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Memória e Sociedade - Memória dos Velhos, Memória e Socialização, Memória do trabalho

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22 - M E M Ó R I A E S O C I E D A D E 
p r ó p r i a s l e m b r a n ç a s . . . " D a í o c a r á t e r n ã o só pessoal, mas famil iar , 
grupai , social, da m e m ó r i a . 
* * 
A i n t e r p r e t a ç ã o social que Halbwachs d á da capacidade de 
lembrar é radica l . Entenda-se que n ã o se trata apenas de um condi-
cionamento externo de u m f e n ó m e n o interno, isto é, n ã o se trata de 
u m a j u s t a p o s i ç ã o de "quadros sociais" e "imagens evocadas". Mai s 
do que isso, entende que j á no interior da l e m b r a n ç a , no cerne da 
imagem evocada, t rabalham noções gerais, veiculadas pela lingua-
gem, logo, de fi l iação inst i tucional . É g r a ç a s ao c a r á t e r objetivo, 
transubjetivo, dessas noções gerais que as imagens resistem e se 
t ransformam em l e m b r a n ç a s . 
O exemplo do sonho, que em Bergson i lustrava a liberdade da 
m e m ó r i a pura , serve, em Halbwachs , para mostrar a evanescênc ia 
das imagens on í r i cas quando desacompanhadas das categorias 
"d iu rnas" que as secundam habitualmente: " O que expl ica a desa-
p a r i ç ã o do maior n ú m e r o das imagens noturnas é que, como elas 
n ã o foram localizadas no mundo da vigília, este mundo e as repre-
sen tações dele n ã o t ê m poder algum sobre elas: só se tornam lem-
b r a n ç a s evocáveis as imagens do sonho sobre as quais, quando 
acordados, nossa a t e n ç ã o e nossa ref lexão se f ixa ram, e que nós 
assim enfeixamos antes que se esva í ssem com as imagens e os 
pensamentos da v ig í l i a . " ^3 . 
A memória dos velhos 
U m verdadeiro teste para a h i p ó t e s e psicossocial da m e m ó r i a encon-
tra-se no estudo das l e m b r a n ç a s das pessoas idosas! Nelas é possível 
verificar u m a h i s tó r i a social bem desenvolvida: elas j á atravessaram 
um determinado tipo de sociedade, com ca rac t e r í s t i c a s bem mar-
cadas e conhecidas; elas j á viveram quadros de re fe rênc ia famil iar e 
cul tura l igualmente reconhec íve i s : enfim, sua m e m ó r i a atual pode 
ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido do que a 
m e m ó r i a de uma pessoa jovem, ou mesmo adulta, que, de algum 
modo, a inda es tá absorvida nas lutas e c o n t r a d i ç õ e s de u m presente 
que a solicita muito mais intensamente do que a u m a pessoa de 
idade. 
(23) W . , p . 139. 
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Delineia-se de novo a q u e s t ã o : a m e m ó r i a do velho é u m a evo-
c a ç ã o pura , " o n í r i c a " , do passado ( a m e m ó r i a por exce lênc ia de 
Bergson) ou um trabalho de re facção deste? 
O rac ioc ín io de Halbwachs opõe o sentido da evocação do 
velho ao do adulto: este, entretido nas tarefas do presente, n ã o 
procura habitualmente na in fânc ia imagens relacionadas com sua 
vida cotidiana; quando chega a hora da evocação , esta é, na reali-
dade, a hora do repouso, o relaxamento da a lma, desejo breve mas 
intenso de evasão . O adulto ativo n ã o se ocupa longamente com o 
passado; mas, quando o faz, é como se este lhe sobreviesse em forma 
de sonho. E m suma: para o adulto ativo, vida p r á t i c a é vida p r á t i c a , 
e m e m ó r i a é fuga, arte, lazer, c o n t e m p l a ç ã o . É o momento em que 
as á g u a s se separam com maior nitidez. 
B e m outra seria a s i t uação do velho, do homem que j á viveu 
sua v ida . A o lembrar o passado ele n ã o es tá descansando, por um 
instante, das lides cotidianas, n ã o e s t á entregando-se fugitivamente 
às de l íc ias do sonho: ele es tá -se ocupando consciente e atentamente 
do p r ó p r i o passado, da s u b s t â n c i a mesma da sua vida . " O velho n ã o 
se contenta, em geral, de aguardar passivamente que as l e m b r a n ç a s 
o despertem, ele procura p rec i sá - l a s , ele interroga outros velhos, 
compulsa seus velhos p a p é i s , suas antigas cartas e, principalmente, 
conta aquilo de que se lembra quando n ã o cuida de fixá-lo por 
escrito. E m suma, o velho se interessa pelo passado bem mais que o 
adulto, mas da í n ã o se segue que esteja em cond ições de evocar mais 
l e m b r a n ç a s desse passado do que quando era adulto, nem, sobre-
tudo, que imagens antigas, sepultadas no inconsciente desde sua 
infânc ia , 'recobrem a força de transpor o l imiar da consc iênc ia ' só 
e n t ã o . " 2 4 
Note-se a coerênc ia do pensamento de Halbwachs: o que rege, 
cm ú l t i m a in s t ânc i a , a atividade m n ê m i c a é a função social exercida 
aqui e agora pelo sujeito que lembra. H á um momento em que o 
liomem maduro deixa de ser um membro ativo da sociedade, deixa 
(lo ser um propulsor da vida presente do seu grupo: neste momento 
de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função p r ó p r i a : a de 
lembrar. A de ser a m e m ó r i a da famí l ia , do grupo, da in s t i t u i ção , da 
sociedade: "Nas tribos primit ivas, os velhos são os g u a r d i ã e s das 
Iriuliçõcs, n ã o só porque eles as receberam mais cedo que os outros 
mas lambem porque só eles d i s p õ e m do lazer necessá r io para f ixar 
seus pormenores ao longo de conver sações com os outros velhos, e 
pura ens iná- los aos jovens a part ir da in ic i ação . E m nossas socie-
tliidcs t a m b é m estimamos um velho porque, tendo vivido muito 
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tempo, ele tem mui ta expe r i ênc i a e e s t á carregado de l e m b r a n ç a s . 
Como, e n t ã o , os homens idosos n ã o se interessariam apaixonada-
mente por esse passado, tesouro comum de que se c o n s t i t u í r a m 
d e p o s i t á r i o s , e n ã o se e s fo r ça r i am por preencher, em plena cons-
c iênc ia , a função que lhes confere o ú n i c o pres t íg io que possam 
pretender da í ç m diante?" ^ 
Haver ia , portanto, para o velho u m a espéc ie singular de obri-
g a ç ã o social, que n ã o pesa sobre os homens de outras idades: a 
o b r i g a ç ã o de lembrar, e lembrar bem. C o n v é m , entretanto, mat izar 
a a f i r m a ç ã o de Halbwachs . Nem toda sociedade espera, ou exige, 
dos velhos que se desencarreguem dessa f u n ç ã o . E m outros termos, 
os graus de expectativa ou de ex igênc ia n ã o são os mesmos em toda 
parte. O que se poderia, no entanto, verificar, na sociedade em que 
vivemos, é a h ipó t e se mais geral de que o homem ativo (indepen-
dentemente da sua idade) se ocupa menos em lembrar, exerce 
menos frequentemente a atividade da m e m ó r i a , ao passo que o 
homem j á afastado dos afazeres mais prementes do cotidiano se d á 
mais habitualmente à re facção do seu passado. 
U m aspecto importante desse trabalho de r e c o n s t r u ç ã o é posto 
em relevo por Halbwachs quando nos adverte do processo de "desfi-
g u r a ç ã o " que o passado sofre ao ser remanejado pelas ideias e pelos 
ideais presentes do velho. A " p r e s s ã o dos preconceitos" e as "prefe-
r ênc i a s da sociedade dos velhos" podem modelar seu passado e, na 
verdade, recompor sua biografia individual ou grupai seguindo pa-
d rões e valores que, na linguagem corrente de hoje, são chamados 
" i d e o l ó g i c o s " . 
Memória, contexto e convenção 
A Psicologia Social só enfrentou diretamente o problema da m e m ó -
r i a em suas re lações com o contexto no l ivro, hoje c láss ico, de 
Freder ic Charles Bart let t , Remembering?^ A segunda parte dessa 
obra verdadeiramente pioneira intitula-se "Remember ing as a Study 
in Social Psyçho logy" e traz u m a série de obse rvações muito agudas 
que coincidem, em vár ios pontos, com as reflexões de Halbwachs , 
autor, a l iás , que Bartlet t leu e apreciou devidamente. 
Deve-se a Bart let t a u t i l i zação de u m conceito-chave para 
conectar o processo cul tural de um dado momento his tór ico ao tra-
balho da m e m ó r i a : o conceito de " c o n v e n c i o n a l i z a ç ã o " . O conceito 
(25) W . , p . 142. 
(26) Cambridge, Cambridge University Press, 1932. 
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em si n ã o foi cunhado por Bartlet t ; ele o ext ra iu de u m e tnó logo , 
W . H . R . Rivers , que o uti l izou no ensaio The History of Melanesian 
Society?'^ C o n v e n c i o n a l i z a ç ã o , para Rivers , é o processo pelo qual 
imagens e ideias, recebidas de fora por u m certo grupo i n d í g e n a , 
acabam assumindo u m a forma de e x p r e s s ã o ajustada às t écn i ca s e 
co n v en çõ es verbais j á estabelecidas h á longo tempo nesse grupo. 
Transpondo o conceito pa ra a á r ea psicossocial, Bart let t postula que 
a " m a t é r i a - p r i m a " da r e c o r d a ç ã o n ã o aflora em estado puro n a l in -
guagem do falante que lembra; ela é tratada, às vezes esti l izada, 
pelo ponto de vista cul tura l e ideológico do grupo em que o sujeito 
e s t á situado. 
Nessa al tura, constatamos u m a singular co inc idênc i a entre as 
f o r m u l a ç õ e s de Halbwachs e as de Bart let t : o que u m e outro 
buscam é f ixar a p e r t i n ê n c i a dos "quadros sociais" e das ins t i tu ições 
e das redes de c o n v e n ç ã o verbal no processo que conduz à lem-
b r a n ç a . Bartlet t es tá , pela sua p r ó p r i a f o r m a ç ã o profissional, mais 
rente à linguagem específ ica da Psicologia Social , tal como se cons-
ti tuiu nos anos de 30; mas o sentido do seu texto se acha p r ó x i m o do 
de Halbwachs . Provam-no os exemplos com que l ida , tirados da sua 
familiaridade com as tribos Swazi : 
1) Alguns dos l íderes i n d í g e n a s vis i taram a Inglaterra pa ra 
resolver p e n d ê n c i a s de terras. A o voltarem, foram abordados pelos 
ingleses da co lónia , curiosos em saberem o que os i n d í g e n a s tinham_ 
relido com mais nitidez da sua viagem à m e t r ó p o l e . A l e m b r a n ç a 
comum a todos os l íderes Swazi foi a dos guardas de t r â n s i t o "de 
m à o levantada". Por que — pergunta-se Bart let t — u m a a ç ã o t ã o 
simples produziu i m p r e s s ã o t ã o funda? A exp l i c ação só veio quando 
o ps icó logo reparou que os Swazi s a ú d a m o companheiro ou o vis i -
lante com a m ã o erguida. O gesto famil iar , quente de s impat ia na 
p r ó p r i a cul tura , significava, na outra, u m ato de comando. M a s o 
que se recordou, no contexto estrangeiro e estranho, foi a imagem 
associada ao sistema de convenções do receptor. 
2) Depois de ouvir muitas h i s tó r ias que atestavam a prodi-
KJosa m e m ó r i a verbal dos Swazi , Bart let t se pôs a fazer experi-
mentos com o fim de t e s t á - l a . Escolheu ao acaso u m menino de onze 
i>ii do/c anos de idade e deu-lhe u m a mensagem de 25 palavras para 
Irni ismit i - la pouco depois. Tratava-se de um texto semelhante aos j á 
u|,)lii'iuli>s por ele mesmo a c r i a n ç a s inglesas, variando agora apenas 
11 i -onleúdo de interesses, naturalmente mais p r ó x i m o do cotidiano 
dl' um menino Swazi . Os resultados, em termos de m é d i a de acertos 
e ilc omissões , n ã o diferiram dos obtidos com os meninos ingleses. 
{))) Cambridge, Cambridge University Press, 1914 (citada por Bartlett), p. 244. 
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3) O experimento 2 relativizou a a t r i b u i ç ã o de u m a faculdade 
de lembrar , em si e x t r a o r d i n á r i a , que seria peculiar àq u e l e s ind í -
genas. Combinando, p o r é m , o experimento 2 com o que se na r ra em 
1, Bart le t t é levado a crer que a nitidez da m e m ó r i a n ã o deva ser 
aval iada isoladamente, mas posta em re l ação com toda a e x p e r i ê n c i a 
social do grupo. F o i o que aconteceu quando o ps icó logo , ciente de 
que os Swazi se ocupavam intensamente de gado, testou a capaci-
dade retentiva de um vaqueiro pedindo-lhe que arrolasse um certo 
n ú m e r o de reses, dando a respectiva p r o c e d ê n c i a , cor do pê lo e 
p r e ç o . Bart le t t podia conferir as respostas com u m a lista escrita pelo 
p r o p r i e t á r i o do gado. O vaqueiro lembrou-se, sem hesitar, de todos 
os dados importantes e de quase todos os pormenores, ao passo que 
o p r o p r i e t á r i o das reses precisava valer-se sempre de u m papel em 
que ele mesmo t inha anotado a compra. 
Se, de um lado, o experimento 2 desfazia a lenda da m e m ó r i a 
prodigiosa dos Swazi , de outro, o experimento 3 encorpava a h ipó -
tese de que existe u m a r e l ação entre o ato de lembrar e o relevo 
(existencial e social) do fato recordado para o sujeito que o recorda. 
U m a aná l i se interna dessa ú l t i m a c o n s t a t a ç ã o levou Bart let t a 
distinguir entre a matéria da recordação (o que se lembra) e o modo 
da recordação (como se lembra) . 
A m a t é r i a estaria condicionada basicamente pelo interesse 
social que o fato lembrado tem para o sujeito. Quanto ao modo, o 
problema complica-se, porque entrar iam como var iáveis impor-
tantes alguns fatores tradicionalmente associados à psicologia da 
personalidade, como o temperamento e o c a r á t e r do sujeito que 
lembra . Bart let t c ruza um l imia r evitado sistematicamente por 
Maur ice Halbwachs . Es te , como estudioso dos níveis sociais da 
m e m ó r i a , prefere ater-se às r e l ações vividas pelo sujeito ( re lações 
familiares, vicinais , profissionais, po l í t i cas , religiosas. . .) como sufi-
cientemente capazes de ar t icular a atividade m n ê m i c a e sua forma 
narra t iva . Bartlet t ju lga possível tentar (embora ele mesmo n ã o o 
faça) u m a aná l i se dos estilos narrativos em função das d i fe renças 
pessoais dos sujeitos. 
O que me parece deva reter-se como u m a conquista comum 
das reflexões de Halbwachs e de Bart le t t é a i ne rênc i a da v ida atual 
ao processo de r e c o n s t r u ç ã o do passado. A " c o n v e n c i o n a l i z a ç ã o " é, 
a rigor, um trabalho de modelagem que a s i t u a ç ã o evoca.da sofre no 
contexto de ideias e valores dos que a evocam. O processo geral da 
convenc iona l i z ação pode, segundo Bart let t , diferenciar-se interna-
mente em subprocessos; voltando ao seu modelo a n t r o p o l ó g i c o , o 
ps icó logo considerou o tratamento que cada imagem nova sofre na 
m e m ó r i a do ind iv íduo a n á l o g o à modelagem que u m a dada forma 
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cul tura l c iv i l izada recebe ao ser transferida para u m grupo i n d í g e n a . 
O nativo pode: 
a) simplesmente incorporar a forma cul tura l estranha, por 
assimilação; 
b) ou despojá - la de alguns aspectos e algumas c o n o t a ç õ e s es-
tranhas à sua p r á t i c a social {simplificação); 
c) ou apreender u m aspecto em si desimportante no contexto-
fonte, e dar-lhe u m a re levânc ia especial {retençãoparcial com hiper-
trofia do detalhe); 
d) ou, finalmente, construir u m a "ou t ra" forma s imbó l i ca 
que resul tar ia das in t e rações do p r ó p r i o grupo receptor, capaz por-
tanto de transformar a m a t é r i a recebida e incutir-lhe o sentido de 
u m a p r á t i c a social específ ica . 
O que Bartlet t admite, de u m modo bastante compreensivo, é 
a ex i s t ênc ia de um " c o n t í n u o " que va i da simples a s s i m i l a ç ã o , por 
transplante, a t é a c r i ação social de novos s ímbo los , a part i r do rece-
bimento de formas extragrupais. A m e m ó r i a das pessoas t a m b é m 
dependeria desse longo e amplo processo, pelo qual sempre " f i c a " o 
que significa. E fica n ã o do mesmo modo: às vezes quase intacto, às 
vezes profundamente alterado. A t r a n s f o r m a ç ã o seria tanto mais 
radical quanto mais operasse sobre a m a t é r i a recebida a m ã o - d e -
obra do grupo receptor. A s s i m , novos significados al teram o con-
t e ú d o e o valor da s i t u a ç ã o de base evocada. No outro extremo, se a 
vida social ou individual estagnou, ou reproduziu-se quase que só 
fisiologicamente, é provável que os fatos lembrados tendam a con-
servar o significado que t inham para os sujeitosno momento em que 
os viveram. 
U m dos aspectos mais instigantes do tema é o da c o n s t r u ç ã o 
social da m e m ó r i a . Quando u m grupo t rabalha intensamente em 
conjunto, h á u m a t e n d ê n c i a de cr ia r esquemas coerentes de nar-
riiçi^o e de i n t e r p r e t a ç ã o dos fatos, verdadeiros "universos de dis-
curso", "universos de significado", que d ã o ao mater ia l de base 
iiniii forma h i s tó r i ca p r ó p r i a , u m a versão consagrada dos aconteci-
iiu-nlns. O ponto de vista do grupo cons t ró i e procura f ixar a sua 
hnaKcm para a His tó r i a . Es te é, como se pode supor, o momento 
Aiirci) da ideologia com todos os seus es t e reó t ipos e mitos. No outro 
extremo, haveria uma a u s ê n c i a de e l a b o r a ç ã o grupai em torno de 
cprios acontecimentos ou s i t uações . A rigor, o efeito, nesse caso, 
«eiht o (Ic esquecer tudo quanto n ã o fosse "atualmente" significativo 
para n grupo de convívio da pessoa. É o que sucede às vezes: os 
fulos que n ã o foram testemunhados "perdem-se", "omitem-se", 
porque n ã o costumam ser objeto de conversa e de n a r r a ç ã o , a n ã o 
NiM' ntcepcionalmente. A s s i m , quando o sujeito os evoca, n ã o vem o 
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re forço , o apoio c o n t í n u o dos outros: é como se ele estivesse so-
nhando ou imaginando; e n ã o por acaso duvidamos, hesitamos, 
quando n ã o nos confundimos, sempre que devemos falar de u m fato 
que só foi presenciado por n ó s , ou que sabemos "por ouvir d izer" . O 
sonho, ao c o n t r á r i o , parece alimentar-se mais generosamente desses 
momentos sol i tár ios de evocação que ter iam, talvez, ao menos a 
vantagem de n ã o sofrer a modelagem s i s t emá t i ca da ideologia 
grupai . 
A e l a b o r a ç ã o grupai comum seria, portanto, decisiva. Sem 
ela, tende a reproduzir-se com mais força o teor da "p r ime i r a 
i m p r e s s ã o " , m a t é r i a daquela l e m b r a n ç a - i m a g e m e da " m e m ó r i a 
p u r a " de Bergson. C o m ela, ao c o n t r á r i o , a pr imeira i m p r e s s ã o 
f icar ia cancelada e s u b s t i t u í d a pelas r e p r e s e n t a ç õ e s e ideias domi-
nantes inculcadas no sujeito (h ipó tese de Halbwachs) , ou apenas 
amortecida no inconsciente, de onde poderia sair durante o sonho e 
nos raros momentos de livre evocação ( h i p ó t e s e de Bergson). 
U m dos mais sutis analistas da m e n i ó r i a , de u m ponto de vista 
rigorosamente ps icológico , W i l l i a m Stern,^» ju lga , com Bergson, 
que as p e r c e p ç õ e s podem passar por um " p e r í o d o latente", durante 
o qual "desaparecem" da consc iênc ia a té que, por motivos diversos, 
reaflorem mnemicamente. O postulado de Stern é o da ex i s t ênc ia de 
u m a unidade constante, um "fundo ininterrupto", que permite a 
r e a n i m a ç ã o de u m a imagem que foi recebida muito tempo antes, 
E s s a unidade é chamada "pessoa" e corresponde, mutatis mutan-
dis, à q u e l a outra unidade, mais profunda, que Bergson denomina 
" e s p í r i t o " , sede t a m b é m da m e m ó r i a . 
P a r a W i l l i a m Stern, a unidade pessoal conserva intactas as 
imagens do passado, mas pode a l t e rá - l a s conforme as cond ições 
concretas do seu desenvolvimento. A m e m ó r i a p o d e r á ser conser-
vação ou e l a b o r a ç ã o do passado, mesmo porque o seu lugar na vida 
do homem acha-se a meio caminho entre o instinto, que se repete 
sempre, e a in te l igênc ia , que é capaz de inovar.^' De onde resulta 
u m a c o n c e p ç ã o extremamente flexível da m e m ó r i a : " A l e m b r a n ç a é 
a h i s tó r i a da pessoa e seu mundo, enquanto vivenciada."^^ Stern 
refere-se ao estrato objetivo da l e m b r a n ç a (h i s tó r ia , mundo), mas 
subordina-o manifestamente à subjetividade (seu, vivenciada) . O 
passado entra plasticamente no universo pessoal: " A função da 
l e m b r a n ç a é conservar o passado do ind iv íduo na forma que é mais 
apropriada a ele. O mater ia l indiferente é descartado, o desagra-
(28) Psicologia General. Buenos Aires, Paidos, 1967. 
(29) /rf. ,p. 193. 
(30) Id., p. 248. 
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dável alterado, o pouco claro ou confuso simplifica-se por u m a 
d e l i m i t a ç ã o n í t i d a , o t r iv ia l é elevado à hierarquia do insól i to ; e no 
f im formou-se u m quadro total, novo, sem o menor desejo consciente 
de fa ls i f icá- lo ." 3' 
O passado é, portanto, trabalhado qualitativamente pelo 
sujeito, sobretudo se o seu tipo for "elaborat ivo", em o p o s i ç ã o ao 
"retent ivo" (Stern , como ps icólogo da personalidade, n ã o al i ja do 
seu discurso a velha linguagem ca rac t e r i o lóg i ca ) . E , quantitativa-
mente, t a m b é m se notam d i fe renças : o passado pode ocupar quase 
todo o e s p a ç o mental do sujeito, como no caso dos velhos enfermos e 
aposentados; e pode, em s i tuações opostas, ser desdenhado e esque-
cido, como a in fânc ia durante a ado le scênc ia , p e r í o d o em que o 
sujeito se acha situado antes no eixo presente-futuro que no eixo 
passado-presente. 
D o ponto de vista m e t o d o l ó g i c o , parece haver em Stern u m 
modelo combinado de u m a psicologia t radicional , de cunho perso-
nal is ta , e uma psicologia objetiva, que aceita o peso das in t e r ações 
do corpo com a sociedade. Admit indo as m u t a ç õ e s da pessoa e, ao 
mesmo tempo, a sua "unidade constante", Stern concil ia a supo-
sição de que existe u m a m e m ó r i a " p u r a " , mant ida no inconsciente, 
com a s u p o s i ção de que as l e m b r a n ç a s são refeitas pelos valores do 
presente, no que se aproxima de Halbwachs e de Bart let t . E m 
termos experimentais, essa dualidade de pressupostos torna muito 
complexa a resposta à pergunta: qual a forma predominante de 
m e m ó r i a de um dado ind iv íduo? O ú n i c o modo correto de sabê- lo é 
levar o sujeito a fazer sua autobiografia. A n a r r a ç ã o da p r ó p r i a v ida 
6 o testemunho mais eloquente dos modos que a pessoa tem de 
lembrar . Ê a sua m e m ó r i a . 
Ml) W. .p . 253. 
C A P Í T U L O I I 
Tempo de lembrar 
Memória e socialização 
A c r i a n ç a recebe do passado n ã o só os dados da h i s t ó t i a escrita; 
mergulha suas ra ízes na h i s tó r i a v iv ida , ou melhor, sobrevivida, das 
pessoas de idade que tomaram parte na sua soc ia l i zação . Sem estas 
l iaveria apenas uma c o m p e t ê n c i a abstrata pa ra l idar com os dado* 
do passado, mas n ã o a m e m ó r i a . 
Enquan to os pais se entregam às atividades da idade madura , 
a c r i a n ç a recebe i n ú m e r a s noções dos avós, dos empregados. Estes 
não t êm , em geral, a p r e o c u p a ç ã o do que é " p r ó p r i o " para c r i a n ç a s , 
mas conversam com elas de igual para igual , refletindo sobre aconte-
cimentos pol í t icos , h i s tór icos , tal como chegam a eles a t ravés das 
d e fo rmaçõ es do i m a g i n á r i o popular. Eventos considerados t r ág icos 
para os tios, pais, i r m ã o s mais velhos são relativizados pela avó 
enquanto n ã o for sacudida sua vida m i ú d a ou n ã o forem atingidos 
os seus. E l a d i r á à c r i a n ç a que já v iu muitas revoluções , que tudo 
eonlinua na mesma: a l g u é m continuou na cozinha, servindo, la-
vaiitlo pratos e copos em que os outros beberam, l impando banhei-
liis, a r rumando camas para o sono de outrem, esvaziando cinzeiros, 
rcKundo plantas, varrendo o c h ã o , lavando a roupa. A l g u é m curvou 
Nuiis costas atentas para os r e s íduos de outras vidas. 
O que p o d e r á mudar enquanto a c r i a n ç a escuta na sala dis-
»'iirst)s igua l i tá r ios e observa na cozinha o sacrif ício constante dos 
pMiprcgados? A verdadeira m u d a n ç a dá-se a perceber no interior, no 
i'onercto, no quotidiano, no m i ú d o ; os abalos exteriores n ã o modi-
lliiim o essencial. E i s a filosofia que é t ransmit idaà c r i a n ç a , que a 
«htiirve junto com a grandeza dos socialmente "pequenos" a quem 
vnlHinos nossa pr imeira afeição e que podem guiar nossa p e r c e p ç ã o 
iiiiveiite do mundo. Depois esse tempo f icará o tempo subjacente, 
iliiniiiuido, e mergulharemos no tempo da classe dominante que 
Itrppoiulera u m a vez que assume o controle da v ida social. 
32 - M E M O R I A E S O C I E D A D E 
É g r a ç a s a esta "outra s o c i a l i z a ç ã o " , à qual a Psicologia tem 
dado pouca a t e n ç ã o , que n ã o estranhamos as regiões sociais do 
passado: ruas, casas, móve is , roupas antigas, h i s tó r i a s , maneiras de 
falar e de se comportar de outros tempos. N ã o só n ã o nos causam 
estranheza, como, devido ao intimo contacto com nossos avós , nos 
parecem singularmente familiares. 
O que é um ambiente acolhedor? S e r á ele c o n s t r u í d o por u m 
gosto refinado na d e c o r a ç ã o ou se rá u m a r e m i n i s c ê n c i a das regiões 
de nossa casa ou de nossa in fânc ia banhadas por u m a luz de outro 
tempo? O quarto dos avós, a casa dos avós, regiões em que n ã o 
havia a p r e o c u p a ç ã o de socializar, punir , sancionar nossos atos, mas 
onde tudo era t o l e r ânc i a e a c e i t a ç ã o . Aos avós n ã o cabe a tarefa 
definida da e d u c a ç ã o do neto: o tempo que lhes é concedido de 
convívio se e n t r e t é m de car íc ias , h i s tó r i a s e brincadeiras. A ordem 
social se inverte: dos a r m á r i o s saem coisas doces fora de hora, o 
presente j á n ã o interessa, pois nem o netinho, nem os velhos a tuam 
sobre ele, tudo se volta para o passado ou pa r a um futuro que 
remonta ao passado: " — Você , quando crescer, s e r á como o vovô, 
que na sua idade t a m b é m br incava de escrever. . ." 
"Os amigos mortos revivem em ti 
e as mortas estações 
Os atos púb l i cos dos adultos interessam quando revestidos de 
u m sentido famil iar , í n t i m o , compreens íve l no d i a - a -d i á . Os feitos 
abstratos, as palavras dos homens importantes só se revestem de 
significado pa ra o velho e para a c r i a n ç a quando traduzidos por 
a lguma grandeza na v ida quotidiana. Como pode a a n c i ã jus t i f icar a 
g lór ia do filho premiado na academia cientifica se ele n ã o ajuda os 
sobrinhos pobres, ou se ele n ã o cura o reumatismo da cozinheira? 
H á d i m e n s õ e s da a c u l t u r a ç ã o que, sem os velhos, a e d u c a ç ã o 
dos adultos n ã o a l c a n ç a plenamente: o reviver do que se perdeu, de 
h i s tó r ias , t r ad i ções , o reviver dos que j á pa r t i r am e par t ic ipam e n t ã o 
de nossas conversas e e s p e r a n ç a s ; enfim, o poder que os velhos t ê m de 
tornar presentes na famí l i a os que se ausentaram, pois deles a inda 
ficou a lguma coisa em nosso h á b i t o de sorrir, de andar. N ã o se 
deixam para t r á s essas coisas, como d e s n e c e s s á r i a s . E s t a força , essa 
vontade de revivescência , a r ranca do que passou seu c a r á t e r t ransi-
tór io , faz com que entre de modo constitutivo no presente. P a r a 
Hegel, é o passado concentrado no presente que c r ia a natureza 
humana por u m processo de c o n t í n u o reavivamento e rejuvenesci-
mento. 
Os projetos do ind iv íduo transcendem o intervalo físico de sua 
ex i s tênc ia : ele nunca morre tendo explicitado todas as suas possi-
bilidades. Antes, morre na véspe ra : e a l g u é m deve realizar suas 
T E M P O D E L E M B R A R — 33 
possibilidades que f icaram latentes, pa ra que se complete o desenho 
de sua vida. 
Ê a essência da cul tura que atinge a c r i a n ç a a t r avés da fide-
hdade da m e m ó r i a . A o lado da h i s tó r i a escrita, das datas, da des-
c r i ção de p e r í o d o s , h á correntes do passado que só desapareceram 
na a p a r ê n c i a . E que podem reviver n u m a rua , n u m a sala, em certas 
pessoas, como i lhas e f émeras de um'es t i lo , de u m a manei ra de 
pensar, sentir, falar, que são resqu íc ios de outras é p o c a s . H á ma-
neiras de tratar u m doente, de a r rumar as camas, de cul t ivar u m 
j a r d i m , de executar u m trabalho de agulha, de preparar u m al i -
mento que obedecem fielmente aos ditames de outrora. 
Nas noites frias de abr i l os fiéis que assistem às cerimonias da 
semana santa em minha cidade saem para o p á t i o lateral da igreja 
onde encontram aceso u m grande fogão de lenha. A tr inta minutos 
da m e t r ó p o l e v iz inha , contemplando o p á t i o aquecido e as velhinhas 
que se aproximam tiritando, n ã o posso deixar de pensar que foi 
assim no século passado e ainda antes. Como poderia ter sido outra 
a e x p r e s s ã o desses rostos aconchegados sob as manti lhas? O u o 
olhar desgarrado com que os velhos às vezes olham, sem ver, as 
labaredas n a noite? 
H á casas em cidades tranquilas em que o tempo parou; o 
relógio das salas é o mesmo que pulsava antigamente e as pessoas 
que pisam as t á b u a s largas do assoalho conservam u m forte estilo de 
vida que nos surpreende pela continuidade. A i n d a na semana santa, 
c m minha cidade, o j e jum da "sexta-feira ma io r " é preparado dias 
antes com abundante comezaina (menos carne) pa ra a p e n i t ê n c i a do 
grande dia . A far inha de milho do cuscuz é preparada pelos mesmos 
processos, exposta, vendida, cozinhada e comida com a mesma 
u n ç ã o . E o manto do Senhor Morto das p roc i s sões é feito cada ano 
por m ã o s diferentes de costureiras, mas n ã o é o mesmo gesto, a 
mesma devoção , o mesmo arrebatamento es té t ico que absoluta-
mente n ã o são mais dos dias de hoje? 
Integrados em nossa g e r a ç ã o , vivendo expe r i ênc i a s que enri-
i | i iccem a idade madura , dia virá em que as pessoas que pensam 
como nós i rão se ausentando, a té que poucas, bem poucas, f i ca rão 
|)nra testemunhar nosso estilo de v ida e pensamento. Os jovens nos 
o l h a r ã o com estranheza, curiosidade; nossos valores mais caros lhes 
| ) i i rccerão dissonantes e eles e n c o n t r a r ã o em nós aquele olhar 
desgarrado com que, às vezes, os velhos o lham sem ver, buscando 
Hiiiparo em coisas distantes e ausentes. 
* 
* * 
34 — M E M O R I A E S O C I E D A D E 
A idade adulta é norteada pela a ç ã o presente: e quando se 
volta pa ra o passado é para buscar nele o que se relaciona com suas 
p r e o c u p a ç õ e s atuais. L e m b r a n ç a s da in fânc i a pa ra merecer a t e n ç ã o 
do adulto são constrangidas a entrar no quadro a tua l . ' Os velhos, 
postos à margem da a ç ã o , rememoram, fatigados da atividade. O 
que foi sua vida s e n ã o um constante preparo e treino de quem i r á 
subs t i tu í - los? Os jovens, formados e alimentados pelo cuidado de 
seus doadores, logo se fortalecem e se tornam aptos para desem-
penhar tarefa igual ou superior à de seus mestres. 
Nos melhores aprendizes a g r a t i d ã o acompanha o sentimento 
da p r ó p r i a superioridade em re l ação ao velho. Mas o comum dos 
aprendizes, quando a fonte doadora esgotou seus benef íc ios , volta-
Ihe as costas e busca outras fontes.^ Isto é humano, d i r ã o , é a lei da 
s u p e r a ç ã o da g e r a ç ã o mais velha pela mais jovem. O u se rá desu-
mano, p r ó p r i o de u m a sociedade competidora, onde j á se perdeu o 
gosto inefável da individualidade de cada pessoa? 
Os lugares ao sol são restritos aos vencedores; os vencidos 
t i r i tam e, sentindo que o sol lhes foge, pensam como Rousseau: "as 
l e m b r a n ç a s se gravam na minha m e m ó r i a com t r aços cujo encanto 
e força aumentam d ia a dia; como se, sentindo que a vida me 
escapa, eu procurasse a q u e c ê - l a pelos seus c o m e ç o s " (Confissões). 
E m nossa sociedade, os fracos n ã o podem ter defeitos; por-
tanto, os velhos n ã o podem errar . Deles esperamos infinita tole-
r â n c i a , longanimidade, p e r d ã o , ou uma a b n e g a ç ã o servil pela famí-
l i a . Momentos de có le ra , de esquecimento,de fraqueza s ã o dura-
mente cobrados aos idosos e podem ser o início de seu banimento do 
grupo famil iar . U m a variante desse comportamento: ouvimos pes-
soas que n ã o sabem falar aos idosos s e n ã o com um tom protetor que 
mal d i s fa rça a estranheza e a recusa. 
A burocracia impessoal, a j u s t i ç a equidistante são feitas pa r a 
os pequenos: p a p é i s complicados para preencher, horas na fi la de 
um g u i c h é errado e a aposentadoria vem tarda e p r e c á r i a . 
Antes do afastamento definitivo h á u m dec l ín io lento, intermi-
tente, acompanhado de dolorosa lucidez. Mui tas vezes o idoso ab-
sorve a ideologia voraz do lucro e da ef icácia e repete: " É assim 
mesmo que deve acontecer, a gente.perde a serventia, d á lugar aos 
m o ç o s . . . P a r a que serve um velho, só pa ra dar t rabalho . . . " 
(1) Este constrangimento e empobrecimento da memória na idade adulta é pura-
mente social. Thomas Mann escreveu um romance de rememoração em plena 
juventude: Os Buddenbrook. 
(2) Sobre a ingratidão em relação aos velhos doadores, Machado de Assis escreveu 
em sua velhice O memorial de Aires. 
T E M P O D E L E M B R A R - 35 
E x i s t e m , s im, outras sociedades, d e v e r í a m o s responder, onde 
o a n c i ã o é o maior bem social, possui um lugar honroso e u m a voz 
p r i v i l e g i a d a f \ j m a lenda balinesa fala de u m l o n g í n q u o lugar, nas 
montanhas, onde outrora se sacrif icavam os velhos. Com o tempo 
n ã o restou nenhum avô que contasse as t r a d i ç õ e s para os netos. A 
l e m b r a n ç a das t r ad ições se perdeu. U m dia quiseram construir um 
sa lão de paredes de troncos para a sede do Conselho. Diante dos 
troncos abatidos e j á desgalhados os construtores viam-se perplexos. 
Quem dir ia onde estava a base para ser enterrada e o alto que ser-
v i r i a de apoio para o teto? Nenhum deles poderia responder: h á 
muitos anos n ã o se levantavam c o n s t r u ç õ e s de grande porte e eles 
t inham perdido a expe r i ênc i a . U m velho, que havia sido escondido 
pelo neto, aparece e ensina a comunidade a distinguir a base e o 
cimo dos troncos. Nunca mais um velho foi sacrificado7| 
A velhice na sociedade industrial 
A l é m de ser um destino do ind iv íduo , a velhice é u m a categoria 
social . T e m um estatuto contingente, pois cada sociedade vive de 
forma diferente o dec l ín io b io lógico do homem. A sociedade indus-
tr ial é malé f ica para a velhice. Nas sociedades mais .es táveis um octo-
g e n á r i o pode c o m e ç a r a c o n s t r u ç ã o de u m a casa, a p l a n t a ç ã o de 
uma horta, pode preparar os canteiros e semear um j a r d i m . Seu 
filho c o n t i n u a r á a obra. 
Quando as m u d a n ç a s h i s tó r i cas se aceleram e a sociedade 
extra i sua energia da div isão de classes, criando u m a sér ie de rup-
turas nas re lações entre os homens e na r e l ação dos homens com a 
natureza, todo sentimento de continuidade é arrancado de nosso 
trabalho. D e s t r u i r ã o a m a n h ã o que construirmos hoje. Comenta 
Simone de Beauvoir em sua obra sobre a velhice: " A s á rvores que o 
velho planta se rão abatidas. Quase em toda parte a cé lu la famil iar 
explodiu. A s pequenas empresas são absorvidas pelos m o n o p ó l i o s 
ou se deslocam. O filho n ã o r e c o m e ç a r á o pai , e o pai sabe disso. E l e 
desaparecido, a herdade se rá abandonada, o estoque da loja ven-
dido, o negócio liquidado. As coisas que ele realizou e que fizeram o 
sriitido de sua vida s ã o t ã o a m e a ç a d a s quanto ele mesmo."^ 
A sociedade rejeita o velho, n ã o oferece nenhuma sobrevi-
vi-ncia à sua obra. Perdendo a força de trabalho ele j á n ã o é pro-
dutor nem reprodutor. Se a posse, a propriedade, constituem, se-
gundo Sartre , uma defesa contra o outro, o velho de u m a classe 
(,•») La vieillesse, p. 402. Paris, Gallimard, 1970. 
35 - M E M O R I A E S O C I E D A D E 
favorecida defende-se pela a c u m u l a ç ã o de bens. Suas propriedades 
o defendem da desva lo r i zação de sua pessoa. O velho n ã o par t ic ipa 
da p r o d u ç ã o , n ã o faz nada: deve ser tutelado como u m menor. 
Quando as pessoas absorvem tais ideias da classe dominante, agem 
como loucas porque delineiam assim o í e u p r ó p r i o futuro. 
Nos cuidados com a c r i a n ç a o adulto "investe" pa ra o futuro, 
mas em r e l a ç ã o ao velho age com duplicidade e m á fé. A mora l 
oficial prega o respeito ao velho mas quer convencê- lo a ceder seu 
lugar aos jovens, a fas tá- lo delicada mas firmemente dos postos de 
d i r eção . Que ele nos poupe de seus conselhos e se resigne a u m papel 
passivo. Veja-se no interior das famí l i as a cumpHcidade dos adultos 
em manejar os velhos, em imobi l i zá - los com cuidados pa ra "seu 
p r ó p r i o bem" . E m pr ivá- los da liberdade de escolha, em t o rn á - l o s 
cada vez mais dependentes "adminis t rando" sua aposentadoria, 
obrigando-os a sair de seu canto, a mudar de casa ( e x p e r i ê n c i a 
terr ível pa ra o velho) e, por f im , submetendo-os à i n t e r n a ç ã o hospi-
talar. Se o idoso n ã o cede à p e r s u a s ã o , à mentira , n ã o se h e s i t a r á em 
usar a força . Quantos anc i ãos n ã o pensam estar provisoriamente no 
asilo em que foram abandonados pelos seus! 
A ca r ac t e r í s t i c a da r e l a ç ã o do adulto com o velho é a falta de 
reciprocidade que pode se t raduzir n u m a to l e r ân c i a sem o calor da 
sinceridade. N ã o se discute com o velho, n ã o se confrontam op in iões 
com as dele, negando-lhe a oportunidade de desenvolver o que só se 
permite aos amigos: a alteridade, a c o n t r a d i ç ã o , o afrontamento e 
mesmo o conflito. Quantas r e l ações humanas são pobres e banais 
porque deixamos que o outro se expresse de modo repetitivo e 
porque nos desviamos das á r e a s de atrito, dos pontos vitais, de tudo 
o que em nosso confronto pudesse causar o crescimento e a dor! Se a 
t o l e r ânc i a com os velhos é entendida assim, como u m a a b d i c a ç ã o do 
d iá logo , melhor seria dar-lhe o nome de banimento ou discr imi-
n a ç ã o . 
O a r t e s ã o acumulava e x p e r i ê n c i a e os anos aproximavam da 
per fe ição seu desempenho; era u m mestre de ofício. Hoje, o trabalho 
o p e r á r i o é u m a repe t i ção de gestos que n ã o permite aper fe içoa-
mento, a n ã o ser na rapidez. Enquan to o a r t e s ã o real izava sua obra 
em casa, na oficina d o m é s t i c a , o velho trabalhador tem que des-
locar-se. 
Quando se vive o primado da mercadoria sobre o homem, a 
idade engendra desva lo r i zação . A r a c i o n a l i z a ç ã o , que exige c a d ê n -
cias cada vez mais r á p i d a s , e l imina da i n d ú s t r i a os velhos o p e r á r i o s . 
O taylorismo e, hoje, as horas extras deveriam ser estudados seria-
mente como causas da morte precoce dos trabalhadores. 
P a r a a dignidade da Psicologia Indus t r ia l quero assinalar 
cuidadosas pesquisas de ps icó logos na i n d ú s t r i a , provando que a 
T E M P O D E L E M B R A R - 37 
"funcional idade" do trabalhador, em certos setores, aumenta com a 
idade. Al i á s , as pesquisas que correlacionam idade com perda de 
ef iciência s ã o discordantes entre si e n ã o merecem c o n f i a n ç a . Ser ia 
preciso verif icar se os l a b o r a t ó r i o s que as produzi ram n ã o são finan-
ciados por empresas e fundações l igadas à i n d ú s t r i a . 
Nas é p o c a s de desemprego os velhos são especialmente discri-
minados e obrigados a rebaixar sua ex igênc ia de sa lá r io e aceitar 
empreitas pesadas e nocivas à s a ú d e . Como no interior de certas 
famíHas , aproveita-se dele o b r a ç o servil , mas n ã o o conselho. 
Simone de Beauvoir faz belas ref lexões sobre a velhice. A 
c r i a n ç a sente voltar para si os reflexos de amor que sua imagem 
desperta. O velho, ao c o n t r á r i o , n ã o pode realizar sua imagem, 
concebê- l a como é p ara os outros. 
A velhice é u m irrealizável, segundo Sartre; é u m a s i t u a ç ã o 
composta de aspectos percebidos pelo outro e, como ta l , reificados 
( u m être-pour-autrui), que transcendem nossa consc i ênc i a . Nunca 
poderei assumir a velhice enquanto exterioridade, nunca poderei 
assumi-la existencialmente, tal como ela é para o outro, fora de 
m i m . É u m ir real izável como a negritude; como pode o negro real i-
zar em sua consc iênc ia o que os outros vêem nele? 
A velhice, que é fator na tura l como a cor da pele, é tomada 
preconceituosamente pelo outro. H á , no transcorrer da vida , mo-
mentos de crise de iden t i f i cação : na ado lescênc ia t a m b é m nossa 
imagem se quebra, mas o adolescente vive u m p e r í o d o de t r a n s i ç ã o , 
n ã o de dec l ín io . O velho sente-se u m ind iv íduo d i m i n u í d o , que lu ta 
para continuar sendo um homem. O coeficiente de adversidade das 
coisas cresce: as escadas f icam mais duras de subir, as d i s t â n c i a s 
mais longas a percorrer, as ruas mais perigosas de atravessar, os 
pacotes mais pesados de carregar. O mundo fica e r i ç a d o de amea-
ças , de ci ladas. U m a falha, u m a pequena d i s t r a ç ã o são severamente 
castigadas. 
P a r a a c o m u n i c a ç ã o com seus semelhantes precisa de arte-
(iilos: p r ó t e s e s , lentes, aparelhos acús t i cos , c â n u l a s . Os que n ã o 
podem comprar esses aparelhos f icam privados de c o m u n i c a ç ã o . 
U m dos velhos que entrevistei escreve estes versos: 
A mão trémula é incapaz 
de ensinar o apreendido. 
É a i m p o t ê n c i a de t ransmit i r a expe r i ênc i a , quando os meios 
(Ic c o m u n i c a ç ã o com o mundo fa lham. E l e n ã o pode mais ensinar 
«qui lo que sabe e que custou toda u m a vida para aprender. 
Sobre a i n a d a p t a ç ã o dos velhos, convir ia meditar que nossas 
faculdades, pa ra continuarem vivas , dependem de nossa a t e n ç ã o à 
36 — M E M O R I A E S O C I E D A D E 
favorecida defende-se pela a c u m u l a ç ã o de bens. Suas propriedades 
o defendem da desva lo r i zação de sua pessoa. O velho n ã o par t ic ipa 
da p r o d u ç ã o , n ã o faz nada: deve ser tutelado como u m menor. 
Quando as pessoas absorvem tais ideias da classe dominante, agem 
como loucas porque delineiam assim o seu p r ó p r i o futuro. 
Nos cuidados com a c r i a n ç a o adulto "investe" para o futuro, 
mas em re l ação ao velho age com duplicidade e m á fé. A mora l 
oficial prega o respeito ao velho mas quer convencê- lo a ceder seu 
lugar aos jovens, a fas tá - lo delicada mas firmemente dos postos de 
d i r e ç ã o . Que ele nos poupe de seus conselhos e se resigne a u m papel 
passivo. Veja-se no interior das famí l i as a cumplicidade dos adultos 
em manejar os velhos, em imobi l i zá - los com cuidados pa ra "seu 
p r ó p r i o bem" . E m pr ivá- los da liberdade de escolha, em t o r n á - l o s 
cada vez mais dependentes "adminis t rando" sua aposentadoria, 
obrigando-os a sair de seu canto, a mudar de casa ( e x p e r i ê n c i a 
terr ível para o velho) e, por f im, submetendo-os à i n t e r n a ç ã o hospi-
talar . Se o idoso n ã o cede à p e r s u a s ã o , à ment i ra , n ã o se h e s i t a r á em 
usar a força . Quantos anc i ãos n ã o pensam estar provisoriamente no 
asilo em que foram abandonados pelos seus! 
A ca r ac t e r í s t i c a da r e l a ç ã o do adulto com o velho é a fal ta de 
reciprocidade que pode se traduzir n u m a t o l e r â n c i a sem o calor da 
sinceridade. N ã o se discute com o velho, n ã o se confrontam op in iões 
com as dele, negando-lhe a oportunidade de desenvolver o que só se 
permite aos amigos: a alteridade, a c o n t r a d i ç ã o , o afrontamento e 
mesmo o conflito. Quantas re lações humanas são pobres e banais 
porque deixamos que o outro se expresse de modo repetitivo e 
porque nos desviamos das á r ea s de atrito, dos pontos vitais , de tudo 
o que em nosso confronto pudesse causar o crescimento e a dor! Se a 
t o l e r â n c i a com os velhos é entendida assim, como u m a a b d i c a ç ã o do 
d iá logo , melhor seria dar-lhe o nome de banimento ou discr imi-
n a ç ã o . 
O a r t e s ã o acumulava expe r i ênc i a e os anos aproximavam da 
per fe ição seu desempenho; era um mestre de ofício. Hoje, o trabalho 
o p e r á r i o é u m a r e p e t i ç ã o de gestos que n ã o permite aper fe içoa-
mento, a n ã o ser na rapidez. Enquan to o a r t e s ã o real izava sua obra 
em casa, na oficina d o m é s t i c a , o velho trabalhador tem que des-
locar-se. 
Quando se vive o primado da mercadoria sobre o homem, a 
idade engendra desva lo r i zação . A r a c i o n a l i z a ç ã o , que exige c a d ê n -
cias cada vez mais r á p i d a s , e l imina da i n d ú s t r i a os velhos o p e r á r i o s . 
O taylorismo e, hoje, as horas extras deveriam ser estudados seria-
mente como causas da morte precoce dos trabalhadores. 
P a r a a dignidade da Psicologia Indus t r ia l quero assinalar 
cuidadosas pesquisas de ps icó logos n a i n d ú s t r i a , provando que a 
T E M P O D E L E M B R A R - 37 
"funcional idade" do trabalhador, em certos setores, aumenta com a 
idade. Al iás , as pesquisas que correlacionam idade com perda de 
ef ic iência são discordantes entre si e n ã o merecem c o n f i a n ç a . Ser ia 
preciso verificar se os l a b o r a t ó r i o s que as produzi ram n ã o são finan-
ciados por empresas e fundações ligadas à i n d ú s t r i a . 
Nas é p o c a s de desemprego os velhos são especialmente discri-
minados e obrigados a rebaixar sua ex igênc ia de sa lá r io e aceitar 
empreitas pesadas e nocivas à s a ú d e . Como no interior de certas 
famí l i as , aproveita-se dele o b r a ç o servi l , mas n ã o o conselho. 
Simone de Beauvoir faz belas reflexões sobre a velhice. A 
c r i a n ç a sente voltar para si os reflexos de amor que sua imagem 
desperta. O velho, ao c o n t r á r i o , n ã o pode real izar sua imagem, 
c o n c e b ê - l a como é pa ra os outros. 
A velhice é u m irrealizável, segundo Sartre; é uma s i t u a ç ã o 
composta de aspectos percebidos pelo outro e, como ta l , reificados 
( u m être-pour-autrui), que transcendem nossa consc iênc ia . Nunca 
poderei assumir a velhice enquanto exterioridade, nunca poderei 
assumi-la existencialmente, tal como ela é para o outro, fora de 
m i m . É um ir real izável como a negritude; como pode o negro real i-
zar em sua consc iênc ia o que os outros vêem nele? 
A velhice, que é fator natural como a cor da pele, é tomada 
preconceituosamente pelo outro. H á , no transcorrer da v ida , mo-
mentos de crise de iden t i f i cação : na ado l e scênc i a t a m b é m nossa 
imagem se quebra, mas o adolescente vive u m p e r í o d o de t r a n s i ç ã o , 
n ã o de dec l ín io . O velho sente-se u m ind iv íduo d i m i n u í d o , que lu ta 
para continuar sendo u m homem. O coeficiente de adversidade das 
coisas cresce: as escadas f icam mais duras de subir, as d i s t â n c i a s 
mais longas a percorrer, as ruas mais perigosas de atravessar, os 
pacotes mais pesados de carregar. O mundo fica e r i ç a d o de amea-
ças , de ciladas. U m a falha, u m a pequena d i s t r a ç ã o são severamente 
castigadas. 
P a r a a c o m u n i c a ç ã o com seus semelhantes precisa de arte-
hiios: p r ó t e s e s , lentes, aparelhos acús t i cos , c â n u l a s . Os que n ã o 
|)i)dem comprar esses aparelhos f icam privados de c o m u n i c a ç ã o . 
U m dos velhos que entrevistei escreve estes versos: 
A mão tremula é incapaz 
de ensinar o apreendido. 
É a i m p o t ê n c i a de t ransmit ir a expe r i ênc i a , quando os meios 
ilr c o m u n i c a ç ã o com o mundo fa lham. E l e n ã o pode mais ensinar 
iu |iiilo que sabe e que custou toda u m a vida para aprender. 
Sobre a i n a d a p t a ç ã o dos velhos, convir ia meditar que nossas 
liu-uldades, pa ra continuaremvivas, dependem de nossa a t e n ç ã o à 
38 - M E M O R I A E S O C I E D A D E 
vida , do nosso interesse pelas coisas, enfim, depende de u m projeto. 
De que projeto o velho par t ic ipa agora? 
Bast ide ' ' observa, a p r o p ó s i t o das d o e n ç a s que a velhice acar-
reta, que n ã o se deve confundir senilidade, que é u m f e n ó m e n o 
pa to lóg i co , com senescencia, que é um estado normal do ciclo de 
v ida . E pergunta se a senilidade é u m efeito da senescencia ou u m 
produto ar t i f ic ia l da sociedade que rejeita os velhos. Citando o D r . 
Repond: "Somos mesmo levados a nos perguntar se o velho con-
ceito de d e m ê n c i a senil , pretenso resultado de p e r t u r b a ç õ e s cere-
brais , n ã o se deva revisar completamente, e se essas p s e u d o - d e m ê n -
cias n ã o são resultados de fatores ps icossocio lógicos agravados rapi-
damente, por co locação em ins t i tu ições inadequadamente equi-
padas e dirigidas, como t a m b é m por i n t e r n a ç õ e s nos hospitais psi-
q u i á t r i c o s , onde esses doentes muitas vezes abandonados a si mes-
mos, privados de e s t í m u l o s ps íqu icos necessá r ios , separados de todo 
interesse v i ta l , n ã o t ê m a esperar s e n ã o u m f im que se c o n v é m 
em desejar r á p i d o . 
" N ó s chegaremos mesmo a pretender que o quadro c l ín ico das 
d e m ê n c i a s senis talvez seja um produto ar t i f ic ia l , devido o mais das 
vezes à c a r ê n c i a de cuidados e de esforços de p r e v e n ç ã o e reabil i -
t a ç ã o . " 
Confirmando estas asserções , nas l e m b r a n ç a s de a n c i ã o s que 
colhemos, sobretudo nas do Sr . Abe l , que passou por hospital psi-
q u i á t r i c o e por asilo, notaremos t r a ç o s n ã o de u m despojamento 
p s í q u i c o , mas de u m despojamento social . 
Durante a velhice deve r í amos estar a inda engajados em causas 
que nos transcendem, que n ã o envelhecem, e que d ã o significado a 
nossos gestos quotidianos. Talvez seja esse um r e m é d i o contra os 
danos do tempo. M a s , pondera Simone de Beauvoir , se o traba-
lhador aposentado se desespera com a falta de sentido da vida 
presente, é porque em todo o tempo o sentido de sua vida lhe foi 
roubado. Esgotada sua força de trabalho, sente-se u m p á r i a , e é 
comum que o escutemos agradecendo sua aposentadoria como u m 
favor ou esmola. 
A d e g r a d a ç ã o senil c o m e ç a prematuramente com a degra-
d a ç ã o da pessoa que t rabalha. E s t a sociedade p r a g m á t i c a n ã o 
desvaloriza somente o o p e r á r i o , mas todo trabalhador: o m é d i c o , o 
professor, o esportista, o ator, o jornal is ta . 
(4) Sociologie des maladies mentales, p. 83. Paris, Flammarion, 1965. 
T E M P O D E L E M B R A R — 39 
Como reparar a d e s t r u i ç ã o s i s t emá t i ca que os homens sofrem 
desde o nascimento, na sociedade da c o m p e t i ç ã o e do lucro? C u i -
dados ge r iá t r i cos n ã o devolvem a s a ú d e física nem mental . A abo-
l ição dos asilos e a c o n s t r u ç ã o de casas decentes pa ra a velhice, n ã o 
segregadas do mundo ativo, seria u m passo à frente. M a s , haveria 
que sedimentar u m a cul tura para os velhos com interesses, tra-
balhos, responsabilidades que tornem sua sobrevivência digna. 
Como deveria ser u m a sociedade para que, na velhice, o homem 
p e r m a n e ç a u m homem? A resposta é radica l para Simone de Beau-
voir: "ser ia preciso que ele sempre tivesse sido tratado como ho-
m e m . " 
A n o ç ã o que temos de velhice decorre mais da luta de classes 
que do conflito de ge rações . É preciso mudar a vida, recriar tudo, 
refazer as re lações humanas doentes para que os velhos trabalha-
dores n ã o sejam u m a espécie estrangeira. P a r a que nenhuma forma 
de humanidade seja exc lu ída da Humanidade é que as minorias 
t êm lutado, que os grupos discriminados t ê m reagido. A mulher , o 
negro, combatem pelos seus direitos, mas o velho n ã o tem armas. 
Nós é que temos de lutar por ele. ^ -
A memória como função social 
É o momento de desempenhar a al ta função da l e m b r a n ç a . N ã o 
porque as sensações se enfraquecem, mas porque o interesse se 
desloca, as reflexões seguem outra l inha e dobram-se sobre a quin-
tessênc ia do vivido. Cresce a nitidez e o n ú m e r o das imagens de 
outrora e esta faculdade de relembrar exige u m esp í r i to desperto, a 
capacidade de n ã o confundir a v ida atual com a que passou, de 
reconhecer as l e m b r a n ç a s e opô- l a s às imagens de agora. 
N ã o h á evocação sem u m a in te l igênc ia do presente, u m 
homem n ã o sabe o que ele é se n ã o for capaz de sair das deter-
m i n a ç õ e s atuais. A tu rada ref lexão pode preceder e acompanhar a 
evocação . U m a l e m b r a n ç a é diamante bruto que precisa ser lapi-
dado pelo esp í r i to . Sem o trabalho da ref lexão e da loca l i zação , seria 
uma imagem fugidia. O sentimento t a m b é m precisa a c o m p a n h á - l a 
para que ela n ã o seja u m a repe t i ção do estado antigo, mas u m a 
r e a p a r i ç ã o . 
Se existe u m a m e m ó r i a voltada para a a ç ã o , feita de h á b i t o s , e 
uma outra que simplesmente revive o passado, parece ser esta a dos 
velhos, j á libertos das atividades profissionais e familiares. Se tais 
atividades nos pressionam, nos fecham o acesso para a evocação , 
inibindo as imagens de outro tempo, a r e c o r d a ç ã o nos p a r e c e r á algo 
40 — M E M O R I A E S O C I E D A D E 
semelhante ao sonho, ao devaneio, tanto contrasta com nossa v ida 
a t iva . E s t a repele a v ida contemplativa. 
M a s , o a n c i ã o n ã o sonha quando rememora: desempenha 
u m a função para a qual e s t á maduro, a religiosa função de un i r o 
c o m e ç o ao f im, de t ranqui l izar as á g u a s revoltas do presente alar-
gando suas margens: 
Meu dia outrora principiava alegre, 
no entanto à noite eu chorava. Hoje, mais velho, 
nascem-me em dúvida os dias, mas 
findam sagrada, serenamente.^ 
E l e , nas tribos antigas, tem u m lugar de honra como g u a r d i ã o 
do tesouro espiri tual da comunidade, a t r a d i ç ã o . N ã o porque tenha 
u m a especial capacidade pa ra isso: é seu interesse que se volta pa ra 
o passado que ele procura interrogar cada vez mais , ressuscitar 
detalhes, discutir motivos, confrontar com a o p i n i ã o de amigos, ou 
com velhos jornais e cartas em nosso meio. 
Quando a sociedade esvazia seu tempo de expe r i ênc i a s signifi-
cativas, empurrando-o pa ra a margem, a l e m b r a n ç a de tempos 
melhores se converte num s u c e d â n e o da v ida . E a vida a tual só 
parece significar se ela recolher de outra é p o c a o alento. O v íncu lo 
com outra é p o c a , a consc iênc ia de ter suportado, compreendido 
mui t a coisa, traz para o a n c i ã o alegria e u m a o cas i ão de mostrar sua 
c o m p e t ê n c i a . Sua vida ganha u m a finalidade se encontrar ouvidos 
atentos, r e s s o n â n c i a . 
O D r . Holbrok, de Nova Y o r k ^ , treinou u m velho com exer-
cício d i á r io de duas horas ( u m a pela m a n h ã , outra à tarde) pa ra que 
ele se lembrasse cada tarde dos acontecimentos do dia e a inda n a 
m a n h ã seguinte. Depois, treinou-o para reter dez nomes de celebri-
dades por semana, versos, s í l abas , o n ú m e r o da p á g i n a de u m 
l iv ro . . . Pobre velhinho! Comenta W i l l i a m James: " tanta tortura e 
n ã o vejo como teria melhorado sua m e m ó r i a " . A tenacidade d iminui 
com a idade; só a a s soc iação e a m e d i t a ç ã o a acrescem. No entanto, 
pensamos que n ã o se t rata do exercício em si , mas da a t e n ç ã o do 
outro, da a g r a d á v e l s e n s a ç ã o de ser ouvido que o est imulava a reter 
fatos t ão insignificantes pa ra ele. 
U m mundo social que possui u m a r iqueza e u m a diversidade 
que n ã o conhecemos, pode chegar-nos pela m e m ó r i a dos velhos. 
Momentos desse mundo perdidopodem ser compreendidos por 
(5) Hoelderlin, tradução de Manuel Bandeira. 
(6) How to Strengthen the Memory, citado por W. James in Précis de psycho-
logie. Paris, Mareei Riveére, 1915, tradução francesa. 
T E M P O D E L E M B R A R — 41 
quem n ã o os viveu e a t é humanizar o presente. A conversa evocativa 
de u m velho é sempre u m a e x p e r i ê n c i a profunda: repassada de 
nostalgia, revolta, r e s i g n a ç ã o pelo desfiguramento das paisagens 
caras, pela d e s a p a r i ç ã o de entes amados, é semelhante a u m a obra 
de arte. P a r a quem sabe ouvi-la é desalienadora, pois contrasta a 
r iqueza e a potencialidade do homem-criador de cu l tura com a mí -
sera figura do consumidor a tual . 
Hoje, fala-se tanto em criat ividade. . . mas, onde e s t ão as br in-
cadeiras, os jogos, os cantos e d a n ç a s de outrora? Nas l e m b r a n ç a s 
de velhos aparecem e nos surpreendem pela sua r iqueza. O velho, de 
um lado, busca a c o n f i r m a ç ã o do que se passou com seus c o e t â n e o s , 
em testemunhos escritos ou orais, investiga, pesquisa, confronta 
esse tesouro de que é g u a r d i ã o . De outro lado, recupera o tempo que 
correu e aquelas coisas que, quando as perdemos, nos fazem sentir 
d iminuir e morrer. 
E l e nos aborrece com o excesso de e x p e r i ê n c i a que quer acon-
selhar, providenciar, prever. Se protestamos contra seus conselhos 
pode calar-se e talvez querer acertar o passo com os mais jovens. 
E s sa a d a p t a ç ã o falha com freqi iência , pois o a n c i ã o se vê privado de 
sua fu n ção e deve desempenhar u m a nova, ágil demais para o seu 
passo lento. A sociedade perde com isso. Se a c r i a n ç a a inda n ã o ocu-
|)ou nela seu lugar, é sempre u m a força em e x p a n s ã o . O velho é a l -
g u é m que se retrai de seu lugar social e este encolhimento é u m a perda 
e um empobrecimento pa ra todos. E n t ã o , a velhice desgostada, ao 
retrair suas m ã o s cheias de dons, torna-se u m a ferida no grupo. 
* 
* * 
Se o adulto n ã o d i spõe de tempo ou desejo pa r a reconstruir a 
infânc ia , o velho se curva sobre ela como os gregos sobre a idade de 
ouro. 
Se examinarmos crit icamente a meninice podemos encontrar 
nela a sp i r ações truncadas, in jus t i ças , p r e p o t ê n c i a , a hostilidade 
li i ibitual contra os fracos. Poucos de n ó s puderam ver florescer seus 
(11 lentos, cumpr i r sua vocação mais verdadeira. Comparamos acaso 
nossos ideais antigos com os presentes? E x a m i n a m o s as ra ízes desse 
desengano progressivo das re lações sociais? 
A c r i a n ç a sofre, o adolescente sofre. D e onde nos vêm, e n t ã o , 
it saudade e a ternura pelos anos juvenis? Ta lvez porque nossa 
fraqueza fosse u m a força latente e em nós houvesse o germe de u m a 
plenitude a se real izar . N ã o hav ia a inda o constrangimento dos 
limites, nosso d iá logo com os seres era aberto, infinito. A p e r c e p ç ã o 
era uma aventura; como u m an imal descuidado, b r i n c á v a m o s fora 
da Jaula do e s t e r eó t i po . E assim foi o primeiro encontro da c r i a n ç a 
42 - M E M O R I A E S O C I E D A D E 
com O mar , com o girassol, com a asa na luz . F i c o u no adulto a 
nostalgia dos sentidos novos: 
Tendo perdido as ânforas da infância, 
ânforas que tomadas ou aspiradas 
derramavam no ar a substância 
de que as coisas bebiam inebriadas; 
tendo perdido o verde som dos hortos 
descer pelas ramagens nos silentes 
degraus, ainda vejo no sol posto 
o fruto ou flor fechada e rescendente. 
Sonho com as espigas debulhadas 
em grãos que a luz unia ou separava 
para cobrir o chão de áureo tecido 
e meus pés afundavam na dureza 
macia desses grãos que me fugia 
sem que ouvisse no ar o seu gemido. 
N ã o basta u m esforço abstrato pa r a recriar i m p r e s s õ e s passa-
das, nem palavras expr imem o sentimento de d i m i n u i ç ã o que acom-
panha a impossibilidade. Perdeu-se o t ô n u s vi ta l que permit ia . , 
aquelas sensações , aquela c a p t a ç ã o do mundo. Quando passamos 
na mesma c a l ç a d a , junto ao mesmo muro, o r u í d o da chuva nas 
folhas nos desperta alguma coisa. M a s , a s e n s a ç ã o p á l i d a de agora é 
u m a r e m i n i s c ê n c i a da alegria de outrora. E s t a sombra tem algo 
parecido com a alegria, tem o seu contorno: é u m a ev o cação . 
Histórias de velhos 
Por que decaiu a arte de contar h i s tó r i a s? Talvez-porque tenha 
d e c a í d o a arte de trocar e x p e r i ê n c i a s . A expe r i ênc i a que passa de 
boca em boca e que o mundo da t é c n i c a desorienta. A G u e r r a , a 
Burocrac ia , a Tecnologia desmentem cada dia o bom senso do 
c i d a d ã o : ele se espanta com sua magia negra, mas cala-se porque 
lhe é difícil explicar u m Todo i r rac iona l . 
A o transmit ir as l e m b r a n ç a s de pessoas idosas que escutei, 
quero expor o que pensa Wal te r B e n j a m i n ' sobre a arte de narrar . 
(7) / / narratore. Considerazioni suWopera di Nicola Leskov, in Angelus Novus. 
Turim, Einaudi, 1962. 
T E M P O D E L E M B R A R — 43 
Sempre houve dois tipos de narrador: o que vem de fora e na r r a suas 
viagens; e o que ficou e conhece sua terra, seus c o n t e r r â n e o s , cujo 
passado o habi ta . O narrador vence d i s t ânc i a s no e s p a ç o e volta 
para contar suas aventuras (acredito que é por isso que viajamos) 
num cantinho do mundo onde suas pe r ipéc i a s t ê m s igni f icação: 
Quando tudo no mundo é mocidade, 
verde a árvore, moça a natureza; 
e cada ganso te parece um cisne, 
e cada rapariga uma princesa; 
venham minhas esporas, meu cavalo! 
Vou correr mundo em busca da alegria! 
O sangue moço quer correr, ardente, 
e cada criatura quer seu dia... 
Nas frias tardes da velhice, quando 
é parda toda a árvore que vive; 
em que todo desporto é já cansaço, 
e toda a roda corre no declive; 
oh! volta à casa, busca o teu cantinho, 
vai, mesmo assim, cansado e sem beleza: 
lá acharás o rosto que adoravas 
quando era jovem toda a natureza! * 
O u a aventura vence as d i s t ânc i a s no tempo, trazendo u m fardo de 
conhecimento do qual t i ra o conselho. Se essa e x p r e s s ã o parece 
antiquada é porque d iminuiu a comunicabil idade da expe r i ênc i a . 
I loje n ã o h á mais conselhos, nem para nós nem para os outros. N a 
época da i n f o r m a ç ã o , a busca da sabedoria perde as forças , foi 
s u b s t i t u í d a pela o p i n i ã o . Por que despregar com esforço a verdade 
tias coisas, se tudo é relativo e cada u m f ica com sua o p i n i ã o ? Isto 
l a i n b é m deriva das re lações de p r o d u ç ã o que expulsaram o conselho 
(lo â m b i t o do falar vivo. 
A arte da n a r r a ç ã o n ã o es tá confinada nos livros, seu veio 
épico é oral . O narrador t i ra o que na r ra da p r ó p r i a expe r i ênc i a e a 
transforma em expe r i ênc i a dos que o escutam. No romance mo-
I U T I I O , O he ró i sofre as vicissitudes do isolamento e, se n ã o consegue 
rxpres sá - l a s de forma exemplar para n ó s , é porque ele mesmo e s t á 
(H) Esta balada está no livro de Charles Kingsley The Water Babies e foi tradu-
zida por Pepita de Leio (Porto Alegre, Globo, 1942). 
44 — M E M O R I A E S O C I E D A D E 
sem conselho e n ã o pode dá- lo aos outros. O romance atesta a deso-
r i e n t a ç ã o do vivente. 
Cervantes mostra como as ações de um dos seres mais nobres, 
o m a g n â n i m o , o audaz D o m Quixote , e s t ão privadas do dom do 
conselho. No romance, a personagem bate a c a b e ç a sozinha, ele 
historia os seus desencontros, suas falhas e lacunas, especialmente a 
c isura i n d i v í d u o - c o m u n i d a d e . A q u i , como nos li l t imos versos do 
Fausto, "o insuficiente torna-se evento". 
A n a r r a ç ã o exemplar foi s u b s t i t u í d a pela i n f o r m a ç ã o de im-
prensa, que n ã o é pesada e medida pelo bom senso do leitor. A s si m , 
a u n i ã o de u m a cantora com u m esportista ocupa mais e s p a ç o que 
u m a r evo lução . A i n f o r m a ç ã o pretende ser diferente das n a r r a ç õ e s 
dos antigos: atribui-se foros de verdade quando é t ã o inverificável 
quanto a lenda. E l a n ã o toca no maravilhoso, se quer p laus íve l . A 
arte de nar ra r vai decaindo com o triunfo da i n f o r m a ç ã o . Ingur-
gitada de exp l icações , n ã o permite que o receptor tire dela alguma 
l ição . Os nexos psicológicos entre os eventos que a n a r r a ç ã o omite 
f icam por conta do ouvinte, que p o d e r á reproduzi-la à sua vontade; 
da í o narrado possuir u m a amplitude de v ib rações que falta à infor-
m a ç ã o . 
H e r ó d o t o conta u m a pequena h i s tó r i a da qual se pode apren-
der muito: "Quando o rei eg ípc io P s a m ê n i t o foi vencido e ca iu 
prisioneiro do rei dos persas, Cambises , este resolveu h u m i l h á - l o . 
Ordenou que colocassem P s a m ê n i t o na rua por onde passaria o 
triunfo persa e fez com que o prisioneiro visse passar a f i lha em 
vestes de escrava enquanto se dir igia ao poço com u m balde n a m ã o . 
Enquan to todos os egípcios elevavam prantos e gritos à q u e l a visão, 
só P s a m ê n i t o permaneceu mudo e imóvel com os olhos pregados no 
c h ã o ; e quando, pouco depois, v iu o filho conduzido à morte no 
cortejo, permaneceu igualmente impass íve l . Mas , quando v iu passar 
entre os prisioneiros u m dos seus servos, um homem velho e empo-
brecido, e n t ã o golpeou a c a b e ç a com as m ã o s e mostrou todos os 
sinais da mais profunda dor."^ 
A s i t u a ç ã o fica aberta à nossa i n t e r p r e t a ç ã o . Por que teria 
chorado o rei P s a m ê n i t o ? Penso em possíveis respostas. P s a m ê n i t o 
chorou porque a visão do velho servidor foi a gota d ' á g u a que fez 
transbordar seu cál ice , depois de ter assistido impass íve l ao aprisio-
namento de seus entes mais caros. P s a m ê n i t o chorou porque o velho 
servidor, testemunha de sua in fânc i a e da ex i s tênc ia de seus pais e 
(9) A narrativa é recontada por Benjamin a partir de Montaigne, que por sua 
vez a tinha recontado de Heródoto (idem, p. 241). 
T E M P O D E L E M B R A R - 45 
avós, era um elo que unia e confirmava a g e r a ç ã o real . Seu arrasta-
mento e p r i s ã o s imbolizavam o esfacelamento da dinastia. P s a m ê -
nito chorou porque a princesa poderia t ramar nos bastidores a seu 
favor; o p r í n c i p e poderia ar t icular u m a revolta e libertar sua m ã e e 
i r m ã s , mas ao velho servidor j á n ã o restavam forças , sendo, por-
tanto, inú t i l e cruel sua h u m i l h a ç ã o . 
Por que chora o narrador em certos momentos da h i s tó r i a de 
sua vida? Esses momentos n ã o são , com certeza, aqueles de que 
e s p e r a r í a m o s l á g r i m a s e nos desconcertam. O Sr . Ariosto vai contar-
nos seus primeiros anos rondados pela fome quase corporificada na 
narrativa, a perda de seus parentes, a r u í n a . Sendo u m a pessoa 
gen t i l í s s ima , sua n a r r a ç ã o procura n ã o abalar o ouvinte em mo-
mento algum, mas ele chora quando nos conta que seu pai susten-
tava a famí l ia como mestre de cal igrafia . Como seria a vida de um 
mestre de cal igraf ia no início do sécu lo? 
* 
A i n f o r m a ç ã o só nos interessa enquanto novidade e só tem 
valor no instante que surge. E l a se esgota no instante em que se d á e 
se deteriora. Que diferente a n a r r a ç ã o ! N ã o se consuma, pois sua 
força e s t á concentrada em limites como a da semente e se e x p a n d i r á 
por tempo indefinido. 
Por que t e r á chorado o rei P s a m ê n i t o ? 
O receptor da c o m u n i c a ç ã o de massa é um ser desmemoriado. 
Uccebe um excesso de in fo rmações que saturam sua fome de conhe-
cer, incham sem nutrir , pois n ã o h á lenta m a s t i g a ç ã o e a s s i m i l a ç ã o . 
A c o m u n i c a ç ã o em mosaico r e ú n e contrastes, ep i sód ios d í s p a r e s 
sem s ín tese , é a -h is tór ica , por isso é que seu espectador perde o 
sentido da Hi s tó r i a . 
Pesquisando jornais de alguns anos a t r á s , surpreendi-me com 
lis manchetes que l i a . Eventos importantes em sua é p o c a eu havia 
relegado para um segundo plano, onde j a z i a m na sombra. Desfi-
l iuam ante meus olhos pacifistas, resistentes, guerrilheiros, m á r -
( ' les . . . Leio a manchete de oito anos a t r á s : 
" A P O L I C I A E V A C U O U O R E C I N T O D O T R I B U N A L P A R A Q U E A S Ú L T I M A S 
l'AI A V R A S DO R É U N A O F O S S E M O U V I D A S . " 
E eu as havia esquecido! 
Abro um jo rna l de agosto de 1973: 
" A S M A O S D E V I C T O R J A R A F O R A M C O R T A D A S NO E S T A D I O CHILENO, 
l'Nt.)llANTO S E U S C A R R A S C O S O D E S A F I A V A M A T O C A R E C A N T A R . " 
46 — M E M O R I A E S O C I E D A D E 
E ele cantou: 
Canto que mal me sales 
cuando tengo que cantar espanto! 
Espanto como el que vivo 
como el que muero espanto 
de verme entre tantos y tantos 
momentos dei infinito 
en que el silencio y el grito... 
Esquecerei esta no t í c i a daqui a poucos anos? B e m nos adverte 
G a r c i a L o r c a contra esse tempo atulhado de objetos sem sentido e 
despovoado de m e m ó r i a : 
Ay, poeta infantil, 
quiebra tu reloj! 
Morre a arte da narrat iva quando morre a r e t e n ç ã o da le-
genda. Perdeu-se t a m b é m a faculdade de escutar, dispersou-se o 
grupo de escutadores. Quanto mais se esquecia de si o ouvinte, tanto 
mais entrava nele a h i s tó r i a , e a arte de nar rar transmitia-se quase 
naturalmente. E s t a rede tecida em mi lén ios se desfia de u m lado e 
de outro. 
A n a r r a ç ã o é u m a forma artesanal de c o m u n i c a ç ã o . E l a n ã o 
visa a t ransmit ir o " em s i " do acontecido, ela o tece a t é atingir u m a 
forma boa. Investe sobre o objeto e o transforma. T e n d ê n c i a comum 
dos narradores é c o m e ç a r com a e x p o s i ç ã o das c i r c u n s t â n c i a s em 
que assistiu o ep i sód io : " — Cer ta vez, i a andando por u m caminho 
quando. . . " Isso quando o conta como n ã o diretamente vivido por 
ele. 
Va lé ry lembra os tempos em que o tempo n ã o contava, em 
que o a r t e s ã o i a entalhando, esculpindo como se imitasse a paciente 
obra da natureza, obtendo tonalidades novas com u m a série de 
camadas sutis e transparentes. O homem moderno n ã o cult iva o que 
ele pode simphficar e abreviar. Roubada à t r a d i ç ã o oral , a short 
story t a m b é m se i m p r i m i u e abreviou, n ã o permite mais que se conte 
e reconte, formando sobre ela a s u p e r p o s i ç ã o de camadas sutis e 
transparentes com que os contadores retocam a h i s tó r i a mat r iz . 
Va lé ry reflete que quando d iminui no e sp í r i t o a ideia da eternidade 
cresce a ave r são pelos trabalhos longos e pacientes. Quando os 
velhos se assentam à margem do tempo j á sem pressa — seu hori-
zonte é a morte — floresce a narra t iva . 
A civi l ização burguesa expulsou de s i a morte; n ã o se vis i tam 
moribundos, a pessoa que vai morrer é apartada, os defuntos j á n ã o 
são contemplados. O leito de morte se transformava em u m trono de 
T E M P O D E L E M B R A R — 47 
onde o moribundo ditava seus ú l t imos desejos ante os familiares e 
vi / inhos que entravam pelas portas escancaradas para assistir ao ato 
solene. E r a natural dormir numa cama onde dormiram os avós , 
onde morreram rodeados pelos seus. E r a natura l visitar um defunto, 
a c o m p a n h á - l o ao ouvir os sinos plangerem. E guardar o crucif ixo 
onde impr imiu o ú l t i m o beijo. A morte vem sendo progressivamente 
expulsa da p e r c e p ç ã o dos vivos. 
Os agonizantes, diz Benjamin , são jogados pelos herdeiros em 
s a n a t ó r i o s e hospitais. Os burgueses desinfetam as paredes da eter-
nidade. No entanto, todo o vivido, toda a sabedoria do agonizante 
pode perpassarpor seus l áb io s . E l e pode examinar sua vida inteira , 
filtrar seu significado mais profundo e querer transmiti-lo em pala-
vras entrecortadas cujo sentido todos se e s fo rçam pa ra adivinhar e 
inierpretar. A m ã o se ergue pa ra a ú l t i m a b ê n ç ã o sobre os vivos e, à 
medida que o olhar se apaga, mais cresce a autoridade do que é 
transmitido. Autoridade que o mendigo possui ao morrer no c h ã o da 
rua e que é a essênc ia da narrat iva . 
Todas as h i s tó r i a s contadas pelo narrador inscrevem-se dentro 
(la sua história, a de seu nascimento, v ida e morte. E a morte sela 
suas h i s tó r i a s com o selo do p e r d u r á v e l . A s h i s tó r i a s dos l áb ios que 
já n ã o podem recon t á - l a s tornam-se exemplares. E , . como reza a fá-
bula, se n ã o e s t ão a inda mortos, é porque vivem ainda hoje. 
* 
* * 
. Mnemosyne, a recordadora, era divindade no p a n t e ã o grego. 
Q u a l o poder de Mnemosyne? I r m ã de Cronos e de O k e a n ó s , do 
lempo e do oceano, m ã e das musas cujo coro conduz, ela preside à 
função poé t i ca que exige i n t e rvenção sobrenatural . É u m a forma de 
possessão e del í r io divinos, o entusiasmo.*" O i n t é r p r e t e de Mnemo-
syne é p o s s u í d o pelas musas assim como o profeta o é por Apolo. 
V e r n a n t i i , quando estuda os aspectos mí t i cos da m e m ó r i a e 
(lo tempo, coteja sempre a v idênc ia do futuro com a do passado, as 
revelações do que aconteceu outrora e do que a inda n ã o é. Mnemo-
syne dispensa a seus eleitos u m a on i sc iênc ia do tipo d iv ina tó r io , n ã o 
de seu passado individual , mas do passado em geral, do tempo 
antigo. Q u a l a função da m e m ó r i a ? N ã o recons t ró i o tempo, n ã o o 
(10) A etimologia da palavra nos ensina que, para os gregos, entusiasmo significa 
o estado de quem tem um deus dentro de si. 
(11) Jean Pierre Vernant, Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo, Dif. 
Europeia do Livro, 1970. 
48 - M E M Ó R I A E S O C I E D A D E 
anula tampouco. A o fazer cair a bar re i ra que separa o presente do 
passado, l a n ç a u m a ponte entre o mundo dos vivos e o do a l é m , ao 
qual retorna tudo o que deixou à luz do sol. Rea l i za u m a evocação: o 
apelo dos vivos, a vinda à luz do dia , por u m momento, de um 
defunto. É t a m b é m a viagem que o o r á c u l o pode fazer, descendo, 
ser vivo, ao p a í s dos mortos para aprender a ver o que quer saber. 
A anamnesis ( r emin i scênc ia ) é u m a espécie de in i c i ação , como 
a r eve lação de u m mis té r io . A visão dos tempos antigos libera-o, de 
certa forma, dos males de hoje. 
Vernant , descrevendo o r i tua l no o r ácu lo de L e b a d é i a , conta 
que antes de entrar no pa í s dos mortos o consultante bebia de duas 
fontes: no Lethe, e esquecia sua v ida humana; na Mnemosyne, 
para lembrar o que havia visto no outro mundo. Q u e m guarda a 
m e m ó r i a no Hades transcende a c o n d i ç ã o mortal , n ã o vê mais 
opos i ção entre a vida e a morte. O privi légio pertence a todos 
aqueles cuja m e m ó r i a sabe discernir para a l ém do presente o que 
e s t á enterrado no mais profundo passado e amadurece em segredo 
para os tempos que v i rão . 
Hoje, a f unção da m e m ó r i a é o conhecimento do passado que 
se organiza, ordena o tempo, local iza cronologicamente. N a aurora 
da civi l ização grega ela era v idênc ia e êx t a se . O passado revelado 
desse modo n ã o é o antecedente do presente, é a sua fonte. D o 
estudo de Vernant sentimos a impossibilidade de separar a m e m ó r i a 
do conselho e da profecia. 
L e m b r a Flávio D i Giorg i algumas noções sobre etimologia: " a 
raiz bru ta mn em seu grau 1, expressa o caso indiv idual , como 
memini {eu me lembro). E m seu grau O a ra iz mn entra no nível da 
a t u a ç ã o social: como moneo {eu advirto, ou eu admoesto). Es te grau 
pode permit ir a f o r m a ç ã o de palavras carregadas de ambiguidade 
cul tura l como 'monitor ' {conselheiro) de c o n o t a ç ã o positiva. M a s 
t a m b é m 'admoestador' {corregedor), de c o n o t a ç ã o negativa.'* 
* 
* * 
Ent re o ouvinte e o narrador nasce u m a r e l ação baseada no 
interesse comum em conservar o narrado que deve poder ser repro-
duzido. A m e m ó r i a é a faculdade é p i c a por exce lênc ia . N ã o se pode 
perder, no deserto dos tempos, u m a só gota da á g u a i r isada que, 
n ó m a d e s , passamos do côncavo de u m a pa ra outra m ã o . A h i s tó r i a 
deve reproduzir-se de g e r a ç ã o a g e r a ç ã o , gerar muitas outras, cujos 
fios se cruzem, prolongando o original , puxados por outros dedos. 
Quando Scheerazade contava, cada ep isód io gerava em sua a lma 
u m a h i s tó r i a nova, era a m e m ó r i a ép i ca vencendo a morte em mi l e 
u m a noites. 
T E M P O D E L E M B R A R — 49 
"Dessa lu ta ( . . . ) emergem as expe r i ênc i a s francamente ép icas 
do tempo: a e s p e r a n ç a e a r e c o r d a ç ã o . " ( L u k á c s ) Referindo-se ao 
romancista, diz ainda L u k á c s que o sujeito a l c a n ç a " a unidade de 
toda sua v ida ( . . . ) na corrente de v ida passada concentrada na recor-
d a ç ã o ( . . . ) a visão que colhe esta unidade ( . . . ) é a i n t u i ç ã o e o 
pressentimento do significado n ã o a l c a n ç a d o e, portanto, inexpr i -
mível da v i d a " . 12 
Este sentido precisa incluir o trabalho das m ã o s . A l m a , olho e 
m ã o entram em acordo pa ra Va lé ry no narrador: é um a r t e s ã o que 
torna visível o que es tá dentro das coisas: — E u n ã o sabia — diz 
uma c r i a n ç a a u m escultor — que dentro daquele bloco de pedra 
estava esse cavalo que você t i rou. 
O narrador e s t á presente ao lado do ouvinte. Suas m ã o s , expe-
rimentadas no trabalho, fazem gestos que sustentam a h i s tó r i a , que 
d ã o asas aos fatos principiados pela sua voz. T i r a segredos e l ições 
que estavam dentro das coisas, faz u m a sopa deliciosa das pedras do 
c h ã o , como no conto da Caroch inha . A arte de nar rar é u m a r e l a ç ã o 
a lma, olho e m ã o : assim transforma o narrador sua m a t é r i a , a v ida 
humana. 
T r a b a l h a r a m a t é r i a - p r i m a da expe r i ênc i a : os o p e r á r i o s apo-
sentados florentinos, depois de fabricar, na juventude e maturidade, 
o objeto em sér ie , na velhice fazem obras-primas com madeira , 
mosaico e couro, que, h á poucos anos, podiam ser encontrados no 
Ponte Vecchio. É o tempo de se entregar a u m a e x p e r i ê n c i a pro-
funda, de penetrar, como u m ar t í f ice , a natureza das coisas. 
O narrador é u m mestre do ofício que conhece seu mister: ele 
tem o dom do conselho. A ele foi dado abranger u m a vida inteira . 
Seu talento de narrar lhe vem da expe r i ênc i a ; sua l ição , ele 
extraiu da p r ó p r i a dor; sua dignidade é a de c o n t á - l a a t é o f im , sem 
medo. 
U m a atmosfera sagrada c i rcunda o narrador. 
(12) Giorgy Lukács, Théorie du roman. Paris, Gorithier, 1965, p. 74. 
Memória do trabalho 
os T R A B A L H O S D A M À O 
Parece ser próprio do animal simbólico valer-se de uma 
só parle do seu organismo para exercer funções diversís-
simas. A mão sirva de exemplo. 
A mão arranca da terra a raiz e a erva, colhe da 
árvore o fruto, descasca-o, leva-o à boca. A mão apanha 
o objeto, remove-o, achega-o ao corpo, lança-o de si. A 
mão puxa e empurra, junta e espalha, arrocha e afrouxa, 
contrai e distende, enrola e desenrola: roça, toca, apalpa, 
acaricia, belisca, unha, aperta, esbofeteia, esmurra: 
depois, massageia o músculo dorido. 
A mão tacteia com as pontas dos dedos, apalpa e 
calca com a polpa, raspa, arranha, escarva, escarifica e 
escarafuncha com as unhas. Com o nó dos dedos, bate. 
A mão abre a ferida e a pensa. Eriça o pelo e o 
alisa. Entrança e destrança o cabelo. Enruga e desenruga 
o papel e o pano. Unge e esconjura, asperge e exorciza. 
Acusa

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