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EDUCAR PARA AVIDA OU PARA O TRABALHO-

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EDUCAR PARA A VIDA OU PARA O TRABALHO?∗ 
José Adir Lins Machado1 
Por mais que os índices de formação escolar atuais estejam 
constantemente apresentando melhorias, e com isso consigamos importantes 
avanços tecnológicos e científicos, os problemas éticos e sociais parecem não 
apresentar os mesmos progressos e sinalizam que há um distanciamento entre 
a visão de mundo atual e a construção de um mundo melhor e mais justo. 
Vemos isso diariamente nos jornais e revistas quando pessoas com ótima 
formação escolar saem algemadas de suas casas e vão parar no banco dos 
réus 
Um dos motivos disso estar acontecendo pode ser porque as virtudes 
originariamente presentes na transmissão do saber foram adquirindo finalidade 
prática ou então foram substituídas por outras com este fim, de modo que 
honra, coragem e prudência, por exemplo, cederam lugar, à excelência em 
atendimento, ao despertar necessidades e à empatia com o cliente, pois o 
outro é agora um cliente ou consumidor; um instrumento para se adquirir 
recursos, uma vez que o relacionamento passa a ser intermediado pelo 
elemento econômico ou pelo recurso financeiro. 
Nos dias atuais, parece que o sucesso acadêmico está sendo medido 
mais pelo sucesso financeiro do que pela melhoria de caráter do cidadão. 
Porém, acima do julgamento acerca do aspecto positivo ou negativo de tais 
mudanças, cabe o despertar da consciência acerca do modo como isto poderá 
nos auxiliar permitindo antever, tanto quanto possível, a educação do futuro. Só 
conhecendo o passado, vivendo o presente e buscando antever o futuro é que 
poderemos tê-lo mais próximo de nossas mãos e não sermos por ele 
surpreendidos. 
Queremos com isso mostrar que a educação é o princípio por meio do 
qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade pela 
vontade consciente e a razão. Uma educação consciente eleva a capacidade a 
um nível superior e cria melhores formas de existência humana. Na educação a 
força vital criadora atinge um alto grau de intensidade através do conhecimento 
e da vontade, dirigida para a consecução de um fim. A educação pertence por 
essência à comunidade, faz parte do caráter comunitário do homem 
enquanto ζωον piολιτικον (zoon politikon – animal político) e é fonte de toda 
ação e de todo comportamento. O influxo da comunidade tem força maior no 
educar entendido como resultado da consciência viva de uma comunidade 
humana. A educação participa no crescimento da sociedade, pois a história da 
educação está condicionada pela transformação dos valores para cada 
sociedade. 
Educação e cultura 
Contudo, a educação fica impossibilitada de ocorrer quando a tradição é 
destruída, e é bom lembrar que a estabilidade também pode ser indício de 
 
∗
 Texto elaborado com a finalidade de servir como subsídio aos alunos da Unopar – EAD, curso 
de Pedagogia, 1º e 2º semestres de 2015, na elaboração da produção textual individual. 
1
 Professor de filosofia da Unopar – EAD. 
momentos finais de uma cultura. Qualquer povo altamente organizado tem um 
sistema educativo, mas nenhum igual ao ideal grego de formação humana. 
Falar de uma multiplicidade de culturas pré-helênicas é uma falsificação 
histórica, pois o mundo que se inicia com os gregos é, pela primeira vez de 
modo consciente, um ideal de cultura como princípio formativo. 
O que hoje denominamos cultura não passa de um produto deteriorado. 
A Paidéia não é para os gregos um “aspecto exterior da vida” e por isto convém 
nos assegurarmos do seu autêntico sentido. É preciso voltar os olhos para as 
fontes de onde brota o impulso criador do nosso povo. Colocar conhecimentos 
como força formativa a serviço da educação e formar verdadeiros homens é 
uma ideia que só podia amadurecer no espírito daquele povo. Os gregos viram 
pela primeira vez que a educação tem de ser também um processo de 
construção consciente. 
Para todos os povos o conteúdo da educação parece ser o mesmo: 
moral e prático, ao mesmo tempo; reveste-se da forma de mandamentos e se 
apresenta como comunicação de conhecimentos e aptidões profissionais à 
qual os gregos deram o nome de téchne (τέχνη). Os preceitos foram mais tarde 
incorporados à lei dos Estados gregos, mas as regras das artes e ofícios 
resistiam à exposição escrita dos seus segredos; e o contraste entre estes dois 
aspectos da educação pode ser acompanhado ao longo da história. 
Ao distinguirmos as expressões educação e formação, percebemos que 
a formação se manifesta na forma integral do Homem, na sua conduta e 
comportamento exterior e na sua atitude interior, produtos de uma disciplina 
consciente, o qual a princípio limitava-se à nobreza; porém, a sociedade 
burguesa adotou a ideia e converteu-a num bem universal para todas as 
gentes. A nobreza é a fonte do processo espiritual pelo qual nasce e se 
desenvolve a formação de uma nação; a formação é a forma aristocrática de 
uma nação, um ideal definido de homem superior. 
Paideia e mito 
A palavra Paidéia só aparece no século V, com Ésquilo em Sete contra 
Tebas, e tinha o significado de “criação de meninos”, adquirindo mais tarde um 
sentido mais elevado na formação grega, identificado com a aretê, equivalente 
a “virtude”, como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma 
conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro. É no conceito de aretê que 
se concentra o ideal de educação dessa época. 
Testemunho da cultura aristocrática é Homero com a Ilíada e a Odisseia, 
dando forma ao ideal de Homem e se convertendo em força de formação de 
muito maior amplitude. Em Homero aretê é usada no sentido de excelência 
humana e como superioridade de seres não humanos, sendo que o homem 
comum não tem aretê, pois ela é um atributo próprio da nobreza; senhorio e 
aretê não se separam e utilizam a mesma raiz αριστοζ (aristós), superlativo de 
distinto e escolhido2. 
Só nos livros finais, Homero entende por aretê as qualidades morais e 
em geral designa por aretê a força e a destreza dos guerreiros e, acima de 
 
2
 Os gregos entendiam por aretê uma força, uma capacidade. Por exemplo: vigor e saúde são 
a aretê do corpo; sagacidade e astúcia, a aretê do espírito. 
tudo, o heroísmo. A própria poesia reconhece, ao lado da aretê, outras 
medidas de valor, sobretudo, a prudência (σοφροσυνη [sophrosyne]) e a 
astúcia, mas a aretê estava enraizada na linguagem tradicional da poesia 
heroica. Também o adjetivo αγαθοζ (agathos), corresponde ao substantivo 
aretê de nobreza e bravura militar. Quase nunca tem o sentido posterior de 
“bom”, como aretê não tem o de virtude moral. No entanto, todas as palavras 
deste grupo têm em Homero um sentido “ético” mais geral e designam o 
homem nobre que se rege por normas certas de conduta; os mais altos 
preceitos de uma conduta distinta dimanam daquela fonte. 
O sentido de dever é, nos poemas homéricos, uma característica 
essencial da nobreza. A força educadora da nobreza reside no fato de 
despertar o sentimento do dever. A luta e a vitória significam a comprovação da 
aretê conquistada na rigorosa exercitação das qualidades naturais. Vemos esta 
consciência pedagógica de nobreza nos jogos fúnebres em honra a Pátroclo 
morto e quando Glauco, ao enfrentar Diomedes no campo de batalha, inúmera 
seus antepassados ilustres: “Hipóloco me gerou, a ele devo a minha origem. 
(...) advertiu-me que lutasse por alcançar a mais alta virtude humana e fosse, 
entre todos, o primeiro”. O sentimento nobre formava a juventude heroica e a 
Ilíada testemunha a elevada consciência educadora da nobreza, apresentando 
uma nova imagem do homem perfeito, sendo Aquiles a expressão desse ideal; 
ele foi educado “para proferir palavras e realizar ações” 3. 
Intimamente ligada à aretê está a honra, pois os gregos preferiam morrer 
a viversem honra. Segundo Aristóteles a honra é a expressão natural da 
medida ainda não consciente do ideal de aretê; o homem homérico só adquire 
consciência do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence. 
Para Homero a negação da honra era a maior tragédia humana; a ânsia de 
honra era insaciável4 e era natural que os heróis exigissem uma honra cada 
vez mais alta; o elogio e a reprovação são a fonte da honra e da desonra e 
foram considerados pela ética o fato fundamental da vida social, o pagamento 
era secundário. Até os deuses reclamam a sua honra e se comprazem no culto 
que lhes glorifica os feitos; ser piedoso quer dizer “honrar a divindade”. Tétis 
suplica a Zeus: “Ajuda-me e honra meu filho, cuja vida heroica foi tão breve. 
Agamêmnon arrebatou-lhe a honra. Honra-o tu”. 
Educação e filosofia 
O pensamento ético de Platão e Aristóteles baseia-se na ética 
aristocrática da Grécia arcaica, naturalmente diferenciado dos tempos 
homéricos. Aristóteles tem muitas vezes os olhos postos em Homero e é digno 
de nota que Aristóteles visse na altivez uma virtude que pressupõe todas sendo 
o mais alto ornamento. Ele reserva um lugar para a altiva aretê da velha ética 
aristocrática. A honra é o troféu da aretê e a altivez provem da aretê, não 
sendo por si mesma um valor moral. A aretê conserva sempre a forma recebida 
da velha ética aristocrática e neste conceito se fundamenta o caráter 
aristocrático do ideal de formação dos Gregos. 
 
3
 Os Gregos viram nesses versos o seu ideal de formação, o ideal mais nobre de formação 
humana. 
4
 A aspiração à honra aparece para o sentimento cristão como vaidade pessoal e pecaminosa. 
Para os gregos o desejo de honra corresponde mais à ambição, tal como entendemos hoje. 
Aristóteles apresenta a aretê como uma autoestima elevada à sua maior 
nobreza e descobre uma das raízes originais do pensamento moral dos 
Gregos. O eu não é o sujeito físico, mas o mais alto ideal de Homem que todo 
nobre aspira. Só o mais alto amor deste eu é capaz de “fazer sua a beleza”, 
mas que é para Aristóteles esta beleza? São as ações do mais alto heroísmo 
moral: a defesa dos amigos, o sacrificar-se pela pátria, abandonar dinheiro e 
bens para “fazer sua a beleza”; e assim o heroísmo é o que há de mais peculiar 
no sentimento de vida dos Gregos; é a subordinação do físico a uma “beleza” 
mais elevada. 
No Banquete, Platão mostra o sacrifício do dinheiro e dos bens para se 
alcançar o prêmio de uma glória duradoura, o que explicaria o impulso do 
homem mortal em busca da própria imortalidade. Percebe-se que é a ideia de 
aretê que liga os dois grandes filósofos ao poeta Homero. 
Educar para o mercado de trabalho 
Na idade moderna a divisão entre trabalho e lazer, conhecer e fazer, 
homem e natureza resultou na cisão dos conteúdos da educação. Esses 
dualismos culminaram na demarcação entre as mentes individuais e o mundo e 
entre uma mente e outra, bem como na antítese entre os conteúdos 
(relacionados ao mundo) e o método (relacionado à mente). 
A educação que separa mente e mundo implica uma concepção errônea 
da relação entre conhecimento e interesses sociais. A identificação da mente 
como consciência psíquica privada é recente5. Conhecedor era a “Razão”, 
quando o indivíduo conhecia era δόξα, doxa (opinião)6. Entre os gregos, a 
observação era severa e o pensamento livre, porém faltava um método 
experimental e os indivíduos não podiam se envolver com o saber. 
A Idade Média preocupando-se com a salvação da alma individual trata 
o conhecimento como algo dentro do indivíduo7; no século XVI, com o 
individualismo econômico e político, era dever do indivíduo buscar o 
conhecimento por si mesmo mediante experiências privadas e pessoais; e 
assim a mente foi tomada como algo totalmente individual. Montaigne, Bacon e 
Locke denunciavam a aprendizagem adquirida por meio de outrem e 
afirmavam que mesmo as crenças verdadeiras não eram conhecimento sem a 
experimentação. 
Esse isolamento se refletiu epistemologicamente criando um abismo 
entre a mente que conhece e o mundo conhecido. Partindo de sujeito e objeto 
criaram-se teorias que explicavam como eles se interconectavam para resultar 
em conhecimento. Tais teorias afirmavam que não podemos conhecer o mundo 
como ele é, só a impressões, ou que não existe mundo além da mente 
individual. Este individualismo traduziu-se em subjetivismo filosófico. 
Os homens não estavam lutando para se libertar da conexão com a 
natureza e com os outros, mas lutando por maior liberdade na natureza e na 
sociedade. Queriam formar suas crenças sobre o mundo sem intermediários, 
 
5
 Tanto na Grécia como na Idade Média, considerava-se o indivíduo um canal pelo qual se 
manifestava uma inteligência universal e divina. 
6
 Os bárbaros supunham que o conhecimento era divinamente revelado. 
7
 Lembremos que Guilherme de Ockham considerava os universais inexistentes. 
em vez de recebê-las da tradição, pois sentiam que grande parte do que era 
tido como conhecimento era apenas opinião. 
Note-se que na era moderna os homens não descartaram todas as 
crenças8, mas partiram daquilo que era transmitido e investigaram criticamente 
suas bases e o resultado destas revisões foi uma revolução das concepções de 
mundo. Cada nova ideia se originava em um indivíduo, mas a sociedade 
governada pelo costume não encorajava o desenvolvimento de novas ideias, a 
tendência era suprimi-las tratando-as como meras fantasias. A liberdade de 
observação não foi facilmente assegurada, foi preciso lutar por ela; primeiro a 
sociedade permitiu e depois encorajou as reações individuais que se 
desviavam do costume. As teorias filosóficas consideravam a mente individual 
uma entidade apartada de outras mentes9, permitindo que deste individualismo 
intelectual fosse formulado um individualismo moral e social. 
Esse individualismo moral é estabelecido pelas separações conscientes 
entre as diferentes áreas da vida, onde a consciência de cada pessoa é um 
continente fechado em si, muito embora a ação se dê em um mundo público e 
comum. Admitida uma consciência egoísta, como pode ocorrer a ação voltada 
para os outros? 
 
Assista ao vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=5zHFAFQ3vAc 
 
 
8
 A revolução da modernidade não se deu por rejeição absoluta da tradição, mas pela luta por 
maior liberdade de pensamento. 
9
 A filosofia moderna formulou a ideia de indivíduo isolado, fonte de uma nova moral de uma 
nova ordem social, uma instância oposta ao mundo.

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