se para 
formar uma nefasta cadencia. 
Apesar de que não se deu nenhum sinal, o experimentado mensageiro cerimonial lhe comunicou a 
seu corresponsal no Vaticano que as invocações estavam a ponto de começar. 
De repente fez-se um silêncio na capela norte-americana. 
O bispo Leio levantou solenemente o crucifixo, colocou-o investido em frente ao altar e, olhando à 
congregación, levantou a mão esquerda para fazer o sinal investida da bênção: o reverso da mão 
cara aos participantes, o polegar sujeitando os dedos coração e anular colados à palma da mão e o 
índice e o meñique levantados para simbolizar os cornos do macho cabra. 
-Invoquemos! 
Em um ambiente de fogo e escuridão, o principal celebrante na cada capela entoou uma série de 
invocações ao príncipe. 
Os participantes em ambas capelas responderam a coro. 
Depois, e só na capela emissora nos Estados Unidos, um ato apropriado seguiu à cada resposta: uma 
interpretação ritual do espírito e do significado das palavras. 
A perfeita coordenação de palavras e vontades entre ambas capelas era responsabilidade dos 
mensageiros cerimoniais, que se mantinham em contato telefônico. 
17 
 
Daquela perfeita coordenação se teceria a substância adequada de intenção humana, que acolheria o 
drama do entronamiento do príncipe. 
-Creio em um poder -declarou com convicção o bispo Leio. 
-E seu nome é Cosmos -responderam os participantes em ambas capelas, fiéis lhe ao texto investido 
de seus missais latinos. 
A ação apropriada teve local a seguir na capela emissora. 
Dois acólitos incensaron o altar. 
Outros dois recolheram os frascos de terra, ar, fogo e água, colocaram-nos sobre o altar, inclinaram 
a cabeça em frente ao bispo e regressaram a seus respectivos locais. 
-Creio no único filho do amanhecer cósmico -discantó Leio. 
-E seu nome é Lúcifer. 
Segunda resposta da antiguidade. 
Os acólitos de Leio acenderam as velas do pentagrama e o incensaron. 
-Creio no misterioso. 
Terceira invocação. 
-E ele é a serpente venenosa na maçã da vida. 
Terceira resposta. 
Com um constante traqueteo de ossos, os assistentes acercaram-se ao pilar vermelho e giraram o 
escudo da serpente, em cujo reverso mostrava-se a árvore da sabedoria. 
O guardião em Roma e o bispo nos Estados Unidos discantaron a quarta invocação: -Creio no antigo 
leviatán. 
Ao unísono, através de um oceano e um continente, ouviu-se a quarta resposta: -E seu nome é ódio. 
Se incensarono pilar vermelho e a árvore da sabedoria. 
Quinta invocação: -Creio no antigo raposo. 
-E seu nome é «mentira» -foi a quinta resposta. 
Se incensó o pilar negro, como símbolo de todo o desolado e abominable. 
À luz parpadeante das velas e envolvido em uma nuvem de fumaça azulado, Leio dirigiu o olhar à 
jaula de Flinnie, situada junto a Agnes sobre o altar. 
O perrito estava agora quase atento, e tentava se levantar em resposta aos cánticos, o tintineo e o 
traqueteo. 
Leio leu a sexta invocação: -Creio no antigo cangrejo. 
-E seu nome vive na dor -foi a sexta resposta a coro. 
Clique, clac, faziam os ossos. 
Com todos os olhos fincados nele, um acólito subiu ao altar, introduziu a mão na jaula onde o 
perrito movia alegremente a fila, imobilizou ao inofensivo animal com uma mão, executou uma 
impecável vivisección com a outra e extraiu em primeiro lugar os órgãos reprodutivos do ululante 
animal. 
Com a experiência que lhe caracterizava, o ejecutante prolongou tanto a agonia do perrito como o 
júbilo frenético dos participantes, no rito da imposição de dor. 
Mas não todos os sons se afogaram no barulho da temível celebração. 
Embora mal audible, persistia a luta de Agnes pela sobrevivência. 
Seu grito silencioso ante a agonia de sua perrito. 
Susurros mascullados. 
Súplicas e sofrimento. 
« Deus é meu papai!... 
Santo Deus!... 
Meu perrito!... 
Não danem a Flinnie!... 
18 
 
Deus é meu papai!... 
Não danem a Jesus Cristo... 
Santo Deus... 
» Pendente de todos os detalhes, o bispo Leio baixou o olhar para contemplar à vítima. 
Inclusive em seu estado semiconsciente, ainda lutava. 
Ainda protestava. 
Ainda sentia a dor. 
Ainda rezava com uma resistência férrea. 
Leio estava encantado. 
Era uma vítima perfeita. 
Ideal para o príncipe. 
Sem piedade nem pausa, Leio e o guardião recitaron com suas respectivas congregaciones o resto 
das catorze invocações, seguidas a cada uma delas da resposta correspondente, que convertiam a 
cerimônia em um alborotado teatro de perversão. 
Por fim, o bispo Leio deu por concluída a primeira parte da cerimônia com a grande invocação: -
Acho que o príncipe deste mundo será entronado esta noite na antiga cidadela, e desde ali criará uma 
nova comunidade. 
-E seu nome será a Igreja universal do homem. 
O júbilo da resposta foi impressionante, inclusive naquele ambiente nefasto. 
Tinha chegado o momento de que Leio levantasse a Agnes do altar, para tomar em seus braços, e de 
que o arcipreste levantasse a sua vez o cálice com sua mão direita e a hostia com a esquerda. 
Tinha chegado o momento de que Leio recitara as perguntas rituais do ofertorio, à espera de que os 
congregantes lessem as respostas em suas missais. 
-Qual era o nome da vítima uma vez nascida? 
-Agnes! 
-Qual era o nome da vítima duas vezes nascida? 
-Agnes Susannah! 
-Qual era o nome da vítima três vezes nascida? 
-Rahab Jericho! 
Leio depositou a Agnes de novo sobre o altar e lhe pinchó o índice da mão esquerda, até que 
começou a manar sangue da pequena ferida. 
Com um frio que lhe calava até os ossos e uma crescente sensação de náusea, Agnes se percató de 
que a levantavam do altar, mas já não era capaz de focar o olhar. 
Estremeceu-se com a dor do pinchazo em sua mão esquerda. 
Captava palavras isoladas portadoras de um medo que não podia expressar. 
«Vítima... 
Agnes... 
três vezes nascida... 
Rahab Jericho... 
» Leio molhou o índice de sua mão esquerda com o sangue de Agnes, levantou-o para mostrar aos 
participantes e começou o ofertorio: -Este sangue, o sangue de nossa vítima, foi derramada. 
Para completar nosso serviço ao príncipe. 
Para que reine soberano na casa de Jacob. 
Na nova terra do eleito. 
Era agora o turno do arcipreste, que com o cálice e a hostia ainda levantados recitó a resposta ritual 
do ofertorio: -Levo-te comigo, vítima purísima. 
Levo-te ao norte profano. 
Levo-te à cimeira do príncipe. 
19 
 
O arcipreste colocou a hostia sobre o peito de Agnes e aguentou o cálice sobre seu pelvis. 
Com o arcipreste a um lado e o acólito médico ao outro em frente ao altar, o bispo Leio olhou 
fugazmente ao mensageiro cerimonial. 
Convencido de que a sincronização com o guardião de expressão pétrea e sua falange romana era 
perfeita, começou a entoar a prece de súplica com os outros dois celebrantes: -Te suplicamos, nosso 
senhor Lúcifer, príncipe das trevas... 
receptor de todas nossas vítimas... 
aceite nossa oferenda... 
no seio de múltiplos pecados. 
Ato seguido, ao unísono decorrente de uma longa experiência, o bispo e o arcipreste pronunciaram 
as palavras mais sagradas da missa latina quando se levantava a hostia: -Hoc est enim corpus meum. 
-E ao levantar o cálice, agregaram-: Hic est enim calix sanguinis mei, novi et aetemi testamenti, 
mysterium fidei qui pró vobis et pró multis effundetur in remissionem peccatorum. 
Haec quotiescumque feceritis in mei memoriam facietis. 
Imediatamente responderam os participantes com uma renovação do barulho ritual, um mar de 
confusão, uma algarabía de palavras e traqueteo de ossos, acompanhados de atos lascivos a esmo, 
enquanto o bispo consumia um diminuto fragmento da hostia e tomava um pequeno sorbo do cálice. 
Quando Leio lho indicou, com o sinal da cruz investida, o barulho ritual se converteu em um caos 
ligeiramente mais ordenado, conforme os participantes se agrupavam obedientemente para formar 
uma espécie de fila. 
Ao acercar ao altar para comulgar -engolir-se um trocito de hostia e tomar um sorbo do cálice-, 
tiveram também a oportunidade de admirar a Agnes. 
Depois, ansiosos por não se perder nenhum detalhe da primeira violação ritual da vítima, 
regressaram imediatamente a suas reclinatorios e observaram anhelantes ao bispo, que dirigia à 
criança sua plena concentração. 
Agnes tentou por todos os meios livrar do peso do bispo que lhe caiu em cima. 
Inclusive então, ladeó a cabeça como se buscasse ajuda naquele local carente de misericórdia. 
Mas não achou o menor vestígio de compaixão. 
Aí estava o arcipreste, à espera de participar no mais voraz dos sacrilegios. 
Aí estava seu pai, também à espera. 
Os reflexos vermelhos das velas negras em seus olhos. 
O próprio fogo em seu olhar. 
Dentro daqueles olhos. 
Um fogo que seguiria ardendo muito após que se apagassem as velas. 
Que sempre arderia... 
A agonia que se apoderou de Agnes aquela noite em corpo e alma foi tão intensa que pôde ter 
abarcado o mundo inteiro. 
Mas nem um só instante esteve só em sua agonia. 
Disso esteve sempre segura. 
Conforme aqueles servidores de Lúcifer violavam-na sobre aquele altar sacrílego e maldito, 
violavam também ao Senhor, que era seu pai e sua mãe. 
Bem como o Senhor tinha transformado sua debilidade em valentia, tinha santificado também sua 
profanación com os abusos de sua própria flagelación e seu prolongado sofrimento com sua paixão. 
Àquele Deus, aquele Senhor que era seu único pai, sua única mãe e seu único defensor, Agnes 
dirigia seus gritos de terror, horror e dor. 
E foi nele em quem se refugiou quando perdeu o conhecimento. 
Leio situou-se de novo em frente ao altar, com o rosto empapado de suor, alentado por aquele 
momento supremo de triunfo pessoal. 
20 
 
Olhou ao mensageiro cerimonial e moveu a cabeça. 
Um momento de espera. 
O mensageiro assentiu. 
Em Roma estavam prontos. 
-Pelo poder investido em mim como celebrante paralelo do sacrifício e a consecução paralela do 
entronamiento, induzo a todos os aqui presentes e aos participantes em Roma a te invocar a ti, 
príncipe de todas as criaturas. 
Em nome de todos os reunidos nesta capela e no de nossos irmãos na capela romana, te invoco a ti, 
oh, príncipe! 
A direção dasegunda prece de investidura era prerrogativa do arcipreste. 
Como culminação do que tinha almejado, seu recital latino foi um modelo de emoção controlada. 
-Vêem, toma posse da casa do inimigo. 
Penetra em um local que foi preparado para ti. 
Desce entre teus fiéis lhe servidores. 
Que prepararam tua cama. 
Que levantaram teu altar e abençoado com a infamia. 
Era justo e apropriado que o bispo Leio oferecesse a última prece de investidura na capela emissora. 
-Com instruções sacrosantas da cume da montanha, em nome de todos os irmãos, agora te adoro, 
príncipe das trevas, com a estola da profanidad, coloco agora em tuas mãos o triplo coroa de Pedro, 
segundo a vontade diamantina de Lúcifer, para que reine aqui, para que tenha uma só Igreja, uma só 
Igreja de mar a mar, uma vasta e poderosa congregación, de homem e mulher, de animal e planta, 
para que de novo nosso cosmos seja livre e desprovisto de ataduras. 
Após a última palavra e do sinal de Leio, os feligreses sentaram-se. 
O rito foi transferido à capela receptora em Roma. 
O entronamiento do príncipe na cidadela do débil já quase tinha concluído. 
Só faltavam a autorização, a carta de instruções e as provas. 
O guardião levantou o olhar do altar e dirigiu seus olhos desprovistos de alegria ao delegado 
internacional prusiano, portador da carteira de couro que continha as cartas de autorização e as 
instruções. 
Todos lhe observavam quando abandonou seu local para dirigir ao altar com a carteira na mão, 
sacou os documentos que continha e leu a carta de autorização com um forte acento: -Por ordem da 
assembleia e dos pais sacrosantos, instituo, autorizo e reconheço esta capela para que de hoje em 
adiante seja conhecida como o sanctasanctórum, tomado, possuído e apropriado por aquele a quem 
temos entronado como dono e senhor de nosso destino humano. 
»Aquele que, mediante este sanctasanctórum, seja designado e eleito como último sucessor ao trono 
pontifício, por seu próprio juramento se comprometerá, tanto ele como todos baixo seu comando, a 
se converter em instrumento sumiso e colaborador dos construtores da casa do homem na Terra e 
em todo o cosmos humano. 
Transformará a antiga inimizade em amizade, tolerância e assimilação aplicadas aos modelos de 
nascimento, educação, trabalho, finanças, comércio, indústria, aquisição de conhecimentos, cultura, 
viver e dar vida, morrer e administrar a morte. 
Esse será o modelo da nova era do homem. 
-Assim seja! 
-respondeu ritualmente a falange romana, dirigida pelo guardião. 
-Assim seja! 
-repetiu a congregación do bispo Leio, ao sinal do mensageiro cerimonial. 
A seguinte etapa do rito, a carta de instruções, era em realidade um juramento solene de traição, em 
virtude do qual os clérigos presentes na capela de São Pablo, tanto o cardeal e os bispos como os 
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canônicos, profanaban intencionada e deliberadamente a ordem sagrada mediante o qual se lhes 
tinha concedido a graça e o poder de santificar aos demais. 
O delegado internacional levantou a mão, e fez o signo da cruz investida, antes de ler o juramento. 
-Após ouvir esta autorização, juram agora solenemente todos e a cada um de vocês acatada 
voluntária, inequívoca e imediatamente, sem reservas nem reparos? 
-Juramo-lo! 
-Juram agora solenemente todos e a cada um de vocês que no desempenho de vossas funções 
tentarão satisfazer os objetivos da Igreja universal do homem? 
-Juramo-lo solenemente. 
-Estão todos e a cada um de vocês dispostos a derramar vosso próprio sangue, pela glória de 
Lúcifer, se traem este juramento? 
-Dispostos e preparados. 
-Em virtude deste juramento, outorgam todos e a cada um de vocês vosso consentimento para a 
transferência da propriedade e posse de vossas almas, do antigo inimigo, o débil supremo, às mãos 
todopoderosas de nosso senhor Lúcifer? 
-Consentimos. 
Tinha chegado o momento do último rito: as provas. 
Após colocar ambos documentos sobre o altar, o delegado lhe tendeu a mão esquerda ao guardião. 
O romano de expressão pétrea pinchó a gema do polegar do delegado com uma agulha de ouro e 
apertou o polegar sangrento junto a seu nome na carta de autorização.. 
Os demais participantes do Vaticano o emularon rapidamente. 
Quando os membros da falange cumpriu com aquele último requisito, soou um pequeno sino de 
prata na capela de São Pablo. 
Na capela norte-americana, soou três vezes o longínquo tañido musical do sino da infinidad que 
assentia. 
Um detalhe particularmente bonito, pensou Leio, quando ambas congregaciones iniciavam o cántico 
que concluía a cerimônia. 
-Ding! 
Dong! 
Dang! 
Assim a antiga porta prevalecerá! 
Assim a rocha e a cruz cairão! 
Eternamente! 
Ding! 
Dong! 
Dang! 
Os clérigos formaram por ordem hierárquica. 
Os acólitos em primeiro lugar. 
Logo o fray médico, com Agnes em braços, lacia e temiblemente pálida. 
Seguidos do arcipreste e do bispo Leio, que não deixaram de cantar enquanto se retiravam à 
sacristía. 
Os membros da falange romana saíram ao pátio de São Dámaso, na madrugada do dia de São Pedro 
e São Pablo. 
Alguns dos cardeais e uns poucos bispos responderam distraidamente aos respetuosos saludos dos 
guardas de segurança com uma bênção quando subiam a suas limusines. 
Aos poucos momentos, nas paredes da capela de São Pablo luziam como sempre os quadros e 
frescos de Jesus Cristo e do apóstolo Pablo, cujo nomeie tinha tomado o último papa. 
 
22 
 
1978 
 
Para o papa que tinha tomado o nome do apóstolo, o verão de 1978 seria o último neste mundo. 
Tão esgotado por seus quinze anos de turbulento reinado como pela dor e a degradação física de 
uma prolongada doença, o 6 de agosto seu Deus lho levou do trono supremo da Igreja católica e 
romana. 
Sede vaga. 
Quando o trono de São Pedro está vazio, os assuntos da Igreja universal se deixam em mãos de um 
cardeal camarlengo. 
Neste caso, ao desgraçado secretário de Estado do Vaticano, seu eminencia o cardeal Jean Claude de 
Vincennes, que segundo as más línguas do Vaticano já praticamente dirigia a Igreja inclusive 
quando ainda vivia o papa. 
O cardeal De Vincennes era um homem inusualmente alto, esbelto e robusto, com uma dose 
sobrenatural de perspicacia gala. 
Seu humor, que oscilava entre acerbo e paternalista, regulava o ambiente tanto para superiores como 
para subordinados. 
As severas linhas de seu rosto eram a marca incuestionable de sua suprema autoridade na burocracia 
vaticana. 
Comprensiblemente, as responsabilidades do camarlengo são abundantes durante o período de sede 
vaga e dispõe de pouco tempo para desempenhadas. 
Uma delas consiste em ordenar, selecionar e classificar os documentos pessoais do difunto papa, 
com o propósito oficial de descobrir assuntos inacabados. 
No entanto, um dos resultados extraoficiales de dita busca consiste em averiguar as ideias mais 
íntimas do último papa, com respeito a assuntos delicados da Igreja. 
Normalmente, seu eminencia examinaria os documentos do papa antes da reunião do conclave para 
a eleição de seu sucessor. 
Mas a preparação do mesmo, que devia ser celebrado em agosto, tinha absorvido toda sua energia e 
atenção. 
Do resultado de dito conclave, e mais concretamente da classe de homem que emergisse como novo 
papa do mesmo, dependia o futuro de complexos planos elaborados ao longo dos últimos vinte anos 
pelo cardeal De Vincennes e seus colegas de ideias afins, tanto no Vaticano como ao redor do 
mundo. 
Promulgavam uma nova ideia do papado e da Igreja católica. 
Para eles, o papa e a Igreja deixariam de se manter apartados e assim aspirar a que a humanidade se 
acercasse e ingressasse no rebanho do catolicismo. 
Tinha chegado o momento de que o papa e a Igreja colaborassem plenamentecomo instituição, com 
os esforços da humanidade para construir um mundo melhor para todos; o momento de que o papa 
abandonasse seu dogmatismo autoritário, bem como sua insistência na posse absoluta e exclusiva da 
verdade definitiva. 
Evidentemente, ditos planos não se tinham elaborado no vazio isolado do política interior do 
Vaticano. 
Mas também não tinha-os divulgado o cardeal indiscriminadamente. 
Tinha-se formado um pacto entre os servidores públicos vaticanos de ideias afins e seus promotores 
seculares, em virtude do qual se tinham comprometido todos a colaborar por fim na transformação 
desejável e fundamental da Igreja e do papado. 
Agora, com a morte do papa, convieram que aquele conclave se celebraria no momento oportuno 
para a eleição de um sucessor complaciente. 
23 
 
Com a organização em mãos do cardeal De Vincennes, ninguém duvidava de que o vencedor do 
conclave em agosto de 1978, o novo papa, seria o homem adequado. 
Dada a importância de dita responsabilidade, não era surpreendente que sua eminencia se tivesse 
despreocupado dos demais assuntos, incluídos os documentos pessoais do papa anterior. 
Um grosso sobre com o selo do papa permanecia fechado sobre o escritorio do cardeal. 
Mas o cardeal tinha cometido um grave erro. 
Encerrados com chave, como é habitual nos conclaves, os cardeais eleitores tinham elegido a um 
homem inadequado, um homem que não simpatizaba em absoluto com os planos elaborados pelo 
camarlengo e seus colaboradores. 
Poucos no Vaticano esqueceriam no dia em que se tinha elegido ao novo papa. 
De Vincennes abandonou imediatamente o conclave no momento em que se abriram suas robustas 
portas. 
Sem prestar atenção à bênção acostumada, dirigiu-se furioso a seus aposentos. 
A gravidade do fracasso de dito conclave pôs-se de relevo durante as primeiras semanas do novo 
reinado, na reserva oficial do cardeal De Vincennes.. 
Para ele foram semanas de autêntica frustração. 
Semanas de combate constante com o novo papa e de apasionadas discussões com seus novos 
colegas. 
Dada a sensação de perigo caraterística daqueles dias, o exame dos documentos do papa anterior 
tinha ficado quase esquecido. 
O cardeal não se atrevia a pronosticar a conduta do novo ocupante do trono de São Pedro. 
Seu eminencia tinha perdido o controle. 
Estouraram o medo e a incerteza, quando aconteceu o totalmente inesperado. 
Aos trinta e três dias de sua eleição, faleceu o novo papa, e tanto em Roma como no estrangeiro 
circularam feios rumores. 
Quando os documentos do recém falecido papa se reuniram em um segundo sobre selado, o cardeal 
não teve mais remédio que o colocar junto ao anterior, sobre seu escritorio. 
Na organização do segundo conclave que se celebraria em outubro, encaminhou todos seus esforços 
a corrigir os erros cometidos em agosto. 
A seu eminencia tinha-se-lhe concedido uma prorrogação. 
Não lhe cabia a menor dúvida de que seu destino estava agora em suas mãos. 
Nesta ocasião, deveria ser assegurado de que se elegesse a um papa devidamente complaciente. 
No entanto, o impensable acossava-lhe. 
Apesar de seus descomunales esforços, o conclave de outubro foi tão desastroso para ele como o de 
agosto. 
Obstinadamente, os eleitores optaram uma vez mais por um homem que não se caracterizava em 
absoluto por sua complacência. 
De tê-lo permitido as circunstâncias, sua eminencia se teria dedicado a desentrañar o mistério do que 
tinha fracassado em ambas eleições. 
Mas tempo era algo do que não dispunha. 
Com o terceiro papa no trono de São Pedro em decorrência de três meses, o exame dos documentos 
de sobre-os selados adquiriu sua própria urgência. 
Apesar de sentir-se acossado, seu eminencia não estava disposto a permitir que ditos documentos se 
lhe escapassem das mãos sem os inspecionar meticulosamente. 
A seleção efetuou-se em um dia de outubro, sobre uma mesa ovalada do espacioso despacho do 
cardeal De Vincennes, secretário de Estado do Vaticano, situado a poucos metros do estudo do papa 
no terceiro andar do palácio apostólico. 
24 
 
Seus palaciegos janelas panorâmicas que contemplavam permanentemente a praça de São Pedro e o 
largo mundo para além da mesma, como olhos sem piscar, não eram mais que um dos muitos 
distintivos externos do poder universal do cardeal. 
Como o exigia a tradição, o cardeal tinha chamado a dois homens para que atuassem como 
testemunhas e assistentes. 
O primeiro, o arcebispo Silvio Aureatini, um homem relativamente jovem de verdadeiro talento e 
com uma enorme ambição, era um italiano do norte, observador e ingenioso, que contemplava o 
mundo desde um rosto que parecia culminar na ponta de sua protuberante nariz, como um lápis no 
extremo do grafite. 
O segundo, o pai Aldo Carnesecca, era um simples e insignificante cura que tinha vivido durante o 
reinado de quatro papas e assistido em duas ocasiões à seleção de documentos de um papa difunto. 
Seus superiores consideravam ao pai Carnesecca um «homem de confiança». 
Delgado, canoso, discreto e com uma idade difícil de determinar, o pai Carnesecca era exatamente o 
que indicavam sua expressão facial, sua singela sotana negra e sua atitude impersonal: um 
subordinado profissional. 
Alguns homens como Aldo Carnesecca chegavam ao Vaticano repletos de ambições.. 
Mas sem entranhas para ciúmes e ódios partisanos, demasiado conscientes de sua própria 
mortalidade para pisar cadáveres em sua ascensão pela escala hierárquica e excessivamente 
agradecidos para morder a mão de quem desde o primeiro momento tinha-os alimentado, 
mantinham-se fiéis lhe a sua ambição básica e perene de ser romanos. 
Em local de comprometer seus princípios por uma parte, ou cruzar a ombreira da desilusión e a 
amargura por outra, os «carneseccas» do Vaticano aproveitavam plenamente sua humilde categoria. 
Permaneciam em seus cargos ao longo de sucessivas administrações pontifícias. 
Sem alimentar nenhum interesse privado nem exercer influência pessoal alguma, adquiriam um 
conhecimento detalhado de fatos significativos, amizades, incidentes e decisões. 
Convertiam-se em experientes da ascensão e a queda dos poderosos. 
Adquiriam um instinto especial para diferenciar a madeira das árvores. 
Portanto, não é uma assombrosa ironia que o homem mais apto para a seleção dos documentos 
papales naquele dia de outubro não fosse o cardeal De Vincennes nem o arcebispo Aureatini, senão 
o pai Carnesecca. 
Ao princípio, a seleção progrediu com toda normalidade. 
Após quinze anos de pontificado, era de esperar que o primeiro sobre com os documentos do velho 
papa fosse mais grosso que o segundo. 
No entanto, a maioria dos documentos eram cópias de comunicações entre o sumo pontífice e seu 
eminencia, com os que o cardeal estava já familiarizado. 
De Vincennes não se reservou o que pensava enquanto entregava página depois de página a seus 
dois colegas, senão que fazia comentários sobre os homens cujos nomes apareciam inevitavelmente 
nas mesmas: o arcebispo suíço que achava poder intimidar ao Vaticano, o bispo brasileiro que se 
negava a aceitar as mudanças na cerimônia da missa, aqueles cardeais do Vaticano cujo poder ele 
tinha destruído, os teólogos tradicionalistas europeus, aos que ele tinha sumido na escuridão. 
Por fim ficavam só cinco documentos do velho papa para concluir a inspeção, antes de concentrar 
no segundo sobre. 
A cada um deles estava selado e lacrado em seu próprio sobre, e todos continham a inscrição 
«Personalissimo e Confidenzialissimo». 
Quatro daqueles sobre, dirigidos a parentes de sangue do velho papa, não tinham nenhum interesse 
especial, a exceção de que ao cardeal lhe incomodava não poder ler seu conteúdo. 
No quinto sobre tinha uma inscrição adicional: «Para nosso sucessorno trono de São Pedro. 
25 
 
» Aquelas palavras, inconfundível mente de punho e letra do velho papa, colocavam o conteúdo 
daquele sobre na categoria de algo destinado em exclusiva ao recém eleito jovem papa eslavo. 
A data da inscrição papal, 3 de julho de 1975, estava gravada na mente do cardeal como uma época 
particularmente volátil, em seus sempre difíceis relações com sua santidade. 
No entanto, o que de repente deixou a seu eminencia estupefato foi o fato, inimaginable embora 
evidente, de que o selo original do sumo pontífice tinha sido violado. 
Incrivelmente, o sobre tinha sido cortado pela parte superior e aberto. 
Era evidente, portanto, que alguém tinha lido seu conteúdo. 
Também era evidente a grossa fita com que se tinha fechado de novo o sobre, bem como o selo 
pontifício e a rubrica de seu sucessor, que de forma tão súbita tinha falecido e cujos documentos não 
tinham sido ainda examinados. 
Mas tinha algo mais. 
Uma segunda inscrição com a letra menos familiar do segundo papa: «Concerniente ao estado da 
Santa Mãe Igreja, após o 29 de junho de 1963.. 
» Durante um instante de laxitud, o cardeal De Vincennes esqueceu a presença de seus colegas junto 
à mesa ovalada. 
De repente todo seu mundo se resumiu às diminutas dimensões do sobre que tinha na mão. 
Ante o horror e a confusão que paralisaram sua mente ao ver aquela data em um sobre selado pelo 
papa, demorou uns momentos em assimilar a data da inscrição papal: 28 de setiembre de 1978. 
Em um dia antes da morte do segundo papa. 
Perplejo, o cardeal apalpou o sobre como se seu tacto pudesse lhe revelar seu conteúdo, ou lhe 
esclarecer em um susurro como tinha abandonado seu escritorio e tinha depois regressado. 
Fazendo caso omiso do pai Carnesecca, para o qual não era preciso se esforçar, lhe passou o sobre a 
Aureatini. 
Quando o arcebispo levantou de novo seu puntiagudo rosto, em seus olhos se refletia o mesmo 
horror e confusão que nos do cardeal. 
Parecia que aqueles dois homens não se olhassem o um ao outro, senão a uma lembrança comum 
que tinham a segurança de que era secreto. 
A lembrança do momento da abertura vitoriosa. 
A lembrança da capela de São Pablo. 
O momento da reunião com tantos outros membros da falange, para cantar antigas invocações. 
A lembrança do delegado prusiano que lia a carta de instruções, de pinchazos no polegar com uma 
agulha de ouro, de impressões de sangue na carta de autorização.. 
-Mas eminencia... 
-disse Aureatini, que foi o primeiro em encontrar sua voz, mas o segundo em se recuperar do susto-. 
Como diabos pôde...? 
-Nem sequer o diabo sabe-o -respondeu o cardeal, que graças a sua enorme força de vontade 
começava a recuperar certa compostura mental. 
Levantou com decisão o sobre e arrojou-o à mesa. 
Não se importava em absoluto as ideias de seus colegas. 
Ante tantas incógnitas, precisava achar resposta às perguntas que atormentavam sua mente. 
Como tinha conseguido o papa de trinta e três dias que chegassem a suas mãos os documentos de 
seu predecessor? 
Graças à traição de algum dos próprios subordinados de seu eminencia? 
A ideia obrigou-lhe a lançar um olhar fugaz ao pai Carnesecca. 
Em sua mente, aquele subordinado profissional de sotana negra representava a todos os baixos 
servidores públicos da burocracia vaticana. 
26 
 
Era evidente que o papa, tecnicamente, tinha direito a todos os documentos do secretariado, mas a 
De Vincennes não lhe tinha manifestado curiosidade alguma pelos mesmos. 
Além disso, que era exatamente o que o segundo papa tinha visto? 
Tinha obtido o arquivo completo do papa anterior e tinha-lho lido tudo? 
Ou só aquele sobre com a data fundamental do 29 de junho de 1963, escrita agora de seu punho e 
letra? 
Em cujo caso, como tinha voltado a se reunir dito sobre com os documentos do velho papa? 
E em qualquer dos casos, quem o tinha deixado tudo de novo, como se não se tivesse movido do 
escritorio do cardeal? 
Quando podia alguém ter feito tal coisa sem chamar a atenção? 
De Vincennes concentrou-se de novo na segunda data, 28 de setiembre, escrita de punho e letra do 
segundo papa. 
De repente levantou-se de sua cadeira, acercou-se decididamente a sua escritorio, levantou sua 
agenda e a hojeó em busca de dita data. 
Efetivamente, pela manhã tinha mantido sua audiência habitual com o Santo Papa, mas suas notas 
não lhe revelaram nada significativo. 
Pela tarde tinha celebrado uma reunião com o cardeal supervisor do Banco Vaticano, sem que 
também não emergisse nada de interesse. 
No entanto, outra nota chamou-lhe a atenção. 
Tinha assistido a um almoço na embaixada cubana, em honra a seu amigo e colega que abandonava 
o cargo de embaixador. 
Após o almoço, tinham mantido uma conversa privada. 
O cardeal premeu o botão de seu intercomunicador e pediu-lhe a seu secretário que comprovasse 
quem tinha estado de serviço naquele dia na recepção da secretaria. 
Demorou uns instantes em receber a resposta, e quando esta chegou, dirigiu uma lúgubre olhar à 
mesa ovalada. 
Naquele momento, o pai Aldo Carnesecca converteu-se para seu eminencia em bem mais que um 
simples símbolo dos subordinados do Vaticano. 
Durante o tempo que demorou em pendurar o telefone e regressar à mesa, certa frialdade penetrou 
na mente do cardeal. 
Frialdade a respeito de seu passado, e de seu futuro. 
Conseguiu inclusive relaxar ligeiramente seu volumoso corpo, enquanto encaixava as peças do 
rompecabezas: os dois sobre pontificios de seu escritorio, à espera de ser examinados; sua longa 
ausência de seu despacho o 28 de setiembre; Carnesecca de serviço só, durante a hora da sesta. 
De Vincennes compreendeu-o tudo. 
Tinha sido vítima de uma traição, a insidia disfarçada de inocência tinha superado sua astúcia. 
Seu grande aposta pessoal tinha fracassado. 
O melhor que podia fazer agora, era se assegurar de que o sobre com dois selos pontificios não 
chegasse a mãos do papa eslavo. 
-Terminemos nosso trabalho! 
Quando o cardeal olhou fugazmente a Aureatini, ainda pálido como a cera, e ao imperturbable 
Carnesecca, tinha a mente clara e estava muito concentrado. 
No tom que utilizava habitualmente com seus subordinados, enumerou uma série de decisões que 
concluíram a inspeção dos documentos. 
Carnesecca se ocuparia de fazer chegar a seu destino os quatro sobres dirigidos a parentes do papa. 
Aureatini entregaria o resto dos documentos ao arquivo do Vaticano, que se asseguraria de que se 
cobrissem de pó em algum recanto insólito. 
O cardeal se ocuparia em pessoa do sobre selado por duplicado. 
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Então seu eminencia começou a examinar com rapidez os escassos documentos que tinha deixado o 
segundo papa após seu breve reinado. 
Convencido de que o documento mais significativo era o que já tinha diante, hojeó fugazmente os 
demais. 
Em menos de um quarto de hora, tinha-lhos entregado a Aureatini para que os levasse ao arquivo. 
De Vincennes ficou só junto a um das janelas panorâmicas de seu despacho, até ver ao pai 
Carnesecca que saía do edifício ao pátio de São Dámaso. 
Seguiu com o olhar ao delgado cure quando cruzava a praça de São Pedro para a residência do Santo 
Papa, onde passava a maior parte de seu tempo trabalhista. 
Durante uns bons dez minutos, contemplou o passo sossegado, embora decidido e seguro, do pai 
Camesecca. 
Se alguém merecia chegar prematuramente à fossa, decidiu, era Aldo Carnesecca. 
E não seria necessário tomar nota em sua agenda para o lembrar. 
Por fim, o cardeal regressou a seu escritorio. 
Ainda devia ser ocupado do infame sobre selado por duplicado. 
Não era inaudito na história pontifícia que, antes de ter finalizado o escrutinio dos documentos de 
um papa difunto, alguém com acesso aos mesmos examinasse

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