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O papel dos princípios na interpretação e aplicação do Direito Apresentação Os princípios são normas de caráter geral e apresentam composição abstrata enquanto conceitos programáticos que advêm de preceitos gerais jusnaturais reconhecidos pelo juspositivismo contemporâneo. O papel dos princípios na interpretação e na aplicação do Direito é fundamental a partir da reintrodução da jurisprudência dos valores, com início na segunda metade do século XX. A introdução de princípios como uma positivação de valores universais ou "direitos humanos" na forma de "direitos fundamentais" mudou radicalmente o pensamento hermenêutico pós- positivismo clássico. Nesta Unidade de Aprendizagem, você vai conhecer o conceito de princípios, seu papel na hermenêutica, a distinção entre princípios e regras e as formas de resolução de conflitos entre princípios. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar o conceito de princípio.• Analisar as diferenças entre princípios e regras jurídicas.• Aplicar as ferramentas de resolução de conflitos.• Desafio Quando há colisão entre princípios, isto é, se algo está ilegal de acordo com um princípio, mas legal de acordo com outro, um dos lados precisará ceder; o que não quer dizer que o príncipio cedente vá ser declarado como inválido ou que será introduzida nele uma cláusula de exceção. Acompanhe a situação a seguir: Com base nos princípios constitucionais, desenvolva a possível colisão de princípios envolvida no caso concreto. Infográfico A solução de conflitos envolvendo princípios se dá pelo uso dos postulados hermenêuticos da igualdade, razoabilidade e proporcionalidade, compondo regras de balanço entre princípios conforme as particularidades do caso concreto. Neste Infográfico, você vai ver as principais características desses postulados, bem como exemplos de aplicação ou questionamentos necessários para a utilização deles na prática. Confira: Conteúdo do livro Os princípios são positivações de valores axiológicos presentes na construção de um novo jusnaturalismo conformado na declaração de direitos do homem e demais tratados internacionais que foram incorporados nas constituições na forma de "Direitos Fundamentais". Além disso, alguns sistemas jurídicos possuem princípios próprios que orientam a interpretação das regras específicas, como a proteção do consumidor no direito civil, a legalidade no direito público em geral, etc. Leia o capítulo O papel dos princípios na interpretação/aplicação do direito, do livro Hermenêutica e argumentação jurídica, base teórica desta Unidade de Aprendizagem, onde você vai estudar o conceito de princípios, suas distinções em relação às regras jurídicas e as características específicas da resolução de conflitos envolvendo colisões de princípios. Boa leitura. HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Magnum Eltz O papel dos princípios na interpretação e aplicação do Direito Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar o conceito de princípio. Analisar as diferenças entre princípios e regras jurídicas. Aplicar as ferramentas de resolução de conflitos. Introdução Os princípios são normas de caráter geral. Eles apresentam uma composi- ção abstrata, enquanto conceitos programáticos que advêm de preceitos gerais jusnaturais reconhecidos pelo juspositivismo contemporâneo. O papel dos princípios na interpretação e aplicação do Direito é fundamental a partir da reintrodução da jurisprudência dos valores, com início na segunda metade do século XX. A introdução de princípios como uma positivação de valores universais, ou direitos humanos na forma de direitos fundamentais, mudou radicalmente o pensamento hermenêutico do pós-positivismo clássico. Neste capítulo, você vai conhecer o conceito de princípios, o seu papel na hermenêutica, a distinção entre princípios e regras, e as formas de resolução de conflitos entre princípios. Princípios O conceito de princípios, no Direito, está intimamente ligado, na sua forma pós-moderna, aos valores primários construídos no jusnaturalismo, repre- sentados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Assim, são reconhecidos direitos pré-positivistas que se irradiam sobre determinado C7_Hermeneutica_e_Argumentacao.indd 1 04/04/2018 16:25:30 Estado ao constarem na sua Constituição Federal a partir da sua integração ao direito interno na forma de direitos fundamentais. Segundo Norberto Bobbio (2004, p. 17), A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a manifestação da única prova por meio da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca da sua validade. Os jusnaturalistas teriam falado de consensus omnium gentium ou humani generis. Para o autor, a DUDH inaugura uma era de construção mundial de valores a serem protegidos pelo Estado: Ora, a Declaração Universal dos Direitos do Homem — que é, certamente, com relação ao processo de proteção global dos direitos do homem, um ponto de partida para uma meta progressiva, como dissemos até aqui — representa, ao contrário, com relação ao conteúdo, isto é, com relação aos direitos pro- clamados, um ponto de parada num processo de modo algum concluído. Os direitos elencados na Declaração não são os únicos e possíveis direitos do homem: são os direitos do homem histórico, tal como este se configurava na mente dos redatores da Declaração após a tragédia da Segunda Guerra Mun- dial, numa época que tivera início com a Revolução Francesa e desembocara na Revolução Soviética (BOBBIO, 2004, p. 20). Assim, é possível dizer que há uma correspondência direta entre o conceito de direitos fundamentais e o uso de princípios como métodos de interpretação jurídica, uma vez que os princípios gerais de Direito são extraídos dos valores normativos que, normalmente, encontram-se descritos dentro da positivação dos valores jusnaturais representados pelos direitos fundamentais. No entanto, não se esgotam nessa sistematização, estando dotados de princípios e valores também as normas infraconstitucionais, muitas vezes com valores específicos em relação àquelas normas programáticas constitucionais — por exemplo, os princípios da autonomia da vontade das partes e função social dos contratos do Código Civil e Normas Fundamentais do Processo Civil, previstas no Código de Processo Civil de 2015 (BRASIL, 2015). Em qualquer uma dessas modalidades, o estudo do conceito de princípio e a sua distinção do conceito puro de valores é necessária para que possamos compreender a sua dinâmica no sistema hermenêutico jurídico contemporâneo. Conforme os ensinamentos de Humberto Ávila (2004, p. 70): O papel dos princípios na interpretação e aplicação do Direito2 C7_Hermeneutica_e_Argumentacao.indd 2 04/04/2018 16:25:31 os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. Assim, como depreende-se do trabalho de Bobbio e Ávila, os princípios são parte de um projeto de Estado fundado em valores jusnaturais que compõe conceitos complementares necessários à aplicação desse projeto ao estado das coisas: Como se vê, os princípios são normas imediatamente finalísticas. Eles esta- belecem um fim a ser atingido. Como bem define Ota Weinberger, um fim é uma ideia que exprime uma orientação prática. Elemento constitutivo do fim é a fixação de um conteúdo como pretendido. Essa explicação só consegue ser compreendida com referência à função pragmática dos fins: eles representam uma função diretiva (richtungsgebende funktion) para a determinação da conduta. Objeto do fim são conteúdos desejados.Esses, por sua vez, podem ser o alcance de uma situação terminal (viajar até algum lugar), a realização de uma situação ou estado (garantir previsibilidade), a perseguição de uma situação contínua (preservar o bem-estar das pessoas) ou a persecução de um processo demorado (aprender o idioma alemão). O fim não precisa, necessa- riamente, representar um ponto final qualquer (Endzustand), mas apenas um conteúdo desejado. Daí se dizer que o fim estabelece um estado ideal de coisas a ser atingido, como forma geral, para enquadrar os vários conteúdos de um fim. A instituição do fim é o ponto de partida para a procura dos meios. Os meios podem ser definidos como condições (objetos, situações) que causam a promoção gradual do conteúdo do fim. Por isso a ideia de que os meios e os fins são conceitos correlatos (ÁVILA, 2004, p. 70-71). Essa função programática dos princípios, portanto, é valorativa enquanto parte de um conjunto de direitos naturais defendidos pelo Estado, porém compõe, ao mesmo tempo, uma função diretiva e finalística, diferenciando-se de um mero valor abstrato. Conforme o pensamento de Alexy (2008, p. 144): Duas considerações fazem com que seja facilmente perceptível que princípios e valores estão intimamente relacionados: de um lado, é possível falar tanto de uma colisão de um sopesamento entre princípios quanto uma colisão e um sopesamento entre valores; de outro lado, a realização gradual dos prin- cípios corresponde à realização gradual dos valores. Diante disso, é possível transformar os enunciados sobre valores do Tribunal Constitucional Federal em enunciados sobre princípios, e enunciados sobre princípios ou máximas em enunciados sobre valores, sem que, com isso, haja perda de conteúdo. 3O papel dos princípios na interpretação e aplicação do Direito C7_Hermeneutica_e_Argumentacao.indd 3 04/04/2018 16:25:31 No entanto, apesar dessas semelhanças conceituais, há distinções científicas importantes entre esses conceitos, conforme o próprio autor aponta: A despeito dessas visíveis semelhanças, há uma diferença importantíssima entre valor e princípio, que pode ser melhor compreendida com base na divisão dos conceitos práticos proposta por von Wright. Segundo ele, os conceitos práticos dividem-se em três grupos: os deontológicos, os axiológicos e os antropológi- cos. Exemplos de conceitos deontológicos são os conceitos de dever, proibição, permissão e de direito a algo. Comum a esses conceitos, como será demonstrado mais adiante, é o fato de que podem ser reduzidos a um conceito deôntico básico, que é o conceito de dever ou dever-ser. Já os conceitos axiológicos são caracteri- zados pelo fato de que o seu conceito básico não é o de dever ou dever–ser, mas o conceito de bom. A diversidade de conceitos axiológicos decorre de diversidade de critérios por meio dos quais algo pode ser qualificado como bom. Assim, conceitos axiológicos são utilizados quando algo é classificado como bonito, corajoso, seguro, econômico, democrático, social, liberal ou compatível com o Estado de Direito. Exemplos de conceitos antropológicos, por fim, são conceitos de vontade, interesse, necessidade, decisão e ação (ALEXY, 2008, p. 145). Dessa forma, a partir do rigor científico e da classificação entre conceitos deontológicos (dever–ser), axiológicos (valoração subjetiva) e antropológicos (elementos próprios da humanidade), os princípios, no que interessa ao Direito, são provenientes, em determinado momento, de uma origem axiológica. Mas, a partir da positivação pela constitucionalização desses valores, tornam-se deontológicos ante a nação que acolhe esses valores. Portanto: [...] se se pressupõe a possibilidade dessa transição, então, é perfeitamente possí- vel, na argumentação jurídica, partir de um modelo de valores em vez de partir de um modelo de princípios. Mas o modelo de princípios tem a vantagem de que nele o caráter deontológico do Direito se expressa claramente. A isso soma-se o fato de que o conceito de princípio suscita menos interpretações equivocadas que o conceito de valor. Ambos os aspectos são importantes o suficiente para que se dê preferência ao modelo de princípios (ALEXY, 2008, p. 153). Os princípios, em resumo, são conceitos abstratos, adquiridos pela in- ternalização de valores subjetivos em determinado ordenamento jurídico na composição de seus direitos fundamentais ou princípios formadores de determinados ramos do direito. Eles constituem normas programáticas que direcionam as políticas públicas e a própria revisão do Direito a partir da revisão constitucional de leis e decisões judiciais e compõem parte da hermenêutica jurídica enquanto conformadores entre regras jurídicas e os direitos jusnaturais elencados pelo Estado de Direito. O papel dos princípios na interpretação e aplicação do Direito4 C7_Hermeneutica_e_Argumentacao.indd 4 04/04/2018 16:25:31 Os valores são elementos puramente axiológicos que servem de inspiração para a criação dos princípios. Já os princípios são positivados na forma de direitos fundamen- tais ou princípios gerais nas constituições ou diplomas legais para orientar sistemas jurídicos específicos. Princípios e regras jurídicas Como visto, os princípios são normas de caráter geral e possuem composição abstrata enquanto conceitos programáticos que advém de preceitos gerais jusnaturais reconhecidos pelo juspositivismo contemporâneo. As regras, por outro lado, conforme conceitua Ávila (2004, p. 70): [...] são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Logo, são diretrizes concretas e aplicáveis conforme o seu conteúdo, conectando-se com os princípios por uma raiz axiológica. Sobre a distinção entre as regras e os princípios, Ávila (2004) aponta quatro critérios predominantes na doutrina: critério hipotético-condicional; modo final de aplicação; relacionamento normativo; fundamento axiológico. Conforme Ávila (2004, p. 30), o critério hipotético-condicional: [...] fundamenta-se no fato de as regras possuírem uma hipótese e uma conse- quência que predeterminam a decisão, sendo aplicadas ao seu modo, enquanto os princípios apenas indicam o fundamento a ser utilizado pelo aplicador para seguramente encontrar a regra para o caso concreto. Dworkin afirma: “Se os fatos estipulados por uma regra ocorrem, então ou a regra é válida, em cujo caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou ela não é, em cujo caso ela em nada contribui para a decisão”. 5O papel dos princípios na interpretação e aplicação do Direito C7_Hermeneutica_e_Argumentacao.indd 5 04/04/2018 16:25:31 Caminho não muito diverso é seguido por Alexy (2008), quando define as regras como normas cujas premissas são, ou não, diretamente preenchidas. Segundo ele (ALEXY, 2008, p. 90-91): O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conse- guinte, mandamentos de organização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida da sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. [...] Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exata- mente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regrase princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra, ou um princípio. Assim, as normas-princípios seriam verdadeiras diretrizes programáticas, enquanto as normas-regras seriam mecanismos para atingir essas intenções ou valores axiológicos positivados. O segundo critério apontado por Ávila (2004) é o modo final de aplicação, que se sustenta no fato de as regras serem aplicadas de modo absoluto, tudo ou nada, ao passo que os princípios são aplicados de modo gradual, mais ou menos. Segundo Alexy (2008, p. 92-94): Um conflito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras for declarada inválida. [...] As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Assim, colisões entre regras pressupõem que uma delas seja excluída do seu âmbito de incidência, enquanto o conflito entre princípios pressupõe uma ponderação entre os valores discutidos ante os sistemas jurídicos que representam e a sua adequação ao caso concreto. Esse critério é diretamente relacionado ao terceiro critério apontado por Ávila (2004, p. 31), o relacionamento normativo: [...] o critério do relacionamento normativo, que se fundamenta na ideia de a antinomia entre as regras consubstanciar verdadeiro conflito, solucionável com a declaração de invalidade de uma das regras ou com a criação de uma O papel dos princípios na interpretação e aplicação do Direito6 C7_Hermeneutica_e_Argumentacao.indd 6 04/04/2018 16:25:31 exceção, ao passo que o relacionamento entre os princípios consiste num imbricamento, solucionável mediante ponderação que atribua uma dimensão de peso a cada um deles. Esse critério é reflexo dos meios de solução de conflitos entre regras e prin- cípios — o conflito das regras é mediado pela exclusão da regra inadequada, enquanto os princípios são sobrepesados, mas não excluídos. Finalmente, Ávila (2004) aponta como um quarto critério, o fundamento axiológico, no qual considera os princípios, ao contrário das regras, como fundamentos axiológicos para a decisão a ser tomada. Conforme visto na teoria de Alexy (2008) sobre os princípios e valores, os princípios possuem, de fato, ligação com fundamentos axiológicos. No entanto, não podem ser considerados apenas por esse viés, uma vez que são valores positivados, enquanto os fundamentos axiológicos são os próprios valores que lhes deram origem. As regras certamente se revestem de caráter deontológico mais forte do que os princípios, e ambos compõem formas de dever–ser e não apenas uma definição valorativa pura como ser bom ou ruim. Assim, é possível estabelecer que as principais distinções entre regras e princípios se correspondem com a proposição de Alexy (2008), segundo a qual as regras são conceitos concretos e que possuem resolução de conflitos por exclusão (“tudo ou nada”) e os princípios são diretrizes positivas de caráter aberto que podem ser concretizadas a partir do conteúdo de regras específicas. A resolução de conflito entre princípios é dada pela ponderação dos seus pesos, em um campo que foge do escopo da validade das normas, sendo os demais critérios apontados por Ávila (2004) consequência lógica dessas distinções. Resolução de conflitos entre princípios Os princípios, como visto, são valores positivados que constituem uma norma programática ou diretiva, com efi cácia por meio de regras e políticas públicas que satisfazem as suas demandas constitucionais ou sistêmicas. Esses princípios, no entanto, podem colidir conforme a aplicação de determinadas regras que 7O papel dos princípios na interpretação e aplicação do Direito C7_Hermeneutica_e_Argumentacao.indd 7 04/04/2018 16:25:31 privilegiem determinado valor constitucional em detrimento de outro. Nesse caso, esses confl itos são resolvidos a partir de regras específi cas de interpretação. Como visto anteriormente em Alexy (2008, p. 92), um conflito entre regras somente é solucionado se uma das regras for invalidada ou se em uma das regras é introduzida uma cláusula de exceção que elimine o conflito: Um exemplo para um conflito entre regras que pode ser resolvido por meio da introdução de uma cláusula de exceção é aquele entre a proibição de sair da sala de aula antes que o sinal toque e o dever de deixar a sala se soar o alarme de incêndio. Se o sinal ainda não tiver sito tocado, mas o alarme de incêndio tiver soado, essas regras conduzem a juízos concretos de dever-ser contradi- tórios entre si. Esse conflito deve ser solucionado por meio da inclusão, na primeira regra, de uma cláusula de exceção para o caso do alarme de incêndio. Ou seja, quando uma regra é aplicável, a incidência dessa norma específica necessariamente exclui o âmbito de incidência de outras normas que versem sobre a mesma matéria, pois o suporte fático comum à duas regras distintas não pode trazer duas consequências jurídicas distintas, sob pena de prejudicar a própria coerência do sistema normativo jurídico: Se esse tipo de solução não for possível, pelo menos uma das regras tem que ser declarada inválida e, com isso, extirpada do ordenamento jurídico. Ao contrário do que ocorre com o conceito de validade social ou de importância da norma, o conceito de validade jurídica não é graduável. Ou uma norma jurídica é válida, ou não é. Se uma regra é válida e aplicável a um caso concreto, isso significa que também sua consequência jurídica é válida. Não importa a forma como sejam fundamentados, não é possível que dois juízos concretos de dever-ser contraditórios entre si sejam válidos. Em um determinado caso, se se constata a aplicabilidade de duas regras com consequências jurídicas concretas contraditórias entre si, essa contradição não pode ser eliminada por meio da introdução de uma regra de exceção, então, pelo menos uma das regras deve ser declarada inválida (ALEXY, 2008, p. 92). Para Alexy (2008, p. 93): A constatação de que pelo menos uma das regras deve ser declarada inválida quando uma cláusula de exceção não é possível em um conflito entre regras nada diz sobre qual das regras deverá ser tratada dessa forma. Esse problema pode ser solucionado por meio de regras como lex posterior derogat legi priori e lex specialis derogat legi generali, mas é também possível proceder de acordo com a importância de cada regra em conflito. O fundamental é: a decisão de uma decisão sobre validade. O papel dos princípios na interpretação e aplicação do Direito8 C7_Hermeneutica_e_Argumentacao.indd 8 04/04/2018 16:25:31 A solução de conflito entre regras, portanto, pressupõe a exclusão de uma delas, uma vez que a regra é caracterizada pela concretização e especificidade do suporte fático previsto na norma. Essa solução, no entanto, não serve ao propósito da resolução de conflitos entre princípios, pois, conforme o autor (ALEXY, 2008, p. 93-94): Se dois princípios colidem — o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido —, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições, a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios — visto que só princípios válidos podem colidir — ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso. Essa dimensão do peso entre princípios equivalentes na sua força cons- titucional precede de técnica específica a esses casos, que, segundo Ávila (2004,p. 130), encontra-se na figura dos chamados postulados normativos: Os postulados normativos são normas imediatamente metódicas, que estrutu- ram a interpretação e aplicação de princípios e regras mediante a exigência, mais ou menos específica, de relações entre elementos com base em critérios. Alguns postulados aplicam-se sem pressupor a existência de elementos e de critérios específicos: a ponderação de bens consiste num método destinado a atribuir pesos a elementos que se entrelaçam, sem referência a pontos de vista materiais que orientem esse sopesamento; a concordância prática exige a realização máxima de valores que se imbricam; a proibição de excesso proíbe que a aplicação de uma regra ou de um princípio restrinja tal forma um direito fundamental que termine lhe retirando seu mínimo de eficácia. Essas ferramentas metodológicas, portanto, auxiliam a busca da coerência entre o princípio “vencedor” e a regra aplicável decorrente da interpretação do julgador. Isso não quer dizer que há anulação do princípio “vencido”, pois este é adequado em maior peso em casos distintos e permanece válido dentro do sistema jurídico como um todo, de modo que a colisão de princípios se dá no caso concreto. 9O papel dos princípios na interpretação e aplicação do Direito C7_Hermeneutica_e_Argumentacao.indd 9 04/04/2018 16:25:31 Os postulados apontados por Ávila (2004) como de maior ocorrência em nossa jurisprudência brasileira são os da: igualdade; razoabilidade; proporcionalidade. Segundo o autor (ÁVILA, 2004, p. 130), “[...] o postulado da igualdade estrutura a aplicação do Direito quando há relação entre dois sujeitos em função de elementos (critério de diferenciação e finalidade da distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em razão do fim)”. O postulado da igualdade, portanto, é uma diretriz aplicável ao sentido forte da igualdade em relação à aplicação de regras que igualem as partes da controvérsia ou em seu sentido fraco, ao estabelecer as distinções que justifiquem tratamentos distintos às partes que conformam o mesmo sistema constitucional. O segundo postulado apontado pelo autor é o postulado da razoabilidade, que possui três funções: O postulado da razoabilidade aplica-se, primeiro, como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualizantes do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer indicando em quais hipóteses o caso individual, em virtude das suas especificidades, deixa de se enquadrar na norma geral. Segundo, como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico, seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir. Terceiro, como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas (ÁVILA, 2004, p. 130). O postulado da razoabilidade, portanto, deve: especificar por que esse princípio é aplicável ao caso concreto (em detrimento de um ou mais princípios distintos); estabelecer a vinculação das normas ao mundo em que fazem referência (por exemplo, distinguir entre as lógicas sistêmicas, direito público e privado); reconhecer a equivalência entre os princípios conflitantes em relação aos valores positivados na constituição e sistemas legais ordinários. O papel dos princípios na interpretação e aplicação do Direito10 C7_Hermeneutica_e_Argumentacao.indd 10 04/04/2018 16:25:32 Finalmente, o postulado da proporcionalidade, segundo Ávila (2004, p. 30) , “[...] aplica-se nos casos em que exista uma relação de causalidade entre um meio e um fim concretamente perceptível”. Isso porque, com a exigência de realização de vários fins, todos constitucionalmente legitimados, implica a adoção de medidas adequadas necessárias e proporcionais em sentido estrito. Assim, é possível concluir que a resolução de conflitos entre princípios distin- gue-se pela equivalência dos princípios, o que não ocorre no campo das regras, que se excluem na sua aplicação. A escolha do peso dos princípios utilizados deve obedecer a coerência entre o princípio aplicado e o quadro normativo existente e valores de determinados subsistemas jurídicos. Ainda que sejam reconhe- cidos como equivalentes, os princípios em conflito em termos de um grande plano estatal dado pela Constituição e “animus” constituinte dos subsistemas infraconstitucionais. Além disso, a solução deve ser adequada ao caso concreto e deve enfrentar a especialidade ou não do caso frente às regras aplicáveis para o cumprimento das finalidades principiológicas preferidas pelo julgador. ALEXY, R. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. ÁVILA, H. B. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BRASIL. Lei nº. 13.105, de 16 de março de 2015. Brasília, DF, 2015. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2018. 11O papel dos princípios na interpretação e aplicação do Direito C7_Hermeneutica_e_Argumentacao.indd 11 04/04/2018 16:25:32 Dica do professor Os princípios são normas axiológicas positivadas que auxiliam na resolução de casos que extrapolam regras comuns. As regras, por sua vez, são caracterizadas por sua praticidade e clareza, tornando a resolução de controvérsias entre elas uma questão de escolha entre as que tenham o mesmo suporte fático. Nesta Dica do Professor, você vai explorar as principais distinções entre princípios e regras, bem como as ferramentas de resolução de conflitos entre regras e entre princípios. Não deixe de assistir. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://fast.player.liquidplatform.com/pApiv2/embed/cee29914fad5b594d8f5918df1e801fd/31cae72880d871bb2a145167f0056b0b Exercícios 1) Os princípios, na classificação de von Wright, são normas de natureza: A) axiológica. B) deontológica. C) sociológica. D) antropológica. E) teológica. 2) As regras jurídicas são caracterizadas por possuírem suporte fático __________________. A) indefinido. B) alternativo. C) definido. D) flexível. E) único. 3) As colisões entre princípios são resolvidas por meio de critérios de: A) especificidade. B) tempo. C) modo. D) exclusão. E) ponderação. 4) A colisão de regras jurídicas é definida no âmbito da ____________. A) eficácia. B) existência. C) validade. D) adequação. E) ponderação. 5) O postulado da razoabilidade possui três principais características. Marque a assertiva que corresponde a uma delas. A) Primazia da igualdade. B) Atualidade. C) Coerência sistêmica. D) Desproporcionalidade. E) Respeito à vontade do legislador. Na prática A colisão de princípios é instrumento imprescindível para a interpretação e resolução de questões que invocam solução constitucional. Esse foi o caso, por exemplo, do debate sobre os estudos de células-tronco, em que o Supremo Tribunal Federal delimitou a aplicabilidade do princípio da proteção à vida. Veja como isso aconteceu. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://statics-marketplace.plataforma.grupoa.education/sagah/f759f662-09c3-47d5-8727-1428609ec024/04cb0149-6ae4-4277-b478-1eccf1c03386.jpg Saiba + Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: Nova hermenêutica constitucional e a aplicação dos princípios interpretativos à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: em busca de limites para a atividade jurisdicional Para aprofundar os seus conhecimentos, leia este artigo em que o autor se propõe a discutir a problemática vivenciada no contexto de complexidade inerente à nova hermenêutica constitucional, abordando a aplicaçãodos princípios de interpretação constitucional na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e desenvolvendo o tema dentro de uma análise crítica da ampla liberdade judicial no exercício da atividade interpretativa. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. Judicialização da saúde: a dignidade da pessoa humana e a atuação do Supremo Tribunal Federal no caso dos medicamentos de alto custo Neste artigo, o autor investiga juridicamente a judicialização da saúde sob a perspectiva da dignidade da pessoa humana, analisando a atuação do Supremo Tribunal Federal no que tange à concessão de medicamentos e tratamentos de alto custo, destacando a necessidade de esclarecimento jurídico dos critérios hermenêuticos utilizados para o reconhecimento do direito fundamental à saúde. Não deixe de ler. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. Princípios e regras (Ronald Dworkin e Robert Alexy) https://siaiap32.univali.br//seer/index.php/nej/article/view/10647 https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/RBPP/article/viewFile/4809/3640 Assista ao video, onde o professor Xavier do canal "Direito Sem Juridiquês" analisa a distinção entre princípios e regras sob o prisma jusfilosófico de Robert Alexy e de Ronald Dworkin, dois importantes filósofos do Direito. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. O conceito de princípio entre a otimização e a resposta correta: aproximações sobre o problema da fundamentação e da discricionariedade das decisões judiciais a partir da Fenomenologia Hermenêutica Aprimore seus conhecimentos realizando a leitura desta dissertação, especialmente do capítulo 1, que trata do conceito de princípio. Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar. https://www.youtube.com/watch?v=IHxP9I3tM7k http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp042844.pdf