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NORMAS DE EQÜIDADE E TIPOS DE JUSTIÇA (Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, pág.113) Constitui um dos mais belos problemas da Filosofia e da Teoria Geral do Direito o da colocação da equidade nos domínios da Ciência Jurídica, inclusive para saber-se se há efetivamente "normas de equidade" como uma categoria autônoma. A primeira grande mente que dedicou a devida atenção a esse problema foi Aristóteles. Já encontramos considerações imperfeitas nas obras dos pensadores pré-aristotélicos, mas é indiscutivelmente com Aristóteles que o problema adquire expressão precisa, que se tornou clássica. Para Aristóteles, a equidade é também "o direito do caso concreto", que preenche as lacunas da lei. Cf. pág. 294 e Miguel Reale, Estudos de Filosofia e Ciência do Direito, cit., págs. 93 e segs. Vide, supra, pág. 170, onde analisamos a equidade nesse segundo sentido. Para o autor da Ética a Nicômaco, a equidade é uma forma de justiça, ou melhor, é a justiça mesma em um de seus momentos, no momento decisivo de sua aplicação ao caso concreto. A equidade para Aristóteles é a justiça do caso concreto, enquanto adaptada, "ajustada" à particularidade de cada fato ocorrente. Enquanto a justiça em si é medida abstrata, suscetível de aplicação a todas as hipóteses a que se refere à equidade já é a justiça no seu dinâmico ajustamento ao caso2. Foi por esse motivo que Aristóteles a comparava à "régua de Lesbos". Esta expressão é de grande precisão. A régua de Lesbos era a régua especial de que se serviam os operários para medir certos blocos de granito, por ser feita de metal flexível que lhe permitia ajustar-se às irregularidades do objeto. A justiça é uma proporção genérica e abstrata, ao passo que a equidade é específica e concreta, como a "régua de Lesbos" flexível, que não mede apenas aquilo que é normal, mas, também, as variações e curvaturas inevitáveis de experiência humana. Essa noção de equidade, segundo a ideia aristotélica, implica uma compreensão melhor da ideia de igualdade. A justiça é, em última análise, uma expressão ética do princípio de igualdade. Se há a ideia de liberdade como uma das fundamentais do Direito, existe, também, completando-a, a de igualdade. Ser justo é julgar as coisas segundo o princípio de igualdade. Como conceber a igualdade no plano ético-jurídico? Essa matéria também foi estudada com sutileza por Aristóteles, que procurou discriminar os vários tipos de igualdade que se manifestam na vida prática. Em primeiro lugar, temos a justiça comutativa, que obedece à igualdade ou proporção própria das trocas nos escambos mercantis: o pressuposto é que as duas partes mutuem entre si objetos de igual valia: do ut des. Transfiro um objeto e recebo o preço que ele vale. Há entre comprador e vendedor uma proporção aritmética. O critério da igualdade retributiva ou correspectiva não preside apenas às relações de escambo, mas também à aplicação das penas: quem infringe a lei penal não deve sofrer pena desproporcional à gravidade de seu ato. Modernamente, exigências de ordem social podem impor exceção a essa correspondência essencial entre "infração" e "pena", mas aquele critério de igualdade continua governando, substancialmente, as relações contratuais e penais, porquanto se deve ter sempre em vista a pessoa do infrator ou o objeto da relação obrigacional. Cumpre, outrossim, examinar outros tipos de relação social que se referem às obrigações dos indivíduos para com o todo. Não existem apenas direitos e deveres dos homens entre si, porquanto também se põem direitos e deveres dos homens para com a coletividade. Qual a medida de contribuição de cada um ao todo? Há, ainda, o problema inverso, o da exigibilidade do todo ou, por outras palavras, o problema da correspondência entre o todo e as partes, a coletividade e seus membros. São dois aspectos distintos e complementares. De um lado, há que se verificar o que cada um deve ao todo, e, concomitantemente, o que o todo deve a cada um. Aristóteles viu apenas o segundo dos apontados aspectos da questão, ao situar o problema da justiça distributiva, dizendo que ela tem o caráter de proporção geométrica, diversa do que ocorre na justiça comutativa, pois o Estado não dá a todos igualmente, como nas trocas, mas dá a cada um segundo o seu mérito. Há, então, um critério de igualdade para cada tipo de justiça? A igualdade se apresenta sob múltiplas facetas, conforme a natureza da situação jurídica, da situação social e da conduta a ser regulada. O problema do dever de cada um para com o todo é o que diz respeito à chamada justiça social, que só começou a ser vislumbrada entre os jurisconsultos romanos, para situar-se, depois, de maneira mais clara na obra de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Visamos, porém, com este resumo, mais a um incitamento ao estudo do problema da justiça na história, sendo certo que existem várias formas de manifestação do justo, implicando critérios diferentes. Mas tanto na justiça social, como na distributiva e na comutativa, temos sempre uma proporção abstrata que não se achega ao caso particular que o administrador tenha de resolver ou o juiz deva julgar. Há certos casos em que a aplicação rigorosa do Direito redundaria em ato profundamente injusto. Summum jus, summa injuria. Esta afirmação, para nós, é uma das mais belas e profundas da Jurisprudência romana, porque ela nos põe em evidência a noção fundamental de que o Direito não é apenas sistema lógico-formal, mas, sobretudo, a apreciação estimativa, ou axiológica da conduta. Diante de certos casos, mister é que a justiça se ajuste à vida. Este ajustar-se à vida, como momento do dinamismo da justiça, é que se chama eqüidade, cujo conceito os romanos inseriram na noção de Direito, dizendo: jus est ars aequi et boni. É o princípio da igualdade ajustada à especificidade do caso que legitima as normas de equidade. Na sua essência, a equidade é a justiça bem aplicada, ou seja, prudentemente aplicada ao caso. A equidade, no fundo, é, repetimos o momento dinâmico da concreção da justiça em suas múltiplas formas. Daí, inspirando-se nessa definição romana do que jus est ars aequi et boni, ter um jurista italiano proposto a expressão "equobuono" para mostrar a indissolubilidade dos dois aspectos essenciais à plena compreensão do Direito. A razão do destaque que demos às normas de equidade resulta, também, do nosso Direito positivo, porquanto rezava o art. 114 do Código de Processo Civil de 1939 que, "quando autorizado a decidir por equidade, o juiz aplicará a norma que estabeleceria se fosse legislador". Já o Código de 1973 se limita a determinar que o juiz só pode decidir por equidade "nos casos previstos em lei" (art. 127). Há casos, portanto, em que a própria lei positiva confere ao juiz o direito de julgar por equidade, o qual, na prática, se impõe mais do que pretende o formalismo legal... ____________________x___________________x______________________ 60. Equidade (Paulo Nader, Introdução ao Estudo do Direito pág 133) Na Ética a Nicômaco, Aristóteles traçou, com precisão, o conceito de equidade, considerando-a "uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade" e comparou-a com a "régua de Lesbos" que, por ser de chumbo, se ajustava às diferentes superfícies: "A régua adapta-se à forma da pedra e não é rígida, exatamente como o decreto se adapta aos fatos". Tal é a diversidade dos acontecimentos sociais submetidos à regulamentação jurídica que ao legislador seria impossível a sua total catalogação. Daí por que a lei não é casuística e não prevê todos os casos possíveis, de acordo com as suas peculiaridades. A sistemática exige do aplicador da lei, juiz ou administrador, uma adaptação da norma jurídica, que é genérica e abstrata, àscondições do caso concreto. Não fosse assim, a aplicação rígida e automática da lei poderia fazer do Direito um instrumento da injustiça, conforme o velho adágio Summum jus, summa injuria (Excesso de direito, excesso de injustiça). Algumas normas há que se ajustam inteiramente ao caso prático, sem a necessidade de qualquer adaptação; outras há, porém, que se revelam rigorosas para o caso específico. Nesse momento, então, surge o papel da equidade, que é o de adaptar a norma jurídica geral e abstrata às condições do caso concreto. Equidade é a justiça do caso particular. Não é caridade, nem misericórdia, como afirmavam os romanos - justitia delcore misericordiae temperata (justiça doce, temperada de misericórdia). Não é, via de regra, fonte criadora do Direito, mas apenas sábio critério q • e desenvolve o espírito das normas jurídicas, projetando-o sobre os casos concretos. Icílio Vanni precisou, com clareza e objetividade, que a equidade "não é mais do que um modo particular de aplicar a norma jurídica aos casos concretos; um critério de aplicação, pelo qual se leva em conta o que há de particular em cada relação". Também configura a equidade o fato de o juiz, devidamente autorizado por lei, julgar determinado caso com plena liberdade. Nesta circunstância não ocorre uma adaptação da norma ao caso concreto, mas a elaboração da norma e sua aplicação. Tal prática se enquadra no conceito de que equidade é a justiça do caso concreto. No Direito brasileiro a equidade está prevista no art. 8o da Consolidação das Leis do Trabalho, que determina a sua aplicação "na falta de disposições legais ou contratuais". Enquanto que a Lei de Introdução ao Código Civil é omissa, o Código de Processo Civil, em seu art. 127, dispõe que: "o juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei". Citam-se, entre outros exemplos de autorização legal, a previsão do art. 25 da Lei no 9.099, de 26.9.95 (Juizados Especiais) e do art.1.109 do Código de Processo Civil, que permite ao juiz "adotar em cada caso a solução que reputar mais conveniente ou oportuna", em se tratando da chamada jurisdição voluntária, isto é, quando não houver contenda a ser decidida, conforme ocorre na separação consensual entre cônjuges. Em Direito Penal, dado o caráter peculiar desse ramo, que subordina inteiramente as decisões do juiz ao texto legal, a possibilidade de adaptação da norma geral ao caso concreto limita-se ao quantum da pena. A fixação desta não fica entregue à apreciação subjetiva do juiz. Os arts. 61 e 62 do nosso Código Penal indicam ao juiz as circunstâncias que agravam e atenuam apena, respectivamente. Por seu art.108, o Código Tributário Nacional - Lei no 5.172, de 25.10.66 - prevê a aplicação da equidade para a hipótese de disposição expressa e desde que inviável a solução mediante o emprego, em ordem de prioridade, da analogia, princípios gerais de Direito Tributário e princípios gerais de Direito Público. Em qualquer caso, pelo uso da equidade não se poderá dispensar pagamento de tributo devido. 55. Critérios da Justiça A noção de justiça pressupõe uma avaliação de certos critérios, que dispomos em duas ordens: A corrente do Direito Livre, de Erlich e Kantorowicz, expressou o pensamento segundo o qual as decisões judiciais deveriam ser guiadas sempre pelo sentimento de justiça. Se as leis fossem justas, deveriam ser aplicadas; se não o fossem, deveriam ser desprezadas. 1 - Critérios Formais 1.1 - Igualdade; 1.2 - Proporcionalidade; Justiça 2 - Critérios Materiais 2.1 - Mérito; 2.2 - Capacidade; 2.3 - Necessidade. 1. Critérios Formais da Justiça - A ideia de justiça exige tratamento igual para situações iguais. No Direito a igualdade está consagrada pelo princípio da isonomia, segundo o qual todos são iguais perante a lei. Foi Pitágoras que considerou, primeiramente, a importância da igualdade na noção de justiça. Para ele, no dizer de Truyol y Serra, "a justiça se caracteriza como uma relação aritmética de igualdade entre dois termos, por exemplo, uma injúria e a sua reparação". Posteriormente, Aristóteles deu curso a esse pensamento, desenvolvendo-o. A simples noção de igualdade não é suficiente para expressar o critério de justiça. O dar a cada um o mesmo não é medida ideal. A proporcionalidade é elemento essencial• nós diversos tipos de repartição. É indispensável se recorrer a este critério, diante de situações desiguais. Dante Alighieri não desconheceu isto, ao salientar que o Direito era "uma proporção real e pessoal de homem para homem...". Rui Barbosa também deu ênfase a este elemento: "A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira 1ei da igualdade". 2. Critérios Materiais da Justiça - O que se deve levar em consideração ao julgar: o mérito, a capacidade ou a necessidade? Mérito é o valor individual, é a qualidade intrínseca da pessoa. O atribuir a cada um, segundo o seu mérito, requer não um tratamento de igualdade, mas de proporcionalidade. Ao se recompensar o mérito de alguém, deve-se fazê-lo de acordo com o seu grau de intensidade. Como os valores possuem bipolaridade, ao lado do mérito existe o demérito, que é um desvalor ou valor negativo, que condiciona também a aplicação da justiça. A ele deve corresponder um castigo, que por sua vez não pode ser um gadrão único, mas deve apresentar uma graduação. A capacidade, como critério de justiça, corresponde às obras realizadas, ao trabalho produzido pelo homem. Este elemento deve ser tomado como base para a fixação do salário a ser pago ao trabalhador e ser aplicado também nos exames e concursos. Ao se estabelecer a contribuição de cada indivíduo para a coletividade, deve ser observada a capacidade de todos. O imposto de renda, cujo valor varia de acordo com os ganhos, é exemplo de aplicação deste critério. A fórmula a cada um segundo suas necessidades corresponde à justiça social, que modernamente vem se desenvolvendo e se institucionalizando pelo Direito. As necessidades devem ser as essenciais ao homem. A distinção entre necessidades essenciais e as outras oferece, na prática, alguma dificuldade e controvérsia. Este critério, conforme acentua Perelman, exige não só a fixação das necessidades essenciais, como também a definição de uma hierarquia entre estas, para que se possa conhecer aquelas que devem ser atendidas primeiramente. "' Estas são chamadas minimum vital. ______________________x____________________x___________________ DIREITO E Equidade (Gusmão, Paulo – Introdução ao Estudo do Direito, pág. 93) Alguns juristas, seguindo a orientação que vem desde Roma, identificaram a equidade com o direito natural. Os romanos tinham sempre presente a aequitas naturalis, chegando a afirmar que quod semper bonum et aequum est, jus dicitur (O direito é sempre o que é bom e eqüitativo). Outros compreenderam a equidade como noção moral. Maggiore (Diritto Penale, T. I) a posicionou nos limites da moral com o direito, como forma de possibilitar o retorno do direito (moral petrificada, codificada) ao seio de sua verdadeira fonte: a moral histórica. Windscheid (Diritto delle Pandette, trad.) pensa ser a equidade a adaptação do direito ao fato, aproximando-se, assim, de certa forma, do pensamento de Aristóteles (Ética), que a vê como "o meio de corrigir a lei' ', aplicando a com justiça ao caso concreto. Outros entenderam-na como o sentimento do justo, provocado no juiz pelo caso subjudice. Há quem a identifique com as noções de humanidade, clemência, moderação e mitigação. Para nós, a equidade, que entre os romanos teve grande influência na época dos pretores, e, atualmente, tem grandevalor na Inglaterra, onde o Lord Chancellor, através dela, pode negar efeito a uma norma jurídica, a equidade, dizíamos, é ajusta aplicação da norma jurídica geral ao caso concreto que impede a transformação do summum jus em summa injuria. Essa é a equidade secundum leges, que consiste na justa concretização do preceito legal, de grande valor na aplicação do direito. Ao lado dela está a contra legem, que conflita com o direito positivo, correspondendo aos novos ideais históricos da justiça. Nesse caso, a equidade é a adaptação do ideal de justiça de uma época a um caso concreto. Algumas vezes, a equidade implica a ideia de humanidade, de clemência e de mitigação. Aí, então, é correto entende-la como fonte do direito. Tendo em vista essa última acepção, o juiz, ao decidir, padece de um drama de consciência muito intenso: terá de decidir de acordo com a lei, julgando contra sua consciência, contra seu ideal de justiça, contra o que ele compreende por equidade para o caso concreto. Mas, nesse caso, o direito positivo deve prevalecer sobre a equidade, por assim exigir um de seus fins: a segurança, e uma de suas razões de ser: a certeza do direito. No entanto, no caso de lacuna, quando o juiz não encontra nos princípios Gerais do direito a norma aplicável ao caso novo, a ele submetida a julgamento, a equidade de que se deve socorrer o juiz é a praeter legem correspondente ao ideal histórico de justiça, ainda não presente no direito positivo.
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