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22 - M E M Ó R I A E S O C I E D A D E p r ó p r i a s l e m b r a n ç a s . . . " D a í o c a r á t e r n ã o só pessoal, mas famil iar , grupai , social, da m e m ó r i a . * * A i n t e r p r e t a ç ã o social que Halbwachs d á da capacidade de lembrar é radica l . Entenda-se que n ã o se trata apenas de um condi- cionamento externo de u m f e n ó m e n o interno, isto é, n ã o se trata de u m a j u s t a p o s i ç ã o de "quadros sociais" e "imagens evocadas". Mai s do que isso, entende que j á no interior da l e m b r a n ç a , no cerne da imagem evocada, t rabalham noções gerais, veiculadas pela lingua- gem, logo, de fi l iação inst i tucional . É g r a ç a s ao c a r á t e r objetivo, transubjetivo, dessas noções gerais que as imagens resistem e se t ransformam em l e m b r a n ç a s . O exemplo do sonho, que em Bergson i lustrava a liberdade da m e m ó r i a pura , serve, em Halbwachs , para mostrar a evanescênc ia das imagens on í r i cas quando desacompanhadas das categorias "d iu rnas" que as secundam habitualmente: " O que expl ica a desa- p a r i ç ã o do maior n ú m e r o das imagens noturnas é que, como elas n ã o foram localizadas no mundo da vigília, este mundo e as repre- sen tações dele n ã o t ê m poder algum sobre elas: só se tornam lem- b r a n ç a s evocáveis as imagens do sonho sobre as quais, quando acordados, nossa a t e n ç ã o e nossa ref lexão se f ixa ram, e que nós assim enfeixamos antes que se esva í ssem com as imagens e os pensamentos da v ig í l i a . " ^3 . A memória dos velhos U m verdadeiro teste para a h i p ó t e s e psicossocial da m e m ó r i a encon- tra-se no estudo das l e m b r a n ç a s das pessoas idosas! Nelas é possível verificar u m a h i s tó r i a social bem desenvolvida: elas j á atravessaram um determinado tipo de sociedade, com ca rac t e r í s t i c a s bem mar- cadas e conhecidas; elas j á viveram quadros de re fe rênc ia famil iar e cul tura l igualmente reconhec íve i s : enfim, sua m e m ó r i a atual pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido do que a m e m ó r i a de uma pessoa jovem, ou mesmo adulta, que, de algum modo, a inda es tá absorvida nas lutas e c o n t r a d i ç õ e s de u m presente que a solicita muito mais intensamente do que a u m a pessoa de idade. (23) W . , p . 139. M E M Õ R I A S O N H O E M E M O R I A - T R A B A L H O — 23 Delineia-se de novo a q u e s t ã o : a m e m ó r i a do velho é u m a evo- c a ç ã o pura , " o n í r i c a " , do passado ( a m e m ó r i a por exce lênc ia de Bergson) ou um trabalho de re facção deste? O rac ioc ín io de Halbwachs opõe o sentido da evocação do velho ao do adulto: este, entretido nas tarefas do presente, n ã o procura habitualmente na in fânc ia imagens relacionadas com sua vida cotidiana; quando chega a hora da evocação , esta é, na reali- dade, a hora do repouso, o relaxamento da a lma, desejo breve mas intenso de evasão . O adulto ativo n ã o se ocupa longamente com o passado; mas, quando o faz, é como se este lhe sobreviesse em forma de sonho. E m suma: para o adulto ativo, vida p r á t i c a é vida p r á t i c a , e m e m ó r i a é fuga, arte, lazer, c o n t e m p l a ç ã o . É o momento em que as á g u a s se separam com maior nitidez. B e m outra seria a s i t uação do velho, do homem que j á viveu sua v ida . A o lembrar o passado ele n ã o es tá descansando, por um instante, das lides cotidianas, n ã o e s t á entregando-se fugitivamente às de l íc ias do sonho: ele es tá -se ocupando consciente e atentamente do p r ó p r i o passado, da s u b s t â n c i a mesma da sua vida . " O velho n ã o se contenta, em geral, de aguardar passivamente que as l e m b r a n ç a s o despertem, ele procura p rec i sá - l a s , ele interroga outros velhos, compulsa seus velhos p a p é i s , suas antigas cartas e, principalmente, conta aquilo de que se lembra quando n ã o cuida de fixá-lo por escrito. E m suma, o velho se interessa pelo passado bem mais que o adulto, mas da í n ã o se segue que esteja em cond ições de evocar mais l e m b r a n ç a s desse passado do que quando era adulto, nem, sobre- tudo, que imagens antigas, sepultadas no inconsciente desde sua infânc ia , 'recobrem a força de transpor o l imiar da consc iênc ia ' só e n t ã o . " 2 4 Note-se a coerênc ia do pensamento de Halbwachs: o que rege, cm ú l t i m a in s t ânc i a , a atividade m n ê m i c a é a função social exercida aqui e agora pelo sujeito que lembra. H á um momento em que o liomem maduro deixa de ser um membro ativo da sociedade, deixa (lo ser um propulsor da vida presente do seu grupo: neste momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função p r ó p r i a : a de lembrar. A de ser a m e m ó r i a da famí l ia , do grupo, da in s t i t u i ção , da sociedade: "Nas tribos primit ivas, os velhos são os g u a r d i ã e s das Iriuliçõcs, n ã o só porque eles as receberam mais cedo que os outros mas lambem porque só eles d i s p õ e m do lazer necessá r io para f ixar seus pormenores ao longo de conver sações com os outros velhos, e pura ens iná- los aos jovens a part ir da in ic i ação . E m nossas socie- tliidcs t a m b é m estimamos um velho porque, tendo vivido muito 24 — M E M O R I A E S O C I E D A D E tempo, ele tem mui ta expe r i ênc i a e e s t á carregado de l e m b r a n ç a s . Como, e n t ã o , os homens idosos n ã o se interessariam apaixonada- mente por esse passado, tesouro comum de que se c o n s t i t u í r a m d e p o s i t á r i o s , e n ã o se e s fo r ça r i am por preencher, em plena cons- c iênc ia , a função que lhes confere o ú n i c o pres t íg io que possam pretender da í ç m diante?" ^ Haver ia , portanto, para o velho u m a espéc ie singular de obri- g a ç ã o social, que n ã o pesa sobre os homens de outras idades: a o b r i g a ç ã o de lembrar, e lembrar bem. C o n v é m , entretanto, mat izar a a f i r m a ç ã o de Halbwachs . Nem toda sociedade espera, ou exige, dos velhos que se desencarreguem dessa f u n ç ã o . E m outros termos, os graus de expectativa ou de ex igênc ia n ã o são os mesmos em toda parte. O que se poderia, no entanto, verificar, na sociedade em que vivemos, é a h ipó t e se mais geral de que o homem ativo (indepen- dentemente da sua idade) se ocupa menos em lembrar, exerce menos frequentemente a atividade da m e m ó r i a , ao passo que o homem j á afastado dos afazeres mais prementes do cotidiano se d á mais habitualmente à re facção do seu passado. U m aspecto importante desse trabalho de r e c o n s t r u ç ã o é posto em relevo por Halbwachs quando nos adverte do processo de "desfi- g u r a ç ã o " que o passado sofre ao ser remanejado pelas ideias e pelos ideais presentes do velho. A " p r e s s ã o dos preconceitos" e as "prefe- r ênc i a s da sociedade dos velhos" podem modelar seu passado e, na verdade, recompor sua biografia individual ou grupai seguindo pa- d rões e valores que, na linguagem corrente de hoje, são chamados " i d e o l ó g i c o s " . Memória, contexto e convenção A Psicologia Social só enfrentou diretamente o problema da m e m ó - r i a em suas re lações com o contexto no l ivro, hoje c láss ico, de Freder ic Charles Bart let t , Remembering?^ A segunda parte dessa obra verdadeiramente pioneira intitula-se "Remember ing as a Study in Social Psyçho logy" e traz u m a série de obse rvações muito agudas que coincidem, em vár ios pontos, com as reflexões de Halbwachs , autor, a l iás , que Bartlet t leu e apreciou devidamente. Deve-se a Bart let t a u t i l i zação de u m conceito-chave para conectar o processo cul tural de um dado momento his tór ico ao tra- balho da m e m ó r i a : o conceito de " c o n v e n c i o n a l i z a ç ã o " . O conceito (25) W . , p . 142. (26) Cambridge, Cambridge University Press, 1932. M E M O R I A - S O N H OE M E M O R I A - T R A B A L H O — 25 em si n ã o foi cunhado por Bartlet t ; ele o ext ra iu de u m e tnó logo , W . H . R . Rivers , que o uti l izou no ensaio The History of Melanesian Society?'^ C o n v e n c i o n a l i z a ç ã o , para Rivers , é o processo pelo qual imagens e ideias, recebidas de fora por u m certo grupo i n d í g e n a , acabam assumindo u m a forma de e x p r e s s ã o ajustada às t écn i ca s e co n v en çõ es verbais j á estabelecidas h á longo tempo nesse grupo. Transpondo o conceito pa ra a á r ea psicossocial, Bart let t postula que a " m a t é r i a - p r i m a " da r e c o r d a ç ã o n ã o aflora em estado puro n a l in - guagem do falante que lembra; ela é tratada, às vezes esti l izada, pelo ponto de vista cul tura l e ideológico do grupo em que o sujeito e s t á situado. Nessa al tura, constatamos u m a singular co inc idênc i a entre as f o r m u l a ç õ e s de Halbwachs e as de Bart let t : o que u m e outro buscam é f ixar a p e r t i n ê n c i a dos "quadros sociais" e das ins t i tu ições e das redes de c o n v e n ç ã o verbal no processo que conduz à lem- b r a n ç a . Bartlet t es tá , pela sua p r ó p r i a f o r m a ç ã o profissional, mais rente à linguagem específ ica da Psicologia Social , tal como se cons- ti tuiu nos anos de 30; mas o sentido do seu texto se acha p r ó x i m o do de Halbwachs . Provam-no os exemplos com que l ida , tirados da sua familiaridade com as tribos Swazi : 1) Alguns dos l íderes i n d í g e n a s vis i taram a Inglaterra pa ra resolver p e n d ê n c i a s de terras. A o voltarem, foram abordados pelos ingleses da co lónia , curiosos em saberem o que os i n d í g e n a s tinham_ relido com mais nitidez da sua viagem à m e t r ó p o l e . A l e m b r a n ç a comum a todos os l íderes Swazi foi a dos guardas de t r â n s i t o "de m à o levantada". Por que — pergunta-se Bart let t — u m a a ç ã o t ã o simples produziu i m p r e s s ã o t ã o funda? A exp l i c ação só veio quando o ps icó logo reparou que os Swazi s a ú d a m o companheiro ou o vis i - lante com a m ã o erguida. O gesto famil iar , quente de s impat ia na p r ó p r i a cul tura , significava, na outra, u m ato de comando. M a s o que se recordou, no contexto estrangeiro e estranho, foi a imagem associada ao sistema de convenções do receptor. 2) Depois de ouvir muitas h i s tó r ias que atestavam a prodi- KJosa m e m ó r i a verbal dos Swazi , Bart let t se pôs a fazer experi- mentos com o fim de t e s t á - l a . Escolheu ao acaso u m menino de onze i>ii do/c anos de idade e deu-lhe u m a mensagem de 25 palavras para Irni ismit i - la pouco depois. Tratava-se de um texto semelhante aos j á u|,)lii'iuli>s por ele mesmo a c r i a n ç a s inglesas, variando agora apenas 11 i -onleúdo de interesses, naturalmente mais p r ó x i m o do cotidiano dl' um menino Swazi . Os resultados, em termos de m é d i a de acertos e ilc omissões , n ã o diferiram dos obtidos com os meninos ingleses. {))) Cambridge, Cambridge University Press, 1914 (citada por Bartlett), p. 244. 26 — M E M O R I A E S O C I E D A D E 3) O experimento 2 relativizou a a t r i b u i ç ã o de u m a faculdade de lembrar , em si e x t r a o r d i n á r i a , que seria peculiar àq u e l e s ind í - genas. Combinando, p o r é m , o experimento 2 com o que se na r ra em 1, Bart le t t é levado a crer que a nitidez da m e m ó r i a n ã o deva ser aval iada isoladamente, mas posta em re l ação com toda a e x p e r i ê n c i a social do grupo. F o i o que aconteceu quando o ps icó logo , ciente de que os Swazi se ocupavam intensamente de gado, testou a capaci- dade retentiva de um vaqueiro pedindo-lhe que arrolasse um certo n ú m e r o de reses, dando a respectiva p r o c e d ê n c i a , cor do pê lo e p r e ç o . Bart le t t podia conferir as respostas com u m a lista escrita pelo p r o p r i e t á r i o do gado. O vaqueiro lembrou-se, sem hesitar, de todos os dados importantes e de quase todos os pormenores, ao passo que o p r o p r i e t á r i o das reses precisava valer-se sempre de u m papel em que ele mesmo t inha anotado a compra. Se, de um lado, o experimento 2 desfazia a lenda da m e m ó r i a prodigiosa dos Swazi , de outro, o experimento 3 encorpava a h ipó - tese de que existe u m a r e l ação entre o ato de lembrar e o relevo (existencial e social) do fato recordado para o sujeito que o recorda. U m a aná l i se interna dessa ú l t i m a c o n s t a t a ç ã o levou Bart let t a distinguir entre a matéria da recordação (o que se lembra) e o modo da recordação (como se lembra) . A m a t é r i a estaria condicionada basicamente pelo interesse social que o fato lembrado tem para o sujeito. Quanto ao modo, o problema complica-se, porque entrar iam como var iáveis impor- tantes alguns fatores tradicionalmente associados à psicologia da personalidade, como o temperamento e o c a r á t e r do sujeito que lembra . Bart let t c ruza um l imia r evitado sistematicamente por Maur ice Halbwachs . Es te , como estudioso dos níveis sociais da m e m ó r i a , prefere ater-se às r e l ações vividas pelo sujeito ( re lações familiares, vicinais , profissionais, po l í t i cas , religiosas. . .) como sufi- cientemente capazes de ar t icular a atividade m n ê m i c a e sua forma narra t iva . Bartlet t ju lga possível tentar (embora ele mesmo n ã o o faça) u m a aná l i se dos estilos narrativos em função das d i fe renças pessoais dos sujeitos. O que me parece deva reter-se como u m a conquista comum das reflexões de Halbwachs e de Bart le t t é a i ne rênc i a da v ida atual ao processo de r e c o n s t r u ç ã o do passado. A " c o n v e n c i o n a l i z a ç ã o " é, a rigor, um trabalho de modelagem que a s i t u a ç ã o evoca.da sofre no contexto de ideias e valores dos que a evocam. O processo geral da convenc iona l i z ação pode, segundo Bart let t , diferenciar-se interna- mente em subprocessos; voltando ao seu modelo a n t r o p o l ó g i c o , o ps icó logo considerou o tratamento que cada imagem nova sofre na m e m ó r i a do ind iv íduo a n á l o g o à modelagem que u m a dada forma M E M Ô R I A - S O N H O E M E M O R I A - T R A B A L H O — 27 cul tura l c iv i l izada recebe ao ser transferida para u m grupo i n d í g e n a . O nativo pode: a) simplesmente incorporar a forma cul tura l estranha, por assimilação; b) ou despojá - la de alguns aspectos e algumas c o n o t a ç õ e s es- tranhas à sua p r á t i c a social {simplificação); c) ou apreender u m aspecto em si desimportante no contexto- fonte, e dar-lhe u m a re levânc ia especial {retençãoparcial com hiper- trofia do detalhe); d) ou, finalmente, construir u m a "ou t ra" forma s imbó l i ca que resul tar ia das in t e rações do p r ó p r i o grupo receptor, capaz por- tanto de transformar a m a t é r i a recebida e incutir-lhe o sentido de u m a p r á t i c a social específ ica . O que Bartlet t admite, de u m modo bastante compreensivo, é a ex i s t ênc ia de um " c o n t í n u o " que va i da simples a s s i m i l a ç ã o , por transplante, a t é a c r i ação social de novos s ímbo los , a part i r do rece- bimento de formas extragrupais. A m e m ó r i a das pessoas t a m b é m dependeria desse longo e amplo processo, pelo qual sempre " f i c a " o que significa. E fica n ã o do mesmo modo: às vezes quase intacto, às vezes profundamente alterado. A t r a n s f o r m a ç ã o seria tanto mais radical quanto mais operasse sobre a m a t é r i a recebida a m ã o - d e - obra do grupo receptor. A s s i m , novos significados al teram o con- t e ú d o e o valor da s i t u a ç ã o de base evocada. No outro extremo, se a vida social ou individual estagnou, ou reproduziu-se quase que só fisiologicamente, é provável que os fatos lembrados tendam a con- servar o significado que t inham para os sujeitosno momento em que os viveram. U m dos aspectos mais instigantes do tema é o da c o n s t r u ç ã o social da m e m ó r i a . Quando u m grupo t rabalha intensamente em conjunto, h á u m a t e n d ê n c i a de cr ia r esquemas coerentes de nar- riiçi^o e de i n t e r p r e t a ç ã o dos fatos, verdadeiros "universos de dis- curso", "universos de significado", que d ã o ao mater ia l de base iiniii forma h i s tó r i ca p r ó p r i a , u m a versão consagrada dos aconteci- iiu-nlns. O ponto de vista do grupo cons t ró i e procura f ixar a sua hnaKcm para a His tó r i a . Es te é, como se pode supor, o momento Aiirci) da ideologia com todos os seus es t e reó t ipos e mitos. No outro extremo, haveria uma a u s ê n c i a de e l a b o r a ç ã o grupai em torno de cprios acontecimentos ou s i t uações . A rigor, o efeito, nesse caso, «eiht o (Ic esquecer tudo quanto n ã o fosse "atualmente" significativo para n grupo de convívio da pessoa. É o que sucede às vezes: os fulos que n ã o foram testemunhados "perdem-se", "omitem-se", porque n ã o costumam ser objeto de conversa e de n a r r a ç ã o , a n ã o NiM' ntcepcionalmente. A s s i m , quando o sujeito os evoca, n ã o vem o 28 - M E M O R I A E S O C I E D A D E re forço , o apoio c o n t í n u o dos outros: é como se ele estivesse so- nhando ou imaginando; e n ã o por acaso duvidamos, hesitamos, quando n ã o nos confundimos, sempre que devemos falar de u m fato que só foi presenciado por n ó s , ou que sabemos "por ouvir d izer" . O sonho, ao c o n t r á r i o , parece alimentar-se mais generosamente desses momentos sol i tár ios de evocação que ter iam, talvez, ao menos a vantagem de n ã o sofrer a modelagem s i s t emá t i ca da ideologia grupai . A e l a b o r a ç ã o grupai comum seria, portanto, decisiva. Sem ela, tende a reproduzir-se com mais força o teor da "p r ime i r a i m p r e s s ã o " , m a t é r i a daquela l e m b r a n ç a - i m a g e m e da " m e m ó r i a p u r a " de Bergson. C o m ela, ao c o n t r á r i o , a pr imeira i m p r e s s ã o f icar ia cancelada e s u b s t i t u í d a pelas r e p r e s e n t a ç õ e s e ideias domi- nantes inculcadas no sujeito (h ipó tese de Halbwachs) , ou apenas amortecida no inconsciente, de onde poderia sair durante o sonho e nos raros momentos de livre evocação ( h i p ó t e s e de Bergson). U m dos mais sutis analistas da m e n i ó r i a , de u m ponto de vista rigorosamente ps icológico , W i l l i a m Stern,^» ju lga , com Bergson, que as p e r c e p ç õ e s podem passar por um " p e r í o d o latente", durante o qual "desaparecem" da consc iênc ia a té que, por motivos diversos, reaflorem mnemicamente. O postulado de Stern é o da ex i s t ênc ia de u m a unidade constante, um "fundo ininterrupto", que permite a r e a n i m a ç ã o de u m a imagem que foi recebida muito tempo antes, E s s a unidade é chamada "pessoa" e corresponde, mutatis mutan- dis, à q u e l a outra unidade, mais profunda, que Bergson denomina " e s p í r i t o " , sede t a m b é m da m e m ó r i a . P a r a W i l l i a m Stern, a unidade pessoal conserva intactas as imagens do passado, mas pode a l t e rá - l a s conforme as cond ições concretas do seu desenvolvimento. A m e m ó r i a p o d e r á ser conser- vação ou e l a b o r a ç ã o do passado, mesmo porque o seu lugar na vida do homem acha-se a meio caminho entre o instinto, que se repete sempre, e a in te l igênc ia , que é capaz de inovar.^' De onde resulta u m a c o n c e p ç ã o extremamente flexível da m e m ó r i a : " A l e m b r a n ç a é a h i s tó r i a da pessoa e seu mundo, enquanto vivenciada."^^ Stern refere-se ao estrato objetivo da l e m b r a n ç a (h i s tó r ia , mundo), mas subordina-o manifestamente à subjetividade (seu, vivenciada) . O passado entra plasticamente no universo pessoal: " A função da l e m b r a n ç a é conservar o passado do ind iv íduo na forma que é mais apropriada a ele. O mater ia l indiferente é descartado, o desagra- (28) Psicologia General. Buenos Aires, Paidos, 1967. (29) /rf. ,p. 193. (30) Id., p. 248. M E M Õ R I A - S O N H O E M E M Õ R I A - T R A B A L H O — 29 dável alterado, o pouco claro ou confuso simplifica-se por u m a d e l i m i t a ç ã o n í t i d a , o t r iv ia l é elevado à hierarquia do insól i to ; e no f im formou-se u m quadro total, novo, sem o menor desejo consciente de fa ls i f icá- lo ." 3' O passado é, portanto, trabalhado qualitativamente pelo sujeito, sobretudo se o seu tipo for "elaborat ivo", em o p o s i ç ã o ao "retent ivo" (Stern , como ps icólogo da personalidade, n ã o al i ja do seu discurso a velha linguagem ca rac t e r i o lóg i ca ) . E , quantitativa- mente, t a m b é m se notam d i fe renças : o passado pode ocupar quase todo o e s p a ç o mental do sujeito, como no caso dos velhos enfermos e aposentados; e pode, em s i tuações opostas, ser desdenhado e esque- cido, como a in fânc ia durante a ado le scênc ia , p e r í o d o em que o sujeito se acha situado antes no eixo presente-futuro que no eixo passado-presente. D o ponto de vista m e t o d o l ó g i c o , parece haver em Stern u m modelo combinado de u m a psicologia t radicional , de cunho perso- nal is ta , e uma psicologia objetiva, que aceita o peso das in t e r ações do corpo com a sociedade. Admit indo as m u t a ç õ e s da pessoa e, ao mesmo tempo, a sua "unidade constante", Stern concil ia a supo- sição de que existe u m a m e m ó r i a " p u r a " , mant ida no inconsciente, com a s u p o s i ção de que as l e m b r a n ç a s são refeitas pelos valores do presente, no que se aproxima de Halbwachs e de Bart let t . E m termos experimentais, essa dualidade de pressupostos torna muito complexa a resposta à pergunta: qual a forma predominante de m e m ó r i a de um dado ind iv íduo? O ú n i c o modo correto de sabê- lo é levar o sujeito a fazer sua autobiografia. A n a r r a ç ã o da p r ó p r i a v ida 6 o testemunho mais eloquente dos modos que a pessoa tem de lembrar . Ê a sua m e m ó r i a . Ml) W. .p . 253. C A P Í T U L O I I Tempo de lembrar Memória e socialização A c r i a n ç a recebe do passado n ã o só os dados da h i s t ó t i a escrita; mergulha suas ra ízes na h i s tó r i a v iv ida , ou melhor, sobrevivida, das pessoas de idade que tomaram parte na sua soc ia l i zação . Sem estas l iaveria apenas uma c o m p e t ê n c i a abstrata pa ra l idar com os dado* do passado, mas n ã o a m e m ó r i a . Enquan to os pais se entregam às atividades da idade madura , a c r i a n ç a recebe i n ú m e r a s noções dos avós, dos empregados. Estes não t êm , em geral, a p r e o c u p a ç ã o do que é " p r ó p r i o " para c r i a n ç a s , mas conversam com elas de igual para igual , refletindo sobre aconte- cimentos pol í t icos , h i s tór icos , tal como chegam a eles a t ravés das d e fo rmaçõ es do i m a g i n á r i o popular. Eventos considerados t r ág icos para os tios, pais, i r m ã o s mais velhos são relativizados pela avó enquanto n ã o for sacudida sua vida m i ú d a ou n ã o forem atingidos os seus. E l a d i r á à c r i a n ç a que já v iu muitas revoluções , que tudo eonlinua na mesma: a l g u é m continuou na cozinha, servindo, la- vaiitlo pratos e copos em que os outros beberam, l impando banhei- liis, a r rumando camas para o sono de outrem, esvaziando cinzeiros, rcKundo plantas, varrendo o c h ã o , lavando a roupa. A l g u é m curvou Nuiis costas atentas para os r e s íduos de outras vidas. O que p o d e r á mudar enquanto a c r i a n ç a escuta na sala dis- »'iirst)s igua l i tá r ios e observa na cozinha o sacrif ício constante dos pMiprcgados? A verdadeira m u d a n ç a dá-se a perceber no interior, no i'onercto, no quotidiano, no m i ú d o ; os abalos exteriores n ã o modi- lliiim o essencial. E i s a filosofia que é t ransmit idaà c r i a n ç a , que a «htiirve junto com a grandeza dos socialmente "pequenos" a quem vnlHinos nossa pr imeira afeição e que podem guiar nossa p e r c e p ç ã o iiiiveiite do mundo. Depois esse tempo f icará o tempo subjacente, iliiniiiuido, e mergulharemos no tempo da classe dominante que Itrppoiulera u m a vez que assume o controle da v ida social. 32 - M E M O R I A E S O C I E D A D E É g r a ç a s a esta "outra s o c i a l i z a ç ã o " , à qual a Psicologia tem dado pouca a t e n ç ã o , que n ã o estranhamos as regiões sociais do passado: ruas, casas, móve is , roupas antigas, h i s tó r i a s , maneiras de falar e de se comportar de outros tempos. N ã o só n ã o nos causam estranheza, como, devido ao intimo contacto com nossos avós , nos parecem singularmente familiares. O que é um ambiente acolhedor? S e r á ele c o n s t r u í d o por u m gosto refinado na d e c o r a ç ã o ou se rá u m a r e m i n i s c ê n c i a das regiões de nossa casa ou de nossa in fânc ia banhadas por u m a luz de outro tempo? O quarto dos avós, a casa dos avós, regiões em que n ã o havia a p r e o c u p a ç ã o de socializar, punir , sancionar nossos atos, mas onde tudo era t o l e r ânc i a e a c e i t a ç ã o . Aos avós n ã o cabe a tarefa definida da e d u c a ç ã o do neto: o tempo que lhes é concedido de convívio se e n t r e t é m de car íc ias , h i s tó r i a s e brincadeiras. A ordem social se inverte: dos a r m á r i o s saem coisas doces fora de hora, o presente j á n ã o interessa, pois nem o netinho, nem os velhos a tuam sobre ele, tudo se volta para o passado ou pa r a um futuro que remonta ao passado: " — Você , quando crescer, s e r á como o vovô, que na sua idade t a m b é m br incava de escrever. . ." "Os amigos mortos revivem em ti e as mortas estações Os atos púb l i cos dos adultos interessam quando revestidos de u m sentido famil iar , í n t i m o , compreens íve l no d i a - a -d i á . Os feitos abstratos, as palavras dos homens importantes só se revestem de significado pa ra o velho e para a c r i a n ç a quando traduzidos por a lguma grandeza na v ida quotidiana. Como pode a a n c i ã jus t i f icar a g lór ia do filho premiado na academia cientifica se ele n ã o ajuda os sobrinhos pobres, ou se ele n ã o cura o reumatismo da cozinheira? H á d i m e n s õ e s da a c u l t u r a ç ã o que, sem os velhos, a e d u c a ç ã o dos adultos n ã o a l c a n ç a plenamente: o reviver do que se perdeu, de h i s tó r ias , t r ad i ções , o reviver dos que j á pa r t i r am e par t ic ipam e n t ã o de nossas conversas e e s p e r a n ç a s ; enfim, o poder que os velhos t ê m de tornar presentes na famí l i a os que se ausentaram, pois deles a inda ficou a lguma coisa em nosso h á b i t o de sorrir, de andar. N ã o se deixam para t r á s essas coisas, como d e s n e c e s s á r i a s . E s t a força , essa vontade de revivescência , a r ranca do que passou seu c a r á t e r t ransi- tór io , faz com que entre de modo constitutivo no presente. P a r a Hegel, é o passado concentrado no presente que c r ia a natureza humana por u m processo de c o n t í n u o reavivamento e rejuvenesci- mento. Os projetos do ind iv íduo transcendem o intervalo físico de sua ex i s tênc ia : ele nunca morre tendo explicitado todas as suas possi- bilidades. Antes, morre na véspe ra : e a l g u é m deve realizar suas T E M P O D E L E M B R A R — 33 possibilidades que f icaram latentes, pa ra que se complete o desenho de sua vida. Ê a essência da cul tura que atinge a c r i a n ç a a t r avés da fide- hdade da m e m ó r i a . A o lado da h i s tó r i a escrita, das datas, da des- c r i ção de p e r í o d o s , h á correntes do passado que só desapareceram na a p a r ê n c i a . E que podem reviver n u m a rua , n u m a sala, em certas pessoas, como i lhas e f émeras de um'es t i lo , de u m a manei ra de pensar, sentir, falar, que são resqu íc ios de outras é p o c a s . H á ma- neiras de tratar u m doente, de a r rumar as camas, de cul t ivar u m j a r d i m , de executar u m trabalho de agulha, de preparar u m al i - mento que obedecem fielmente aos ditames de outrora. Nas noites frias de abr i l os fiéis que assistem às cerimonias da semana santa em minha cidade saem para o p á t i o lateral da igreja onde encontram aceso u m grande fogão de lenha. A tr inta minutos da m e t r ó p o l e v iz inha , contemplando o p á t i o aquecido e as velhinhas que se aproximam tiritando, n ã o posso deixar de pensar que foi assim no século passado e ainda antes. Como poderia ter sido outra a e x p r e s s ã o desses rostos aconchegados sob as manti lhas? O u o olhar desgarrado com que os velhos às vezes olham, sem ver, as labaredas n a noite? H á casas em cidades tranquilas em que o tempo parou; o relógio das salas é o mesmo que pulsava antigamente e as pessoas que pisam as t á b u a s largas do assoalho conservam u m forte estilo de vida que nos surpreende pela continuidade. A i n d a na semana santa, c m minha cidade, o j e jum da "sexta-feira ma io r " é preparado dias antes com abundante comezaina (menos carne) pa ra a p e n i t ê n c i a do grande dia . A far inha de milho do cuscuz é preparada pelos mesmos processos, exposta, vendida, cozinhada e comida com a mesma u n ç ã o . E o manto do Senhor Morto das p roc i s sões é feito cada ano por m ã o s diferentes de costureiras, mas n ã o é o mesmo gesto, a mesma devoção , o mesmo arrebatamento es té t ico que absoluta- mente n ã o são mais dos dias de hoje? Integrados em nossa g e r a ç ã o , vivendo expe r i ênc i a s que enri- i | i iccem a idade madura , dia virá em que as pessoas que pensam como nós i rão se ausentando, a té que poucas, bem poucas, f i ca rão |)nra testemunhar nosso estilo de v ida e pensamento. Os jovens nos o l h a r ã o com estranheza, curiosidade; nossos valores mais caros lhes | ) i i rccerão dissonantes e eles e n c o n t r a r ã o em nós aquele olhar desgarrado com que, às vezes, os velhos o lham sem ver, buscando Hiiiparo em coisas distantes e ausentes. * * * 34 — M E M O R I A E S O C I E D A D E A idade adulta é norteada pela a ç ã o presente: e quando se volta pa ra o passado é para buscar nele o que se relaciona com suas p r e o c u p a ç õ e s atuais. L e m b r a n ç a s da in fânc i a pa ra merecer a t e n ç ã o do adulto são constrangidas a entrar no quadro a tua l . ' Os velhos, postos à margem da a ç ã o , rememoram, fatigados da atividade. O que foi sua vida s e n ã o um constante preparo e treino de quem i r á subs t i tu í - los? Os jovens, formados e alimentados pelo cuidado de seus doadores, logo se fortalecem e se tornam aptos para desem- penhar tarefa igual ou superior à de seus mestres. Nos melhores aprendizes a g r a t i d ã o acompanha o sentimento da p r ó p r i a superioridade em re l ação ao velho. Mas o comum dos aprendizes, quando a fonte doadora esgotou seus benef íc ios , volta- Ihe as costas e busca outras fontes.^ Isto é humano, d i r ã o , é a lei da s u p e r a ç ã o da g e r a ç ã o mais velha pela mais jovem. O u se rá desu- mano, p r ó p r i o de u m a sociedade competidora, onde j á se perdeu o gosto inefável da individualidade de cada pessoa? Os lugares ao sol são restritos aos vencedores; os vencidos t i r i tam e, sentindo que o sol lhes foge, pensam como Rousseau: "as l e m b r a n ç a s se gravam na minha m e m ó r i a com t r aços cujo encanto e força aumentam d ia a dia; como se, sentindo que a vida me escapa, eu procurasse a q u e c ê - l a pelos seus c o m e ç o s " (Confissões). E m nossa sociedade, os fracos n ã o podem ter defeitos; por- tanto, os velhos n ã o podem errar . Deles esperamos infinita tole- r â n c i a , longanimidade, p e r d ã o , ou uma a b n e g a ç ã o servil pela famí- l i a . Momentos de có le ra , de esquecimento,de fraqueza s ã o dura- mente cobrados aos idosos e podem ser o início de seu banimento do grupo famil iar . U m a variante desse comportamento: ouvimos pes- soas que n ã o sabem falar aos idosos s e n ã o com um tom protetor que mal d i s fa rça a estranheza e a recusa. A burocracia impessoal, a j u s t i ç a equidistante são feitas pa r a os pequenos: p a p é i s complicados para preencher, horas na fi la de um g u i c h é errado e a aposentadoria vem tarda e p r e c á r i a . Antes do afastamento definitivo h á u m dec l ín io lento, intermi- tente, acompanhado de dolorosa lucidez. Mui tas vezes o idoso ab- sorve a ideologia voraz do lucro e da ef icácia e repete: " É assim mesmo que deve acontecer, a gente.perde a serventia, d á lugar aos m o ç o s . . . P a r a que serve um velho, só pa ra dar t rabalho . . . " (1) Este constrangimento e empobrecimento da memória na idade adulta é pura- mente social. Thomas Mann escreveu um romance de rememoração em plena juventude: Os Buddenbrook. (2) Sobre a ingratidão em relação aos velhos doadores, Machado de Assis escreveu em sua velhice O memorial de Aires. T E M P O D E L E M B R A R - 35 E x i s t e m , s im, outras sociedades, d e v e r í a m o s responder, onde o a n c i ã o é o maior bem social, possui um lugar honroso e u m a voz p r i v i l e g i a d a f \ j m a lenda balinesa fala de u m l o n g í n q u o lugar, nas montanhas, onde outrora se sacrif icavam os velhos. Com o tempo n ã o restou nenhum avô que contasse as t r a d i ç õ e s para os netos. A l e m b r a n ç a das t r ad ições se perdeu. U m dia quiseram construir um sa lão de paredes de troncos para a sede do Conselho. Diante dos troncos abatidos e j á desgalhados os construtores viam-se perplexos. Quem dir ia onde estava a base para ser enterrada e o alto que ser- v i r i a de apoio para o teto? Nenhum deles poderia responder: h á muitos anos n ã o se levantavam c o n s t r u ç õ e s de grande porte e eles t inham perdido a expe r i ênc i a . U m velho, que havia sido escondido pelo neto, aparece e ensina a comunidade a distinguir a base e o cimo dos troncos. Nunca mais um velho foi sacrificado7| A velhice na sociedade industrial A l é m de ser um destino do ind iv íduo , a velhice é u m a categoria social . T e m um estatuto contingente, pois cada sociedade vive de forma diferente o dec l ín io b io lógico do homem. A sociedade indus- tr ial é malé f ica para a velhice. Nas sociedades mais .es táveis um octo- g e n á r i o pode c o m e ç a r a c o n s t r u ç ã o de u m a casa, a p l a n t a ç ã o de uma horta, pode preparar os canteiros e semear um j a r d i m . Seu filho c o n t i n u a r á a obra. Quando as m u d a n ç a s h i s tó r i cas se aceleram e a sociedade extra i sua energia da div isão de classes, criando u m a sér ie de rup- turas nas re lações entre os homens e na r e l ação dos homens com a natureza, todo sentimento de continuidade é arrancado de nosso trabalho. D e s t r u i r ã o a m a n h ã o que construirmos hoje. Comenta Simone de Beauvoir em sua obra sobre a velhice: " A s á rvores que o velho planta se rão abatidas. Quase em toda parte a cé lu la famil iar explodiu. A s pequenas empresas são absorvidas pelos m o n o p ó l i o s ou se deslocam. O filho n ã o r e c o m e ç a r á o pai , e o pai sabe disso. E l e desaparecido, a herdade se rá abandonada, o estoque da loja ven- dido, o negócio liquidado. As coisas que ele realizou e que fizeram o sriitido de sua vida s ã o t ã o a m e a ç a d a s quanto ele mesmo."^ A sociedade rejeita o velho, n ã o oferece nenhuma sobrevi- vi-ncia à sua obra. Perdendo a força de trabalho ele j á n ã o é pro- dutor nem reprodutor. Se a posse, a propriedade, constituem, se- gundo Sartre , uma defesa contra o outro, o velho de u m a classe (,•») La vieillesse, p. 402. Paris, Gallimard, 1970. 35 - M E M O R I A E S O C I E D A D E favorecida defende-se pela a c u m u l a ç ã o de bens. Suas propriedades o defendem da desva lo r i zação de sua pessoa. O velho n ã o par t ic ipa da p r o d u ç ã o , n ã o faz nada: deve ser tutelado como u m menor. Quando as pessoas absorvem tais ideias da classe dominante, agem como loucas porque delineiam assim o í e u p r ó p r i o futuro. Nos cuidados com a c r i a n ç a o adulto "investe" pa ra o futuro, mas em r e l a ç ã o ao velho age com duplicidade e m á fé. A mora l oficial prega o respeito ao velho mas quer convencê- lo a ceder seu lugar aos jovens, a fas tá- lo delicada mas firmemente dos postos de d i r eção . Que ele nos poupe de seus conselhos e se resigne a u m papel passivo. Veja-se no interior das famí l i as a cumpHcidade dos adultos em manejar os velhos, em imobi l i zá - los com cuidados pa ra "seu p r ó p r i o bem" . E m pr ivá- los da liberdade de escolha, em t o rn á - l o s cada vez mais dependentes "adminis t rando" sua aposentadoria, obrigando-os a sair de seu canto, a mudar de casa ( e x p e r i ê n c i a terr ível pa ra o velho) e, por f im , submetendo-os à i n t e r n a ç ã o hospi- talar. Se o idoso n ã o cede à p e r s u a s ã o , à mentira , n ã o se h e s i t a r á em usar a força . Quantos anc i ãos n ã o pensam estar provisoriamente no asilo em que foram abandonados pelos seus! A ca r ac t e r í s t i c a da r e l a ç ã o do adulto com o velho é a falta de reciprocidade que pode se t raduzir n u m a to l e r ân c i a sem o calor da sinceridade. N ã o se discute com o velho, n ã o se confrontam op in iões com as dele, negando-lhe a oportunidade de desenvolver o que só se permite aos amigos: a alteridade, a c o n t r a d i ç ã o , o afrontamento e mesmo o conflito. Quantas r e l ações humanas são pobres e banais porque deixamos que o outro se expresse de modo repetitivo e porque nos desviamos das á r e a s de atrito, dos pontos vitais, de tudo o que em nosso confronto pudesse causar o crescimento e a dor! Se a t o l e r ânc i a com os velhos é entendida assim, como u m a a b d i c a ç ã o do d iá logo , melhor seria dar-lhe o nome de banimento ou discr imi- n a ç ã o . O a r t e s ã o acumulava e x p e r i ê n c i a e os anos aproximavam da per fe ição seu desempenho; era u m mestre de ofício. Hoje, o trabalho o p e r á r i o é u m a repe t i ção de gestos que n ã o permite aper fe içoa- mento, a n ã o ser na rapidez. Enquan to o a r t e s ã o real izava sua obra em casa, na oficina d o m é s t i c a , o velho trabalhador tem que des- locar-se. Quando se vive o primado da mercadoria sobre o homem, a idade engendra desva lo r i zação . A r a c i o n a l i z a ç ã o , que exige c a d ê n - cias cada vez mais r á p i d a s , e l imina da i n d ú s t r i a os velhos o p e r á r i o s . O taylorismo e, hoje, as horas extras deveriam ser estudados seria- mente como causas da morte precoce dos trabalhadores. P a r a a dignidade da Psicologia Indus t r ia l quero assinalar cuidadosas pesquisas de ps icó logos na i n d ú s t r i a , provando que a T E M P O D E L E M B R A R - 37 "funcional idade" do trabalhador, em certos setores, aumenta com a idade. Al i á s , as pesquisas que correlacionam idade com perda de ef iciência s ã o discordantes entre si e n ã o merecem c o n f i a n ç a . Ser ia preciso verif icar se os l a b o r a t ó r i o s que as produzi ram n ã o são finan- ciados por empresas e fundações l igadas à i n d ú s t r i a . Nas é p o c a s de desemprego os velhos são especialmente discri- minados e obrigados a rebaixar sua ex igênc ia de sa lá r io e aceitar empreitas pesadas e nocivas à s a ú d e . Como no interior de certas famíHas , aproveita-se dele o b r a ç o servil , mas n ã o o conselho. Simone de Beauvoir faz belas ref lexões sobre a velhice. A c r i a n ç a sente voltar para si os reflexos de amor que sua imagem desperta. O velho, ao c o n t r á r i o , n ã o pode realizar sua imagem, concebê- l a como é p ara os outros. A velhice é u m irrealizável, segundo Sartre; é u m a s i t u a ç ã o composta de aspectos percebidos pelo outro e, como ta l , reificados ( u m être-pour-autrui), que transcendem nossa consc i ênc i a . Nunca poderei assumir a velhice enquanto exterioridade, nunca poderei assumi-la existencialmente, tal como ela é para o outro, fora de m i m . É u m ir real izável como a negritude; como pode o negro real i- zar em sua consc iênc ia o que os outros vêem nele? A velhice, que é fator na tura l como a cor da pele, é tomada preconceituosamente pelo outro. H á , no transcorrer da vida , mo- mentos de crise de iden t i f i cação : na ado lescênc ia t a m b é m nossa imagem se quebra, mas o adolescente vive u m p e r í o d o de t r a n s i ç ã o , n ã o de dec l ín io . O velho sente-se u m ind iv íduo d i m i n u í d o , que lu ta para continuar sendo um homem. O coeficiente de adversidade das coisas cresce: as escadas f icam mais duras de subir, as d i s t â n c i a s mais longas a percorrer, as ruas mais perigosas de atravessar, os pacotes mais pesados de carregar. O mundo fica e r i ç a d o de amea- ças , de ci ladas. U m a falha, u m a pequena d i s t r a ç ã o são severamente castigadas. P a r a a c o m u n i c a ç ã o com seus semelhantes precisa de arte- (iilos: p r ó t e s e s , lentes, aparelhos acús t i cos , c â n u l a s . Os que n ã o podem comprar esses aparelhos f icam privados de c o m u n i c a ç ã o . U m dos velhos que entrevistei escreve estes versos: A mão trémula é incapaz de ensinar o apreendido. É a i m p o t ê n c i a de t ransmit i r a expe r i ênc i a , quando os meios (Ic c o m u n i c a ç ã o com o mundo fa lham. E l e n ã o pode mais ensinar «qui lo que sabe e que custou toda u m a vida para aprender. Sobre a i n a d a p t a ç ã o dos velhos, convir ia meditar que nossas faculdades, pa ra continuarem vivas , dependem de nossa a t e n ç ã o à 36 — M E M O R I A E S O C I E D A D E favorecida defende-se pela a c u m u l a ç ã o de bens. Suas propriedades o defendem da desva lo r i zação de sua pessoa. O velho n ã o par t ic ipa da p r o d u ç ã o , n ã o faz nada: deve ser tutelado como u m menor. Quando as pessoas absorvem tais ideias da classe dominante, agem como loucas porque delineiam assim o seu p r ó p r i o futuro. Nos cuidados com a c r i a n ç a o adulto "investe" para o futuro, mas em re l ação ao velho age com duplicidade e m á fé. A mora l oficial prega o respeito ao velho mas quer convencê- lo a ceder seu lugar aos jovens, a fas tá - lo delicada mas firmemente dos postos de d i r e ç ã o . Que ele nos poupe de seus conselhos e se resigne a u m papel passivo. Veja-se no interior das famí l i as a cumplicidade dos adultos em manejar os velhos, em imobi l i zá - los com cuidados pa ra "seu p r ó p r i o bem" . E m pr ivá- los da liberdade de escolha, em t o r n á - l o s cada vez mais dependentes "adminis t rando" sua aposentadoria, obrigando-os a sair de seu canto, a mudar de casa ( e x p e r i ê n c i a terr ível para o velho) e, por f im, submetendo-os à i n t e r n a ç ã o hospi- talar . Se o idoso n ã o cede à p e r s u a s ã o , à ment i ra , n ã o se h e s i t a r á em usar a força . Quantos anc i ãos n ã o pensam estar provisoriamente no asilo em que foram abandonados pelos seus! A ca r ac t e r í s t i c a da r e l a ç ã o do adulto com o velho é a fal ta de reciprocidade que pode se traduzir n u m a t o l e r â n c i a sem o calor da sinceridade. N ã o se discute com o velho, n ã o se confrontam op in iões com as dele, negando-lhe a oportunidade de desenvolver o que só se permite aos amigos: a alteridade, a c o n t r a d i ç ã o , o afrontamento e mesmo o conflito. Quantas re lações humanas são pobres e banais porque deixamos que o outro se expresse de modo repetitivo e porque nos desviamos das á r ea s de atrito, dos pontos vitais , de tudo o que em nosso confronto pudesse causar o crescimento e a dor! Se a t o l e r â n c i a com os velhos é entendida assim, como u m a a b d i c a ç ã o do d iá logo , melhor seria dar-lhe o nome de banimento ou discr imi- n a ç ã o . O a r t e s ã o acumulava expe r i ênc i a e os anos aproximavam da per fe ição seu desempenho; era um mestre de ofício. Hoje, o trabalho o p e r á r i o é u m a r e p e t i ç ã o de gestos que n ã o permite aper fe içoa- mento, a n ã o ser na rapidez. Enquan to o a r t e s ã o real izava sua obra em casa, na oficina d o m é s t i c a , o velho trabalhador tem que des- locar-se. Quando se vive o primado da mercadoria sobre o homem, a idade engendra desva lo r i zação . A r a c i o n a l i z a ç ã o , que exige c a d ê n - cias cada vez mais r á p i d a s , e l imina da i n d ú s t r i a os velhos o p e r á r i o s . O taylorismo e, hoje, as horas extras deveriam ser estudados seria- mente como causas da morte precoce dos trabalhadores. P a r a a dignidade da Psicologia Indus t r ia l quero assinalar cuidadosas pesquisas de ps icó logos n a i n d ú s t r i a , provando que a T E M P O D E L E M B R A R - 37 "funcional idade" do trabalhador, em certos setores, aumenta com a idade. Al iás , as pesquisas que correlacionam idade com perda de ef ic iência são discordantes entre si e n ã o merecem c o n f i a n ç a . Ser ia preciso verificar se os l a b o r a t ó r i o s que as produzi ram n ã o são finan- ciados por empresas e fundações ligadas à i n d ú s t r i a . Nas é p o c a s de desemprego os velhos são especialmente discri- minados e obrigados a rebaixar sua ex igênc ia de sa lá r io e aceitar empreitas pesadas e nocivas à s a ú d e . Como no interior de certas famí l i as , aproveita-se dele o b r a ç o servi l , mas n ã o o conselho. Simone de Beauvoir faz belas reflexões sobre a velhice. A c r i a n ç a sente voltar para si os reflexos de amor que sua imagem desperta. O velho, ao c o n t r á r i o , n ã o pode real izar sua imagem, c o n c e b ê - l a como é pa ra os outros. A velhice é u m irrealizável, segundo Sartre; é uma s i t u a ç ã o composta de aspectos percebidos pelo outro e, como ta l , reificados ( u m être-pour-autrui), que transcendem nossa consc iênc ia . Nunca poderei assumir a velhice enquanto exterioridade, nunca poderei assumi-la existencialmente, tal como ela é para o outro, fora de m i m . É um ir real izável como a negritude; como pode o negro real i- zar em sua consc iênc ia o que os outros vêem nele? A velhice, que é fator natural como a cor da pele, é tomada preconceituosamente pelo outro. H á , no transcorrer da v ida , mo- mentos de crise de iden t i f i cação : na ado l e scênc i a t a m b é m nossa imagem se quebra, mas o adolescente vive u m p e r í o d o de t r a n s i ç ã o , n ã o de dec l ín io . O velho sente-se u m ind iv íduo d i m i n u í d o , que lu ta para continuar sendo u m homem. O coeficiente de adversidade das coisas cresce: as escadas f icam mais duras de subir, as d i s t â n c i a s mais longas a percorrer, as ruas mais perigosas de atravessar, os pacotes mais pesados de carregar. O mundo fica e r i ç a d o de amea- ças , de ciladas. U m a falha, u m a pequena d i s t r a ç ã o são severamente castigadas. P a r a a c o m u n i c a ç ã o com seus semelhantes precisa de arte- hiios: p r ó t e s e s , lentes, aparelhos acús t i cos , c â n u l a s . Os que n ã o |)i)dem comprar esses aparelhos f icam privados de c o m u n i c a ç ã o . U m dos velhos que entrevistei escreve estes versos: A mão tremula é incapaz de ensinar o apreendido. É a i m p o t ê n c i a de t ransmit ir a expe r i ênc i a , quando os meios ilr c o m u n i c a ç ã o com o mundo fa lham. E l e n ã o pode mais ensinar iu |iiilo que sabe e que custou toda u m a vida para aprender. Sobre a i n a d a p t a ç ã o dos velhos, convir ia meditar que nossas liu-uldades, pa ra continuaremvivas, dependem de nossa a t e n ç ã o à 38 - M E M O R I A E S O C I E D A D E vida , do nosso interesse pelas coisas, enfim, depende de u m projeto. De que projeto o velho par t ic ipa agora? Bast ide ' ' observa, a p r o p ó s i t o das d o e n ç a s que a velhice acar- reta, que n ã o se deve confundir senilidade, que é u m f e n ó m e n o pa to lóg i co , com senescencia, que é um estado normal do ciclo de v ida . E pergunta se a senilidade é u m efeito da senescencia ou u m produto ar t i f ic ia l da sociedade que rejeita os velhos. Citando o D r . Repond: "Somos mesmo levados a nos perguntar se o velho con- ceito de d e m ê n c i a senil , pretenso resultado de p e r t u r b a ç õ e s cere- brais , n ã o se deva revisar completamente, e se essas p s e u d o - d e m ê n - cias n ã o são resultados de fatores ps icossocio lógicos agravados rapi- damente, por co locação em ins t i tu ições inadequadamente equi- padas e dirigidas, como t a m b é m por i n t e r n a ç õ e s nos hospitais psi- q u i á t r i c o s , onde esses doentes muitas vezes abandonados a si mes- mos, privados de e s t í m u l o s ps íqu icos necessá r ios , separados de todo interesse v i ta l , n ã o t ê m a esperar s e n ã o u m f im que se c o n v é m em desejar r á p i d o . " N ó s chegaremos mesmo a pretender que o quadro c l ín ico das d e m ê n c i a s senis talvez seja um produto ar t i f ic ia l , devido o mais das vezes à c a r ê n c i a de cuidados e de esforços de p r e v e n ç ã o e reabil i - t a ç ã o . " Confirmando estas asserções , nas l e m b r a n ç a s de a n c i ã o s que colhemos, sobretudo nas do Sr . Abe l , que passou por hospital psi- q u i á t r i c o e por asilo, notaremos t r a ç o s n ã o de u m despojamento p s í q u i c o , mas de u m despojamento social . Durante a velhice deve r í amos estar a inda engajados em causas que nos transcendem, que n ã o envelhecem, e que d ã o significado a nossos gestos quotidianos. Talvez seja esse um r e m é d i o contra os danos do tempo. M a s , pondera Simone de Beauvoir , se o traba- lhador aposentado se desespera com a falta de sentido da vida presente, é porque em todo o tempo o sentido de sua vida lhe foi roubado. Esgotada sua força de trabalho, sente-se u m p á r i a , e é comum que o escutemos agradecendo sua aposentadoria como u m favor ou esmola. A d e g r a d a ç ã o senil c o m e ç a prematuramente com a degra- d a ç ã o da pessoa que t rabalha. E s t a sociedade p r a g m á t i c a n ã o desvaloriza somente o o p e r á r i o , mas todo trabalhador: o m é d i c o , o professor, o esportista, o ator, o jornal is ta . (4) Sociologie des maladies mentales, p. 83. Paris, Flammarion, 1965. T E M P O D E L E M B R A R — 39 Como reparar a d e s t r u i ç ã o s i s t emá t i ca que os homens sofrem desde o nascimento, na sociedade da c o m p e t i ç ã o e do lucro? C u i - dados ge r iá t r i cos n ã o devolvem a s a ú d e física nem mental . A abo- l ição dos asilos e a c o n s t r u ç ã o de casas decentes pa ra a velhice, n ã o segregadas do mundo ativo, seria u m passo à frente. M a s , haveria que sedimentar u m a cul tura para os velhos com interesses, tra- balhos, responsabilidades que tornem sua sobrevivência digna. Como deveria ser u m a sociedade para que, na velhice, o homem p e r m a n e ç a u m homem? A resposta é radica l para Simone de Beau- voir: "ser ia preciso que ele sempre tivesse sido tratado como ho- m e m . " A n o ç ã o que temos de velhice decorre mais da luta de classes que do conflito de ge rações . É preciso mudar a vida, recriar tudo, refazer as re lações humanas doentes para que os velhos trabalha- dores n ã o sejam u m a espécie estrangeira. P a r a que nenhuma forma de humanidade seja exc lu ída da Humanidade é que as minorias t êm lutado, que os grupos discriminados t ê m reagido. A mulher , o negro, combatem pelos seus direitos, mas o velho n ã o tem armas. Nós é que temos de lutar por ele. ^ - A memória como função social É o momento de desempenhar a al ta função da l e m b r a n ç a . N ã o porque as sensações se enfraquecem, mas porque o interesse se desloca, as reflexões seguem outra l inha e dobram-se sobre a quin- tessênc ia do vivido. Cresce a nitidez e o n ú m e r o das imagens de outrora e esta faculdade de relembrar exige u m esp í r i to desperto, a capacidade de n ã o confundir a v ida atual com a que passou, de reconhecer as l e m b r a n ç a s e opô- l a s às imagens de agora. N ã o h á evocação sem u m a in te l igênc ia do presente, u m homem n ã o sabe o que ele é se n ã o for capaz de sair das deter- m i n a ç õ e s atuais. A tu rada ref lexão pode preceder e acompanhar a evocação . U m a l e m b r a n ç a é diamante bruto que precisa ser lapi- dado pelo esp í r i to . Sem o trabalho da ref lexão e da loca l i zação , seria uma imagem fugidia. O sentimento t a m b é m precisa a c o m p a n h á - l a para que ela n ã o seja u m a repe t i ção do estado antigo, mas u m a r e a p a r i ç ã o . Se existe u m a m e m ó r i a voltada para a a ç ã o , feita de h á b i t o s , e uma outra que simplesmente revive o passado, parece ser esta a dos velhos, j á libertos das atividades profissionais e familiares. Se tais atividades nos pressionam, nos fecham o acesso para a evocação , inibindo as imagens de outro tempo, a r e c o r d a ç ã o nos p a r e c e r á algo 40 — M E M O R I A E S O C I E D A D E semelhante ao sonho, ao devaneio, tanto contrasta com nossa v ida a t iva . E s t a repele a v ida contemplativa. M a s , o a n c i ã o n ã o sonha quando rememora: desempenha u m a função para a qual e s t á maduro, a religiosa função de un i r o c o m e ç o ao f im, de t ranqui l izar as á g u a s revoltas do presente alar- gando suas margens: Meu dia outrora principiava alegre, no entanto à noite eu chorava. Hoje, mais velho, nascem-me em dúvida os dias, mas findam sagrada, serenamente.^ E l e , nas tribos antigas, tem u m lugar de honra como g u a r d i ã o do tesouro espiri tual da comunidade, a t r a d i ç ã o . N ã o porque tenha u m a especial capacidade pa ra isso: é seu interesse que se volta pa ra o passado que ele procura interrogar cada vez mais , ressuscitar detalhes, discutir motivos, confrontar com a o p i n i ã o de amigos, ou com velhos jornais e cartas em nosso meio. Quando a sociedade esvazia seu tempo de expe r i ênc i a s signifi- cativas, empurrando-o pa ra a margem, a l e m b r a n ç a de tempos melhores se converte num s u c e d â n e o da v ida . E a vida a tual só parece significar se ela recolher de outra é p o c a o alento. O v íncu lo com outra é p o c a , a consc iênc ia de ter suportado, compreendido mui t a coisa, traz para o a n c i ã o alegria e u m a o cas i ão de mostrar sua c o m p e t ê n c i a . Sua vida ganha u m a finalidade se encontrar ouvidos atentos, r e s s o n â n c i a . O D r . Holbrok, de Nova Y o r k ^ , treinou u m velho com exer- cício d i á r io de duas horas ( u m a pela m a n h ã , outra à tarde) pa ra que ele se lembrasse cada tarde dos acontecimentos do dia e a inda n a m a n h ã seguinte. Depois, treinou-o para reter dez nomes de celebri- dades por semana, versos, s í l abas , o n ú m e r o da p á g i n a de u m l iv ro . . . Pobre velhinho! Comenta W i l l i a m James: " tanta tortura e n ã o vejo como teria melhorado sua m e m ó r i a " . A tenacidade d iminui com a idade; só a a s soc iação e a m e d i t a ç ã o a acrescem. No entanto, pensamos que n ã o se t rata do exercício em si , mas da a t e n ç ã o do outro, da a g r a d á v e l s e n s a ç ã o de ser ouvido que o est imulava a reter fatos t ão insignificantes pa ra ele. U m mundo social que possui u m a r iqueza e u m a diversidade que n ã o conhecemos, pode chegar-nos pela m e m ó r i a dos velhos. Momentos desse mundo perdidopodem ser compreendidos por (5) Hoelderlin, tradução de Manuel Bandeira. (6) How to Strengthen the Memory, citado por W. James in Précis de psycho- logie. Paris, Mareei Riveére, 1915, tradução francesa. T E M P O D E L E M B R A R — 41 quem n ã o os viveu e a t é humanizar o presente. A conversa evocativa de u m velho é sempre u m a e x p e r i ê n c i a profunda: repassada de nostalgia, revolta, r e s i g n a ç ã o pelo desfiguramento das paisagens caras, pela d e s a p a r i ç ã o de entes amados, é semelhante a u m a obra de arte. P a r a quem sabe ouvi-la é desalienadora, pois contrasta a r iqueza e a potencialidade do homem-criador de cu l tura com a mí - sera figura do consumidor a tual . Hoje, fala-se tanto em criat ividade. . . mas, onde e s t ão as br in- cadeiras, os jogos, os cantos e d a n ç a s de outrora? Nas l e m b r a n ç a s de velhos aparecem e nos surpreendem pela sua r iqueza. O velho, de um lado, busca a c o n f i r m a ç ã o do que se passou com seus c o e t â n e o s , em testemunhos escritos ou orais, investiga, pesquisa, confronta esse tesouro de que é g u a r d i ã o . De outro lado, recupera o tempo que correu e aquelas coisas que, quando as perdemos, nos fazem sentir d iminuir e morrer. E l e nos aborrece com o excesso de e x p e r i ê n c i a que quer acon- selhar, providenciar, prever. Se protestamos contra seus conselhos pode calar-se e talvez querer acertar o passo com os mais jovens. E s sa a d a p t a ç ã o falha com freqi iência , pois o a n c i ã o se vê privado de sua fu n ção e deve desempenhar u m a nova, ágil demais para o seu passo lento. A sociedade perde com isso. Se a c r i a n ç a a inda n ã o ocu- |)ou nela seu lugar, é sempre u m a força em e x p a n s ã o . O velho é a l - g u é m que se retrai de seu lugar social e este encolhimento é u m a perda e um empobrecimento pa ra todos. E n t ã o , a velhice desgostada, ao retrair suas m ã o s cheias de dons, torna-se u m a ferida no grupo. * * * Se o adulto n ã o d i spõe de tempo ou desejo pa r a reconstruir a infânc ia , o velho se curva sobre ela como os gregos sobre a idade de ouro. Se examinarmos crit icamente a meninice podemos encontrar nela a sp i r ações truncadas, in jus t i ças , p r e p o t ê n c i a , a hostilidade li i ibitual contra os fracos. Poucos de n ó s puderam ver florescer seus (11 lentos, cumpr i r sua vocação mais verdadeira. Comparamos acaso nossos ideais antigos com os presentes? E x a m i n a m o s as ra ízes desse desengano progressivo das re lações sociais? A c r i a n ç a sofre, o adolescente sofre. D e onde nos vêm, e n t ã o , it saudade e a ternura pelos anos juvenis? Ta lvez porque nossa fraqueza fosse u m a força latente e em nós houvesse o germe de u m a plenitude a se real izar . N ã o hav ia a inda o constrangimento dos limites, nosso d iá logo com os seres era aberto, infinito. A p e r c e p ç ã o era uma aventura; como u m an imal descuidado, b r i n c á v a m o s fora da Jaula do e s t e r eó t i po . E assim foi o primeiro encontro da c r i a n ç a 42 - M E M O R I A E S O C I E D A D E com O mar , com o girassol, com a asa na luz . F i c o u no adulto a nostalgia dos sentidos novos: Tendo perdido as ânforas da infância, ânforas que tomadas ou aspiradas derramavam no ar a substância de que as coisas bebiam inebriadas; tendo perdido o verde som dos hortos descer pelas ramagens nos silentes degraus, ainda vejo no sol posto o fruto ou flor fechada e rescendente. Sonho com as espigas debulhadas em grãos que a luz unia ou separava para cobrir o chão de áureo tecido e meus pés afundavam na dureza macia desses grãos que me fugia sem que ouvisse no ar o seu gemido. N ã o basta u m esforço abstrato pa r a recriar i m p r e s s õ e s passa- das, nem palavras expr imem o sentimento de d i m i n u i ç ã o que acom- panha a impossibilidade. Perdeu-se o t ô n u s vi ta l que permit ia . , aquelas sensações , aquela c a p t a ç ã o do mundo. Quando passamos na mesma c a l ç a d a , junto ao mesmo muro, o r u í d o da chuva nas folhas nos desperta alguma coisa. M a s , a s e n s a ç ã o p á l i d a de agora é u m a r e m i n i s c ê n c i a da alegria de outrora. E s t a sombra tem algo parecido com a alegria, tem o seu contorno: é u m a ev o cação . Histórias de velhos Por que decaiu a arte de contar h i s tó r i a s? Talvez-porque tenha d e c a í d o a arte de trocar e x p e r i ê n c i a s . A expe r i ênc i a que passa de boca em boca e que o mundo da t é c n i c a desorienta. A G u e r r a , a Burocrac ia , a Tecnologia desmentem cada dia o bom senso do c i d a d ã o : ele se espanta com sua magia negra, mas cala-se porque lhe é difícil explicar u m Todo i r rac iona l . A o transmit ir as l e m b r a n ç a s de pessoas idosas que escutei, quero expor o que pensa Wal te r B e n j a m i n ' sobre a arte de narrar . (7) / / narratore. Considerazioni suWopera di Nicola Leskov, in Angelus Novus. Turim, Einaudi, 1962. T E M P O D E L E M B R A R — 43 Sempre houve dois tipos de narrador: o que vem de fora e na r r a suas viagens; e o que ficou e conhece sua terra, seus c o n t e r r â n e o s , cujo passado o habi ta . O narrador vence d i s t ânc i a s no e s p a ç o e volta para contar suas aventuras (acredito que é por isso que viajamos) num cantinho do mundo onde suas pe r ipéc i a s t ê m s igni f icação: Quando tudo no mundo é mocidade, verde a árvore, moça a natureza; e cada ganso te parece um cisne, e cada rapariga uma princesa; venham minhas esporas, meu cavalo! Vou correr mundo em busca da alegria! O sangue moço quer correr, ardente, e cada criatura quer seu dia... Nas frias tardes da velhice, quando é parda toda a árvore que vive; em que todo desporto é já cansaço, e toda a roda corre no declive; oh! volta à casa, busca o teu cantinho, vai, mesmo assim, cansado e sem beleza: lá acharás o rosto que adoravas quando era jovem toda a natureza! * O u a aventura vence as d i s t ânc i a s no tempo, trazendo u m fardo de conhecimento do qual t i ra o conselho. Se essa e x p r e s s ã o parece antiquada é porque d iminuiu a comunicabil idade da expe r i ênc i a . I loje n ã o h á mais conselhos, nem para nós nem para os outros. N a época da i n f o r m a ç ã o , a busca da sabedoria perde as forças , foi s u b s t i t u í d a pela o p i n i ã o . Por que despregar com esforço a verdade tias coisas, se tudo é relativo e cada u m f ica com sua o p i n i ã o ? Isto l a i n b é m deriva das re lações de p r o d u ç ã o que expulsaram o conselho (lo â m b i t o do falar vivo. A arte da n a r r a ç ã o n ã o es tá confinada nos livros, seu veio épico é oral . O narrador t i ra o que na r ra da p r ó p r i a expe r i ênc i a e a transforma em expe r i ênc i a dos que o escutam. No romance mo- I U T I I O , O he ró i sofre as vicissitudes do isolamento e, se n ã o consegue rxpres sá - l a s de forma exemplar para n ó s , é porque ele mesmo e s t á (H) Esta balada está no livro de Charles Kingsley The Water Babies e foi tradu- zida por Pepita de Leio (Porto Alegre, Globo, 1942). 44 — M E M O R I A E S O C I E D A D E sem conselho e n ã o pode dá- lo aos outros. O romance atesta a deso- r i e n t a ç ã o do vivente. Cervantes mostra como as ações de um dos seres mais nobres, o m a g n â n i m o , o audaz D o m Quixote , e s t ão privadas do dom do conselho. No romance, a personagem bate a c a b e ç a sozinha, ele historia os seus desencontros, suas falhas e lacunas, especialmente a c isura i n d i v í d u o - c o m u n i d a d e . A q u i , como nos li l t imos versos do Fausto, "o insuficiente torna-se evento". A n a r r a ç ã o exemplar foi s u b s t i t u í d a pela i n f o r m a ç ã o de im- prensa, que n ã o é pesada e medida pelo bom senso do leitor. A s si m , a u n i ã o de u m a cantora com u m esportista ocupa mais e s p a ç o que u m a r evo lução . A i n f o r m a ç ã o pretende ser diferente das n a r r a ç õ e s dos antigos: atribui-se foros de verdade quando é t ã o inverificável quanto a lenda. E l a n ã o toca no maravilhoso, se quer p laus íve l . A arte de nar ra r vai decaindo com o triunfo da i n f o r m a ç ã o . Ingur- gitada de exp l icações , n ã o permite que o receptor tire dela alguma l ição . Os nexos psicológicos entre os eventos que a n a r r a ç ã o omite f icam por conta do ouvinte, que p o d e r á reproduzi-la à sua vontade; da í o narrado possuir u m a amplitude de v ib rações que falta à infor- m a ç ã o . H e r ó d o t o conta u m a pequena h i s tó r i a da qual se pode apren- der muito: "Quando o rei eg ípc io P s a m ê n i t o foi vencido e ca iu prisioneiro do rei dos persas, Cambises , este resolveu h u m i l h á - l o . Ordenou que colocassem P s a m ê n i t o na rua por onde passaria o triunfo persa e fez com que o prisioneiro visse passar a f i lha em vestes de escrava enquanto se dir igia ao poço com u m balde n a m ã o . Enquan to todos os egípcios elevavam prantos e gritos à q u e l a visão, só P s a m ê n i t o permaneceu mudo e imóvel com os olhos pregados no c h ã o ; e quando, pouco depois, v iu o filho conduzido à morte no cortejo, permaneceu igualmente impass íve l . Mas , quando v iu passar entre os prisioneiros u m dos seus servos, um homem velho e empo- brecido, e n t ã o golpeou a c a b e ç a com as m ã o s e mostrou todos os sinais da mais profunda dor."^ A s i t u a ç ã o fica aberta à nossa i n t e r p r e t a ç ã o . Por que teria chorado o rei P s a m ê n i t o ? Penso em possíveis respostas. P s a m ê n i t o chorou porque a visão do velho servidor foi a gota d ' á g u a que fez transbordar seu cál ice , depois de ter assistido impass íve l ao aprisio- namento de seus entes mais caros. P s a m ê n i t o chorou porque o velho servidor, testemunha de sua in fânc i a e da ex i s tênc ia de seus pais e (9) A narrativa é recontada por Benjamin a partir de Montaigne, que por sua vez a tinha recontado de Heródoto (idem, p. 241). T E M P O D E L E M B R A R - 45 avós, era um elo que unia e confirmava a g e r a ç ã o real . Seu arrasta- mento e p r i s ã o s imbolizavam o esfacelamento da dinastia. P s a m ê - nito chorou porque a princesa poderia t ramar nos bastidores a seu favor; o p r í n c i p e poderia ar t icular u m a revolta e libertar sua m ã e e i r m ã s , mas ao velho servidor j á n ã o restavam forças , sendo, por- tanto, inú t i l e cruel sua h u m i l h a ç ã o . Por que chora o narrador em certos momentos da h i s tó r i a de sua vida? Esses momentos n ã o são , com certeza, aqueles de que e s p e r a r í a m o s l á g r i m a s e nos desconcertam. O Sr . Ariosto vai contar- nos seus primeiros anos rondados pela fome quase corporificada na narrativa, a perda de seus parentes, a r u í n a . Sendo u m a pessoa gen t i l í s s ima , sua n a r r a ç ã o procura n ã o abalar o ouvinte em mo- mento algum, mas ele chora quando nos conta que seu pai susten- tava a famí l ia como mestre de cal igrafia . Como seria a vida de um mestre de cal igraf ia no início do sécu lo? * A i n f o r m a ç ã o só nos interessa enquanto novidade e só tem valor no instante que surge. E l a se esgota no instante em que se d á e se deteriora. Que diferente a n a r r a ç ã o ! N ã o se consuma, pois sua força e s t á concentrada em limites como a da semente e se e x p a n d i r á por tempo indefinido. Por que t e r á chorado o rei P s a m ê n i t o ? O receptor da c o m u n i c a ç ã o de massa é um ser desmemoriado. Uccebe um excesso de in fo rmações que saturam sua fome de conhe- cer, incham sem nutrir , pois n ã o h á lenta m a s t i g a ç ã o e a s s i m i l a ç ã o . A c o m u n i c a ç ã o em mosaico r e ú n e contrastes, ep i sód ios d í s p a r e s sem s ín tese , é a -h is tór ica , por isso é que seu espectador perde o sentido da Hi s tó r i a . Pesquisando jornais de alguns anos a t r á s , surpreendi-me com lis manchetes que l i a . Eventos importantes em sua é p o c a eu havia relegado para um segundo plano, onde j a z i a m na sombra. Desfi- l iuam ante meus olhos pacifistas, resistentes, guerrilheiros, m á r - ( ' les . . . Leio a manchete de oito anos a t r á s : " A P O L I C I A E V A C U O U O R E C I N T O D O T R I B U N A L P A R A Q U E A S Ú L T I M A S l'AI A V R A S DO R É U N A O F O S S E M O U V I D A S . " E eu as havia esquecido! Abro um jo rna l de agosto de 1973: " A S M A O S D E V I C T O R J A R A F O R A M C O R T A D A S NO E S T A D I O CHILENO, l'Nt.)llANTO S E U S C A R R A S C O S O D E S A F I A V A M A T O C A R E C A N T A R . " 46 — M E M O R I A E S O C I E D A D E E ele cantou: Canto que mal me sales cuando tengo que cantar espanto! Espanto como el que vivo como el que muero espanto de verme entre tantos y tantos momentos dei infinito en que el silencio y el grito... Esquecerei esta no t í c i a daqui a poucos anos? B e m nos adverte G a r c i a L o r c a contra esse tempo atulhado de objetos sem sentido e despovoado de m e m ó r i a : Ay, poeta infantil, quiebra tu reloj! Morre a arte da narrat iva quando morre a r e t e n ç ã o da le- genda. Perdeu-se t a m b é m a faculdade de escutar, dispersou-se o grupo de escutadores. Quanto mais se esquecia de si o ouvinte, tanto mais entrava nele a h i s tó r i a , e a arte de nar rar transmitia-se quase naturalmente. E s t a rede tecida em mi lén ios se desfia de u m lado e de outro. A n a r r a ç ã o é u m a forma artesanal de c o m u n i c a ç ã o . E l a n ã o visa a t ransmit ir o " em s i " do acontecido, ela o tece a t é atingir u m a forma boa. Investe sobre o objeto e o transforma. T e n d ê n c i a comum dos narradores é c o m e ç a r com a e x p o s i ç ã o das c i r c u n s t â n c i a s em que assistiu o ep i sód io : " — Cer ta vez, i a andando por u m caminho quando. . . " Isso quando o conta como n ã o diretamente vivido por ele. Va lé ry lembra os tempos em que o tempo n ã o contava, em que o a r t e s ã o i a entalhando, esculpindo como se imitasse a paciente obra da natureza, obtendo tonalidades novas com u m a série de camadas sutis e transparentes. O homem moderno n ã o cult iva o que ele pode simphficar e abreviar. Roubada à t r a d i ç ã o oral , a short story t a m b é m se i m p r i m i u e abreviou, n ã o permite mais que se conte e reconte, formando sobre ela a s u p e r p o s i ç ã o de camadas sutis e transparentes com que os contadores retocam a h i s tó r i a mat r iz . Va lé ry reflete que quando d iminui no e sp í r i t o a ideia da eternidade cresce a ave r são pelos trabalhos longos e pacientes. Quando os velhos se assentam à margem do tempo j á sem pressa — seu hori- zonte é a morte — floresce a narra t iva . A civi l ização burguesa expulsou de s i a morte; n ã o se vis i tam moribundos, a pessoa que vai morrer é apartada, os defuntos j á n ã o são contemplados. O leito de morte se transformava em u m trono de T E M P O D E L E M B R A R — 47 onde o moribundo ditava seus ú l t imos desejos ante os familiares e vi / inhos que entravam pelas portas escancaradas para assistir ao ato solene. E r a natural dormir numa cama onde dormiram os avós , onde morreram rodeados pelos seus. E r a natura l visitar um defunto, a c o m p a n h á - l o ao ouvir os sinos plangerem. E guardar o crucif ixo onde impr imiu o ú l t i m o beijo. A morte vem sendo progressivamente expulsa da p e r c e p ç ã o dos vivos. Os agonizantes, diz Benjamin , são jogados pelos herdeiros em s a n a t ó r i o s e hospitais. Os burgueses desinfetam as paredes da eter- nidade. No entanto, todo o vivido, toda a sabedoria do agonizante pode perpassarpor seus l áb io s . E l e pode examinar sua vida inteira , filtrar seu significado mais profundo e querer transmiti-lo em pala- vras entrecortadas cujo sentido todos se e s fo rçam pa ra adivinhar e inierpretar. A m ã o se ergue pa ra a ú l t i m a b ê n ç ã o sobre os vivos e, à medida que o olhar se apaga, mais cresce a autoridade do que é transmitido. Autoridade que o mendigo possui ao morrer no c h ã o da rua e que é a essênc ia da narrat iva . Todas as h i s tó r i a s contadas pelo narrador inscrevem-se dentro (la sua história, a de seu nascimento, v ida e morte. E a morte sela suas h i s tó r i a s com o selo do p e r d u r á v e l . A s h i s tó r i a s dos l áb ios que já n ã o podem recon t á - l a s tornam-se exemplares. E , . como reza a fá- bula, se n ã o e s t ão a inda mortos, é porque vivem ainda hoje. * * * . Mnemosyne, a recordadora, era divindade no p a n t e ã o grego. Q u a l o poder de Mnemosyne? I r m ã de Cronos e de O k e a n ó s , do lempo e do oceano, m ã e das musas cujo coro conduz, ela preside à função poé t i ca que exige i n t e rvenção sobrenatural . É u m a forma de possessão e del í r io divinos, o entusiasmo.*" O i n t é r p r e t e de Mnemo- syne é p o s s u í d o pelas musas assim como o profeta o é por Apolo. V e r n a n t i i , quando estuda os aspectos mí t i cos da m e m ó r i a e (lo tempo, coteja sempre a v idênc ia do futuro com a do passado, as revelações do que aconteceu outrora e do que a inda n ã o é. Mnemo- syne dispensa a seus eleitos u m a on i sc iênc ia do tipo d iv ina tó r io , n ã o de seu passado individual , mas do passado em geral, do tempo antigo. Q u a l a função da m e m ó r i a ? N ã o recons t ró i o tempo, n ã o o (10) A etimologia da palavra nos ensina que, para os gregos, entusiasmo significa o estado de quem tem um deus dentro de si. (11) Jean Pierre Vernant, Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo, Dif. Europeia do Livro, 1970. 48 - M E M Ó R I A E S O C I E D A D E anula tampouco. A o fazer cair a bar re i ra que separa o presente do passado, l a n ç a u m a ponte entre o mundo dos vivos e o do a l é m , ao qual retorna tudo o que deixou à luz do sol. Rea l i za u m a evocação: o apelo dos vivos, a vinda à luz do dia , por u m momento, de um defunto. É t a m b é m a viagem que o o r á c u l o pode fazer, descendo, ser vivo, ao p a í s dos mortos para aprender a ver o que quer saber. A anamnesis ( r emin i scênc ia ) é u m a espécie de in i c i ação , como a r eve lação de u m mis té r io . A visão dos tempos antigos libera-o, de certa forma, dos males de hoje. Vernant , descrevendo o r i tua l no o r ácu lo de L e b a d é i a , conta que antes de entrar no pa í s dos mortos o consultante bebia de duas fontes: no Lethe, e esquecia sua v ida humana; na Mnemosyne, para lembrar o que havia visto no outro mundo. Q u e m guarda a m e m ó r i a no Hades transcende a c o n d i ç ã o mortal , n ã o vê mais opos i ção entre a vida e a morte. O privi légio pertence a todos aqueles cuja m e m ó r i a sabe discernir para a l ém do presente o que e s t á enterrado no mais profundo passado e amadurece em segredo para os tempos que v i rão . Hoje, a f unção da m e m ó r i a é o conhecimento do passado que se organiza, ordena o tempo, local iza cronologicamente. N a aurora da civi l ização grega ela era v idênc ia e êx t a se . O passado revelado desse modo n ã o é o antecedente do presente, é a sua fonte. D o estudo de Vernant sentimos a impossibilidade de separar a m e m ó r i a do conselho e da profecia. L e m b r a Flávio D i Giorg i algumas noções sobre etimologia: " a raiz bru ta mn em seu grau 1, expressa o caso indiv idual , como memini {eu me lembro). E m seu grau O a ra iz mn entra no nível da a t u a ç ã o social: como moneo {eu advirto, ou eu admoesto). Es te grau pode permit ir a f o r m a ç ã o de palavras carregadas de ambiguidade cul tura l como 'monitor ' {conselheiro) de c o n o t a ç ã o positiva. M a s t a m b é m 'admoestador' {corregedor), de c o n o t a ç ã o negativa.'* * * * Ent re o ouvinte e o narrador nasce u m a r e l ação baseada no interesse comum em conservar o narrado que deve poder ser repro- duzido. A m e m ó r i a é a faculdade é p i c a por exce lênc ia . N ã o se pode perder, no deserto dos tempos, u m a só gota da á g u a i r isada que, n ó m a d e s , passamos do côncavo de u m a pa ra outra m ã o . A h i s tó r i a deve reproduzir-se de g e r a ç ã o a g e r a ç ã o , gerar muitas outras, cujos fios se cruzem, prolongando o original , puxados por outros dedos. Quando Scheerazade contava, cada ep isód io gerava em sua a lma u m a h i s tó r i a nova, era a m e m ó r i a ép i ca vencendo a morte em mi l e u m a noites. T E M P O D E L E M B R A R — 49 "Dessa lu ta ( . . . ) emergem as expe r i ênc i a s francamente ép icas do tempo: a e s p e r a n ç a e a r e c o r d a ç ã o . " ( L u k á c s ) Referindo-se ao romancista, diz ainda L u k á c s que o sujeito a l c a n ç a " a unidade de toda sua v ida ( . . . ) na corrente de v ida passada concentrada na recor- d a ç ã o ( . . . ) a visão que colhe esta unidade ( . . . ) é a i n t u i ç ã o e o pressentimento do significado n ã o a l c a n ç a d o e, portanto, inexpr i - mível da v i d a " . 12 Este sentido precisa incluir o trabalho das m ã o s . A l m a , olho e m ã o entram em acordo pa ra Va lé ry no narrador: é um a r t e s ã o que torna visível o que es tá dentro das coisas: — E u n ã o sabia — diz uma c r i a n ç a a u m escultor — que dentro daquele bloco de pedra estava esse cavalo que você t i rou. O narrador e s t á presente ao lado do ouvinte. Suas m ã o s , expe- rimentadas no trabalho, fazem gestos que sustentam a h i s tó r i a , que d ã o asas aos fatos principiados pela sua voz. T i r a segredos e l ições que estavam dentro das coisas, faz u m a sopa deliciosa das pedras do c h ã o , como no conto da Caroch inha . A arte de nar rar é u m a r e l a ç ã o a lma, olho e m ã o : assim transforma o narrador sua m a t é r i a , a v ida humana. T r a b a l h a r a m a t é r i a - p r i m a da expe r i ênc i a : os o p e r á r i o s apo- sentados florentinos, depois de fabricar, na juventude e maturidade, o objeto em sér ie , na velhice fazem obras-primas com madeira , mosaico e couro, que, h á poucos anos, podiam ser encontrados no Ponte Vecchio. É o tempo de se entregar a u m a e x p e r i ê n c i a pro- funda, de penetrar, como u m ar t í f ice , a natureza das coisas. O narrador é u m mestre do ofício que conhece seu mister: ele tem o dom do conselho. A ele foi dado abranger u m a vida inteira . Seu talento de narrar lhe vem da expe r i ênc i a ; sua l ição , ele extraiu da p r ó p r i a dor; sua dignidade é a de c o n t á - l a a t é o f im , sem medo. U m a atmosfera sagrada c i rcunda o narrador. (12) Giorgy Lukács, Théorie du roman. Paris, Gorithier, 1965, p. 74. Memória do trabalho os T R A B A L H O S D A M À O Parece ser próprio do animal simbólico valer-se de uma só parle do seu organismo para exercer funções diversís- simas. A mão sirva de exemplo. A mão arranca da terra a raiz e a erva, colhe da árvore o fruto, descasca-o, leva-o à boca. A mão apanha o objeto, remove-o, achega-o ao corpo, lança-o de si. A mão puxa e empurra, junta e espalha, arrocha e afrouxa, contrai e distende, enrola e desenrola: roça, toca, apalpa, acaricia, belisca, unha, aperta, esbofeteia, esmurra: depois, massageia o músculo dorido. A mão tacteia com as pontas dos dedos, apalpa e calca com a polpa, raspa, arranha, escarva, escarifica e escarafuncha com as unhas. Com o nó dos dedos, bate. A mão abre a ferida e a pensa. Eriça o pelo e o alisa. Entrança e destrança o cabelo. Enruga e desenruga o papel e o pano. Unge e esconjura, asperge e exorciza. Acusa
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