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V Simposio Internacional de la Historia de la Electrificación La electricidad y la transformación de la vida urbana y social Évora, 6-11 de mayo de 2019 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 ELETRIFICAÇÃO E CONDIÇÕES DE REALIZAÇÃO DA ESCOLA NO BRASIL Eveline Algebaile Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Projeto CAPES PrInt ealgebaile@gmail.com Gustavo Leite de Araujo da Silva Universidade do Estado do Rio de Janeiro gustavoleite1992@gmail.com Daniely Silva de Viveiros Universidade do Estado do Rio de Janeiro danielyviveiros@hotmail.com O propósito deste trabalho1 é abordar a questão da eletrificação de escolas no Brasil, considerando aspectos das relações históricas entre expansão elétrica e expansão escolar e, em particular, os impasses e desafios explicitados no contexto de realização do Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica – Programa Luz para Todos (PLT) –, criado em 2003. Entendemos que a análise dos antecedentes, do contexto e das motivações que levaram à criação do PLT, bem como dos desafios, conquistas e impasses evidenciados durante sua implementação, possibilita ressaltar a persistência histórica, no Brasil, de complexos problemas de conexão entre as variadas políticas públicas que integram as condições gerais de produção. E a correlação da expansão do fornecimento de eletricidade com a da oferta escolar pública, nos meios urbano e rural, dá visibilidade a importantes aspectos desses problemas, especialmente ao revelar as dissonâncias e os motivos que mantém os dois processos não plenamente coadunados até o presente. É importante observar que a expansão da oferta escolar, no Brasil, deu-se em conformidade com variados aspectos das persistentes desigualdades sociais e territoriais, contribuindo, em muitos casos, para reiterá-las ou aprofundá-las. Tal expansão, na maioria das vezes, não implicou propósitos consistentes de extensão das mesmas condições escolares para todo o território, de modo que as desigualdades sociais e territoriais que marcam a urbanização e a vida no meio rural reproduziram-se, sem atenuações, no campo escolar. No entanto, é também importante reconhecer que a expansão das redes de escolas acompanhou gradualmente a 1 Trabalho vinculado ao Projeto de Internacionalização Capes PrInt do PPFH/UERJ e ao Programa de Prociência da UERJ. mailto:ealgebaile@gmail.com mailto:gustavoleite1992@gmail.com mailto:danielyviveiros@hotmail.com Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 682 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 expansão das áreas habitadas, resultando na constituição de uma malha de instituições escolares que, malgrado sua diversidade, cobre praticamente todo o território nacional. A expansão da eletrificação se realizou segundo uma lógica relativamente distinta, fazendo parte, em tempo real, da criação das condições gerais de produção nas áreas urbanas – e, gradualmente, também nas áreas rurais –, mas cobrindo prioritariamente as áreas e atividades mais integradas aos setores centrais do capital e, por conseguinte, mais lucrativas para a própria comercialização do fornecimento de eletricidade. Com isto, mantém, às vezes por longo tempo, verdadeiros vazios socioterritoriais de acesso à eletricidade, incluindo-se, neste caso, áreas que, apesar de atravessadas por redes elétricas, não são a elas interligadas. As experiências do Programa Luz para Todos na eletrificação de escolas revelam importantes aspectos da relação entre expansão elétrica e expansão escolar, possibilitando uma melhor compreensão tanto das situações de não acesso à eletricidade quanto das dificuldades para superá-las. Como os estabelecimentos escolares sem fornecimento de energia são predominantemente as escolas rurais de pequeno porte que compõem as redes de ensino municipais e estaduais, a realização do programa evidencia limitações dos vários níveis da administração pública e das próprias relações federativas brasileiras no enfrentamento das persistentes desigualdades na oferta escolar pública. As lacunas da eletrificação e as dificuldades de sua superação revelam-se, neste caso, como expressões de especificidades territoriais, econômicas, político-administrativas e culturais de difícil intervenção. De outro lado, há conquistas educacionais importantes vinculadas ao fornecimento de energia, como a expansão de oferta escolar noturna, a possibilidade de uso de equipamentos eletrônicos, a alteração de hábitos de estudo e leitura, em um contexto de expansão da demanda em decorrência do reconhecimento de novos sujeitos de direitos e do desenvolvimento de políticas públicas correlatas, como no caso da expansão da oferta de educação escolar na forma de modalidades correspondentes às especificidades de diferentes segmentos populacionais. Considerando essas questões, apresentamos neste trabalho, com base em pesquisa documental e bibliográfica, aspectos das condições de interrelação entre as políticas de eletrificação e as políticas de oferta escolar, ao longo do século XX e, com mais especificidade, no contexto de criação e implementação do Programa Luz para Todos nas escolas, discutindo os impasses que aí se revelam. Dentre as fontes bibliográficas, reportamo-nos especialmente a trabalhos relacionados a diagnósticos e avaliações dos diferentes quadros históricos de produção e fornecimento de energia elétrica, bem como a estudos sobre situações locais ou regionais de eletrificação de escolas e dos resultados da eletrificação em relação às condições de realização da oferta e da formação escolar. Já o corpo documental é composto principalmente de documentos governamentais de variados tipos, envolvendo principalmente estudos diagnósticos, avaliações ou auditorias institucionais, bem como disposições legais e instrucionais relacionadas à criação e implementação do Programa abordado. No que diz respeito ao marco teórico do trabalho, tendo por base as formulações de Karl Marx2 sobre a produção histórica das condições gerais de produção que definem relevantes bases da produção econômica e da vida coletiva no contexto capitalista, destacamos, fundamentados especialmente em Horácio Capel3 e Sandra Lencioni4, a necessidade de 2 Marx, 1983 e 1984. 3 Capel, 2011. 4 Lencioni, 2007. Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 683 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 conhecimento das lógicas que presidem a produção e a expansão das bases mais diretamente vinculadas à produção econômica, como as redes técnicas de eletricidade e as redes viárias, e das bases de serviços relacionados à vida coletiva – como educação, saúde e assistência. A problematização das formas de interrelação entre essas bases no contexto capitalista dependente é especialmente fundamentada em Florestan Fernandes5. Quanto à estrutura do texto, além da introdução e do tópico final no qual sintetizamos as principais conclusões viabilizadas pelo estudo, apresentamos três seções que abordam, sucessivamente, aspectos da história da expansão elétrica no Brasil, a problemática relação entre a expansão escolar e a eletrificação de escolas, e os impasses, conquistas e limites relativos à eletrificação de escolas no contexto de realização do Programa Luz para Todos, um programa de extensão da eletrificação que se destaca dos precedentes tanto por sua escala de realização quanto pela tentativa de estabelecimento de um marco compreensivo e normativo da expansão elétrica às áreas e populações pobres não completamente subordinado à lógica da comercialização dos serviços de fornecimento de eletricidade.. Acesso em: 05 Mar. 2019. BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep. Notícias. Metade das escolas públicas da Amazônia Legal não tem energia elétrica. 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Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis: Vozes, 1998. OLIVEIRA, L. C. Perspectivas para a eletrificação rural no novo cenário econômico- institucional do setor elétrico brasileiro. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós- Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2001.Produção e expansão do sistema elétrico no Brasil: breves notas iniciais A constituição de um sistema de produção e distribuição de energia elétrica no Brasil teve início no século XIX, sendo base do processo de industrialização que o país recém estreava. Desde então, o desenvolvimento e a expansão desse sistema ocorreram com progressivos graus de intermediação estatal, voltada, sobretudo, para a produção energética, a concessão da distribuição e, com o tempo, também o controle tarifário. Esse processo de expansão foi principalmente voltado, por mais de um século, às áreas urbanas, resultando em um fornecimento rural fracionado, principalmente realizado por agentes privados e relacionado aos interesses de grandes proprietários e produtores rurais. Os espaços e segmentos populacionais relacionados à produção rural familiar e de pequeno porte foram relegados a condições de baixíssimo acesso à eletricidade, tanto no caso do fornecimento doméstico quanto no do provimento de iluminação viária e de equipamentos públicos, como escolas e postos de saúde. De acordo com Luciana Oliveira6, até os anos 1960, a não definição de uma política de eletrificação rural nacional limitava severamente a expansão do atendimento rural, restringindo-o principalmente a atuações isoladas de cooperativas e órgãos estaduais. As poucas tentativas de delineamento de uma política nacional não prosseguiram adequadamente7, até que em meados dos anos 1960 começam a ser aprovadas disposições que dariam um tratamento mais sistematizado ao tema. Destacam-se, neste caso, o Estatuto da Terra, Lei nº 4.504/1964, que define a eletrificação rural, em conjunto com outros elementos de infraestrutura, como meio para fomentar e estimular a produção agropecuária, e o Decreto nº 62.655/1968, que define o fornecimento de energia rural segundo o tipo de consumidor (individualizados ou cooperativas rurais), área (fora do perímetro urbano/suburbano), tipo de atividade agropecuária e/ou atividades com potência menor que 45 kVA. 5 Fernandes, 2009. 6 Oliveira, 2001. 7 O caso do Projeto de Lei nº 8, de 1948, apresentado pelo Senado Federal, ilustra bem essa situação. Propondo criar o Serviço de Fomento à Eletrificação Rural – SEFER, o referido projeto, após um ano em tramitação, foi arquivado pela Câmara dos Deputados, sem que sequer tivesse sido realizada a fase regimental de sua discussão. Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 684 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 Porém, os avanços aí implicados8 – que envolvem a gradual definição de um marco regulatório e outros desdobramentos legislativos, o redimensionamento e reestruturação de serviços de eletrificação rural e de cooperativas a eles vinculadas, bem como avanços correlatos no conhecimento científico e técnico e na composição de bases institucionais que dariam suporte às ações nesse âmbito –, apesar de viabilizarem a extensão dos serviços de energia a áreas rurais, não concretizaram expansões da cobertura da energia elétrica que alcançassem relevantes parcelas populacionais do meio rural sem e acesso à eletricidade ou a ela interligados de forma inadequada, ressaltando-se, neste caso, aqueles segmentos que não podiam pagar pelo fornecimento de energia elétrica. O baixo acesso da população de baixa renda à energia elétrica ocorreu também em meio urbano, mas a cobertura desses segmentos em áreas urbanas se deu segundo um ritmo relativamente coadunado com o desenvolvimento de outros aspectos das condições territoriais e com o dinamismo de expansão das redes técnicas urbanas. Já no meio rural, a questão do acesso à energia ocorre historicamente segundo uma lógica inversa. Por isto, entre os anos de 1960 e 1970, enquanto o atendimento de domicílios urbanos passava de 38,5% para 47,6%, o percentual de atendimento de domicílios rurais permaneceu inalterado, em 8,4%9. A intensificação dos contrastes entre fornecimento urbano e rural permaneceria, nas décadas seguintes, no Brasil, como um traço estrutural das condições de produção e acesso à energia elétrica. Como lembra Oliveira10, o padrão de desenvolvimento econômico fomentado no contexto do regime ditatorial vigente de 1964 a 1985 resultou em formas de impulso da produção industrial implicadas com o esvaziamento do campo, a expansão e concentração urbana e a redução do peso do setor agrário na composição da economia nacional. Já na década de 1970, acentua-se “a priorização da constituição de redes de infraestrutura voltadas para o atendimento das necessidades urbano-industriais”, enquanto nas áreas rurais “o avanço da modernização restringiu-se aos espaços econômicos agrícolas funcionalmente eficientes para o desenvolvimento industrial do país”11. As medidas de financiamento da eletrificação rural, neste caso, reforçaram a expansão das estratégias locais principalmente ancoradas nas cooperativas de eletrificação, instituídas de acordo com as normatizações ocorridas nas décadas anteriores. Nesse contexto, parte dos impasses da eletrificação rural relacionava-se a dificuldades institucionais de variadas ordens e escalas. Tentativas de ação interministerial ou intersetorial ficavam limitadas por embates relativos às prerrogativas de coordenação e às responsabilidades, fins, meios e recursos a empregar. Além disso, variados programas eram implementados simultaneamente por diferentes empresas. Como ressaltam Jeronymo e Guerra12, os embates, sobreposições e desarticulações aí implicados evidenciavam a falta de gestão e de ações que efetivamente integrassem os agentes envolvidos, bem como a falta de marcos regulatórios que favorecessem a construção e o exercício progressivo dessa integração. As mudanças políticas ocorridas nos anos 1980 contribuiriam para alterações relevantes nesse quadro. Se a crise econômica dessa década, no Brasil, resultou em piora dos índices gerais de qualidade de vida, esse foi, por outro lado, um período de reconfiguração dos parâmetros 8 Alexandre Jeronymo e Sinclair Guerra, 2018, 137. 9 Aneel, 2005. 10 Oliveira, 2001. 11 Oliveira, 2001, p. 31 12 Jeronymo e Guerra, 2018. Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 685 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 democráticos e sociais, resultando na promulgação da Constituição Federal de 1988, que inseriu no patamar legal uma série de direitos econômicos e sociais, bem como a responsabilidade do Estado em promover as condições de seu exercício. Em seu artigo 187, por exemplo, a Constituição garante o planejamento e execução de uma política agrícola que incluiu a eletrificação rural como um de seus elementos constitutivos; e em seguida, em um contexto de redimensionamento da relação entre Estado e trabalhadores, a energia elétrica aparece como serviço público essencial na Lei nº 7.783/1989, que regulamenta o exercício do direito de greve. Na década de 1990 e início dos anos 2000, a expansão do fornecimento elétrico no meio rural aparece principalmente vinculada ao Programa Nacional de Desenvolvimento Energético de Estados e Municípios (Prodeem), criado no final do governo Itamar Franco (1992-1994), em 1994, bem como ao Programa Nacional de Eletrificação Rural "Luz no Campo” (1999) e ao Programa de Energia nas Pequenas Comunidades (2000), criados na segunda gestão presidencial de Fernando Henrique Cardoso13 (1999-2002) e agregados ao Projeto Alvorada, diretamente vinculado à Presidência da República, criado no ano 2000 com o objetivo de intensificar o gerenciamento e a implementação de projetos da área social. O Programa Luz no Campo, dirigido à promoção de melhorias das condições socioeconômicas das áreas rurais, foi pensado para ser realizadoem articulação com outros programas e ações governamental, especialmente das áreas elétrica e de assistência social, como o Prodeem e o Programa Comunidade Solidária14, prevendo prazos e condições diferenciados para os estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, onde havia os maiores índices de exclusão elétrica. Com esse escopo, fortalecia a ideia de universalização do acesso à eletricidade que, porém, mantinha-se limitada, entre outros fatores, pelo custo das instalações elétricas internas e das tarifas de uso da energia, que eram inacessíveis para as parcelas mais pauperizadas da população15. Suas metas iniciais previam o fornecimento de eletricidade a 1 milhão de famílias em áreas rurais no prazo de 3 anos. Apesar do não alcance dessa meta, a realização de 634.594 ligações elétricas fez do Luz no Campo o maior programa de eletrificação até aquele momento realizado no país16. O Programa de Energia nas Pequenas Comunidades é basicamente uma continuidade do Prodeem, já que apresentava os mesmos objetivos do programa antecessor. Formalmente apresentado com o novo nome no Plano Plurianual 2000-2003, foi alvo de avaliação do Tribunal de Contas da União (TCU), em 2002, que identificou irregularidades em sua realização, destacando os problemas de descontrole patrimonial, baixa integração com outros programas públicos e dependência de tecnologia estrangeira. A respeito do descontrole patrimonial, o Relatório do TCU17 observou que parte dos problemas decorria do gerenciamento centralizado de um programa cuja realização, pontual e dispersa, exigiria uma estrutura capilar de acompanhamento e manutenção. As ações do programa se concentravam na distribuição de geradores de energia com tecnologia fotovoltaica para escolas públicas sem acesso à rede elétrica convencional e conjuntos de bombeamento de água a mesma tecnologia 13 Cardoso, que havia participado do governo Itamar Franco como Ministro das Relações Exteriores e Ministro da Fazenda, foi eleito presidente nos dois períodos governamentais seguintes, 1995-1998 e 1999-2002. 14 Programa de assistência iniciado em 1995, coordenado pela socióloga Ruth Cardoso, envolvendo diversas frentes de ação – como a garantia de direitos da criança e adolescente, a geração de renda e segurança alimentar – realizadas especialmente por meio de parceiras com organizações não governamentais e outras instituições civis, e não na forma de políticas públicas estruturadas. 15 Jeronymo e Guerra, 2018. 16 Bittencourt, 2010. 17 Brasil, TCU, 2003. Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 686 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 para comunidades com dificuldade de acesso à água e não atendidas pela rede elétrica. A falta de estrutura adequada para o acompanhamento e manutenção do programa resultou, entre outros problemas, na falta de um cadastro dos equipamentos instalados que fornecesse informações sobre sua instalação e condições, e na consequente perda de controle sobre os equipamentos, cujo extravio, transferência ou avaria mantiveram sem acesso à energia estabelecimentos ou comunidades que constavam como atendidas. O Brasil chega aos anos 2000 com um quadro de exclusão elétrica que atingia cerca de 2 milhões de domicílios18 e cerca de 63 mil escolas de ensino fundamental19 no meio rural, e a persistência de expressivos limites nas políticas vigentes e do seu consequente baixo impacto não autorizavam expectativas de efetiva superação dessa situação. Dos 10 milhões de brasileiros sem acesso à eletricidade em áreas rurais, 90% tinha renda inferior a 3 salários mínimos e essa situação era fortemente regionalizada, observando-se predominantemente nos estados da Região Norte e em parte da Região Nordeste, particularmente nos estados do Piauí e Maranhão, que apresentavam os menores índices percentuais de eletrificação rural, e a Bahia, que apresentava o maior número absoluto de pessoas sem acesso. Em 2002, a Lei nº 10.438 trouxe novas diretrizes sobre a oferta e tarifação da energia elétrica, representando o primeiro marco legislativo para a universalização de seu acesso. Até aquele momento, os programas não apresentaram gratuidade para as famílias que não possuíssem renda para a compra do serviço, e essa lei definiu que, para esses usuários, o atendimento do solicitante seria realizado “sem ônus de qualquer espécie”. Ainda era preciso, no entanto, definir fontes e dotações financeiras, bem como formas de gestão e procedimentos que, assegurando essa gratuidade, colocassem em andamento as novas condições de acesso. Relações entre eletrificação e expansão escolar no Brasil As bases materiais e jurídicas da vida coletiva expressam as formas dominantes de produção e apropriação da riqueza, mas sempre segundo as especificidades dessas formas em cada contexto histórico e geográfico20. Nas sociedades capitalistas, a apropriação desigual da riqueza será sempre um componente estrutural das relações sociais de produção, mas as especificidades com que se realiza em cada contexto histórico e geográfico legarão aos variados aspectos da vida coletiva particularidades relevantes. Desse enunciado geral, deve-se deduzir que, em um contexto de intensa e decisiva urbanização da sociedade, a compreensão das configurações assumidas pelas políticas públicas requer que sejam consideradas as condições de sua emergência, expansão e declínio, bem como os variados nexos entre esses processos e as mudanças técnico-científicas que impulsionam mudanças na produção econômica e na dinâmica social, suscitando novas bases materiais e jurídicas para a vida coletiva. Como lembra Sandra Lencioni, a expansão do capitalismo implica o desenvolvimento de condições gerais de produção21 que envolvem os equipamentos de consumo coletivo relacionados direta e indiretamente ao processo de produção. No primeiro caso, temos, dentre outros, os equipamentos viários e de comunicação, os de produção e distribuição de energia e os de captação e distribuição de água, enquanto, no segundo caso, podem ser destacados os de 18 Dados do Censo Demográfico do IBGE de 2000. 19 Dados do Censo Escolar do INEP de 1999. 20 Marx, 1983 e 1984; Fernandes, 2009. 21 Marx, 1983 e 1984. Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 687 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 educação e saúde. Como as redes de equipamentos diretamente vinculadas ao processo produtivo são as que “agregam valor à mercadoria, pois as transformam, de mercadorias em potencial, em mercadorias reais”, elas tendem a se desenvolver de forma mais rápida que as redes de equipamentos indiretamente relacionadas à produção, relegando-os “a segundo plano”22. Recordando que esses dois grupos de equipamentos, vinculados à expansão da urbanização, constituem redes cada vez mais densas e complexas, que se tornam importantes fatores de configuração dos territórios, Capel adverte que a diversidade da expansão, das condições e das formas de participação dessas redes na configuração dos territórios é inerente às funções que ambas cumprem no contexto capitalista, ainda que as desigualdades nos seus traçados, produzindo áreas periféricas que crescem “con carencia de las redes más elementales”, pareçam contradizer esse princípio 23. Essas formulações nos põem alertas para a importância de que a análise de políticas públicas no contexto brasileiro, ao considerar suas condições de emergência e expansão, leve em conta tanto as especificidades da participação do Brasil nas relações dominantes de produção e apropriação da riqueza, quanto as incidências dessas especificidades no curso de cada política e das interrelações entre políticas de distintos ramos. Como Fernandeshavia mostrado em estudo publicado originalmente no início dos anos 1970, sobre as especificidades da formação econômico-social dos países latino-americanos, identificadas pelo autor como constitutivas de uma forma particular de capitalismo, o capitalismo dependente, o modelo concreto de capitalismo que irrompeu e vingou na América Latina [...] reproduz as formas de apropriação e expropriação inerentes ao capitalismo moderno [...]. Mas, possui um componente adicional específico e típico: a acumulação de capital institucionaliza-se para promover a expansão concomitante dos núcleos hegemônicos externos e internos (ou seja, as economias centrais e os setores sociais dominantes). Em termos abstratos, as aparências são de que estes setores sofrem a espoliação que se monta de fora para dentro, vendo-se compelidos a dividir o excedente econômico com os agentes que operam a partir das economias centrais. De fato, a economia capitalista dependente está sujeita, como um todo, a uma depleção permanente de suas riquezas (existentes ou potencialmente acumuláveis), o que exclui a monopolização do excedente econômico por seus agentes privilegiados. Na realidade, porém, a depleção de riquezas se processa à custa dos setores assalariados e destituídos da população, submetidos a mecanismos permanentes de sobre apropriação e sobre-expropriação capitalistas24. Sobre apropriação e sobre-expropriação da riqueza incidem em variados aspectos das condições gerais de produção e das condições de organização da vida coletiva: a espoliação da força de trabalho e de riquezas naturais; a utilização sistemática da produção ampliada de infraestrutura como “anti-valor”25; a conversão da modernização26 e das políticas públicas27 22 Lencioni, 2007, s/p. 23 Capel, 2011, p.7 24 Fernandes, 2009, p. 51-52. 25 Francisco de Oliveira, 1998. Com o conceito de “anti-valor”, Oliveira busca assinalar a crescente importância do uso fundo público na redução de gastos de produção do setor privado, observando que a transferência aberta ou dissimulada desses gastos para o setor público possibilita aos empresários, individual ou coletivamente, contabilizar esses gastos públicos na ampliação das suas margens de lucro. 26 Fernandes, 1974. 27 Frigotto, 2001. Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 688 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 em negócios, com a consequente subordinação de sua produção aos seus retornos comerciais imediatos; dentre outros. Por isso, nos países capitalistas dependentes, como o Brasil, a demora histórica na definição de marcos jurídicos relativos ao exercício de direitos e às responsabilidades estatais e civis para com as políticas a eles referidas; a baixa coadunação entre as disposições jurídicas conquistadas e as ações concretas para o asseguramento de seu exercício; bem como as dissonâncias entre os serviços públicos pressupostos e as bases objetivas para sua realização, não são meros resultados de relações arcaicas persistentes, resquícios de um passado em vias de superação. São expressões de um padrão de sobre- apropriação e sobre-expropriação da riqueza que se mantém como um elemento ativo no curso da história, adquirindo novas instrumentalidades mesmo nos processos de modernização, desse modo constituindo, em caráter permanente, as próprias condições gerais de realização de políticas públicas. Deve-se notar, aqui, que a compreensão das características e significados fundamentais dos marcos jurídicos, da ação governamental e das bases materiais das políticas referidas a direitos sociais requer que os âmbitos jurídico, político-administrativo e infraestrutural sejam analisados a partir de seus pontos de contato, dissonância, atravessamento e tensão. Igualmente importante é observar a maior ou menor intensidade das diferenças entre os processos de formação e expansão das bases diretas da produção econômica (como redes técnicas de energia e transportes) e das redes de serviços relacionadas à garantia da vida coletiva (como educação, saúde, assistência social e formação para o trabalho), considerando- se que as distintas lógicas que presidem esses processos de formação e expansão parecem ter peso fundamental na prolongada vigência tanto dos problemas estruturais de cada um dos referidos âmbitos – redes técnicas de infraestrutura e redes de serviço – quanto dos limites de resolução dos problemas inerentes aos seus necessários nexos. A acidentada história dos nexos entre expansão escolar e expansão elétrica, no Brasil, dá visibilidade a importantes aspectos das distintas lógicas que presidem esses dois largos processos, ao longo do século XX, e da surpreendente persistência de suas dissonâncias até o presente. A respeito da expansão escolar no Brasil, deve-se observar que, ao longo do seu lento processo de expansão da oferta educacional, as desiguais condições de funcionamento das escolas, por sua persistência e reiteração, foram se revelando como uma condição estrutural da produção da escola. A instauração da República (1889) implicou gradualmente uma maior presença da questão da universalização escolar no debate público, ensejando discussões relativas às disposições jurídicas, às responsabilidades político-administrativas dos diversos níveis de governo, aos problemas do financiamento e do planejamento educacional, e à necessidade de uma construção institucional que propiciasse a regularidade, o encadeamento e a progressividade da atuação dos governos na expansão e consolidação de formas de oferta educativa capazes de incorporarem, gradualmente, os variados segmentos populacionais. Esse debate adquire maior sistematicidade nos anos de 1930, nas formulações de renomados educadores a respeito da urgência de uma política nacional de educação que, no entanto, colidem com a persistência da debilidade das formulações jurídicas federais e da ação dos governos dos estados e municípios em relação à oferta escolar. Como já demonstramos em estudo anterior28, as disparidades escolares entre regiões, entre capitais e interior, entre área urbana e área rural, e entre as áreas centrais das cidades e os bairros suburbanos e periferias, podiam ser observadas nos mais variados aspectos da oferta, da organização e do funcionamento das escolas, envolvendo os índices de escolarização, as condições físicas e funcionais das escolas, os padrões e ramos da formação escolar oferecida, 28 Algebaile, 2009. Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 689 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 o provimento de professores e, por conseguinte, também aos resultados educacionais. As escolas rurais eram atingidas de forma mais forte por todo tipo de precariedade. A insuficiência de disposições jurídicas sobre as responsabilidades da administração pública para com a oferta educacional, a baixa articulação entre os diferentes níveis governamentais e a descontinuidade da atuação das administrações públicas, entre outros aspectos que incidiam sobre a produção da oferta escolar, mantinham a escola rural, predominantemente, nos mais baixos patamares de condições materiais e funcionais. A sua dispersão territorial implicava distância em relação às redes técnicas – elétrica, de saneamento e distribuição de água, e viária – às quais a escola precisa estar interligada para garantir as mais elementares condições de funcionamento, acesso e atuação de professores e alunos. A sua forma de participação na composição do sistema escolar era igualmente marginal, implicando situações de significativo abandono administrativo e pedagógico. Sabe-se que as condições de vida no meio rural, no Brasil, tradicionalmente legam aos trabalhadores docampo condições de exploração e pauperização que implicam graves limites à escolarização das crianças e jovens. Parte do enfrentamento desses limites poderia se dar por meio da garantia de boas condições de acesso e frequência à escola, mas, ao contrário disto, o quadro efetivo de oferta escolar no campo, por sua precariedade, apenas reforçava as dificuldades impostas pelas condições econômico-sociais dos campesinos. Na década de 1950, um estudo vinculado ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas em Educação – Inep – a respeito do trabalho e da escolarização no meio rural, cobrindo 140 municípios das regiões agrícolas mais produtivas do país, destacou, como aspectos que repercutiam na frequência escolar, além do pauperismo e da generalizada participação das crianças e jovens na composição da força de trabalho da família, situações como “má distribuição das escolas, desestímulo do professor face aos vencimentos exíguos, mobilidade das populações, em especial dos mais pobres, sem terras próprias, coincidência do ano agrícola com o ano letivo"29. As escolas apresentavam os mais elementares problemas, como os relativos ao acesso à água, à estrutura dos prédios e instalações, à eletricidade e saneamento, ao provimento e condições do mobiliário escolar e às possibilidades de uso de equipamentos educativos, dentre outros aspectos que, em conjunto, concorriam para a baixa qualidade do ensino. A persistência dessas condições por décadas e sua reiteração nas novas unidades escolares que iam dando corpo à expansão escolar produziram um padrão de oferta que ainda se mostra vigente décadas depois, como expresso no documento Panorama da Educação Rural no Campo, produzido pelo mesmo Instituto, em 2007, que elenca, dentre as principais questões necessárias de serem enfrentadas na reestruturação da educação no campo: a insuficiência e a precariedade das instalações físicas da maioria das escolas; as dificuldades de acesso dos professores e alunos às escolas, em razão da falta de um sistema adequado de transporte escolar; [...] baixo desempenho escolar dos alunos e elevadas taxas de distorção idade-série; baixos salários e sobrecarga de trabalho dos professores, quando comparados com os dos que atuam na zona urbana; [...] a implementação de calendário escolar adequado às necessidades do meio rural, que se adapte à característica da clientela, em função dos períodos de safra30. 29 Caldeira, 1960, apud Maia, 1982. 30 Brasil, Inep, 2007, p. 8-9 Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 690 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 Ainda que o problema da eletrificação das escolas possa ser compreendido como parte desse quadro geral de desigualdades e ineficiências persistentes, suas debilidades apresentam particularidades relevantes para a compreensão das relações entre expansão escolar e expansão das redes técnicas que dão base à efetiva realização da escolarização e da formação escolar. Um primeiro aspecto a destacar, neste caso, diz respeito aos limites das disposições jurídicas relacionadas ao tema. De modo geral, a eletrificação de escolas em áreas rurais não foi tratada em legislação nacional específica de energia elétrica até a década de 1980, quando o Decreto nº 89.313/1984, ao alterar decretos anteriores31, deixa de vincular o fornecimento rural estritamente aos consumidores rurais individualizados ou integrantes de Cooperativa de Eletrificação Rural, incorporando a essa categoria de fornecimento o serviço público de irrigação rural e as escolas agrotécnicas sem fins lucrativos situadas em zona rural. Apesar do relativo avanço da eletrificação rural na década de 1980 por meio de cooperativas e com o financiamento do BNDES, é importante frisar que não houve definição sobre a realização das instalações na rede escolar. A inclusão de escolas em programas de eletrificação na década de 1990, por sua vez, não foi acompanhada de suficientes definições sobre os meios de financiamento efetivo e as dotações de recursos correspondentes para a realização das instalações internas. Isto somado à insuficiente definição das relações colaborativas entre níveis governamentais, agências e concessionárias na consecução das ações de eletrificação, manteve um grande número de escolas sem acesso à eletricidade. Assim, estudos sobre as condições de acesso e uso da energia elétrica por estabelecimentos de ensino, nesse contexto, apresentavam informações surpreendentes relativas à quantidade de escolas não interligadas a redes de eletricidade ou a sistemas isolados de fornecimento, à persistência dessa situação mesmo em estados de maior desenvolvimento econômico e mais alto padrão de urbanização e planejamento regional, aos índices de reincidência dos problemas de acesso à energia e à reiteração de problemas relacionados às baixas condições de uso da eletricidade em decorrência da irregularidade, insuficiência e baixa qualidade do fornecimento. Medidas de extensão territorial da rede elétrica mostravam-se claramente necessárias, mas não eram condição suficiente para garantir às escolas as condições adequadas de acesso e uso da eletricidade, já que, nas várias regiões brasileiras, registravam- se situações em que escolas cadastradas como eletrificadas não tinham efetivamente acesso à energia devido à não realização das instalações internas pelos municípios ou estados, ou à ocorrência de avarias sem reparo por prolongado tempo, ou, ainda, devido ao fornecimento irregular que, entre outros problemas, limitava a implantação e manutenção de turnos noturnos. Alguns estudos da década de 1990 e início dos anos 2000 apresentam situações regionais que ilustram bem o quadro acima indicado. Fernando Selles Ribeiro e José Francisco Martins Santos32 observam que os problemas de extensão do acesso à eletricidade, no Brasil, naquele contexto, ainda resultavam em grande parte de decisões políticas que mantinham os vínculos prioritários do Estado, das concessionárias e do próprio desenvolvimento científico e técnico com as atividades e infraestruturas econômicas de largo porte, relacionadas ao lucro privado e ao fornecimento de excelência. Nesse sentido, é importante observar que o baixo atendimento ao pequeno produtor agrícola, às áreas rurais vinculadas a essa pequena produção ou à produção familiar, e às áreas de moradia popular dos interstícios e periferias urbanas expressava uma lógica que se reproduzia também na produção e manutenção de infraestrutura e equipamentos públicos para essas mesmas áreas. 31 Decretos nº 62.724/1968 e 68.419/1971. 32 Ribeiro e Santos, 1994. Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 691 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 Um estudo de Oswaldo Arimura et al33, realizado nos anos finais da década de 1990, sobre a eletrificação das escolas rurais em São Paulo, expõe um quadro, insólito para o estado de maior desenvolvimento econômico e territorial do Brasil, ao relatar as dificuldades de implementação dos programas de eletrificação rural, a impropriedade dos dados governamentais a respeito das situações reais de acesso à energia por parte das escolas, os limites de qualidade e sustentabilidade dos programas de fornecimento de energia elétrica por meio de tecnologias alternativas. O estudo identifica 240 escolas sem eletricidade, observando que estas atendiam, em conjunto, a cerca de 2000 crianças e jovens. É interessante notar que, dessas escolas, 20 não constavam da listagem de escolas não eletrificadas da Secretaria Estadual de Educação ou de outras listas das secretarias envolvidas, e 31 escolas, que constavam como eletrificadas por meio da implantação de sistemas fotovoltaicos,não tinham efetivo uso de eletricidade devido a avarias ou mau funcionamento do sistema. Um dos aspectos ressaltados pelos autores, portanto, é o desencontro e a insuficiência dos dados institucionais, decorrentes da não atualização de dados governamentais, das inadequadas formas de controle da atuação das concessionárias ou, ainda, da inadequada comunicação e articulação entre níveis de governo e entre setores governamentais. Outra observação relevante é que algumas escolas não eletrificadas estavam muito próximas da rede elétrica, e parte das escolas não tinha eletricidade por falta de instalações elétricas internas. Nesses casos, é evidente que a falta de eletricidade não se devia necessariamente a problemas como o alto custo e a complexidade da expansão da rede. Os motivos mais prováveis eram as escolhas políticas e econômicas de governos e concessionárias, bem como a negligência, despreparo ou desarticulação dos setores governamentais e dos níveis de governo, que mantinham a expansão elétrica e a oferta escolar como processos isolados e não coetâneos. Em 2002, segundo dados do Censo Escolar, dos 100.084 estabelecimentos (92.713 municipais) de anos iniciais do ensino fundamental, apenas 58,3% tinham fornecimento de energia elétrica. A comparação desses dados com os de anos anteriores indicava melhoras sutis no percentual de eletrificação de escolas, mas as alterações percentuais se deviam em boa parte ao fechamento de pequenas escolas rurais. Ao longo do século XX, devido às condições de ocupação do território e às especificidades da formação do Estado brasileiro, a expansão da oferta da escola elementar havia envolvido a criação, por parte de estados e municípios, de muitos estabelecimentos de ensino de apenas uma ou duas salas de aula. Em 2002, do total de estabelecimentos de anos iniciais do ensino fundamental rural, cerca de 70% eram escolas de até 50 alunos, na sua grande maioria, municipais. As escolas não eletrificadas eram predominantemente as desse tipo. Por conseguinte, seu fechamento impactava imediatamente as estatísticas educacionais relacionadas à infraestrutura escolar, sem que isso expressasse efetivamente a produção de melhorias infraestruturais. Segundo estudo realizado pelo Inep, em 2003, divulgado em matéria institucional34, ainda que escolas não eletrificadas fossem identificadas também em áreas urbanas, esse quadro era claramente mais grave no meio rural, com destaque para as escolas da Amazônia Legal35, onde, segundo dados do Censo Escolar de 2002, 819 mil alunos da educação básica pública estudavam em escolas sem energia elétrica. Essas escolas, que correspondiam à metade dos 33 Arimura et al, 2002. 34 Brasil, Inep, 2003. A referida matéria apresentava dados do estudo “Subsídios para eletrificação das escolas de educação básica da Amazônia Legal”, realizado em 2003 a pedido das Centrais Elétricas do Norte do Brasil - Eletronorte, já no contexto de criação do Programa Luz para Todos, no Governo de Luiz Inácio Lula da Silva. 35 Definida em 1966 para fins de planejamento econômico, a Amazônia Legal corresponde a uma área de 5,2 milhões de quilômetros quadrados, compreendendo 61% do território brasileiro, englobando os sete estados da Região Norte do Brasil, além do Mato Grosso (Região Centro-Oeste) e do Maranhão (Região Nordeste). Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 692 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 estabelecimentos de ensino da Amazônia Legal e atendiam a 11% das matrículas, eram pequenas, com menos de 40 alunos em média, apresentando altos índices de analfabetismo e baixos índices de escolaridade. Os dados mostravam, ainda, que, das escolas da região, 43% recebiam energia elétrica da rede pública, 6% tinham gerador próprio e 1% contava com equipamento de captação de energia solar. Os 6,9 milhões de alunos que nelas estudavam representavam 89% do total da região, e a situação das escolas expressava, predominantemente, “o perfil de fornecimento de energia aos domicílios da região”, na qual, de acordo com o Censo Demográfico do IBGE de 2000, apenas 45% dos domicílios rurais tinham fornecimento de energia elétrica. Portanto, conforme a mesma matéria “o esforço para fazer chegar luz às escolas, sobretudo na zona rural, [era] equivalente ao que seria exigido para a eletrificação dos domicílios naquelas localidades”. A falta ou má qualidade de energia elétrica ocorre geralmente em estabelecimentos escolares caracterizados por outros problemas de infraestrutura que, em conjunto, implicavam problemáticas condições de realização da ação escolar e de desenvolvimento dos processos formativos. Não se pode, por conseguinte, reputar isolada e diretamente à falta de eletricidade os limitados resultados escolares, assim como não se pode esperar que o fornecimento de energia elétrica, por si, os modifique. Contudo, deve-se reconhecer que o não acesso à eletricidade é um problema infraestrutural importante, especialmente por implicar direta ou indiretamente outras limitações, como as relativas ao próprio uso das instalações escolares e dos equipamentos de ensino. Dentre os problemas derivados da falta de eletricidade ou da baixa qualidade de seu fornecimento, estudos a respeito36 possibilitam destacar: a limitação do horário de funcionamento escolar, inviabilizando-se a oferta escolar noturna, justamente em áreas de moradia de população trabalhadora; as más condições de ensino e aprendizagem relacionadas à insuficiente iluminação nos horários diurnos37, especialmente em dias nublados, implicando dificuldades no uso do quadro de giz e outros materiais expositivos, bem como na realização de atividades que envolvem leitura e escrita; a insalubridade e o desconforto do ambiente escolar, relacionados à má iluminação, más condições de ventilação e de captação e uso da água em espaços abastecidos por poços e cisternas; o comprometimento da visão e da atenção das crianças; a limitação do desenvolvimento de variadas práticas de leitura; a impossibilidade de uso de recursos audiovisuais; problemas com o armazenamento, a conservação, a oferta e a qualidade da merenda escolar; limitações às atividades de administração e planejamento escolar, incluindo problemas de comunicação institucional; problemas com a moradia e o trabalho complementar dos professores, como o de preparo de aulas e avaliação de trabalhos dos alunos; ocorrência de evasão escolar devido à baixa atratividade da escola. Esses diversos problemas, por sua vez, constituem não apenas um conjunto de carências, mas especialmente um quadro de assimetrias crescentes em relação aos novos padrões de 36 Como em Arimuri et al, 2002, e Mejdalani et al, 2018. 37 Certamente a melhoria na iluminação do espaço escolar não decorre apenas de maior uso da eletricidade. O planejamento arquitetônico dos prédios escolares poderia ampliar significativamente o aproveitamento da luz natural, bem como sua conjugação com mecanismos de ajuste dos níveis de iluminação artificial, promovendo-se com isto melhores condições de eficiência energética e, por conseguinte, melhores possibilidades de uso da energia elétrica disponível. Mas também cabe lembrar que o não fornecimento de energia elétrica a estabelecimentos escolares, no contexto analisado, expressa majoritariamente uma baixa atenção política conferida à escola, que determina não apenas sua não eletrificação, mas o conjunto das suas condições estruturais e de funcionamento. Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 693 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 funcionamento e formação escolar que vão sendo garantidos aos segmentos populacionais dos núcleos urbanosmais avançados. E essas assimetrias vinculam-se a quadros complexos de dissonâncias no interior da própria administração pública nos seus diversos setores e níveis. É notável, neste caso, a extemporaneidade das condições materiais e funcionais de parte das escolas em relação aos próprios projetos educacionais governamentais cuja realização depende de fornecimento regular de energia elétrica e, em particular, de fonte elétrica de qualidade. Exemplos importantes são o Programa Nacional de Informática na Educação – ProInfo, criado em 1997 –, voltado à introdução de novas tecnologias de informação e comunicação nas escolas públicas, com vistas à dinamização do processo formativo; e o Programa TV Escola, um canal público de televisão educativa criado em 1996, com o objetivo de difusão sistemática de programação dirigida à capacitação e à atualização permanente dos professores. Ambos os programas, por questões óbvias, não podem ser implantados exatamente nas escolas que mais precisam do acesso aos novos recursos e meios de formação por eles portados. Por fim, é de se esperar que em áreas rurais historicamente desprovidas de bases e meios para o desenvolvimento da vida coletiva a escola cumpra funções mais amplas, configurando-se como um espaço capaz de acolher e fomentar atividades comunitárias, como as relacionadas a variadas práticas de formação, cultura, associação e comunicação, bem como de fornecer meios, como os tecnológicos, necessários para a dinamização dessas práticas e da integração entre a população local e demais grupos, instâncias, instituições e produções de outras localidades. Assim, as condições de eletrificação das escolas na década de 1990 e início dos anos 2000 podem ser entendidas como constitutivas de um quadro de problemas que excede, em muito, a questão infraestrutural da extensão das redes elétricas, expondo debilidades materiais, institucionais e políticas persistentes que precisariam ser enfrentadas em conjunto para que fosse alterada a lógica de reiteração de problemas que, até então, se sobrepunha sistematicamente aos variados projetos, limitando sua capacidade de intervenção. O Programa Luz para Todos e seus desdobramentos na eletrificação de escolas As informações anteriormente apresentadas permitem observar que, até os anos iniciais da década de 2000, a questão do acesso à energia como direito social, apesar de presente no debate público e relativamente tratada em termos jurídicos e programáticos, não se desdobrava suficientemente em disposições e ações cujos meios, sistematicidade e regularidade garantissem sua efetividade. As disposições a respeito do fornecimento e do acesso à eletricidade já enfatizavam o princípio do direito social que, porém, não se sobrepunha à lógica comercial, segundo a qual a extensão do fornecimento elétrico ficava subordinada ao cálculo padrão das vantagens tarifárias que deveriam ser garantidas às concessionárias. A Lei nº 10.438/2002, como vimos, instaura o primeiro marco legislativo para a universalização do acesso à eletricidade, mas não se desdobra, no mesmo ato, em disposições orçamentárias e político-administrativas que efetivassem a suposta gratuidade. A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República, em 2003, implicaria alterações importantes nesse quadro. Sua opção por um projeto pautado em políticas de Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 694 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 crescimento econômico, de transferência de renda e de incentivo ao consumo38 foi articulado ao desenvolvimento de políticas públicas relacionadas a direitos sociais, resultando na ampliação das bases jurídicas e institucionais para a realização de ações e serviços públicos relacionados à educação, saúde, trabalho, renda, assistência e infraestrutura. Também fez parte desse projeto o desenvolvimento de novas formas de gestão da produção e da distribuição de energia elétrica, entendida como base fundamental para a realização das demais políticas39 e como direito a ser garantido para setores da sociedade historicamente marginalizados, sobretudo em áreas rurais. Nessa perspectiva, no seu primeiro ano de governo foi criado o Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica – Luz para Todos, destinado ao atendimento da parcela da população do meio rural brasileiro sem acesso à energia elétrica. O Decreto de criação do programa definiu recursos públicos específicos para seu custeio, na forma de subvenções econômicas e de financiamento de instalações. Também definiu sua forma de gestão, constituída pela coordenação do Ministério de Minas e Energia, pela participação das Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobrás e de suas empresas subsidiárias na sua operacionalização, mas também por uma Comissão Nacional de Universalização, um Comitê Gestor Nacional de Universalização, e Comitês Gestores Estaduais que, em conjunto, deveriam realizar uma forma de gestão compartilhada do Programa e estabelecer ações de desenvolvimento integrado no meio rural, buscando articular os diversos programas governamentais existentes. A composição da CNU com 13 Ministros de Estado40, o Presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o Presidente do Fórum Nacional dos Secretários de Energia dos Estados e o Diretor-Geral da ANEEL, expressa com clareza o propósito de desenvolvimento de ações integradas e de articulação das ações e meios existentes, também presentes nos objetivos do programa, que abordavam textualmente vários aspectos das condições de vida, de atuação econômica e de oferta de serviços no meio rural. Os critérios técnicos e financeiros da operacionalização do Programa foram definidos em um manual específico, que apresentava dados sintéticos do quadro de exclusão elétrica no Brasil e dispunha sobre a forma de seu enfrentamento. Considerando que, naquele contexto, 80% da exclusão elétrica se situava no meio rural, o programa deveria garantir o acesso ao serviço público de energia elétrica a todos os domicílios e estabelecimentos rurais, melhorar a prestação de serviços à população beneficiada, intensificar o ritmo de atendimento e mitigar o potencial impacto tarifário, por meio da alocação de recursos subvencionados e pelo complemento de recursos financiados41. O mesmo manual previa a necessidade de integração do LPT aos demais programas sociais e de desenvolvimento rural, federais e estaduais, com vistas a assegurar que a eletrificação do campo resultasse em efetivo incremento da produção agrícola e dinamizasse o próprio crescimento da demanda por energia elétrica, bem como o aumento de renda e da inclusão social da população. 38 Boito Junior, 2014. 39 Bárbara Cardoso, Thiago Oliveira e Mônica Silva, 2013. 40 Minas e Energia, Casa Civil da Presidência da República; Fazenda; Planejamento, Orçamento e Gestão; Desenvolvimento Agrário; Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Segurança Alimentar e Combate à Fome; Integração Nacional; Educação; Saúde; Meio Ambiente; Ciência e Tecnologia; e Desenvolvimento, Industria e Comércio Exterior. 41 Brasil, MME, 2004. Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 695 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 Esse formato do programa propicia condições efetivamente novas de enfrentamento de limitações estruturais dos programas anteriores. No que diz respeito à sua lógica de financiamento, removem-se os obstáculos representados pelas limitações financeiras das famílias, que as impediam de arcar com os custos das ligações internas, e pela restrita atuação das administrações públicas, especialmente municipais, no financiamento das instalaçõesinternas e da infraestrutura de interligação de escolas e demais estabelecimentos públicos às redes de energia: recursos da União passam a financiar todos os componentes necessários a essas instalações e interligações, envolvendo dos postes e fios às tomadas de cada cômodo das unidades atendidas. No que diz respeito à estrutura organizacional e à dinâmica de acompanhamento da realização do programa, também há relevantes conquistas, já que, além do regime de gestão compartilhada interministerial e intersetorial, o LPT prevê variados aspectos da atuação interligada entre Comitê Nacional, coordenações regionais, comitês estaduais, coordenação e agências da Eletrobrás, empresas concessionárias de energia e agentes que passam a ser previstos para atuarem nos territórios que recebem as ações, próximos as populações e agentes públicos locais. No que diz respeito à cobertura do programa, também é notável não apenas sua nova escala, mas também o dinamismo segundo o qual é fomentado e incorporado o crescimento da demanda. No início de sua implantação, a meta era realizar 2 milhões de ligações de energia elétrica no território brasileiro até o ano de 2008. Essa meta era referenciada nos dados do Censo do IBGE de 2000, no qual eram consideradas sem energia elétrica as residências que não tinham qualquer acesso à eletricidade. Porém, ao longo da implantação do LPT, registrou- se a existência de ligações clandestinas e aumento populacional em territórios até então não contemplados com o serviço de energia elétrica, observando-se aspectos antes não suficientemente identificados e mensurados, além de importantes alterações na demanda decorrentes do próprio avanço desse e de outros programas nas áreas rurais, vinculadas, entre outros aspectos, a deslocamentos de população para as novas áreas com fornecimento de energia, ao retorno de famílias para terras e moradias que haviam sido abandonadas devido aos variados efeitos da ausência de atenção e políticas da parte do Poder Público, bem como à ocupação de lotes e sítios antes sem moradores devido aos mesmos problemas42. Acompanhando esse novo dinamismo social, novas edições do LPT foram sendo expedidas, com extensões dos prazos e das metas, fazendo com que os resultados do programa chegassem, em agosto de 2015, à impressionante marca de mais de 3,2 milhões de ligações domiciliares, alcançando mais de 15,5 milhões de pessoas na área rural43. Nesse contexto, a eletrificação de escolas também foi beneficiada pelo novo padrão de financiamento e gestão. É a partir da integração entre o Ministério de Minas e Energia e o de Educação, especialmente na CNU, que as ações de eletrificação de escolas foram sendo definidas com maior sistematicidade, até serem convertidas em uma espécie de ramo do LPT, denominado Luz Para Todos na Escola, voltado para garantir o fornecimento de energia elétrica às escolas localizadas em áreas rurais e distantes dos centros urbanos. É importante esclarecer que a eletrificação de escolas foi definida como uma das prioridades de atendimento no Programa LPT desde sua criação, constituindo-se como um ramo de ação cuja execução contava com estudos específicos e procedimentos próprios, envolvendo: o 42 Camargo, Ribeiro e Guerra, 2008. 43 Brasil, MME, 2015; Freitas e Oliveira, 2017. Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 696 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 Ministério de Minas Energia, como coordenador do LPT e responsável pela definição de metas e prazos; o Ministério da Educação, responsável pela identificação e avaliação das escolas não eletrificadas com vistas a sua inclusão na agenda de execução do Programa; e a Eletrobrás, como coordenadora da execução das extensões e interligações das redes elétricas às escolas, por meio de suas agências subsidiárias e das concessionárias locais. A dinâmica de realização do Programa também levou à criação de comissões locais às quais cabia encaminhar e acompanhar a execução das ações previstas e o fornecimento de energia pelas concessionárias, cabendo à ANEEL avaliar a performance do programa. Porém, a partir do ano de 2007, diversos materiais institucionais do Ministério da Educação começam a referir-se às ações de eletrificação de escolas como um programa ou sub- programa específico, segundo a denominação Luz Para Todos na Escola. Naquele ano, o MEC instituiu o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), espécie de plano estratégico que agregava programas e ações novos e já existentes, de modo a que os mesmos passassem a integrar ações articuladas de formação, assessoria, financiamento e planejamento vinculados à educação escolar. Desde o ano de 2001, havia sido aprovado um Plano Nacional de Educação (PNE), com vigência de 10 anos, e este deveria ser, pela legislação educacional brasileira, a peça central do Planejamento Educacional. Na sanção desse PNE pelo então Presidente Fernando Henrique, as disposições e metas de financiamento educacional haviam sido vetadas e isto, somado a disposições incipientes com relação a variados aspectos da gestão federativa da educação escolar, era visto como parte das fragilidades que tornavam o PNE uma peça de planejamento de pouca efetividade. O PDE, neste sentido, foi apresentado como um Plano que não tinha por objetivo se sobrepor ao PNE, mas dispor de forma objetiva sobre meios, recursos e procedimentos necessários à realização de ações fundamentais para a melhor organização federativa da oferta educacional. É como elemento constitutivo desse PDE que a eletrificação de escolas aparece definida como se fosse um programa específico, ainda que ramificado ao Luz para Todos. A realização das ações de eletrificação de escolas, nesse contexto, pode ser entendida como uma experiência cuja regularidade e sistematicidade oportunizaram uma melhor apreensão, compreensão e encaminhamento dos desafios institucionais relacionados à interrelação entre a política de eletrificação e a de oferta escolar. Cabe destacar, neste caso, que o programa se realizou em um período de expansão da própria concepção de oferta pública escolar, implicando o reconhecimento de certos segmentos populacionais como novos sujeitos de direitos – particularmente os grupos vinculados à produção campesina e a comunidades originárias, como quilombolas, ribeirinhos e indígenas –, e o desenvolvimento de formas de oferta escolar relacionadas às suas especificidades. Ao longo da realização do programa, portanto, há uma transformação de demandas potenciais, até então pouco reconhecidas, em demandas efetivas que dão maior visibilidade e criam novas pressões em relação às limitações de acesso a serviços e equipamentos públicos que definem as condições de vida desses grupos. Outra questão a destacar refere-se aos desafios de gestão federativa evidenciados nesse processo. O próprio debate governamental, à época, passa a dar relevo às dificuldades de articulação entre ações de diferentes setores e níveis governamentais. Em 2007, um pronunciamento do então Ministro da Educação Fernando Haddad ilustra com clareza esses impasses ao se referir exatamente à questão do já então denominado Luz Para Todos na Escola. Referindo-se ao quadro de eletrificação de escolas resultante dos primeiros anos de Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 697 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 realização do LPT, e enfatizando a nova estruturação das ações nesse sentido, no âmbito do PDE, Haddad observa: Na verdade, 20.000 escolas públicas não tinham luz. Como é que você pode fazer inclusão digital sem luz? Como é que você vai educar o trabalhador sem luz, tendo que abrir uma sala de Educação de Jovense Adultos à noite? Não existe essa possibilidade. Agora, dentro do PDE, nós provocamos o Ministério das Minas e Energia solicitando o programa “Luz para Todos” na escola. Resultado, ¼ das escolas que não tinham luz, em seis meses, já está com luz. Esse é um caso de alinhamento entre Ministérios. Mas, para que haja esse alinhamento é preciso suar muito a camisa, trabalhar muito, interagir muito e sensibilizar as equipes de um outro Ministério, que tem outras prioridades, para atender aquela sua prioridade. Foi assim que o “Luz para Todos na Escola” se tornou uma realidade. O compromisso do Ministério de Minas e Energia é que, até ao final do ano que vem, todas as escolas terão luz. Essas 20.000 escolas que não têm luz respondem por 1% da matrícula e esse 1% da matrícula não grita, não faz passeata, não está sindicalizado etc. Então, alguém tem que se preocupar com isso. Enquanto ninguém reclama, você se preocupa com aqueles que estão reclamando, debaixo da sua janela, com o megafone na mão. Mas, aquele que está a quilômetros de distância e nem sequer sabe o que é um megafone, não tem os seus direitos resguardados. Agora, quando se tem uma perspectiva de que todos têm direito à educação, você passa a se preocupar com a escola que está sem luz, sem telefone, sem internet etc. É assim que você vai criando um sistema educacional digno do nome, mas esse é um alinhamento muito difícil de ser feito e, por isso, não está na órbita de um governo resolver. É preciso garantir a continuidade. Essas coisas precisam estar incorporadas à cultura da Esplanada para que não se percam no tempo44. Reduzidas as barreiras financeiras, persistiam, como fica claro nessas observações, os intensos desafios institucionais, que precisavam ser conhecidos e enfrentados para que as ações previstas pudessem não apenas se realizar, mas também provocar novos quadros de demanda e reivindicação que funcionassem como fermento para a continuidade e aprofundamento das políticas vinculadas às desigualdades sociais e econômicas abismais, que marcam de forma estrutural o Brasil e, por conseguinte, a oferta escolar pública. Partindo de uma taxa de apenas 58,3% de eletrificação de escolas rurais, em 2002, o programa contribuiu, sem sombra de dúvidas, para o alcance da taxa de 86,7%, registrada em 2017. Porém, a despeito dos avanços observados, a impressionante persistência de significativo percentual de escolas não eletrificadas, após mais de uma década e meia, e mesmo das problemáticas condições de funcionamento de uma grande parcela de escolas, permite reiterar a compreensão de que parte dos obstáculos a transpor na produção de uma oferta escolar menos desigual se encontra profundamente aninhada em relações econômicas e políticas cuja efetiva superação, como ressaltado na fala de Haddad, está bem além da órbita de um governo, implicando mudanças mais robustas nas forças sociais que favoreçam novas condições de disputa da ação política e do futuro que ela produz. Considerações finais: Eletrificação e condições de realização da educação escolar As discussões apresentadas neste trabalho reforçam a compreensão de que os problemas de expansão elétrica e de expansão escolar apresentam-se segundo certas especificidades cuja 44 Haddad, 2008, p. 222-223. Eletrificação e condições de realização da escola no Brasil 698 La electricidad y la transformación de la vida urbana y social, 2019, p. 681-701 consideração é importante para o entendimento dos limites de atuação articulada entre os dois setores. As desigualdades na expansão escolar parecem resultar de um padrão de cobertura territorial e populacional da escola que envolve universalização do acesso à escolarização elementar sem universalização das condições de funcionamento das escolas e das condições de realização da formação escolar. No caso da expansão elétrica, observa-se um padrão relativamente distinto. A constituição das redes e das práticas de fornecimento de energia também evidencia reiteração da tendência à não extensão da mesma qualidade de serviços a distintos segmentos territoriais e populacionais, mas essa desigualdade não resulta dos mesmos motivos que determinam a desigualdade da expansão escolar. A cobertura territorial e populacional não apenas desigual, mas estruturalmente incompleta, expressa a subordinação da lógica de expansão a interesses privados de aferição de lucro com o fornecimento e o acesso à energia. O Programa Luz para Todos, em seu ramo relacionado à eletrificação de escolas, enfrentou obstáculos solidamente cristalizados nas relações econômicas e na cultura estatal brasileira, especialmente ao estabelecer: a) um novo marco regulatório do financiamento do fornecimento de energia elétrica; b) uma nova estrutura e dinâmica de gestão, voltada para a tentativa de superação de dificuldades históricas de atuação colaborativa entre níveis governamentais e setores de atuação do Estado, bem como para a tentativa de vertebração e capilarização das ações governamentais, interligando os vários níveis federativos de gestão, bem como instituindo instâncias locais de acompanhamento e responsabilidades institucionais de avaliação; c) um novo marco organizativo de políticas sociais que contribuiu para a fermentação e acolhimento de novas demandas efetivas de energia elétrica e de educação escolar. No entanto, os limites persistentes, após mais de uma década de realização do programa, e o quadro político de recrudescimento de relações conservadoras, que tende a conter e regredir os difíceis avanços logrados no campo dos direitos sociais, permitem antever um provável cenário de pouca repercussão das ações de eletrificação na impulsão de uma efetiva reestruturação da escola e de seus usos sociais. Primeiro, porque a realidade educacional efetiva demonstra que a eletrificação de escolas, apesar de claros avanços, encontra-se, ainda, diante de desafios de provisão de condições escolares elementares, cuja superação implica desafios culturais, políticos e institucionais de grande monta e duração. Segundo, porque a impulsão de uma efetiva reestruturação da escola e de seus usos sociais dependeria da continuidade e aprofundamento não apenas do programa, mas das medidas que a ele vinham sendo associadas, e que intensificavam uma dinâmica de maior fermentação e acolhimento de novas demandas por políticas referidas a direitos. E isto é improvável no cenário político brasileiro atual. Bibliografia ALGEBAILE, E. Escola pública e pobreza no Brasil: a ampliação para menos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. ARIMURA, O. T. et al. A falta de luz na escola rural. In: Anais do 4º Encontro de Energia no Meio Rural, 2002, Campinas (SP) [online], 2002. Disponível em: . 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