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1 A FILOSOFIA DA HISTÓRIA NUMA PERSPECTIVA KANTIANA Rafael Martins1 “A revolução do espírito científico alimentou o motor das transformações do método histórico” (Bloch, Apologia da História). A questão que norteia este ensaio se localiza na intersecção entre a Filosofia e a História. Neste sentido buscamos estudar de que forma a teoria da história pode beneficiar-se dos conceitos filosóficos de investigação antropológica do século XVIII. Inserido na consciência do Iluminismo2 setecentista, Immanuel Kant abordou a Filosofia da História buscando compreender os limites racionais do comportamento humano e deste modo atingiu a discussão sobre o caráter formador da identidade cultural, o sentido da História e do processo civilizatório dos povos. Com vista nestes pontos, pretendemos avaliar a contribuição da obra kantiana para o desenvolvimento da Filosofia da História. Partindo-se dos textos de Kant sobre filosofia da história trabalhamos a possibilidade de análise de uma concepção coerente de antropologia tanto como disciplina acadêmica, quanto elemento do sistema filosófico kantiano incluída na sua ética3.Desta forma a pergunta que nos move é: será possível realizar uma avaliação das condições empíricas do princípio racional e da natureza humana nos textos de filosofia da história e de antropologia de Kant? O conhecimento histórico pode buscar nas teorias da antropologia e da filosofia conceitos e reflexões que são importantes instrumentos para uma investigação apurada dos documentos históricos4. A interpretação da filosofia kantiana considerando também os dados empíricos fortemente negligenciados torna possível “lermos” a História com maior discernimento crítico dos fatos, como também aprofundarmos na compreensão da relação entre as exigências da vida social, e as inclinações e necessidades individuais. A metodologia que constrói o estudo de História é marcada por uma interação disciplinar, pois sua narrativa absorve conceitos e práticas de outros campos da pesquisa científica como a geografia, semiótica, psicanálise, sociologia e antropologia, definindo assim novos parâmetros para o posicionamento teórico do historiador. Dentro deste contexto surgem novas linhas de investigação relativa ao conhecimento histórico. Por esta via, a filosofia se une à historiografia como importante ferramenta para a compreensão das realidades sociais que conformam o cotidiano dos indivíduos. 1 Graduando em História (ICHS-UFOP) 2 É importante ressaltar que com o Iluminismo a cultura européia tornou-se, pela primeira vez, consciente da sua especificidade histórica”. Este ponto foi bem trabalhado por Cassirer desde 1932. Cf. The Philosophy of Enlightenment, Boston: Beacon Press, 1955. 3 Objetivamos aqui a expressão difundida por R. Louden, Kant’s Impure Ethics. (N.York, Oxford: Oxford University Press, 2000) que apesar de não ter sido o primeiro a tratar deste tema, foi o primeiro a tipificar esta parte da ética kantiana como “impura”. Antes dele, um ponto de vista semelhante foi apresentado por G. F. Munzel em Kant’s conception of moral character: the critical link of morality, anthropology and reflective judgement. (Chicago: The University of Chicago Press, 1999) e por A. Wood, Kant’s ethical thought. (Cambridge: Cambridge University Press, 1999). Em 2003, G. Banham publica Kant’s practical philosophy: from critique to doctrine (N. York: Palgrave Macmillan, 2003) advogando uma tese muito próxima. R. J. Sullivan também expõem uma teoria kantiana que não negligencia o papel da história e da antropologia, embora sem estender esta contribuição para toda a filosofia prática de Kant (Immanuel Kant’s moral theory. N. York: Cambridge University Press, 1989). 4 Entendemos este termo sob a concepção de Le Goff, J. Documento/monumento. In: Enciclopédia Einaudi, v. 1 Memória-História, Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1988. 2 Incluída no Iluminismo (Aufklärung), a filosofia kantiana é profundamente relevante para a História, principalmente pela vasta gama de assuntos que aborda. No entanto, por este mesmo motivo, surge a necessidade de um recorte teórico focalizando as observações de Kant sobre a antropologia e a história. Seu estudo empírico em relação à natureza humana5 segue uma convicção na possibilidade de a espécie como um todo levar a cabo seus princípios morais a priori. Como homem preocupado em desmistificar a moralidade da monarquia aristocrática, Kant acreditou em ideais republicanos do século XVIII, influenciando as transformações políticas e sociais da Europa. Há um rigor conceitual formador de toda a filosofia kantiana capaz de abranger os conflitos humanos desde a consciência à prática, assim como da intenção à ação, que possibilita uma dialética entre verdade filosófica e realidade histórica, cultura e civilização. A realidade compartilhada no nosso cotidiano reside na coincidência de entendimento de cada indivíduo. Este entendimento estabelece um sistema comunicativo que propicia um suporte consciente para que todos se sintam em coesão social. Entretanto esta coesão só é alcançada a partir do momento em que os indivíduos compartilham as mesmas bases para o mesmo juízo, numa determinada realidade social. Esta premissa abre caminho para pensarmos seus desdobramentos a partir dos traços postos na Antropologia moral kantiana e na sua filosofia da história. Kant foi capaz de pensar uma ética que, assumindo a universalidade do imperativo categórico não abre mão de uma propedêutica antropológica, a despeito da opinião de outros filósofos.6 Já na Crítica da razão pura Kant distingue, a partir de uma divisão entre o inteligível e o sensível, as formas de conhecimento em duas partes constitutivas: uma parte pura, não empírica, onde se localizam os princípios a priori independentes da sensibilidade. E a parte empírica ou impura, que consiste nos “preceitos baseados na experiência” recebidos através dos sentidos. Esta segunda parte da ética é referida por Kant de modos variados, seja como “antropologia moral” (Metafísica dos costumes, 217), “antropologia prática” (Fundamentação da metafísica dos costumes, 388) ou “filosofia moral aplicada” (Preleções sobre a ética, 599). E o estudo de textos como a “A doutrina da virtude”, “A religião nos limites da simples razão”, “História universal sob um ponto de vista cosmopolita” e “Sobre a pedagogia” nos dão subsídios para uma compreensão desta Antropologia moral ou sua “ética impura”. 5 MacIntyre comenta que a única concepção de Kant sobre a natureza humana à qual os princípios morais são aplicados envolve meramente “o lado fisiológico e não racional do homem” (1984 p.52). Foot ressalta que Kant afirma que “uma idéia abstrata da razão prática aplicada a seres racionais como tais poderia levar a todos nós a algo como nosso próprio código moral” (1995, p. 7). Podemos notar no artigo de Holly Wilson Kant’s Integration of Morality and Anthropology” (1987, Cf. p.90) a pretensão de “estabelecer uma visão da moralidade tanto formal quanto concreta ao mesmo tempo”. Esta última posição é possível porque nós pensamos em nós próprios como obrigados apenas quando nos vemos como ‘pertencentes ao mundo dos sentidos e ao mesmo tempo ao mundo inteligível’ (Fundamentação, 453). Não podemos entender o que Kant quer dizer com dever e com obrigação se não conseguimos nos ver como seres humanos sensíveis concretos, além de nos vermos como agentes autônomos. (...). Indicamos, aqui, como Kant construiu a natureza humana teleologicamente e apontou os detalhes na “Antropologia.” (1997 pp. 87-88). Roger Sullivan em “The Influence of Kant’s Anthropology on his Moral Theory” escreve que embora “Kant tenha caracterizado Aristóteles como o maior empirista na teoria moral (Crítica da razão pura, B882)” ele compartilhou com Aristóteles cinco crenças fundamentais na tradição racionalista.Uma dessas crenças, diz Sullivan, é que os dois filósofos “sustentaram que eles não poderiam discutir a natureza de uma vida moralmente boa para os seres humanos sem alguns lugares-comuns no conhecimento daquilo que Kant chamou de “antropologia moral”, isto é, sem um conhecimento da condição humana: aquilo que, por exemplo, pode promover e aquilo que pode impedir o desenvolvimento correto da vida moral. Os dois concordaram que tais coisas apenas podem ser aprendidas empiricamente (Cf. Metafísica dos Costumes, 322. 1995. p. 79- 85). 6 Hegel, Schiller. 3 O sistema de deveres que é apresentado na Metafísica dos costumes é direcionado aos seres humanos com base nos princípios puros da moralidade, em resposta às exigências morais que surgem de certas circunstâncias empíricas da vida humana. E a virtude, definida por Kant como o poder moral de autoconstrangimento das inclinações naturais é responsável pelo fato de vencermos nossas inclinações naturais e assim nos comportarmos moralmente e possuirmos uma vontade que não seja fraca. A virtude é adquirida, e somente podemos ser virtuosos através do exercício da razão prática, exigindo um aprendizado presente na espécie humana. Em a “Doutrina da Virtude” (2a parte da Metafísica dos Costumes) Kant diz ser necessário uma antropologia moral que trate das condições subjetivas presentes na natureza humana que auxiliam as pessoas a cumprir as leis de uma metafísica dos costumes. Dessa forma, ocupando-se do desenvolvimento, difusão e fortalecimento dos princípios morais tanto na educação escolar quanto na instrução popular; assim como de outros ensinamentos e preceitos similares baseados na experiência. Segundo Kant a história humana parece seguir um plano determinado pela natureza, onde a espécie humana é permanente. E somente através da manutenção da passagem do conhecimento, da cultura, da religião e da política de geração em geração pode-se garantir a continuidade do processo civilizatório. Na intenção de refletir sobre as conseqüências da filosofia da história de Kant é necessário buscarmos meios teóricos que nos tornem possível perceber o significado do Iluminismo germânico (Aufklärung) para o conhecimento histórico. A análise da produção intelectual de um determinado filósofo permite a possibilidade de apreensão de uma consciência histórico-filosófica que ao mesmo tempo representa e influencia seu próprio contexto. As sociedades copiam um passado que se reproduz através das gerações e dessa forma, modelos sócio-políticos assim como tradições culturais e civilizatórias encontram um meio de se cristalizarem. No entanto sempre há espaço para inovações, por isso entendermos a ética kantiana é entendermos uma ideologia que, contraditoriamente, é subjugada a sua época, mas também contém características inovadoras. A antropologia kantiana é importante não apenas por causa das questões que levanta, mas por fazer parte do desenvolvimento de seu pensamento filosófico conforme dimensões teóricas, éticas, estéticas, políticas e históricas. A relevância das questões referentes à antropologia kantiana só pode, desta forma, ser pesquisada com o apoio de fundamentos interdisciplinares. Portanto, se Kant é abordado considerando-se a Crítica da razão pura, Fundamentação da metafísica dos costumes e Crítica da razão prática, desconsiderando as obras de filosofia da história e de antropologia seria possível obter-se uma ética totalmente desprovida dos elementos empíricos. Entretanto é necessário esclarecer o papel da antropologia, ou seja, o estudo empírico da cultura e da natureza humana. Pois, na leitura que fazemos, a ética precisa dela para poder ser aplicada (Fundamentação da metafísica dos costumes, 412). Pressupondo este fundamento, a estrutura analítica desta investigação interdisciplinar visa especificamente a possibilidade de elucidação de uma ética impura7 inserida no sistema filosófico kantiano, onde ocorre a formação de uma concepção coerente de antropologia tanto como elemento deste sistema quanto como disciplina acadêmica, que possui como intuito realizar uma avaliação das condições empíricas do princípio racional e da natureza humana8. A ética kantiana é extremamente influente na filosofia até hoje. Além de sua parte pura, ou seja, baseada nos princípios a priori, esta ética recebe a influência da história e da antropologia no sistema moral kantiano. Portanto é possível admitirmos uma ética impura que examina uma parte relevante da experiência dentro de um estudo empírico do homem, da cultura e da natureza humana que por sua vez exigem a determinação a priori de um sistema de deveres. A 7 Cf. nota 2. 8 Cf. nota 5. 4 antropologia moral trata das condições subjetivas presentes na natureza humana que auxiliam as pessoas a cumprir as leis de uma metafísica dos costumes. No entanto esta proposição é negligenciada, pois alguns comentadores de Kant acreditam que a ética independe da antropologia. O sentido filosófico de pesquisa antropológica do século setecentista, no qual Kant estava inserido, combinava considerações metafísicas e empíricas da interação mente e corpo, inclusive incorporando referências da medicina e assim apontava para a constituição de uma verdadeira disciplina científica. Como uma teoria do homem considerando sua essência, sua natureza e determinações, como uma questão acerca de seu posicionamento no mundo, suas forças e possibilidades, seus direitos e obrigações, seus propósitos e seus objetivos. Neste contexto afirmará que “o ser humano é destinado, através de sua razão, a estar em sociedade com outros seres humanos e a se cultivar, a se civilizar e a se moralizar nessa sociedade através das artes e das ciências”9. Torna-se imprescindível o avanço dos estudos para além de qualquer barreira entre História e Filosofia. É necessário que as produções historiográficas incorporem uma ética filosófica ao seu rigor conceitual, pois ela pode enriquecer a hermenêutica histórica e, mais especificamente, o próprio tratamento das fontes nas mais variadas formas de linguagem. Para a delimitação e compreensão de padrões e mecanismos de mudança ou continuidade do processo histórico é preciso que as ciências sociais estejam consistentemente fundamentadas numa base filosófica. Dessa forma, segundo Zingano, o discurso histórico deve articular os conceitos de modo que os estruture segundo uma convicção crítica, desempenhando a tarefa de elucidação dos passos empíricos portadores de um projeto racional de humanidade. O discurso histórico requer, portanto, em primeiro plano, a faculdade de julgar um determinado estado de coisas. A análise da razão prática propicia as categorias pelas quais podemos julgar os acontecimentos quanto ao seu tecido feito pelo homem. Nesse sentido é necessário perceber a nós próprios de modo empírico, sensível ou antropológico para que nos percebamos como moralmente obrigados sob as leis do âmbito empírico do mundo humano que podem ser consideradas nas ações e nas expressões da cultura e da civilização. Bibliografia KANT, I. Anthropology from a pragmatic point of view. Edited by Hans H. Rudnick. Translated by Victor L. Dowdell. Carbondale: Southern Illinois University Press, 1978. _______. Crítica da razão pura. 5a ed. Trad. Manuela P. dos Santos e Alexandre F. Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. _______. Crítica da razão prática. Trad. Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002. _______. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1998. _______. A paz perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995. _______. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2003. 9 Definição proferida em KANT, I. 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