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1 MATERIAL DE APOIO DIREITO CIVIL TEORIA GERAL DOS CONTRATOS Apostila 01 Prof. Pablo Stolze Gagliano 1. Visão Geral dos Contratos no novo CC O Código Civil de 2002 disciplinou os contratos da seguinte forma: a) Título V – Dos contratos em Geral, subdividido em dois Capítulos (Capítulo I - “Das Disposições Gerais” - e Capítulo 2 - “Da Extinção do Contrato”). Tais capítulos são ainda estruturados em Seções, que versam sobre aspectos gerais da matéria contratual; b) Título VI – Das Várias Espécies de Contratos, subdividido em 20 capítulos, compartimentados em várias outras Seções, cuidando dos Contratos em Espécie1. Nota-se, no estudo dessa disciplina, que o codificador inovou, ao tratar de temas não regulados pelo Código anterior, a exemplo do contrato preliminar, do contrato com pessoa a declarar, da resolução por onerosidade excessiva (aplicação da teoria da imprevisão), da venda com reserva de domínio, da venda sobre documentos e do contrato estimatório. Além disso, disciplinou contratos novos, como a comissão, a agência/distribuição, a corretagem e o contrato de transporte, deixando de fazer referência a alguns outros institutos, como, por exemplo, a cláusula comissória na compra e venda (art. 1163 do CC-16). 1 “Contratos em Espécie” integram outra grade do Curso LFG. 2 Perdeu-se, todavia, a oportunidade de se regular, pondo fim a infindáveis dúvidas, algumas importantes modalidades contratuais já de uso corrente, como o leasing, o franchising, o factoring, o consórcio, os contratos bancários e os contratos eletrônicos. Apesar dessas omissões, entretanto, devemos reconhecer que, em geral, o trabalho do codificador, na seara contratual, foi bem desempenhado, sobretudo por haver realçado a necessidade de imprimir socialidade à noção de contrato. 2. Princípios do Direito Contratual Segue o painel dos princípios que analisaremos em sala de aula: a) o princípio da autonomia privada ou do consensualismo; b) o princípio da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda); c) o princípio da relatividade subjetiva dos efeitos do contrato; d) o princípio da função social do contrato; e) o princípio da boa-fé objetiva; f) o princípio da equivalência material. 2.1. Observações acerca do princípio da função social do contrato Devemos, de logo, ressaltar que a função social do contrato traduz conceito sobremaneira aberto e indeterminado, impossível de se delimitar aprioristicamente.2 HUMBERTO THEODORO JR., citando o competente professor PAULO NALIN, na busca por delimitar as suas bases de intelecção, lembra-nos, com acerto, que a função social manifestar-se-ia em dois níveis3: 2 Sobre o tema, confira-se a excelente obra: Função Social dos Contratos, do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. Coleção: Rubens Limongi França, 2ª Ed. São Paulo: Método, 2002, FLÁVIO TARTUCE. 3 a) intrínseco – o contrato visto como relação jurídica entre as partes negociais, impondo-se o respeito à lealdade negocial e à boa fé objetiva, buscando-se uma equivalência material entre os contratantes; b) extrínseco – o contrato em face da coletividade, ou seja, visto sob o aspecto de seu impacto eficacial na sociedade em que fora celebrado. 2.2. Observações acerca do princípio da boa-fé objetiva Além das finalidades interpretativa, integradora e delimitadora de direitos subjetivos, o princípio da boa-fé objetiva ainda tem a função constitutiva (normativa) de deveres anexos ou de proteção, implícitos em qualquer contrato4. CONTRATO VÁLIDO ------------------------Æ RELAÇÃO OBRIGACIONAL: (FONTE PRIMORDIAL DE OBRIGAÇÕES) a) dever jurídico principal: prestação de DAR, FAZER ou NÃO FAZER; b) deveres jurídicos anexos ou colaterais (decorrentes da BOA-FÉ OBJETIVA): lealdade e confiança, assistência, informação, 3 THEODORO JR., Humberto. O Contrato e sua Função Social. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pág. 43. 4 Sobre a o tema: CORDEIRO, Antônio Menezes. Da Boa-Fé Objetiva no Direito Civil. Portugal: Almedina, 2001. Em nosso sentir, obra máxima, em língua portuguesa, no estudo do princípio. 4 confidencialidade ou sigilo etc. A boa fé objetiva, pois, é o principio ou norma reguladora desses deveres, cuja enumeração não pode ser considerada taxativa5. 3. Formação dos Contratos O contrato se forma quando as manifestações de vontade, em geral contrapostas, contemporizam-se, conciliando os interesses divergentes, e formando o denominado consentimento. O consentimento das partes é a pedra de toque de todo contrato: PARTE 1 -------------Æ CONSENTIMENTO Å------------- PARTE 2 5 “Entre os deveres com tais características encontram-se, exemplificativamente: a) os deveres de cuidado, previdência e segurança, como o dever do depositário de não apenas guardar a coisa, mas também de bem acondicionar o objeto deixado em depósito; b) os deveres de aviso e esclarecimento, como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores possibilidades de cada via judicial passível de escolha para a satisfação de seu desideratum, o do consultor financeiro, de avisar a contraparte sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer ao paciente sobre a relação custo/benefício do tratamento escolhido, ou dos efeitos colaterais do medicamento indicado, ou ainda, na fase pré-contratual, o do sujeito que entra em negociações, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formação da declaração negocial; c) os deveres de informação, de exponencial relevância no âmbito das relações jurídicas de consumo, seja por expressa disposição legal (CDC, arts.12, in fine, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em atenção ao mandamento da boa-fé objetiva; d) o dever de prestar contas, que incumbe aos gestores e mandatários, em sentido amplo; e) os deveres de colaboração e cooperação, como o de colaborar para o correto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não dificultar o pagamento, por parte do devedor; f) os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte, v.g., o dever do proprietário de uma sala de espetáculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetonicamente o prédio, a fim de diminuir os riscos de acidentes; g) os deveres de omissão e de segredo, como o dever de guardar sigilo sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de negociação preliminares, pagamento, por parte do devedor etc” (COSTA, Judith Martins-. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: RT, 1999, p.439). 5 Na denominada “fase de puntuação”, as partes discutem, ponderam, refletem, fazem cálculos, estudos, redigem a minuta do contrato, enfim, contemporizam interesses antagônicos, para que possam chegar a uma proposta final e definitiva. No dizer de GUILLERMO BORDA, “Muchas veces las tratativas contractuales se desenvuelven através de um tiempo más o menos prolongado, sea porque el negocio es complejo y las partes quieren estudiarlo em todas sus consecuencias o porque quien lo firma no tiene poderes suficientes o por cualquier otro motivo”.6 A característica básica desta fase é justamente a nãovinculação (formal) das partes à uma relação jurídica obrigacional, muito embora possa, em tese, haver responsabilidade civil pré-contratual por quebra de boa-fé objetiva, caso haja lesão à legítima e firme expectativa de contratar alimentada por uma das partes, à luz do princípio da confiança. Dependerá da análise do caso concreto à luz da principiologia constitucional aplicada às relações de direito privado, consoante veremos em sala. Esses atos preparatórios, característicos da fase de puntuação, não se identificam com o denominado contrato preliminar, figura jurídica que é especialmente – posto não apenas - estudada no âmbito da “promessa de compra e venda”. A proposta de contratar, também denominada de policitação, consiste na oferta de contratar que uma parte faz à outra, com vistas à celebração de determinado negócio (aquele que apresenta a oferta é chamado de proponente, ofertante ou policitante). Trata-se de uma declaração receptícia de vontade. 6 BORDA, Guillermo A. Manual de Contratos. 19 ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2000, pág. 33. 6 O Código Civil, ao disciplinar o tema, na Seção II, do Capítulo I, Título V (Da Formação dos Contratos), embora não haja elencado os seus elementos constitutivos, regulou-a, nos seguintes termos: Art. 427. A proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso. Observe-se, portanto, que a proposta de contratar obriga o proponente ou policitante, que não poderá voltar atrás, ressalvadas apenas as exceções capituladas na própria lei (arts. 427 e 428). Cuida-se, no caso, do denominado princípio da vinculação ou da obrigatoriedade da proposta, diretriz normativa umbilicalmente ligada ao dogma da segurança jurídica. Da análise desse dispositivo, concluímos que o legislador reconhece a perda da eficácia cogente da oferta, nas seguintes situações especiais: a) se o contrário (a não-obrigatoriedade) resultar dos termos dela mesma – é o caso de o proponente salientar, quando da sua declaração de vontade (oferta), que reserva o direito de retratar-se ou arrepender-se de concluir o negócio. Tal possibilidade, entretanto, não deverá existir nas ofertas feitas ao consumidor, na forma da Lei n. 8078/90 (CDC); b) se o contrário (a não-obrigatoriedade) resultar da natureza do negócio – cite-se como exemplo, seguindo o pensamento de 7 CARLOS ROBERTO GONÇALVES, “das chamadas propostas abertas ao público, que se consideram limitadas ao estoque existente”7; c) se o contrário (a não-obrigatoriedade) resultar das circunstâncias do caso – nesse caso, optou o legislador por adotar uma dicção genérica, senão abstrata, que dará ao juiz a liberdade necessária para aferir, no caso concreto, e respeitado o princípio da razoabilidade, situação em que a proposta não poderia ser considerada obrigatória. Nessa mesma linha, vale registrar ainda que a proposta pode ter prazo de validade. É o que dispõe o art. 428 do CC-02 (correspondente ao art. 1.081, CC- 16): Art. 428. Deixa de ser obrigatória a proposta: I - se, feita sem prazo a pessoa presente, não foi imediatamente aceita. Considera-se também presente a pessoa que contrata por telefone ou por meio de comunicação semelhante; II - se, feita sem prazo a pessoa ausente, tiver decorrido tempo suficiente para chegar a resposta ao conhecimento do proponente; III - se, feita a pessoa ausente, não tiver sido expedida a resposta dentro do prazo dado; IV - se, antes dela, ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a retratação do proponente. 7 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Obrigações – Parte Especial – Tomo I – Contratos (Sinopses Jurídicas). 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pág. 16. 8 Para que entendamos tais situações, é preciso definir o que se entende por “pessoa presente” e “pessoa ausente”. Presentes são as pessoas que mantêm contato direto e simultâneo uma com a outra, a exemplo daquelas que tratam do negócio pessoalmente, ou que utilizam meio de transmissão imediata da vontade (como o telefone, por exemplo). Observe-se que, em tais casos, o aceitante toma ciência da oferta quase no mesmo instante em que a mesma é emitida. Ausentes, por sua vez, são aquelas pessoas que não mantém contato direto e imediato entre si, caso daquelas que contratam por meio de carta ou telegrama (correspondência epistolar). Não tendo regulado os contratos eletrônicos, entendemos que tais regras, constantes no Código Civil, devem, mutatis mutandis, lhes ser aplicadas. Nessa linha de raciocínio, poderemos considerar, entre presentes, o contrato celebrado eletronicamente em um chat (salas virtuais de comunicação), haja vista que as partes envolvidas mantêm contato direto entre si quando de sua formação, e, por outro lado, entre ausentes, aquele formado por meio do envio de mensagem eletrônica (e-mail), pois, nesse caso, medeia um lapso de tempo entre a emissão da oferta e a resposta. Fora dessas hipóteses (arts. 427, segunda parte e art. 428), portanto, a proposta obriga o proponente e deverá ser devidamente cumprida, caso haja a conseqüente aceitação. E o que se sentende por aceitação? Trata-se da manifestação de vontade concordante do aceitante ou oblato que adere à proposta que lhe fora apresentada. Cumpre-nos observar que se a aceitação for feita fora do prazo, com adições, restrições, ou modificações, importará em nova proposta. Ou seja, caso a aquiescência não seja integral, mas feita intempestivamente 9 ou com alterações (restritivas ou ampliativas), converter-se-á em contraproposta, nos termos do art. 431 do Código Civil.8 Nessa mesma linha, se a aceitação, por circunstância imprevista, chegar tarde ao conhecimento do proponente, este deverá comunicar o fato imediatamente ao aceitante, sob pena de responder por perdas e danos (art. 430). Aqui está mais uma aplicação do “dever de informar” decorrente da boa fé objetiva!... Finalmente, vale salientar que a aceitação poderá ser expressa ou tácita, consoante se pode concluir da análise do art. 432 do Código Civil: Art. 432. Se o negócio for daqueles em que não seja costume a aceitação expressa, ou o proponente a tiver dispensado, reputar-se-á concluído o contrato, não chegando a tempo a recusa. Por fim, importante questão a ser enfrentada diz respeito à formação do contrato entre ausentes, especialmente o pactuado mediante correspondência epistolar. Aliás, como carecemos de uma disciplina específica dos contratos eletrônicos, consoante já dissemos, a matéria aqui exposta poderá, mutatis mutandis, ser adaptada àqueles negócios pactuados via e-mail. Fundamentalmente, a doutrina criou duas teorias explicativas a respeito da formação do contrato entre ausentes9: a) teoria da cognição Æ para os adeptos dessa linha de pensamento, o contrato entre ausentes somente se consideraria formado, quando a resposta do aceitante chegasse ao conhecimento do proponente. 8 Norma muito semelhante vem prevista no Código Civil Argentino: “Art. 1152. Cualquiera modificación que se hiciere em la oferta al aceptarla, importará la propuesta de um nuevo contrato”. 9 Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva, ob. cit., pág. 25 e RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Dos Contratos e Declarações Unilaterais de Vontade. vol 3. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 1997. 10 b) teoria da agnição (dispensa-se que a resposta chegueao conhecimento do proponente): b.1. Æ sub-teoria da declaração propriamente dita – o contrato se formaria no momento em que o aceitante ou oblato redige, datilografa ou digita a sua resposta. Peca por ser extremamente insegura, dada a dificuldade em se precisar o instante da resposta. b.2. Æ sub-teoria da expedição - considera formado o contrato, no momento em que a resposta é expedida. b.3. Æ sub-teoria da recepção – reputa celebrado o negócio no instante em que o proponente recebe a resposta. Dispensa, como vimos, que leia a mesma. Trata-se de uma sub-teoria mais segura do que as demais, pois a sua comprovação é menos dificultosa, podendo ser provada, por exemplo, por meio do A.R. (aviso de recebimento), nas correspondências. Mas, afinal, qual seria a teoria adotada pelo nosso direito positivo? CLÓVIS BEVILÁQUA, autor do projeto do Código Civil de 1916 era, nitidamente, adepto da sub-teoria da expedição, por reputá-la “a mais razoável e a mais jurídica”.10 Por isso, boa parte da doutrina brasileira, debruçando-se sobre o art. 1086 do Código revogado, concluía tratar-se de dispositivo afinado com o pensamento de BEVILÁQUA: 10 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Obrigações.São Paulo: RED, 2000, pág. 238. 11 Art. 1086 (caput). Os contratos por correspondência epistolar, ou telegráfica, tornam-se perfeitos desde que a aceitação é expedida, ... (grifamos) Na mesma linha, se cotejarmos esse dispositivo com o correspondente do Código em vigor, teremos a nítida impressão de que foi adotada a vertente teórica da expedição: Art. 434. Os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitação é expedida, exceto: I - no caso do artigo antecedente; II - se o proponente se houver comprometido a esperar resposta; III - se ela não chegar no prazo convencionado. (grifamos) Note-se, entretanto, que o referido dispositivo enumera situações em que o contrato não se reputará celebrado: no caso do art. 433; se o proponente se houver comprometido a esperar a resposta (nesta hipótese, o próprio policitante comprometeu-se a aguardar a manifestação do oblato); ou, finalmente, se a resposta não chegar no prazo assinado pelo policitante. Ocorre que se nós observarmos a ressalva constante no inciso I desse artigo, que faz remissão ao art. 433, chegaremos à inarredável conclusão de que a aceitação não se reputará existente, se antes dela ou com ela chegar ao proponente a retratação do aceitante. Atente para essa expressão: “se antes dela ou com ela CHEGAR ao proponente a retratação do aceitante”. 12 Ora, ao fazer tal referência, o próprio legislador acabou por negar a força conclusiva da expedição, para reconhecer que, enquanto não tiver havido a RECEPÇÃO, o contrato não se reputará perfeito, pois, antes do recebimento da resposta ou simultaneamente a esta, poderá vir o arrependimento do aceitante. Dada a amplitude da ressalva constante no art. 433, que admite, como vimos, a retratação do aceitante até que a resposta seja recebida pelo proponente, entendemos que o nosso Código Civil adotou a sub-teoria da recepção, e não a da expedição11. Nessa linha, inclusive, enunciado da Terceira Jornada sufraga a tese da recepção, aplicando-a para a contratação pela via eletrônica: E. 173 – Art. 434: A formação dos contratos realizados entre pessoas ausentes, por meio eletrônico, completa-se com a recepção da aceitação pelo proponente. 4. Classificação dos Contratos a) Quanto à Natureza da Obrigação. a.1) Contratos Unilaterais, Bilaterais ou Plurilaterais - na medida em que o contrato implique em direitos e obrigações para ambos os contratantes ou apenas para um deles, será bilateral (ex.: compra e venda) ou unilateral (ex.: depósito), podendo se falar em contrato plurilateral (ou multi-lateral), na medida em que haja mais de dois contratantes com obrigações (contrato de constituição de uma sociedade ou de um condomínio); a.2) Contratos Onerosos ou Gratuitos – Quando a um benefício recebido corresponder um sacrifício patrimonial (ex: compra e venda), fala-se 11 Nesse sentido, tb., GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Obrigações – Parte Especial – Tomo I – Contratos (Sinopses Jurídicas). 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.20/21. 13 em contrato oneroso. Quando, porém, fica estabelecido que somente uma das partes auferirá benefício, enquanto a outra arcará com toda obrigação, fala-se em contrato gratuito ou benéfico (ex: doação pura (sem encargo) e comodato). a.3) Contratos Comutativos ou Aleatórios. Quando as obrigações se equivalem, conhecendo os contratantes, ab initio, as suas respectivas prestações, como, por exemplo, na compra e venda ou no contrato individual de emprego, fala-se em um contrato comutativo. Já quando a obrigação de uma das partes somente puder ser exigida em função de coisas ou fatos futuros, cujo risco da não ocorrência for assumido pelo outro contratante, fala- se em contrato aleatório, previsto nos arts. 458/461, como é o caso, por exemplo, do contratos de seguro, jogo e aposta, bem como como o contrato de constituição de renda. Sub-divisão dos Contratos Aleatórios: a) Contrato de Compra de Coisa Futura, com Assunção de Risco pela Existência (emptio spei): nessa primeira espécie, prevista expressamente no art. 458, o contratante assume o risco de não vir a ganhar coisa alguma, deixando à sorte propriamente dita o resultado da sua contratação; b) Contrato de Compra de Coisa Futura, sem Assunção de Risco pela Existência (emptio rei speratae): nessa segunda hipótese, prevista no art. 459, CC-02 (art.1.119, CC-16)12, não há a assunção total de riscos pelo contratante, tendo em vista que o alienante se comprometeu a que alguma coisa fosse entregue; c) Contrato de Compra de Coisa Presente, mas Exposta a Risco assumido pelo Contratante: a última 12 CC-02: “Art.459. Se for aleatório, por serem objeto dele coisas futuras, tomando o adquirente a si o risco de virem a existir em qualquer quantidade, terá também direito o alienante a todo o preço, desde que de sua parte não tiver concorrido culpa, ainda que a coisa venha a existir em quantidade inferior à esperada. Parágrafo único. Mas, se da coisa nada vier a existir, alienação não haverá, e o alienante restituirá o preço recebido”. 14 modalidade codificada é a que versa sobre a venda de coisa atual sujeita a riscos, prevista nos art.46013. a.4) Contratos Paritários ou por Adesão - Na hipótese das partes estarem em iguais condições de negociação, estabelecendo livremente as cláusulas contratuais, na fase de puntuação, fala-se na existência de um contrato paritário, diferentemente do contrato de adesão, que pode ser conceituado simplesmente como o contrato onde um dos pactuantes pré- determina (ou seja, impõe) as cláusulas do negócio jurídico a.5) Contratos Evolutivos - Classificação proposta pelo Prof. ARNOLDO WALD, para se referir a figuras contratuais, próprias do Direito Administrativo, em que é estabelecida a equação financeira do contrato, impondo-se a compensação de eventuais alterações sofridas no curso do contrato, pelo que o mesmo viria com cláusulas estáticas, propriamente contratuais, e outras dinâmicas, impostas por lei. b) Classificação dos Contratos quanto à Disciplina Jurídica (civis, comerciais, trabalhistas, consumeristas e administrativos). c) Classificação dos Contratos quanto à Forma. c.1) Solenesou Não-Solenes - Quanto à imprescindibilidade de uma forma específica para a validade da estipulação contratual; c.2) Consensuais ou Reais - Em relação à maneira (forma) pela qual o negócio jurídico é considerado ultimado, ainda nesta classificação quanto à forma, os contratos podem ser consensuais, se concretizados com a simples declaração de vontade, ou reais, na medida que exijam a entrega da coisa, para que se reputem existentes. d) Classificação dos Contratos quanto à Designação (nominados e inominados) - pode-se falar na existência de contratos nominados e contratos inominados, na medida em que tenham terminologia ou 13 CC-02: “Art.460. Se for aleatório, por se referir a coisas existentes, mas expostas a risco, assumido pelo adquirente, terá igualmente direito o alienante a todo o preço, posto que a coisa já não existisse, em parte, ou de todo, no dia do contrato” 15 nomenclatura definida e prevista expressamente em lei ou, em caso contrário, sejam apenas fruto da criatividade humana. e) Classificação dos Contratos quanto à Pessoa do Contratante. e.1) Pessoais ou Impessoais – Quanto à importância da pessoa do contratante para a celebração e produção de efeitos do contrato, podem tais negócios jurídicos ser classificados em contratos pessoais ou contratos impessoais. Os primeiros, também chamados de personalíssimos, são os realizados intuitu personae, ou seja, celebrados em função da pessoa do contratante, que tem influência decisiva para o consentimento do outro, para quem interessa que a prestação seja cumprida por ele próprio, pelas suas características particulares (habilidade, experiência, técnica, idoneidade etc). Nessas circunstâncias, é razoável se afirmar, inclusive, que a pessoa do contratante torna-se um elemento causal do contrato (ex: contrato de emprego). Já os contratos impessoais são aqueles em que somente interessa o resultado da atividade contratada, independentemente de quem seja a pessoa que irá realizá-la. e.2) Individuais ou Coletivos - Tem-se como parâmetro também o número de sujeitos envolvidos/atingidos. No contrato individual, sua concepção tradicional se refere a uma estipulação entre pessoas determinadas, ainda que em número elevado, mas consideradas individualmente. Já no contrato coletivo, também chamado de contrato normativo, tem-se uma transubjetivização da avença, alcançando grupos não individualizados, reunidos por uma relação jurídica ou de fato. f) Classificação dos Contratos quanto ao Tempo. f.1) Instantâneos (execução imediata ou execução diferida) - Por contratos instantâneos, compreendam-se as relações jurídicas contratuais cujos efeitos são produzidos de uma só vez (ex: compra e venda a vista de bens móveis, em que o contrato se consuma com a tradição da coisa). 16 Tal produção concentrada de efeitos, porém, pode se dar ipso facto à avença ou em data posterior à celebração (em função da inserção de um termo limitador da sua eficácia), subdividindo-se, assim, tal classificação em contratos instantâneos de execução imediata ou de execução diferida. Tal subclassificação também tem interesse prático, tendo em vista que, nos contratos de execução diferida, é aplicável a teoria da imprevisão, por dependerem de circunstâncias futuras, o que, por óbvio, inexiste nos contratos de execução imediata. f.2) De duração (determinada ou indeterminada) - Já os contratos de duração, também chamados de contratos de trato sucessivo, execução continuada ou débito permanente14, são aqueles que se cumprem por meio de atos reiterados, como, por exemplo, o contrato de prestação de serviços, compra e venda a prazo e o contrato de emprego. Tal duração pode ser determinada ou indeterminada, na medida em que haja ou não previsão expressa de termo final ou condição resolutiva a limitar a eficácia do contrato. g) Classificação dos Contratos quanto à Disciplina Legal Específica (típicos e atípicos) - Quando há uma previsão legal da disciplina de determinada figura contratual, estaremos diante de um contrato típico; na situação inversa, ou seja, em que o contrato não esteja disciplinado/regulado pelo Direito Positivo, vislumbraremos um contrato atípico. h) Classificação pelo Motivo Determinante do Negócio (causais e abstratos) - Classificação (lembrada por SILVIO RODRIGUES), que toma, por base, o motivo determinante do negócio, para dividi-los em contratos causais e contratos abstratos. Os primeiros estão vinculados à causa que os determinou, podendo ser declarados inválidos, se a mesma for considerada 14 “Débito permanente é o que consiste em uma prestação tal que não é possível conceber sua satisfação em um só momento; mas, do contrário, tem de ser cumprida durante certo período de tempo, continuadamente. A determinação de sua duração resulta da vontade das partes, mediante cláusula contratual em que subordinam os efeitos do negócio a um acontecimento futuro e certo, ou da declaração de vontade de um dos contratantes pondo termo à relação (denúncia). São, por conseqüência, por tempo determinado ou indeterminado” (GOMES, Orlando. Contratos, 24 ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.79). 17 inexistente, ilícita ou imoral. Já os contratos abstratos seriam aqueles cuja força decorre da sua própria forma, independentemente da causa que o estipulou. Seriam os exemplos dos títulos de crédito em geral, como um cheque. i) Classificação pela Função Econômica (de troca, associativos, de prevenção de riscos, de crédito e de atividade) a) de troca: caracterizado pela permuta de utilidades econômicas, como, por exemplo, a compra e venda b) associativos: caracterizado pela coincidência de fins, como é o caso da sociedade e da parceria; c) de prevenção de riscos: caracterizado pela assunção de riscos por parte de um dos contratantes, resguardando a possibilidade de dano futuro e eventual, como nos contratos de seguro, capitalização e constituição de renda; d) de crédito: caracterizado pela obtenção de um bem para ser restituído posteriormente, calcada na confiança dos contratantes e no interesse de obtenção de uma utilidade econômica em tal transferência. É a hipótese típica do mútuo feneratício (a juros); e) de atividade: caracterizado pela prestação de uma conduta de fato, mediante a qual se conseguirá uma utilidade econômica. Como exemplos, podem ser lembrados os contratos de emprego, prestação de serviços, empreitada, mandato, agência e corretagem. j) Contratos Reciprocamente Considerados j.1. Classificação quanto à Relação de Dependência (principais e acessórios) - Os contratos principais são os que têm existência autônoma, independentemente de outro. Por exceção, existem determinadas relações contratuais cuja existência jurídica pressupõe a de outros contratos, a qual servem. É o caso típico da fiança, caução, penhor, hipoteca e anticrese. 18 j.2. Classificação quanto à Definitividade (preliminares e definitivos) - Por fim, quanto à definitivamente, podem ser os contratos ser classificados em preliminares e definitivos. Os contratos preliminares (ou pactum de contrahendo), exceção no nosso ordenamento jurídico, nada mais são do que negócios jurídicos que têm por finalidade justamente a celebração de um contrato definitivo. OBS.: Este tópico (classificação dos contratos) foi elaborado por RODOLFO PAMPLONA FILHO (co-autor da obra Novo Curso de Direito Civil – Saraiva), a quem registramos o nosso agradecimento. Contato: rpamplonafilho@uol.com.br 5. Textos ComplementaresSeguem textos, meus amigos, de dois grandes civilistas do Brasil, o Profs. Antônio Junqueira de Azevedo (sobre o Projeto do CC) e Flávio Tartuce. O princípio da boa-fé nos contratos Antônio Junqueira de Azevedo15 RESUMO Tece críticas referentes ao art. 421 do Projeto do Código Civil, onde está presente a cláusula geral da boa-fé nos contratos. Como insuficiências, destaca: a) não se pode saber se o artigo representa norma cogente ou dispositiva; b) o artigo se limita ao período que vai da conclusão até a execução do contrato, não prevendo a aplicação da boa-fé nas fases pré e pós- contratuais. Como deficiências do art. 421, cita a ausência de disposições 15 Fonte: www.cjf.gov.br 19 sobre: deveres anexos, cláusulas faltantes e cláusulas abusivas. A última crítica é que o Projeto assenta-se em um paradigma ultrapassado, centrado na figura do julgador, devendo o paradigma atual centrar-se na Constituição, em normas cogentes. ABSTRACT The text criticises the Art. 421 of the Civil Code Project where the general clause on good faith in contracts is established. As inadequacies, it states that: a) it is not possible to know if the article is a reasonably necessary or specific norm, b) the article is only about the period between the conclusion and the execution of the contract, not predicting the good faith application in the phases before and after the contract. It also considers as inadequacies of the Art. 421 and mentions that there are not dispositions about attached rights, missing and abusive clauses. The last criticism is that the Project is based in an outmoded paradigm, centred in the judge figure. The actual paradigm should centred itself in the Constitution, in reasonably necessary norms. O tema "Boa-fé nos contratos" é uma homenagem que faço ao Prof. Clóvis do Couto e Silva. Meu intuito é fazer a crítica de um projeto de lei. Sinto-me nisso como quem cumpre um dever. A presença da boa-fé no Projeto está em três artigos: em um sobre o exercício de direito, em outro sobre interpretação — como se deve interpretar os negócios jurídicos — e no que me diz respeito boa-fé nos contratos, no art. 421, cujo texto é o seguinte: Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé. 20 O artigo é insuficiente, deficiente e, além de tudo, revela que está num paradigma anterior aos tempos em que estamos vivendo. Ele está no paradigma do sistema que alguns dizem aberto, de cláusulas gerais e conceitos indeterminados. No meu modo de entender, já estamos, no mundo, hoje, em outro paradigma. O primeiro paradigma se baseava inteiramente na segurança da lei — naquela idéia de que a lei deve ser universal, geral, prever tudo com precisão e, tanto quanto possível, ser completa. O papel do juiz, nesse paradigma, era o de um autômato. É o famoso juiz "boca da lei", la bouche de la loi, na linguagem de Montesquieu. Esse paradigma, no começo do século XX, foi alterado, foi substituído pelo segundo paradigma, que hoje alguns estão chamando de "sistema aberto". Nesse sistema, o ponto central deixou de ser a lei e passou a ser o juiz. Para isso, passou-se a utilizar conceitos indeterminados e cláusulas gerais. A boa-fé é um conceito indeterminado. Quando se refere ao tipo de comportamento exigido — por exemplo, dos contratantes — configura-se em cláusula geral. O artigo referido, com a evolução do Direito, é hoje insuficiente por várias razões. Uma delas é que não sabemos se representa uma norma cogente ou se é uma norma dispositiva. O Projeto de Código Civil não levou em consideração códigos modernos, como o Uniform Comercial Code (Código Comercial americano) — na verdade, ainda que tenha horror aos americanos, os Estados Unidos são a Nação que está impondo as suas regras e nada mais lógico que, pelos menos, se verificasse aquilo que é o código prescritivo, normativo, no mundo americano. O Uniform Comercial Code diz sobre a boa-fé: The obligation of good faith may not be disclaimed by agreement, ou seja, no Direito americano está muito claro que a obrigação de boa-fé não pode ser afastada por contrato. Portanto, ele está imposto como cogente, mas, o mesmo artigo do Código americano é ainda mais completo porque acrescenta 21 que as partes podem, por contrato, determinar quais os standards by with the performance of such obligation is to be measured, ou seja, o standard pelo qual a "performance", a execução da obrigação, será executada. Naturalmente há determinações possíveis pelas partes, segundo o tipo de área de atividade e de negócio que estão fazendo. Já nas Ordenações do Reino se dizia que quem compra cavalo no mercado de Évora não tem direito aos vícios redibitórios. Se um sujeito vai negociar no mercado de objetos usados, em feira de troca, a boa-fé exigida de um vendedor não pode ser igual à de uma outra loja ou outro negócio, em que há um pressuposto de cuidado. Portanto, no caso do Projeto, não se sabe se a norma é cogente e não se fala se as partes podem adotar outros standards ou quais standards e assim por diante. Segunda insuficiência: o art. 421 se limita ao período que vai da conclusão do contrato até a sua execução. Sempre digo que o contrato é um certo processo em que há um começo, prosseguimento, meio e fim. Temos fases contratuais — fase pré-contratual, contratual propriamente dita e pós-contratual. Uma das possíveis aplicações da boa-fé é aquela que se faz na fase pré-contratual, fase essa em que temos as negociações preliminares, as tratativas. É um campo propício para o comportamento de boa-fé, no qual ainda não há contrato e podem-se exigir aqueles deveres que uma pessoa deve ter como correção de comportamento em relação ao outro. Cito um caso entre a Cica e plantadores de tomate, no Rio Grande do Sul, no qual, em pelo menos 4 acórdãos, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu que a Companhia Cica havia criado expectativas nos possíveis contratantes — pequenos agricultores —, ao distribuir sementes para que plantassem tomates e, depois, errou ao se recusar a comprar a safra dos tomates. Houve, então, prejuízo dos pequenos agricultores, baseado na confiança despertada antes do contrato, fase pré-contratual. Logo, o caso do art. 421 deveria também falar em responsabilidade pré-contratual ou extensão do comportamento de boa-fé na fase pré-contratual. 22 Faço um parêntese para exemplificar, transformando em hipótese o que li nos jornais de hoje sobre o caso da Ford com o Governador do Rio Grande do Sul. A Ford, durante os dois anos em que teria procurado montar a sua indústria, certamente teve muitos gastos e, de repente, o negócio não teria sido efetivado. O problema da responsabilidade pré-contratual é justamente esse, qual seja, o dos gastos que se fazem antes do contrato e quando há a ruptura. Se essa hipótese da Ford for pré-contratual — no caso, suponho ter havido algum contrato anterior — mas se não houvesse, e se fosse apenas um problema de negociações, antes de qualquer efetivação do negócio, haveria dois pressupostos da responsabilidade pré-contratual: a confiança na realização do futuro negócio e o investimento na confiança. Faltariam, talvez, outros dois pressupostos: o de poder atribuir uma justificação à confiança que alguém teve e, em segundo lugar, o de que essa confiança tenha sido causada pela outra parte. Assim, poderíamos duvidar se o Governador chegou a criar essa confiança e, portanto, provocou a despesa da indústria; e, ainda, se a indústria não confiou demaise assim por diante. São problemas em aberto, mas de qualquer maneira, o meu primeiro ponto sobre a responsabilidade pré- contratual é que há uma omissão do Projeto de Código Civil, no artigo em causa. A terceira insuficiência é na fase pós-contratual, porque se está dito "boa-fé na conclusão" e "na execução", nada está dito sobre aquilo que se passa depois do contrato. Isso também é assunto que a doutrina tem tratado — a chamada "responsabilidade pós-contratual" ou post pactum finitum. Darei três exemplos para comprovação de que, após o contrato encerrado, ainda há possibilidade de exigir boa-fé dos contratantes: 1 O proprietário de um imóvel vendeu-o e o comprador o adquiriu por este ter uma bela vista sobre um vale muito grande, construindo ali uma bela residência, que valia seis vezes o valor do terreno. A verdade é que o vendedor gabou a vista e aí fez a transferência do imóvel para o comprador — negócio acabado. Depois, o ex-proprietário, o vendedor foi à prefeitura municipal, verificou que não havia a possibilidade de construir um prédio em frente, mas 23 adquiriu o prédio em frente ao que tinha vendido e conseguiu na prefeitura a alteração do plano diretor da cidade, permitindo ali uma construção. Quer dizer, ele construiu um prédio que tapava a vista do próprio terreno que havia vendido ao outro — esse não era ato literalmente ilícito. Ele primeiramente vendeu, cumpriu a sua parte. Depois, comprou outro terreno, foi à prefeitura, mudou o plano, e aí construiu. A única solução para o caso é aplicar a regra da boa-fé. Ele faltou com a lealdade no contrato que já estava acabado. É, portanto, post pactum finitum. 2 Uma dona de boutique encomendou a uma confecção de roupas 120 casacos de pele. A confecção fez os casacos, vendeu-os e os entregou para essa dona da boutique. Aí, liquidado esse contrato, a mesma confecção fez mais 120 casacos de pele idênticos e vendeu-os para a dona da boutique vizinha. Há, também, evidentemente, deslealdade e post pactum finitum. 1. Um indivíduo queria montar um hotel e procurou o melhor e mais barato carpete para colocar no seu empreendimento. Conseguiu uma fornecedora que disse ter o preço melhor, mas que não fazia a colocação. Ele pediu, então, à vendedora a informação de quem poderia colocar o carpete. A firma vendedora indicou o nome de uma pessoa que já tinha alguma prática na colocação do carpete, mas não disse que o carpete que estava fornecendo para esse empresário era de um tipo diferente. O colocador do carpete pôs uma cola inadequada e, semanas depois, todo o carpete estava estragado. A vendedora dizia: cumpri a minha parte no contrato, entreguei, recebi o preço, o carpete era esse, fiz favor indicando um colocador. Segundo a regra da boa-fé, ela não agiu com diligência, porque, no mínimo, deveria tê-lo alertado — uma espécie de dever de informar e de cuidar depois de o contrato ter terminado — a propósito do novo tipo de carpete. Há responsabilidade pós-contratual. 24 Portanto, o art. 421 está insuficiente, pois só fala em conclusão — o momento em que se faz o contrato — e execução. Não fala nada do que está para depois, nem falava do que estava antes. Finalmente, ainda a propósito das insuficiências, o artigo fala apenas em execução, no momento final, e muitas vezes o caso na verdade não chega a ser de execução, mesmo que dilatemos a expressão em português "execução". A respeito da "substancial performance", ou seja, o contratante que executa em grande parte as suas obrigações e somente não executa uma pequena parte, por não executar essa pequena parte não seria razoável que se rescindisse o contrato. O caso dessas cláusulas que permitem uma resolução por um contratante tendo em vista o inadimplemento de outro, é de inexecução e não propriamente de execução. Mas uma cláusula resolutiva pode ser empregada com má-fé. O Código deveria ter dito "execução" ou "extinção da obrigação". Não só o Código Comercial americano, a que vinha me referindo, fala em "performance" ou enforcement; outros códigos mais novos, a exemplo do de Quebec, também se referem à execução ou à extinção da obrigação. Até o Código da Louisiana tratou do assunto. Refiro-me a esses códigos porque são desta década. O que estou citando do Código Comercial americano é da última edição, de 1990; o Código da Louisiana, edição de 1999, que foi revista; e o Código de Quebec entrou em vigor em 1994. Os autores do Projeto de Código Civil não tiveram conhecimento dessas leis, porque elas são posteriores. Mas esse é o ponto: ficamos com um Projeto de Código Civil feito antes de os atuais estudantes de Direito terem nascido! O mundo mudou muito; as coisas ficaram não-factíveis na situação em que estamos. Até aqui falamos das insuficiências; temos ainda as deficiências e o problema dos paradigmas — o assunto é vasto. 25 Com relação às deficiências, a regra da boa-fé tem uma espécie de função que chamo de "pretoriana" em relação ao contrato. O chamado "Direito Pretoriano", no Direito romano, foi aquele que os pretores introduziram para ajudar, suprir e corrigir o Direito Civil. Havia o Direito Civil estrito (o Direito Civil mais rigoroso) e o Direito Pretoriano veio adjuvandi, supplendi, vel corrigendi e juris civilis gratia. Essa tríplice função existe na cláusula geral de boa-fé, porque justamente a idéia dessa cláusula no contrato é ajudar na interpretação do contrato, adjuvandi, suprir algumas das suas falhas, acrescentar o que nele não está incluído supplendi e eventualmente corrigir alguma coisa que não é de direito no sentido de justo corrigendi. Esse é o papel da cláusula de boa-fé nos contratos feitos. São essas três funções os pontos que, nos países europeus, na doutrina da boa-fé, mais são salientados. Houve um certo movimento, desde o começo do século, a propósito da boa-fé, ela já teve até mais importância do que tem hoje e nos últimos anos tem havido até um certo refluxo da mesma, mas continua fundamental para os contratos. A interpretação de acordo com a boa-fé está bem tanto no art. 421 como no primeiro artigo da Parte Geral sobre interpretação dos negócios jurídicos. Mas as outras duas funções, aquela que é supplendi e a outra que é corrigendi, não estão no Projeto. No caso da função supplendi, há dois aspectos: um é o problema dos deveres anexos. A cláusula de boa-fé — sempre comentada por todos os tratadistas, por todos os manuais — cria deveres anexos ao vínculo principal. Existe aquilo a que as partes expressamente se referiram e, depois, há deveres colocados ao lado, ora ditos secundários, ora anexos, especialmente o dever de informar, mais um dever negativo, o de manter sigilo sobre alguma coisa que soube da outra parte, ou até deveres ditos positivos, como o de procurar colaborar com a outra parte (daí até uma visão talvez excessivamente romântica, de que os contratantes devem colaborar entre si). 26 Esses deveres anexos, nos Códigos a que estava me referindo, hoje estão expressos. O Código Civil holandês, por exemplo, trata do assunto no art. 242 do Livro das Obrigações e diz que as partes devem respeitar aquilo que convencionaram. Ou seja, o contrato não produz somente os efeitos que foram convencionados entre as partes, mas igualmente aqueles que, segundo a natureza do contrato, decorrem das exigências da razão e da eqüidade. Razão e eqüidade é a maneira como o Código Civil holandês se refere à boa-fé. Os autores holandeses evitaram a palavra "boa-fé", para que não houvesse confusão com a chamada "boa-fé subjetiva" — a boa-fé no sentido de conhecimento ou desconhecimento de uma situação. Comoo caso da cláusula geral da boa-fé não é um problema de boa-fé subjetiva, mas sim objetiva, no sentido de comportamento, os holandeses preferiram mudar a expressão para "exigências da razão e da eqüidade". De qualquer maneira, falam da boa-fé criando deveres. Idem o art. 1.434 do Código do Quebec que, no caso, já fala em boa-fé. O Projeto, para estar pelo menos de acordo com os dias de hoje, deveria ter expressa a regra da criação dos deveres anexos. O outro ponto, a propósito do supplendi das funções da cláusula de boa-fé, refere-se às cláusulas faltantes. Às vezes as partes fazem o contrato e, por omissão, falta de previsão ou incapacidade redacional, não incluem alguma cláusula; teremos, então, uma omissão. Também o Código da Louisiana prevê a falta de cláusula e atribui à boa-fé a idéia de pôr a cláusula que falta no lugar da omissão. A terceira função corrigendi a que me referi e é talvez a pior omissão do Projeto do Código Civil no tema: "cláusulas abusivas". O nosso Código do Consumidor, que veio muito depois do Projeto do Código Civil, está mais atualizado do que este. O assunto das cláusulas abusivas não só tem um elenco no art. 51 do Código como até o Ministério da Justiça publicou mais 29 — no mês de março de 1999 — cláusulas abusivas em matéria de planos de saúde, de cartão de crédito, de transporte aéreo etc. 27 O que se passa no resto do mundo, a propósito disso, são referências à boa-fé, como maneira de evitar as cláusulas abusivas. Por exemplo, no Código de Quebec, em que se define o que é cláusula abusiva, é feita a distinção entre contrato de consumo (le consommateur) e contrato de adesão, porque pode haver contrato de adesão de quem não é consumidor. Considera, portanto, abusiva a cláusula que leva à desvantagem o consumidor, ou aderente a cláusula que, de uma maneira excessiva e irrazoável (déraisonnable), vá contra as exigências da boa-fé. Mais adiante torna a acrescentar que é abusiva especialmente a cláusula tão afastada das obrigações essenciais que desnatura o contrato. O Código Civil holandês também define, em seu art. 248, o que é cláusula abusiva e assim por diante. Apontei insuficiências e deficiências a propósito da boa-fé nos contratos. Agora, passarei a uma visão mais global, que demonstra que o paradigma do Projeto de Código Civil está ultrapassado. Em primeiro lugar, qualquer cientista hoje na Biologia, na Física ou na Química conhece um historiador das ciências chamado Thomas Kuhn, que escreveu um livro chamado A estrutura das revoluções científicas — Tradução por Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1975. 262 p. (Debates; 115). Não trata de Direito, mas define o que é paradigma, dizendo que o mundo intelectual caminha por mudanças de paradigma. Um paradigma foi, por exemplo, na Astronomia, o de Ptolomeu; outro, o de Copérnico. Um paradigma é o da geometria de Euclides; outro, o da geometria não-euclidiana. Um da Biologia antes da genética, dos gens; outro, o da genética, e assim por diante. No caso do Direito — e isso é senso comum —, aquele paradigma do século passado, da lei, do juiz autômato, da lei geral, universal, em que o juiz não tinha papel algum, ficou ultrapassado. Veio, então, um segundo paradigma, no qual o juiz ganhou um papel importante, inclusive com os trabalhos sobre hermenêutica, o que trouxe mudanças ao tipo de solução. E é isso o que Kuhn diz a propósito de paradigma, que é uma espécie de modelo de solução que uma determinada 28 área do conhecimento apresenta para os problemas. O paradigma na visão de Kuhn é um modelo que serve a um grupo que se dedica a algum tipo de conhecimento, para solucionar os problemas que se apresentam. O mundo inteiro, em todas as áreas, está acostumado a trabalhar com problemas. Todo biólogo tem problema; todo físico tem problema. A maneira como se soluciona o problema é o paradigma, e isso aprendemos na escola. O professor transmite para o aluno; o aluno aprende e será operador do Direito com o paradigma que recebeu. Daí uma certa dificuldade quando o paradigma está em mudança ou quando o anterior entrou em crise. Muitos juristas, muitos professores, no caso do Direito, recusam as inovações. Após o da lei, o paradigma dito do juiz, daquele tempo em que o Estado era intervencionista, era aquele que usava os famosos conceitos jurídicos indeterminados, as cláusulas gerais; os conceitos indeterminados eram principalmente o que chamo de "bando dos quatro" — à moda daquela revolução cultural comunista —, quais sejam: função social, boa-fé, ordem pública e interesse público. O problema todo desses quatro conceitos é que eles não têm conteúdo, são vazios do ponto de vista axiológico. Eles servem para retórica, e o mundo de hoje não se conforma mais com esses conceitos vazios. O paradigma, que antes era da lei, passou a ser o do juiz e hoje é o do caso concreto e da Constituição. Hoje estamos fugindo do juiz. Essa fuga não é um problema do Judiciário, ele vai decidir o que é da missão dele, que é conflito real, o caso difícil, que exige ponderação. Mas o juiz é um julgador e, quando não há necessidade desse julgador, não é preciso o juiz. Nesse sentido, há uma fuga do juiz. Aponto não só a Lei da Arbitragem, que é evidente, mas as instituições como a Bolsa de Mercadorias e Futuros, como a CVM — Comissão de Valores Mobiliários — a OAB, Conselho de Medicina e várias outras instituições cujos problemas não deságuam no Judiciário. Fiquei perplexo quando tive de tratar 29 de um assunto acadêmico — uma tese sobre a Bolsa de Mercadorias e Futuros — e verifiquei que todos os dias há milhões e milhões de reais que se transferem entre pessoas que negociam na Bolsa de Mercadorias e Futuros. Nenhum caso da Bolsa de Mercadorias e Futuros está no Poder Judiciário! As pessoas estão fugindo da estrutura do Judiciário, própria do paradigma anterior. As escolhas, hoje em dia, recaem em apelar para a Constituição e outros tipos de soluções. O Projeto de Código Civil infelizmente volta a insistir na presença do juiz para muita coisa. O Projeto está no paradigma do Estado inchado. Os conceitos indeterminados — o "bando dos quatro" a que me referi — continuam a ser usados hoje, mas agora com diretrizes materiais. A Constituição, sobre a função social, não se limitou a dizer que a propriedade tem função social, como está no art. 5º. Na verdade, disse o que era função social no art. 182, § 2º, para os imóveis urbanos e para a propriedade rural no art. 186. Ou seja, dá diretrizes, não é um jogo de palavras retórico. Com relação à boa-fé, todos os códigos modernos dão diretrizes. O Código Civil holandês diz que a boa-fé deve ser vista de acordo com o Direito holandês, de acordo com o interesse das partes, combinado com o interesse coletivo. Procura-se dar ao juiz alguma diretiva; uma diretriz para o conceito. Evidentemente, há normas de ordem pública — um tipo de situação da qual se fala tanto — que são as cogentes: estas continuam, sem problema. O problema real do conceito indeterminado de ordem pública é quando se fala em "princípio" de ordem pública e não em "regra" de ordem pública. A regra de ordem pública é a cogente, mas, quando se fala em princípio e que aí não tem definição, a tendência hoje é recusar esse emprego vago. Na verdade, deve-se fazer a distinção entre ordem pública de direção — que era aquela econômica, própria da primeira metade do século — e a ordem pública de proteção às pessoas mais fracas — que se reflete em normas cogentes. A ordem pública de direção, hoje encarada como princípio, está limitada à dignidade humana. Quando alguma norma, algumadecisão, algum contrato 30 quebra a dignidade humana, podemos dizer que ela quebra o princípio de ordem pública; mas daí extravasar para uma ordem pública de ordem econômica já não está no mundo de hoje. Todo código implica um certo desgaste social e um trabalho muito grande para os operadores do Direito. O meu ponto de vista é que o Projeto de Código Civil é um pouco, só um pouco mais adiantado do que o Código Civil vigente. Claro, porque um é de 1916 e o outro é de 1970. Porém, não concordo — tendo em vista as mudanças do mundo de hoje — em adotarmos, para o ano 2000, um Projeto, que é de 1970, por uma pequena melhora em relação ao Código Civil. Não vale, tudo posto na balança, o desgaste que isso representa e aquilo que vai resultar para nós. A questão não é só o Código Civil, e sim, todo o Direito Civil, e o Direito Civil como está é superior ao Direito Civil como ficaria, se fosse aprovado o Projeto. O Dr. Antonio Junqueira de Azevedo é Professor da Universidade de São Paulo. A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS, A BOA-FÉ OBJETIVA E AS RECENTES SÚMULAS DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.16 Flávio Tartuce.17 Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. A SÚMULA 308 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: A RESTRIÇÃO DOS EFEITOS DA HIPOTECA.. 3. A SÚMULA 302 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: A ABUSIVIDADE DA CLÁUSULA RESTRITRIVA DE INTERNAÇÃO EM CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE. 3. AS SÚMULAS 297 E 285 DO SUPERIOR 16 Artigo publicado na Revista científica da Escola Paulista de Direito (EPD – São Paulo). Ano I. N. I. Maio/Agosto de 2005. Coordenação científica Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. 17 Graduado pela Faculdade de Direito da USP em 1998. Especialista em Direito Contratual pela COGEAE- PUC/SP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor dos cursos de pós-graduação em Direito Civil, Direito Civil e Processo Civil e Direito Empresarial da Escola Paulista de Direito (EPD). Autor e colaborador de obras jurídicas. Advogado em São Paulo. Site: www.flaviotartuce.adv.br. 31 TRIBUNAL DE JUSTIÇA. A APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR ÀS INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS E FINANCEIRAS. 4. A SÚMULA 286 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: A POSSIBILIDADE DE REVISÃO DE CONTRATOS OBJETO DE NOVAÇÃO. 5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS. 1. INTRODUÇÃO. Em nosso livro A Função Social dos Contratos, tivemos a oportunidade de demonstrar toda a evolução pela qual vem passando o contrato, particularmente todas as alterações substanciais pelas quais vem passando esse instituto, que é basilar e fundamental não só para o Direito Civil, como para todo o Direito Privado.18 Não vamos, aqui, repetir todos os conceitos que constaram naquela obra. Na realidade, o presente trabalho serve como atualização antecipada do nosso trabalho, trazendo novos tratamentos jurisprudenciais dados tanto em relação à função social dos contratos quanto à boa-fé objetiva. Isso, inclusive, para demonstrar que a jurisprudência de nossos Tribunais superiores vêm acompanhando essa tendência. De qualquer forma, pertinente lembrar que, pela função social dos contratos, os negócios jurídicos patrimoniais devem ser analisados de acordo com o meio social. Não pode o contrato trazer onerosidades excessivas, desproporções, injustiça social.19 Também, não podem os contratos violar 18 Flávio Tartuce. A Função Social dos Contratos. Do Código de Defesa do Consumidor ao Novo Código Civil. São Paulo: Método, 2005. 19 Não se pode esquecer que o contrato é importante fonte obrigacional. Nesse sentido, Nelson Rosenvald, um dos mais brilhantes juristas da nova geração sintetiza muito bem como deve ser encarada a obrigação atualmente: “A obrigação deve ser vista como uma relação complexa, formada por um conjunto de direitos, obrigações e situações jurídicas, compreendendo uma série de deveres de prestação, direitos formativos e outras situações jurídicas. A obrigação é tida como um processo – uma série de atos relacionados entre si -, que desde o início se encaminha a uma finalidade: a satisfação do interessa na prestação. Hodiernamente, não mais prevalece o status formal das partes, mas a finalidade à qual se dirige a relação dinâmica. Para além da perspectiva tradicional de subordinação do devedor ao credor existe o bem comum da relação obrigacional, voltado para o adimplemento, da forma mais satisfativa ao credor e menos onerosa ao devedor. O bem comum na relação obrigacional traduz a solidariedade mediante a cooperação dos indivíduos para a satisfação dos interesses patrimoniais recíprocos, sem comprometimento dos direitos da 32 interesses metaindividuais ou interesses individuais relacionados com a proteção da dignidade humana, conforme reconhece Enunciado n. 23 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil.20 Assim sendo, entendemos que a função social dos contratos traz conseqüências dentro do contrato (intra partes) e também para fora do contrato (extra partes). Como efeito intra partes, citamos a previsão do art. 413 do novo Código Civil, exemplo típico de relativação da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda), justamente uma das conseqüências da função social dos negócios jurídicos. Por esse dispositivo, o juiz deve reduzir o valor da cláusula penal se a obrigação tiver sido cumprida em parte ou se entender que a multa é excessivamente onerosa. Como o comando legal utiliza-se a expressão “deve” a redução é de ofício, sem a necessidade de argüição pela parte interessada. Isso é confirmado pela natureza jurídica do princípio da função social dos contratos, de ordem pública, conforme previsão do art. 2.035, parágrafo único, do próprio Código Civil.21 Como exemplo de efeitos extra partes, citamos um caso em que o contrato, pelo menos aparentemente, é bom para as partes, mas ruim para a sociedade. Podemos citar um contrato celebrado entre uma empresa e uma agência de publicidade. O contrato é civil e paritário, não trazendo qualquer desequilíbrio ou quebra do sinalagma. Entretanto, a publicidade veiculada é discriminatória (publicidade abusiva – art. 37, § 2º do CDC), estando nesse ponto presente o vício. Pela presença do abuso de direito, o contrato pode ser personalidade e da dignidade do credor e devedor” (Dignidade Humana e Boa-Fé. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 204). 20 “Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”. 21 Entendemos que a função social do contrato tem respaldo na Constituição Federal. Primeiro, na tríade dignidade-solidariedade-igualdade, que consubstancia o Direito Civil Constitucional, constantes dos arts. 1º, 3º e 5º da Norma Fundamental. Segundo, na função social da propriedade (art. 5º, XXII e XXIII e art. 170, III da CF/88) (Flávio Tartuce. Função Social dos Contratos, ob, cit.). Sobre o Direito Civil Constitucional recomendamos a leitura da obra de Gustavo Tepedino (Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004). 33 tido como nulo, combinando-se os arts. 187 e 166, VI, do novo Código Civil – nulidade por fraude à lei imperativa diante do ato emulativo.22 Ao lado da função social dos contratos, a boa-fé objetiva procura valorizar a conduta de lealdade dos contratantes em todas as fases contratuais (art. 422 do novo CódigoCivil - função de integração da boa-fé). Na dúvida, os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé (art. 113 do novo Código Civil – função de interpretação da boa-fé). Em reforço, lembramos a interpretação a favor do consumidor (art. 47 do CDC) e do aderente (art. 423 do novo Código Civil). Por fim, a boa-fé objetiva está relacionada com deveres anexos, inerentes a qualquer negócio. A quebra desses deveres caracteriza o abuso de direito (art. 187 do novo Código Civil – função de controle da boa-fé). Sem dúvidas, esses dois princípios trazem uma nova dimensão contratual. Felizmente, antes mesmo do novo Código Civil a nossa melhor jurisprudência já vinha aplicando ao contrato esses novos paradigmas. Superou-se a tese pela qual o contrato visa principalmente a segurança jurídica. Na realidade, o contrato tem a principal função de atender à pessoa e aos interesses da coletividade, diante da tendência de personalização do Direito Privado.23 Essa a real função dos contratos! As súmulas a seguir, felizmente, servem para demonstrar essa tendência. Passamos a analisar o seu conteúdo. 2. A SÚMULA 308 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: A RESTRIÇÃO DOS EFEITOS DA HIPOTECA. Prevê a Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça que: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à 22 Vale citar uma passagem de Luigi Ferri, citando Acarelli no sentido de que o juiz deverá anular qualquer acordo de vontades pela simples ocorrência de um dano potencial à sociedade, mesmo que haja algum outro interesse comum (Luigi Ferri. La Autonomia Privada. Tradução e notas em espanhol por Luis Sancho Mendizibal. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1969, p. 438) 23 Sobre a personalização do Direito Privado, recomendamos as contribuições de Luiz Edson Fachin, particularmente a brilhante obra Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo (Rio de Janeiro: Renovar, 2001). 34 celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. Trata-se de súmula com relevante enfoque sociológico. Ora, sabe-se que a hipoteca é um direito real de garantia sobre coisa alheia, que recai principalmente sobre bens imóveis, tratada entre os arts. 1.473 a 1.505 do atual Código Civil. Sem prejuízo dessas regras especiais, a codificação traz ainda regras gerais quanto aos direitos reais de garantia, entre os seus artigos 1.419 a 1.430. Um dos principais efeitos da hipoteca é a constituição de um vínculo real, que acompanha a coisa (art. 1.419). Esse vínculo real tem efeitos erga omnes, dando direito de excussão ao credor hipotecário, contra quem esteja o bem (art. 1.422). Exemplificando, se um imóvel é garantido pela hipoteca, é possível que o credor reivindique o bem contra terceiro adquirente do bem, o que traz o que se denomina direito de seqüela. Assim, não importa se o bem foi transferido a terceiro; esse também perderá o bem, mesmo que o tenha adquirido de boa- fé.24 A constituição da hipoteca é muito comum em contratos de construção e incorporação imobiliária, visando um futuro condomínio edilício. Como muitas vezes o construtor não tem condições econômicas para levar a frente a sua obra, celebra um contrato de empréstimo de dinheiro com um terceiro (agente financeiro ou agente financiador), oferecendo o próprio imóvel como garantia, o que inclui todas as suas unidades do futuro condomínio. 24 Marco Aurélio S. Viana comenta muito bem esse efeito da hipoteca: “O que caracteriza o direito real de garantia é a vinculação de um bem ao cumprimento da obrigação. Sua função é assegurar ao credor a satisfação do crédito, colocando-o a cavaleiro da insolvência do devedor (Cf. Orlando Gomes, Direitos Reais, cit., v. 2, p. 468; Clóvis Bevilacqua, Direito das Coisas, cit., v. 2, p. 10). O titular do direito goza de seqüela e preferência. Vinculado o bem à garantia de uma prestação, sua transmissão implica na do gravame. Isso equivale a dizer que o titular do direito real de garantia acompanhará o bem, exigindo a satisfação do crédito, pouco importando em mãos de quem ele esteja. O valor do bem está afeto à satisfação do crédito. Assim, quem adquire imóvel hipotecado, por exemplo, poderá vê-lo levado à venda para pagamento da dívida que garantia. É o direito de seqüela” (Comentários ao Novo Código Civil. Volume XVI. Coordenador: Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 700). 35 Iniciada a obra, o incorporador começa a vender as unidades para terceiros, que no caso são consumidores, pois é evidente a caracterização da relação de consumo, nos moldes dos arts. 2º e 3º da Lei n. 8.078/90. Diante da boa-fé objetiva e da força obrigatória que ainda rege os contratos, espera-se que o incorporador cumpra com todas as suas obrigações perante o agente financiador, pagando pontualmente as parcelas do financiamento. Assim sendo, não haverá maiores problemas. Mas, infelizmente, como nem tudo são flores, nem sempre isso ocorre. Em casos tais, quem acabará perdendo o imóvel, adquirido a tão duras penas? O consumidor, diante do direito de seqüela advindo da hipoteca. A referida súmula visa justamente proteger o último, restringindo os efeitos da hipoteca às partes contratantes. Isso, diante da boa-fé objetiva, já que aquele que adquiriu o bem pagou pontualmente as suas parcelas frentes à incorporadora, ignorando toda a sistemática jurídica que rege a incorporação imobiliária. Presente a boa-fé do adquirente, não poderá ser responsabilizado o consumidor pela conduta da incorporadora, que acaba não repassando o dinheiro ao agente financiador. Fica claro, pelo teor da súmula, que a boa-fé objetiva também envolve ordem pública, pois caso contrário não seria possível a restrição do direito real.25 Aliás, concluímos que a boa-fé objetiva é princípio de ordem pública interpretando o art. 167, § 2º, do novo Código Civil, que traz a inoponibilidade 25 A referência à boa-fé é expressa no recente julgado a seguir transcrito, do próprio STJ, já aplicando a recente súmula 380: “CIVIL E CONSUMIDOR. IMÓVEL. INCORPORAÇÃO. FINANCIAMENTO. SFH. HIPOTECA. TERCEIRO ADQUIRENTE. BOA-FÉ. NÃO PREVALÊNCIA DO GRAVAME. 1 - O entendimento pacificado no âmbito da Segunda Seção deste STJ é no sentido de que, em contratos de financiamento para construção de imóveis pelo SFH, a hipoteca concedida pela incorporadora em favor do Banco credor, ainda que anterior, não prevalece sobre a boa-fé do terceiro que adquire, em momento posterior, a unidade imobiliária. Súmula 308 do Superior Tribunal de Justiça. 2 - Recurso especial conhecido, mas não provido” (STJ, REsp 625045 / GO ; RECURSO ESPECIAL 2003/0229385-3, RELATOR: Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, Julgamento: 17/05/2005, Publicação: DJ 06.06.2005). 36 do ato simulado frente a terceiros e boa-fé. Esclarecemos. Como se sabe, a simulação gera, em regra, a nulidade absoluta do negócio celebrado. Mas essa nulidade absoluta, que envolve ordem pública, não poderá ser oposta frente a terceiros de boa-fé. Pois bem, se o princípio da boa-fé não envolvesse ordem pública, a boa conduta não faria frente ao ato simulado. Superado esse ponto, entendemos que a súmula 308 do STJ também mantém relação com o princípio da função social dos contratos, já que visa preservar os efeitos do contrato de compra e venda do imóvel a favor do consumidor, parte economicamente mais fraca. Por essa simples razão, já mereceria os nossos aplausos. Mas a súmula visa também proteger o direito à moradia, asseguradoconstitucionalmente, no art. 6º da Carta Política de 1988. Reforçando, tende- se a preservar o negócio jurídico, diante do principio da conservação negocial, inerente à concepção social do contrato.26 Concluindo, percebe-se que a eticidade e a socialidade acabam fazendo milagres no campo prático, relativizando o rigor formal da concepção dos direitos reais, em prol da proteção do vulnerável, do hipossuficiente, daquele que sempre agiu conforme a boa-fé. 3. A SÚMULA 302 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: A ABUSIVIDADE DA CLÁUSULA RESTRITRIVA DE INTERNAÇÃO EM CONTRATOS DE PLANO DE SAÚDE. Não se pode esquecer da grande importância do Código de Defesa do Consumidor para os contratos, uma vez que a grande maioria dos negócios jurídicos patrimoniais são de consumo, enquadrados nos arts. 2º e 3º da Lei n. 8.078/90. Por muito tempo, afirmou-se que, havendo relação jurídica de consumo não seria possível a aplicação concomitante do Código Civil e do Código de 26 Interessante aqui transcrever o Enunciado n. 22 do Conselho da Justiça Federal, também da I Jornada de Direito Civil, que traz a relação entre função social e conservação contratual: “Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas”. 37 Defesa do Consumidor. Isso, na vigência do Código anterior, eminentemente individualista e muito distante da proteção do vulnerável constante da Lei Consumerista. Entretanto, atualmente e ao contrário, tem-se defendido um “diálogo das fontes” entre o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor. Por meio desse diálogo, deve-se entender que os dois sistemas não se excluem, mas se complementam. A tese foi trazida para o Brasil por Cláudia Lima Marques, utilizando os ensinamentos de Erik Jayme.27 Isso se dá diante de uma aproximação principiológica entre os dois sistemas legislativos, principalmente no que tange aos contratos.28 27 Cláudia Lima Marques demonstra as razões filosóficas e sociais da tese do “diálogo da fontes”: “Segundo Erik Jayme, as características da cultura pós-moderna no direito seriam o pluralismo, a comunicação, a narração, o que Jayme denomina de ‘le retour des sentiments’, sendo o Leitmotiv da pós-modernidade a valorização dos direitos humanos. Para Jayme, o direito como parte da cultura dos povos muda com a crise da pós-modernidade. O pluralismo manifesta-se na multiplicidade de fontes legislativas a regular o mesmo fato, com a descodificação ou a implosão dos sistemas genéricos normativos (Zersplieterung), manifesta-se no pluralismo de sujeitos a proteger, por vezes difusos, como o grupo de consumidores ou os que se beneficiam da proteção do meio ambiente, na pluralidade de agentes ativos de uma mesma relação, como os fornecedores que se organizam em cadeia e em relações extremamente despersonalizadas. Pluralismo também na filosofia aceita atualmente, onde o diálogo é que legitima o consenso, onde os valores e princípios têm sempre uma dupla função, o ‘double coding’, e onde os valores são muitas vezes antinômicos. Pluralismo nos direitos assegurados, nos direitos à diferença e ao tratamento diferenciado aos privilégios dos ‘espaços de excelência’ (JAYME, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit internacionale privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye, 1995, II, Kluwer, Haia, p. 36 e ss)” (MARQUES, Cláudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. Introdução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 24). 28 Sobre essa aproximação, aliás, foi aprovado o Enunciado nº 167 na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em dezembro último, com o seguinte teor: “Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor, no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos”. As razões apontadas pelo magistrado paraibano e jovem civilista Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha, autor da proposta, são pertinentes, merecendo transcrição o seguinte trecho: “Entretanto pode-se dizer que, até o advento do Código Civil de 2002, somente o Código de Defesa do Consumidor encampava essa nova concepção contratual, ou seja, somente o CDC intervinha diretamente no conteúdo material dos contratos. Entretanto, o Código Civil de 2002 passou também a incorporar esse caráter cogente no trato das relações contratuais, intervindo diretamente no conteúdo material dos contratos, em especial através dos próprios novos princípios contratuais da função social, da boa-fé objetiva e da equivalência material.Assim, a corporificação legislativa de uma atualizada teoria geral dos contratos protagonizada pelo CDC teve sua continuidade com o advento do Código Civil de 2002, o qual, a exemplo daquele, encontra-se carregado de novos princípios jurídicos contratuais e cláusulas gerais, todos hábeis a proteção do 38 Pretendemos analisar a Súmula 302 do STJ à luz desse diálogo de complementariedade entre os dois sistemas, “a permitir a aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas”.29 Prevê a referida súmula que “é abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo o internação hospitalar do segurado”. A súmula somente consubstancia o que já vinha entendendo tanto a doutrina quanto a jurisprudência.30 A abusividade da cláusula é flagrante, enquadrando-se inicialmente no art. 51, I, da Lei n. 8.078/90, pela qual é nula a cláusula que exonerem ou atenuem a responsabilidade do prestador do serviço. Além dessa previsão, a referida cláusula já era vedada expressamente pela Portaria n. 3, de 19 de março de 1999, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça.31 Fazendo um necessário “diálogo das fontes”, a cláusula de limitação de internação poderia também ser considerada abusiva pelo que consta do art. 424 do atual Código Civil, já que o contrato em questão assume a forma de adesão, sendo o seu conteúdo imposto unilateralmente pela empresa de plano de saúde. Isso porque o comando legal em questão prevê a nulidade absoluta, nos contratos de adesão, das cláusulas que implicam em renúncia prévia a direito consumidor mais fraco nas relações contratuais comuns, sempre em conexão axiológica, valorativa, entre dita norma e a Constituição Federal e seus princípios constitucionais. Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 são, pois, normas representantes de uma nova concepção de contrato e, como tal, possuem pontos de confluência em termos de teoria contratual, em especial no que respeita aos princípios informadores de uma e de outra norma” (Proposta enviada por e-mail pelo próprio Conselho da Justiça Federal aos participantes da III Jornada). 29 Marques, Cláudia Lima, Comentários, ob. cit., p. 26. 30 Por todos os julgados, transcrevemos o seguinte: “CONTRATO - Plano de saúde - Contrato de adesão - Relatividade das volições contratuais - Cláusula limitativa - Internação em unidade de terapia intensiva (UTI) - Prazo exíguo de 15 dias anuais com prorrogação dependente unicamente do critério da prestadora de serviço - Nulidade - Predominância do direito à vida sobre qualquer outro - Criação de vantagem exagerada para o convênio e restrição do direito para o conveniado - Lei Federal n. 8.078, de 1990 (art. 5º, IV) - Recurso provido”. (Tribunal
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